quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Brasil na lama

 


Talibãs brasileiros

E se eu te disser que existem talibãs brasileiros? Calma, não me refiro literalmente ao grupo extremista que comanda o Afeganistão. Falo aqui de pessoas com um perfil ultraconservador, cujas crenças a respeito dos direitos das mulheres ou da laicidade do Estado se assemelham à visão de mundo dos fundamentalistas.

Nós, do Instituto Locomotiva, fizemos uma pesquisa nacional para identificar quem são – e quantos são – esses brasileiros ultraconservadores. Três frases foram apresentadas aos entrevistados:

– “O Estado brasileiro deve ser cristão”

– “Mais pessoas deveriam ter acesso ao porte de armas”

– “Mulheres são melhores para realizar tarefas domésticas”.

Aqueles que concordaram com todas as afirmações são, por assim dizer, os nossos talibãs. E não são poucos: cerca de 6,4 milhões de brasileiros adultos se encaixam no perfil. Você, leitor, leitora, muito provavelmente conhece algum.


Nosso ultraconservador é majoritariamente homem (60%) e estudou no máximo até o ensino médio (78%). A maioria (65%) tem entre 30 e 60 anos.

Esses números impõem um desafio à democracia brasileira. Não porque o conservadorismo seja uma posição política ilegítima. Mas porque, em versão extremada, ele passa a conflitar com valores republicanos fundamentais.

Dois exemplos: 70% dos ultraconservadores consideram que casais do mesmo sexo não devem ter o direito de se casar e 61% acreditam que a polícia deve ser violenta no combate ao crime. São crenças opostas às noções de igualdade e direitos humanos consagradas pela Constituição Federal.

Nos dias de hoje, em que até o nazismo virou “polêmica” em redes sociais, o Brasil precisa encontrar estratégias eficientes para desarmar seus talibãs.

Bolsonaro volta à carga contra as urnas eletrônicas

O presidente Jair Bolsonaro voltou a levantar suspeitas sobre a segurança das urnas eletrônicas e disse que até mesmo o novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Edson Fachin, não acredita no sistema eleitoral brasileiro. Em reposta, ontem, o TSE divulgou as informações prestadas às Forças Armadas sobre o processo eletrônico de votação.

Na terça-feira, Fachin, que assumirá a presidência da Corte na próxima semana, afirmara que a “Justiça eleitoral já pode estar sob ataque de hackers”. Segundo o magistrado, que escolheu o slogan “paz e segurança nas eleições” para o pleito deste ano, os ciberataques aumentaram nos últimos meses.

As ameaças partem não apenas de atividades criminosas, mas de países como Rússia e Macedônia. Segundo Fachin, relatórios internacionais indicam que 58% dos ataques têm como origem a Rússia. Coincidentemente, desde a semana passada, a polêmica sobre a segurança das urnas voltou às redes sociais. Segundo Bolsonaro, o Ministério da Defesa havia apontado falhas no sistema operacional. Na verdade, o que houve foi um pedido de informações sobre o funcionamento do sistema e seu sistema de segurança, devidamente respondido pelo TSE. Ataques de hackers são constantes nas eleições, mas, até hoje, não tiveram sucesso.

Diante das novas declarações de Bolsonaro, o TSE decidiu divulgar as perguntas dos militares e as respostas que deu. Uma delas foi sobre a substituição de cartões de memória por entradas USB, no novo modelo de urna eletrônica. O TSE respondeu que somente os dispositivos conhecidos que já integram a urna são aceitos nas portas USB: “Caso seja identificado um dispositivo não conhecido em qualquer porta, o sistema operacional da urna desliga a alimentação da porta USB. Dispositivos conhecidos conectados em portas diferentes da esperada resultam no bloqueio da urna pelo sistema operacional. Todo dado sensível que trafega pelo barramento USB é protegido por criptografia”.

O TSE também esclareceu que a fabricação de urnas eletrônicas é auditada diretamente na linha de produção, de acordo com as exigências técnicas e especificações estabelecidas na licitação dos serviços. “As urnas eletrônicas estarão submetidas a todos os eventos de fiscalização e auditoria. Os Testes Públicos de Segurança têm como objeto o último modelo de urna que teve seu sistema totalmente implementado e em produção”.

