domingo, 7 de julho de 2019

Gente fora do mapa


Rachel Carson, urgente

O fazendeiro americano Ezra Taft Benson serviu ao presidente Dwight Eisenhower como secretário da Agricultura ao longo de oito anos (1953-61), antes de tornar-se influente profeta da Igreja Mórmon. É dele uma pergunta que encapsula os preconceitos culturais, a ignorância científica e os interesses que predominavam no pós-Segunda Guerra Mundial: “Por que uma mulher solteira, sem filhos, está tão preocupada com a genética?”, quis saber. Ou melhor, nem quis saber, pois ele mesmo forneceu a resposta: essa mulher era comunista. Teria dito mais se soubesse, à época, que a personagem, mesmo não sendo comunista, manteve até o final da vida uma extraordinária amizade amorosa com outra mulher.


Taft Benson referia-se a Rachel Carson, autora de “Primavera silenciosa”, o seminal livro que desarrumou para melhor as até então inexistentes políticas ambientais nos Estados Unidos e obrigou o mundo a despertar para a frágil interconectividade da vida no planeta. Obra-libelo para que se investigue e regulamente o uso de pesticidas, o livro serviu de referência para a criação da primeira agencia federal de proteção do meio ambiente (EPA, na sigla em inglês), da aprovação da Lei do Ar Puro (1963), Áreas Selvagens (1964), Água Limpa (1972), Espécies em Extinção (1973), e despertou a consciência ambiental moderna.

Nascida em família rural da Pensilvânia e bolsista na universidade Johns Hopkins, a bióloga Carson não teve recursos para concluir seu doutorado em Zoologia e Genética. Mesmo assim, com “Primavera silenciosa”, produziu a reportagem investigativa de maior relevância (e clareza) do século 20. Publicado mais de meio século atrás, o clássico demonstra com rigor científico e prosa emocionante que pesticidas não apenas envenenam insetos e ervas daninhas, como desencadeiam uma cascata de mutações destruidoras da vida no planeta.

Carson não era radical, não pregava a proibição pura e simples de pesticidas químicos, apenas apontou para a necessidade de aprofundar o conhecimento de seus elementos e para as consequências de uma ciência não assentada em moralidade.

Ainda assim, a autora foi alvo de brutal campanha de descrédito por parte de setores do governo, da indústria química e do agronegócio da época. Até mesmo a editora Houghton Mifflin, responsável pela publicação do livro em 1962, recebeu intimidações jurídicas de peso.

Por que lembrar agora dessa luminosa personagem que morreu com o corpo em metástase pouco depois de concluir sua obra? Porque seus detratores de outrora pipocam em estranhas reencarnações. Vem à mente, de imediato, a recente foto de Carlos Bolsonaro, filho do presidente do Brasil, empunhando um exemplar de “Psicose ambientalista: Os bastidores do ecoterrorismo para implantar uma religião igualitária e anticristã”, de Dom Bertrand de Orléans e Bragança. O título- spoiler, que torna desnecessário descrever o conteúdo da obra, parece ter inspirado também o pai de Carlos a denunciar a existência de uma “psicose ambientalista” contra o Brasil por parte de países como Alemanha e França.

Vem à mente também o jornalista alemão Henrik Böhme, da Deutsche Welle, que considera o Gabinete do Clima criado pela chanceler Angela Merkel como um “gabinete de horrores”, e vê por trás da política de defesa ambiental um ataque subterrâneo ao sistema econômico capitalista. Na mesma linha está o site americano Fabius Maximus, onde se lê que “a esquerda incita à histeria climática para obter ganho político” e que a adolescente sueca Greta Thunberg, “ícone do apocalipse climático”, só existe como resultado de cuidadoso trabalho de mídia alimentado por grupos de interesse. Vem à mente, é claro, nosso ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para quem a Amazônia surfa em “desmatamento zero”. E também o general da reserva Augusto Heleno, que do seu gabinete brasiliense de Segurança Institucional descarta como “manipulados” dados computados pela tecnologia de ponta do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.

Por tudo isso, mesmo para quem já leu “O fim da natureza”, de Bill McKibben, assistiu a “Uma verdade inconveniente”, de Al Gore, aguarda a vinda à Flip do jornalista David Wallace-Wells, autor de “A Terra inabitável”, e gostou do alerta sobre biocídio em “A sexta extinção: Uma história não natural”, de Elizabeth Kolbert, vale empreender um retorno ao futuro com Rachel Carson.

