quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Um inferno demográfico

“Inverno demográfico”, que se tornou uma expressão com a qual passámos a conviver, é uma metáfora que indica uma tal diminuição da taxa de fecundidade que a população entra em decréscimo.

No tempo em que a população do planeta estava em aumento acelerado e ainda não se tinham tornado completamente caducas as previsões “científicas” de Malthus, segundo as quais iríamos atingir uma situação em que faltariam ao planeta os recursos mínimos para alimentar tanta gente, o que agora é designado como “inverno demográfico” era uma aspiração primaveril. Os processos drásticos de engenharia social na China para evitar o crescimento da população foram uma experiência exemplar, pelos efeitos negativos que produziram e que o governo chinês tenta corrigir, recuperando o imperativo que diz: “Crescei e multiplicai-vos”. Mas parece que nem assim está a conseguir restabelecer a quantidade de força de trabalho necessária para alimentar a sua economia, que já não cresce como antigamente.


Uma observação empírica de quem vive numa cidade como Lisboa é a de que os bebés e as crianças quase desapareceram. Os espanhóis, os italianos e muitos europeus dizem o mesmo das cidades onde habitam. É verdade que as crianças e até os adolescentes saem pouco de casa (a não ser no carro dos pais para ir à escola e regressar), razão suficiente para não serem vistos na rua. Mas se fizermos um pequeno inquérito, como o que já fiz, olhando à minha volta, para o universo de amigos e amigas, verificamos que muitos não têm filhos e quando têm ficam-se pelo filho único — essa instituição narcísica do nosso tempo. E na sua maioria já se divorciaram uma ou duas vezes e alguns até regressaram à casa dos pais. Perante este panorama, dá vontade de rir quando ouvimos os políticos falar nas “famílias”.

Do processo demográfico que já se estende a quase todo o planeta, podemos deduzir esta regra: à medida que as populações vão ascendendo no bem-estar económico e social, diminuem os incentivos para ter filhos. É verdade que é cada vez menor a homogeneidade social, já que onde cresce a riqueza também cresce a pobreza. Mas o ambiente assim criado faz com que actualmente aos que não querem ter filhos se juntem os que não podem ter. Este fenómeno, como tudo o resto, também está globalizado: o que começou no hemisfério Norte estende-se agora para o Sul.

Mas a noção de “inverno demográfico” só tem sentido em função de um regime económico cronofágico, isto é, que devora o tempo e antecipa o futuro sob a forma de dívida. Cada um de nós está em dívida, e essa dívida só pode ser paga por aqueles que vão nascer. E como não é possível parar este processo de endividamento a não ser por ação de uma enorme catástrofe, a corrida continua em grande velocidade mesmo que saibamos que se caminha para o desastre.

A diminuição da população seria uma realidade a festejar se não estivéssemos a consumir tempo futuro. Assim, só os nascituros nos podem salvar. E estes, uma vez nascidos, têm de procurar salvação nos novos nascituros. Eis como uma expressão que inundou a nossa linguagem e parece descrever um estado de coisas objetivo — “inverno demográfico” — tem um sentido ideológico muito forte, oculta a realidade e constrói um cenário baseado numa falsa construção.

É verdade que, para além da cronofagia, há outros factores que desequilibram a balança demográfica (por exemplo, o aumento da esperança de vida). Mas que até um governo neofascista, como é, em Itália, o de Giorgia Meloni, tenha de abrir portas à imigração porque os italianos estão a desaparecer e os que existem não asseguram os serviços que permitem o país subsistir, mostra que nalguns casos já estamos a entrar no estado de catástrofe. Devemos perguntar: os imigrantes vão finalmente passar da condição de indesejáveis para a categoria de salvadores? Nem pensar nisso. Os imigrantes são considerados como um fator logístico, à semelhança das máquinas, das ferramentas, das infra-estruturas. Eles estão em todo o lado em que o trabalho físico não pôde ainda ser eliminado. Mas no fundo são invisíveis. Tão invisíveis como esses novos escravos que entregam refeições ao domicílio. Não é que uns e outros não andem nas mesmas ruas onde nós andamos. Mas foram relegados para a invisibilidade.

Outra lição do “inverno demográfico”: ao decrescimento da população não corresponde um decréscimo da economia, até porque isso significa “crise”. Pelo contrário, enquanto de um lado há paragem, do outro continua a aceleração. Devemos então concluir: afinal, o aumento da população não é um verdadeiro problema. Quantos milhares de africanos são precisos para perfazerem uma pegada equivalente à de Elon Musk? O seu peso já é quase o de um continente inteiro. E virá o tempo em que, observando a Terra do seu observatório espacial, ouvirá uma voz que lhe diz: “Um dia, tudo isto será teu”.

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