Mais uma vez, Bolsonaro tenta utilizar as Forças Armadas para desacreditar o processo eleitoral, o que faz parte de uma estratégia ensaiada em outros momentos, especialmente às vésperas do 7 de setembro do ano passado, com propósitos claramente golpistas. Essa estratégia é alimentada também pelo ministro da Defesa, Braga Neto, que incentiva os questionamentos e tem a ambição de ser vice-presidente da República.

A retomada da polêmica, de certa forma, contribuiu para que o general Luiz Fernando Azevedo, que antecedeu Braga Neto, tenha decidido não assumir a diretoria-geral do TSE, cargo para o qual havia sido convidado pelo ministro Luís Roberto Barroso, que deixa o comando da Corte. O ex-ministro da Defesa alegou motivos de família.

A logística de realização das eleições, tradicionalmente, conta com o apoio das Forças Armadas, não só para garantir a realização do pleito em regiões remotas ou de alta criminalidade, como também por razões logísticas — ou seja, o transporte e a segurança das urnas eletrônicas.

O recrudescimento da narrativa de Bolsonaro sobre a falta de segurança na apuração dos votos coincide com a viagem a Moscou, a convite do presidente russo Vladimir Putin. Hackers russos são acusados de interferir nas eleições norte-americanas em favor de Donald Trump, por meio de ataques de hackers e fakes news. Na terça-feira, o TSE fechou um acordo com as plataformas WhatsApp, Twitter, TikTok, Facebook, Google, Instagram, YouTube e Kwai para criar mecanismos para conter a disseminação de mentiras. No WhatsApp, deve ser implementado um canal para informar eleitores.

Entretanto, a rede social russa Telegram não tem escritório no Brasil e não participa do acordo. “Estamos todos preocupados e empenhados em preservar um ambiente de debate livre”, disse Barroso, ao anunciar o acordo, um de seus legados como presidente do TSE.

Como o vereador carioca Carlos Bolsonaro, filho de Bolsonaro, acompanhou o pai na comitiva em Moscou e manteve uma agenda paralela, como se estivesse fazendo turismo, há suspeitas de que estaria fazendo entendimentos para a contratação de hackers russos para a campanha. Eles são especialistas em fake news. Carlos é o responsável pela atuação do pai nas redes sociais, nas quais o presidente tem cerca de 45 milhões de seguidores.

Nem do outro lado do mundo, Bolsonaro deixa o Brasil em paz

Bolsonaro não seria quem é se não tentasse provocar mais uma crise mesmo estando fora do Brasil. Foi o que fez, direto de Moscou, em uma entrevista à Jovem Pan, sua emissora do coração.

Acusou os ministros do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso de se comportar como “adolescentes” com o objetivo de eleger Lula (PT).

Disse, embora sem mencionar diretamente o nome deles:

“Nós vemos que alguns do Supremo, a minoria, é que age na contramão da nossa Constituição. E ali a mensagem clara que fica é que eles têm partido político. Não querem o Bolsonaro lá e querem o outro, que esteve há pouco tempo no xadrez, no xilindró”.


Parou por aí? Não. O Tribunal Superior Eleitoral divulgou um documento de 700 páginas com respostas às 48 perguntas das Forças Armadas sobre o processo eleitoral de outubro próximo.

A propósito, Bolsonaro comentou:

“O pessoal das Forças Armadas, que pertencem à inteligência cibernética, estão analisando esses documentos. Onde vamos concordar, discordar total ou parcialmente”.

Ou seja: insiste em condicionar o processo eleitoral à aprovação militar. Segundo a Constituição, cabe às Forças Armadas defender a Pátria, os Poderes Constituídos e garantir a lei e a ordem, ponto.

À falta de votos suficientes, Bolsonaro quer ganhar no tapetão. É golpe.

