Vamos olhar essa história? Ao risco de alguma dureza de linguagem. Se formos em companhia pode ser suave. Uns ajudam os outros. Não dá é para não ir. Essa conversa de pós-verdade se tornou séria. Mexe com a vida. E mexe mal.
No século V a. C. os magníficos “professores da Grécia”, os sofistas, puseram os pré-socráticos de cabeça para baixo. Ensinaram que não há verdade. Não nos cansemos procurando. Vamos argumentar, convencer. Com o melhor argumento, naturalmente. Como não sabemos qual é o melhor, apresentemos os dois ou três mais prováveis. E ponhamos a audiência para decidir por convencimento. Geremos convicções. Já é muito.
No século IV a. C., Sócrates, Platão, Aristóteles disseram que não. Duas vezes. Não é verdade que não haja verdade. É difícil encontrá-la, mas vale uma vida estar à sua procura. E uma segunda vez: não, convicções não bastam. São necessárias provas. A verdade não é um convencimento, é uma demonstração. Empenha a vida. As provas devem ser lógicas. Os enunciados com pretensão de verdade, os discursos, precisam ser consistentes. Não ter contradições internas. As conclusões devem decorrer rigorosamente das premissas que as antecedem. Se for assim, o enunciado está correto. E, sendo correto, só pode ser verdadeiro. Porque a verdade nunca é, não pode ser, incorreta. — Para eles isso era bastante óbvio. Deixou de ser mais à frente.
Mais à frente é do século I ao XIII d. C., mais ou menos. Aí passou a ser requerida uma verdade adicional: a das coisas elas mesmas. Não bastava a correção dos enunciados. Era preciso que as próprias coisas fossem verdadeiras. Pois, afinal, Deus as criou. E Deus não cria falsidades. Ele não tinha entrado na conversa até aqui. Entrou e mudou tudo. Os caminhos então se bifurcaram. Sto. Agostinho, no século V, procurou dentro de si. Deus habitava lá. O sentido do mundo só podia estar lá. Sto. Tomas, no XIII, olhou para fora. Foi aí que criou sua definição, que colou tanto que passou por ser a única forma da verdade, como se não tivesse antes dela corrido uma longa história. “Adequação das coisas ao intelecto e do intelecto às coisas”. Os séculos seguintes aceitaram e lutaram com essa definição. Nietzsche, no XIX, a odiou. Disse que ela submetia a vida à teologia. Atacou a verdade. Mas não a anulou. Não foi sofista. Reivindicou uma verdade mais alta, a da vontade de potência da vida. Foi uma apoteose. Não prosperou.
No século XX a filosofia estava de língua de fora. Vinte e seis séculos! Vacilou. A ciência entrou e trocou verdade por eficácia, alinhou-se com a tecnologia. E pronto: a verdade morreu.
Morreu? Qual verdade? Talvez a da adequação, a de Sto. Tomás. Mas e a dos pré-socráticos, marés, água e areia? A negação da verdade dos pós-modernos é igual à dos sofistas? (Adianto que não.) A correção do discurso, de Platão e Aristóteles, caducou? Deus saiu de cena? As coisas não possuem mais uma verdade própria? A potência da vida de Nietzsche esfarelou-se? A eficácia pós-moderna é necessariamente pós-verdadeira? — Tudo a verificar. A “pós-verdade” parece uma enorme arrogância anti-histórica. (É verdade que também dizem que a história acabou...)
Muita coisa para pensar. Não são delírios filosóficos. Têm a ver com ir comprar pão e comparecer à urna para votar. Vamos ter de desdobrar essa reflexão por mais umas colunas. Desculpem, mas isso mexe nas nossas vidas. Depois volto à poesia que é também orvalho. Manuel Bandeira sabia. Vamos nos alegrar com leveza. Agora ainda precisamos carregar algumas pedras.
Marcio Tavares D'Amaral
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