quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Mentira não é informação

Em 1969, um executivo anônimo de uma fabricante de cigarros dos Estados Unidos redigiu um memorando de nove páginas com o título “Tabagismo e Saúde: Proposta”. O problema a enfrentar era as pessoas saberem que tabaco causa câncer. O memorando é histórico porque contém a quase poética frase “dúvida é nosso produto”. Menos conhecida é a conclusão do raciocínio: a dúvida é o produto porque “é o modo de estabelecer uma controvérsia”.

Em poucas linhas, esse soldado desconhecido da guerra corporativa articulou o princípio básico do negacionismo enquanto estratégia política: produzir dúvida com o objetivo de semear, na mente do público, a falsa noção de que existe uma controvérsia legítima a debater. Da negação do aquecimento global antropogênico ao estímulo bolsonarista à hesitação vacinal, chegando até mesmo a ideologias mais antigas, como o fundamentalismo bíblico (“ensine a controvérsia!” tornou-se o grito de guerra dos criacionistas a partir da década de 1990), os defensores de ideias derrotadas pelos fatos e pela ciência parecem ter abraçado, em massa, a fabricação de dúvida como atividade principal.

Como todo produto, a dúvida fabricada precisa ser distribuída. Tomates e geladeiras viajam por estradas e trilhos. Dúvidas e controvérsias, pela imprensa. Mesmo neste mundo de redes sociais e aplicativos de mensagem, os nomes e marcas reconhecidos há décadas, com reputação consolidada, chamados de “mídia de legado”, ainda têm um poder excepcional para gerar atenção e prestígio. O mesmo argumento será lido e valorizado de modo diverso se aparecer no tuíte pessoal de alguém ou nas páginas (impressas ou virtuais) de um jornal respeitado ou grande revista.

A vulnerabilidade da imprensa a controvérsias artificiais é um fato histórico bem documentado. O jornal The New York Times só parou de oferecer direito de réplica à indústria do cigarro em seus textos sobre os males do tabaco no fim dos anos 1970 — 30 anos depois do consenso científico sobre a ligação entre tabagismo e câncer ter sido estabelecido, 15 anos depois de o governo americano emitir seu primeiro alerta oficial aos fumantes.

Essa permeabilidade tem causas estruturais que em geral emanam de bons princípios, aplicados de modo irrefletido ou inocente. Liberdade de expressão muitas vezes é citada, mas não é o caso. Nenhum jornal publica todas as cartas que recebe, nem todos os artigos que lhe são submetidos. Curadoria de conteúdo não é “censura”.


Os princípios que, quando ingenuamente aplicados, fazem a imprensa abrir portas aos fabricantes de dúvidas são o equilíbrio e a informação. Se existem interesses diferentes em torno de um tema, é preciso equilibrá-los para que a cobertura seja justa; se determinado ponto de vista existe, é preciso informar as pessoas disso.

Equilíbrio, no entanto, é ferramenta, não meta. Se há dúvida razoável sobre a verdade dos fatos, equilíbrio talvez seja o melhor que se pode fazer. Mas contentar-se com ele, almejá-lo, é um erro. Como escreve o filósofo Lee McIntyre em seu livro “Post-Truth” (“Pós-verdade”), o meio-termo entre verdade e mentira ainda é menos que a verdade.

A informação é o fim maior, mas, para que se realize, deve ser completa. Não basta noticiar que há quem acredite que a Terra é plana, é necessário acrescentar que essas pessoas estão erradas — e explicar por quê. Limitar-se a “informar” acriticamente que uma mentira existe equivale, em termos morais e práticos, a repeti-la.

Na pandemia, setores importantes da imprensa, confrontados por falsas controvérsias que põem vidas em risco, aprenderam a reconhecer a armadilha e a escapar dela. É uma lição que não pode se esgotar na emergência sanitária. A era da inocência precisa terminar. Ou assumir-se como a era do cinismo.

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