Pensamento do Dia

 


Mentira não é informação

Em 1969, um executivo anônimo de uma fabricante de cigarros dos Estados Unidos redigiu um memorando de nove páginas com o título “Tabagismo e Saúde: Proposta”. O problema a enfrentar era as pessoas saberem que tabaco causa câncer. O memorando é histórico porque contém a quase poética frase “dúvida é nosso produto”. Menos conhecida é a conclusão do raciocínio: a dúvida é o produto porque “é o modo de estabelecer uma controvérsia”.

Em poucas linhas, esse soldado desconhecido da guerra corporativa articulou o princípio básico do negacionismo enquanto estratégia política: produzir dúvida com o objetivo de semear, na mente do público, a falsa noção de que existe uma controvérsia legítima a debater. Da negação do aquecimento global antropogênico ao estímulo bolsonarista à hesitação vacinal, chegando até mesmo a ideologias mais antigas, como o fundamentalismo bíblico (“ensine a controvérsia!” tornou-se o grito de guerra dos criacionistas a partir da década de 1990), os defensores de ideias derrotadas pelos fatos e pela ciência parecem ter abraçado, em massa, a fabricação de dúvida como atividade principal.

Como todo produto, a dúvida fabricada precisa ser distribuída. Tomates e geladeiras viajam por estradas e trilhos. Dúvidas e controvérsias, pela imprensa. Mesmo neste mundo de redes sociais e aplicativos de mensagem, os nomes e marcas reconhecidos há décadas, com reputação consolidada, chamados de “mídia de legado”, ainda têm um poder excepcional para gerar atenção e prestígio. O mesmo argumento será lido e valorizado de modo diverso se aparecer no tuíte pessoal de alguém ou nas páginas (impressas ou virtuais) de um jornal respeitado ou grande revista.

A vulnerabilidade da imprensa a controvérsias artificiais é um fato histórico bem documentado. O jornal The New York Times só parou de oferecer direito de réplica à indústria do cigarro em seus textos sobre os males do tabaco no fim dos anos 1970 — 30 anos depois do consenso científico sobre a ligação entre tabagismo e câncer ter sido estabelecido, 15 anos depois de o governo americano emitir seu primeiro alerta oficial aos fumantes.

Essa permeabilidade tem causas estruturais que em geral emanam de bons princípios, aplicados de modo irrefletido ou inocente. Liberdade de expressão muitas vezes é citada, mas não é o caso. Nenhum jornal publica todas as cartas que recebe, nem todos os artigos que lhe são submetidos. Curadoria de conteúdo não é “censura”.


Os princípios que, quando ingenuamente aplicados, fazem a imprensa abrir portas aos fabricantes de dúvidas são o equilíbrio e a informação. Se existem interesses diferentes em torno de um tema, é preciso equilibrá-los para que a cobertura seja justa; se determinado ponto de vista existe, é preciso informar as pessoas disso.

Equilíbrio, no entanto, é ferramenta, não meta. Se há dúvida razoável sobre a verdade dos fatos, equilíbrio talvez seja o melhor que se pode fazer. Mas contentar-se com ele, almejá-lo, é um erro. Como escreve o filósofo Lee McIntyre em seu livro “Post-Truth” (“Pós-verdade”), o meio-termo entre verdade e mentira ainda é menos que a verdade.

A informação é o fim maior, mas, para que se realize, deve ser completa. Não basta noticiar que há quem acredite que a Terra é plana, é necessário acrescentar que essas pessoas estão erradas — e explicar por quê. Limitar-se a “informar” acriticamente que uma mentira existe equivale, em termos morais e práticos, a repeti-la.

Na pandemia, setores importantes da imprensa, confrontados por falsas controvérsias que põem vidas em risco, aprenderam a reconhecer a armadilha e a escapar dela. É uma lição que não pode se esgotar na emergência sanitária. A era da inocência precisa terminar. Ou assumir-se como a era do cinismo.

Decreto sobre mineração pode gerar catástrofe na Amazônia

Com um alto índice de ilegalidade, o garimpo de ouro na Amazônia ganha um novo empurrão do governo Jair Bolsonaro. O decreto 10.966/2022, publicado nesta segunda-feira (14/02), cria o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala (Pró-Mape) e elege a região como centro dessa exploração.