Ela merece. Nós também. Até para lembrar que conhecimento consiste na procura da verdade, não na busca da certeza.

Paradigma do crime

A situação da Amazônia é um triste paradigma do que está acontecendo em muitas partes do planeta: uma mentalidade cega e destruidora que favorece o lucro à justiça; coloca em evidência a conduta predatória com a qual o homem se relaciona com a natureza. Por favor, não esqueçam que justiça social e ecologia estão profundamente interligadas
Papa Francisco

Salles em conflito com dados e fatos

O ministro Ricardo Salles gosta da frase “não é bem assim” para responder a qualquer argumento do qual discorde. Mas a frase é perfeita para o que ele diz. Segundo Salles, havia um terço de ONGs no Comitê Orientador do Fundo Amazônia. É falso. Ele diz que o desmatamento “se estabilizou” entre 2004 e 2012, mas na verdade despencou 70%. Afirma que está havendo muita liberação de agrotóxicos porque nos anos anteriores eles ficaram retidos por ineficiência da Anvisa. No ano passado, de janeiro a 24 de junho, foram 193 produtos liberados. Este ano, no mesmo período, foram 239. Houve aumento, mas nada estava parado nos últimos três anos.

Com números e fatos imprecisos, o ministro monta teses insustentáveis. Numa entrevista na Globonews, diante de uma pergunta sobre o desmatamento, ele respondeu: —Vamos lá, o Brasil tem 5 milhões de quilômetros na Amazônia. A quantidade de quilômetros desmatados no ano passado foi ao redor de oito mil. Dá zero vírgula zero vírgula dois por cento. Percentualmente, já temos um desmatamento zero. É a terceira casa decimal depois do zero. Isso tem que ser dito com todas as letras —respondeu. É preciso dizer, com números e letras, o quanto o ministro errou aqui. Inventou duas vírgulas seguidas depois do zero. Não é a terceira casa decimal. Depois, ele corrigiu para 0,16%, mas o problema é que a ideia é toda descabida. Nas redes sociais, foram feitos cálculos sobre o absurdo do raciocínio, mostrando que se a mesma conta for feita com os 61 mil homicídios pelos mais de 200 milhões de habitantes o país teria homicídio zero. Dá para fazer sumir todos os problemas se a gente quiser brincar com os números.

A verdade é que o desmatamento, após ação decisiva do governo, caiu de 27 mil km2 em 2004 para 4,5 mil em 2012. Daquele ano em diante, o governo iniciou as hidrelétricas na Amazônia, reduziu o tamanho de unidades de conservação e deu outros sinais que levaram ao aumento da perda anual da floresta. E neste junho subiu 88% em relação a junho passado.


Durante a entrevista ele repetiu várias vezes haver uma ligação entre combate ao desmatamento e pobreza na Amazônia ou então a pobreza como causa do desmatamento. Não faz sentido nem uma coisa nem outra. O Brasil teve um crescimento do PIB mais forte no período em que o desmatamento caiu, e mesmo na recessão ele subiu. — Quando se deixa o morador numa situação de ilegalidade, ou de asfixiamento econômico, ele não verá o filho dele morrer de fome sem tentar gerar alguma receita para si próprio —disse Salles. Não são os pobres que fazem isso. É preciso capital para ter trator, correntão e caminhão para escoar. Ele sabe, porque contou de um flagrante que deu em São Paulo, quando era secretário, em que foram retidos cinco caminhões e tratores. Segundo o ministro, “de maneira irresponsável” criou-se no Brasil unidades de conservação, englobando terras onde já havia produção:

— Quem delimitou desconsiderou as áreas produtivas, ignorou essas pessoas, deu o calote nessas pessoas.

Na verdade, 95% das Unidades de Conservação criadas na Amazônia foram em terras públicas. Quem estava lá não deveria estar. De qualquer maneira, é fácil saber quem estava antes da criação com o histórico das imagens de satélite. Os embaixadores da Noruega e da Alemanha não concordaram com a nova formação do Comitê Orientador do Fundo Amazônia e pediram nova proposta. O ministro diz que dissolveu o Comitê porque um terço é formado por ONGs. O fato: menos de terço é a sociedade civil. Aí se inclui CNI, Contag, SBPC, a indústria de madeira. E tem também um fórum de ONGs e outro de associações indígenas. Esses 2 seriam 8,3% dos 24 membros.