Embora o texto use termos como "desenvolvimento sustentável", "melhores práticas" e "promoção da saúde", o decreto foi recebido como anúncio de uma catástrofe por pesquisadores e entidades que acompanham o tema.

Para Alessandra Munduruku, liderança que assiste ao aumento massivo de balsas garimpeiras dentro da Terra Indígena Munduruku desde que Bolsonaro assumiu a presidência, em 2019, o decreto escancara as portas para invasores.

"Nós vamos fazer de tudo para segurar a porta dessa nossa casa, que é a floresta, para que os garimpeiros não entrem, não arrombem tudo, não nos matem. Porque esse governo, desde o começo, sempre quis nos matar", disse Alessandra por telefone à DW Brasil, pontuando que uma das promessas de campanha de Bolsonaro era não demarcar terras indígenas.


Embora a Constituição Federal proíba a atividade nesses territórios, muitas licenças concedidas pela Agência Nacional de Mineração (ANM) estão geograficamente próximas a áreas indígenas, e a exploração avança também sobre unidades de conservação.

"Esse decreto mostra como o governo vem trabalhando na Amazônia: ele quer pegar todas as operações ilegais e transformar em legais, em mercado formal", afirma Larissa Rodrigues, do Instituto Escolhas, entidade focada em sustentabilidade.

Dias antes da publicação do decreto, um estudo coordenado por Rodrigues detalhava como o metal precioso é extraído na clandestinidade. Em Raio X do Ouro, os autores concluem que quase metade da produção registrada de 2015 a 2020 tem origem duvidosa. Cerca de 229 toneladas, das 487 estimadas no período, podem ser ilegais - e mais da metade (54%) vem da Amazônia.

"Não existe 'mineração artesanal'. O garimpo não é pequeno, rudimentar, como o título do decreto tenta passar. É uma cadeia industrial bem organizada, com muitos laços familiares e de negócios que vão gerar conflito de interesse na hora de fazer controle da origem de ouro", afirma Rodrigues.

Ainda não se sabe como o Pró-Mape irá funcionar na prática. A expectativa, porém, é que as regras detalhadas sejam conhecidas em breve.

Um decreto complementar (10.965) publicado na sequência dá mostras do desmonte ambiental: a resolução determina que a ANM adote critérios simplificados para dar autorização ao garimpo.

"Na prática, todo mundo que fizer pedido de garimpo terá a concessão. Esse decreto tira o poder da agência de fazer análises", analisa Rodrigues. O resultado, ressalta a pesquisadora, será uma explosão de garimpos na Amazônia.

Após a análise de mais de 40 mil registros da ANM e de imagens de satélite, o Instituto Escolhas aponta que a comercialização com indícios de ilegalidade envolve as principais empresas que compram ouro de garimpos na Amazônia. "Nessa teia, há ligação delas com o garimpo ilegal", afirma Rodrigues.

As principais ilegalidades no comércio do ouro apontadas são extração em terras indígenas ou unidades de conservação; títulos fantasmas usados para lavagem de ouro; extração para além dos limites geográficos autorizados; ausência de informação sobre os títulos de origem; exportação do metal sem os registros da produção oficial.

Com tanta ilegalidade, seria impossível que autoridades não detectassem os problemas. "Se o nosso estudo, que usou dados abertos, consegue comprovar que é possível monitorar o ouro, o governo também consegue e poderia fazer o mesmo imediatamente", critica Rodrigues.

Para Erika Berenguer, pesquisadora sênior das universidades de Oxford e Lancaster, na Inglaterra, o decreto sinaliza a direção que o último ano do atual mandato de Bolsonaro vai seguir. "Pode ser uma estratégia eleitoral de liberar o que não passou no Congresso. Será o ano mais difícil e duro para o meio ambiente no país", analisa em entrevista à DW Brasil.

Ela comanda um dos capítulos dedicados aos impactos da mineração na Amazônia que compõem o relatório do Scientific Panel for the Amazon (SPA). O painel tem o objetivo de reunir resultados publicados em estudos e traçar um panorama do que a ciência já sabe sobre a região.

"Não faltam evidências do grande problema que é o garimpo na Amazônia, que provoca desmatamento, poluição e destruição de rios, contaminação de mercúrio nas populações humanas", resume Berenguer.

Uma das conclusões mais chocantes do capítulo no qual trabalha é o impacto da atividade na segurança alimentar das populações locais. "O avanço do garimpo é tão alto em certas áreas, como no médio Tapajós, que os peixes estão tão contaminados que as populações que se alimentam dos peixes já apresentam uma série de problemas neurológicos por causa do mercúrio", comenta.

O mercúrio, metal altamente tóxico, é usado por garimpeiros para unir os fragmentos de ouro e formar amálgamas. Basta o calor de um maçarico para separar os dois metais, já que o mercúrio se liquidifica e evapora numa temperatura inferior do que o ouro. Ao fim do processo de extração, as partes que não interessam, como os restos contaminados, normalmente são jogadas no rio.

"Mercúrio não é expelido pelo corpo, ele se acumula. Há estudos que falam em aborto natural em botos na Amazônia por conta da contaminação de mercúrio. Há jacarés com alto nível de mercúrio. São animais, como o ser humano, que estão no topo da cadeia alimentar", diz a pesquisadora.

Em comunidades que dependem do peixe como principal fonte de proteína, o mercúrio se acumula no tecido adiposo, o que gera graves problemas de saúde. "Estudos com os Munduruku no Tapajós falam em problemas neurológicos como insônia, ansiedade, dificuldade locomotora e cognitiva nas crianças. Está sendo indicado que eles não pesquem mais. Agora, como eles vão viver, o que eles vão comer?", questiona Berenguer.

Alessandra Munduruku sabe dos altos níveis de contaminação por causa do garimpo. "É como promover uma matança dos rios, dos povos indígenas", comenta sobre o impacto direito do mercúrio.

Vítima de ataques e de ameaças por denunciar invasões de garimpeiros no território, Alessandra diz que não vai parar de chamar a atenção para os crimes ambientais e violações dos direitos indígenas.

"Garimpo não é sustentável. Esse decreto é feito de mentiras e vai facilitar também a entrada de mineradoras em terra indígena. Junto com o garimpo, vem droga, prostituição, álcool, pistas clandestinas de pouso, máquinas que fazem estrada de pouso para os aviões - porque não tem fiscalização", enumera.

"Quem usa anel e colar de ouro, quem vende mercúrio para os garimpeiros - todos têm responsabilidade", afirma a líder Munduruku, lembrando que no território Yanomami, nos estados de Roraima e Amazonas, há cerca de 20 mil garimpeiros ilegais atualmente.

A felicidade deu adeus

Nada anda muito bem, e não é segredo. O Brasil já foi considerado o lugar do mundo no qual a felicidade batia ponto. O sol, a alegria e a miscigenação eram fatores que levavam àquela ideia.

Há algum tempo, um grupo de pesquisadores, levando em conta motivações subjetivas, levantadas em entrevistas, e objetivas, os indicadores socioeconômicos, começou a “medir” a felicidade. Segundo a pesquisa, em 2020 e em 2021, a Finlândia foi o país mais feliz do mundo.

Já estive em Helsinque, uma cidade sombria, cheia de bêbados caídos na rua, mas extremamente organizada. Na época (já se vão trinta anos), conheci alguns brasileiros ou filhos de brasileiros que viviam lá, todos com nível de vida bem razoável, ainda que se ocupando de funções pouco valorizadas. Um deles, que cuidava dos casacos deixados à entrada de um bar, me disse que, trabalhando também como pintor de paredes, conseguia ter um carro desses supercaros, ainda que não o modelo mais recente. Um país com um inverno tão rigoroso, clima que associamos a isolamento e tristeza, surpreende ao encabeçar a lista da pesquisa, ainda mais sendo acompanhado por Islândia e Dinamarca, segundo e terceiro lugares no ranking da felicidade. A despeito de toda crítica que se possa fazer a uma medida dessas, ela não parece encantada com o Brasil tropical, onde em se plantando tudo dá, mas também onde a fome só faz crescer. O modelo socioeconômico monstruoso adotado no país não deixa ninguém mais se enganar com a nossa alegria carnavalesca, que é, de fato, uma alegria — um, e apenas um, dos fatores que compõem a felicidade.


Entre os dias 24 de janeiro e 2 de fevereiro, uma face da atrocidade brasileira foi mostrada ao mundo. Assistimos na televisão a três homens matando a paulada Moïse Mugenyi Kabagambe, um congolês de vinte e quatro anos. A paulada. Matar assim exige perseverança, o que não combina com uma raiva momentânea. Aqueles assassinos estavam tomados por uma premeditação bestial. A família de Moïse havia saído do Congo treze anos antes dessa tragédia que a acometeu. Fugiam de outras tragédias, inúmeras num país rico em minerais e, mesmo depois de se tornarem independentes da Bélgica, massacrado por interesses externos que se misturam às lutas locais de poder. Luiz Antonio Simas, pesquisador da vida de rua carioca, afirmou o seguinte: “O melhor que existe nessa cidade terrível e bela, filha da morte e da chibata, veio do Congo: samba”. O crime contra Moïse afirma a voz dos que não se conformam nem com o fim da escravidão nem com o fato de uma de nossas manifestações mais criativas, pérola na lama de nossa história, ser obra dos negros. Acrescentem-se a isso doses de xenofobia.

No dia 2 de fevereiro, enquanto havia festa no mar, Iemanjá celebrada, um militar viu um negro, Durval Teófilo Filho, trinta e oito anos, mexer em uma pasta e achou que seria assaltado. O que fez? Atirou contra a possível ameaça. O assassino e a vítima eram vizinhos em um condomínio no Colubandê, bairro de São Gonçalo. No início, a polícia chegou a defender a tese de que o assassino não tinha a intenção de matar. Qual seria então a intenção? Comemorar o gol do time? Usar a arma por usar? Testar a mira? Com a reação da sociedade, o militar da Marinha foi qualificado como assassino doloso. O que ele é, e não é o único, e não será o único à medida que armar a população tem sido a política de segurança do atual governo.

A morte de Moïse e a de Durval infelizmente não são um acidente. Matam-se negros aos montes. A polícia entra em favelas e, quase sempre, deixa um saldo escandaloso de mortos. Negros na maioria, muitos inocentes, sem envolvimento com o tráfico ou outra forma de crime. Como soldados do tráfico, negros também se matam uns aos outros. Negros são mortos na porta de casa como foi o caso de Durval e de outros tantos, crianças inclusive, que podemos puxar da memória. Na imagem que mais nos aproxima da chibata dos tempos da escravidão, negros levam pauladas até a morte.

No Marrocos, Rayam Awram, um menino de cinco anos, foi tragado por um buraco de trinta e oito metros. O drama de seu resgate durou dias, e os marroquinos, mas não só eles, acompanharam diuturnamente o esforço da equipe de socorro. No quarto dia, o pequeno Rayam foi resgatado, mas não resistiu. Marrocos transformou essa tragédia em uma dor coletiva.

Dor coletiva deveria ser a nossa diante da morte de Moïse e Durval. Mas o fato é que esses crimes não encontram o repúdio de todos, em particular daqueles que podem mudar as leis e fazer cumpri-las. Ao contrário, quando mataram Marielle, em ações coordenadas pela milícia digital, trataram de associar caluniosamente a vereadora a criminosos. Agora, dizem, Moïse seria um drogado inoportuno. E que absurdo foi esse de Durval mexer em uma bolsa em uma região considerada violenta? Em 2018, Rodrigo Serrano, um garçom negro, desceu ao pé do Chapéu Mangueira para esperar a mulher e a filha. Chovia, e ele abriu o guarda-chuva. Foi o suficiente para a polícia deduzir que ele estava armado de um fuzil. Atiraram sem pena nem dó. Muitos batem palma para a polícia e vão à loucura quando se estuda uma mudança na lei que dê a ela licença para matar, o tal “excludente de ilicitude”.

Nada anda muito bem? Corrijo-me: tudo anda mal. Demos adeus à felicidade.
Alexandre Brandão