O ministro atribui as críticas vindas da Europa ao medo dos concorrentes do agronegócio. A Europa é protecionista, mas não produz o suficiente. Não é competidora, mas sim cliente. O segundo maior. Salles diz que há uma campanha contra o Brasil e que “um dos maiores focos de detratores são entidades, autores e pessoas do próprio Brasil”. Esse era o mesmo raciocínio usado na ditadura para atacar quem dizia que havia tortura no país. Está na hora de o ministro se reconciliar com números, fatos e conceitos.

Imagem do Dia


O que dizem as camisetas

Apareceram tantas camisetas com inscrições, que a gente estranha ao deparar com uma que não tenha nada escrito.

__ Que é que ele está anunciando? __ indagou o cabo eleitoral, apreensivo. __ Será que faz propaganda do voto em branco? Devia ser proibido!

__ O cidadão é livre de usar a camiseta que quiser __ ponderou um senhor moderado.

__ Em tempo de eleição, nunca __ retrucou o outro. __ Ou o cidadão manifesta sua preferência política ou é um sabotador do processo de abertura democrática.

__ O voto é secreto.

__ É secreto, mas a camiseta não é, muito pelo contrário. Ainda há gente neste país que não assume a sua responsabilidade cívica, se esconde feito avestruz e ...

__ Ah, pelo que vejo o amigo não aprova as pessoas que gostam de usar uma camiseta limpinha, sem inscrição, na cor natural em que saiu da fábrica.

A discussão ia rolar quando apareceu Christiane Torloni
, pedestre, ostentando bem visível, no peito, o nome de Eduardo Mascarenhas. Todos ficaram deslumbrados.

__ Nessa eu votaria até para presidente. da República, do Banco Central, da ONU, de qualquer troço __ exclamou outro.

__ Ela não é candidata.

__ E precisa?

Ficou patente que as pessoas reparam mais no rosto do que na inscrição, embora a falta de inscrição provoque a ideia de que falta alguma coisa __ a identidade, o nariz, sei lá.

Vi na rua Sete de Setembro um homem que trazia a inscrição "Guiné-pipi" na frente e nas costas.

__ Candidato a vereador? -- perguntei. __ De que partido?

__ Não, senhor. Erva contra reumatismo. Quer experimentar? É um porrete. Trago para o senhor uma amostra da fábrica., lá de Cordovil.

__ Obrigado, amigo. O Dr. Nava já cuida do meu. 

__ Mas qualquer problema, o senhor não tenha cerimônia. É só dizer, que eu falo com os colegas, conforme o caso. Ou o senhor mesmo fala, se encontrar com um deles.

__ E como é que eu vou saber?

__ Pela camiseta, é claro. Tem o Cipó-Azougue, que é um balaço contra eczema, aliás, pessoalmente, é um cara ótimo. O Beldroega (faz pouco ele passou por aqui) toma conta do fígado e depura o sangue. Do Sete-Folhas, que é até meu vizinho, vejo que o senhor não carece, pois é para emagrecer. Agora, convém não esquecer o Boldo. Lá um dia a gente tem uma ressaca, e o Boldo resolve.

Vi que as camisetas da medicina natural são numerosas, mas as de uísques, vinhos alemães, motos, motéis, cigarros, antigripais, cursinhos, judô, budismo, loteria, jogo de búzios, etc. não fazem por menos. Hoje em dia não há produto que não tenha, além dos comunicadores remunerados, outros absolutamente gratuitos, e estes são maioria. Todo mundo anuncia alguma coisa, e a camiseta é o cartaz na pele. Sendo de notar que há tendência para anunciar para anunciar até no bumbum. Mas este é um ramo ainda experimental. 

Quis empreender pesquisa de campo no domínio das inscrições no anverso e no reverso do vestuário. Desisti porque teria de elaborar um código de classificação muito complexo, tamanha a variedade de interesses humanos que se refletem numa etiqueta comercial, industrial, política, esportiva, religiosa, onírica. Hoje em dia a camiseta serve para tudo, até (não principalmente) para vestir. E acompanha também a veloz deterioração das coisas, sinal de finitude hoje mais visível do que nunca. Puxa, como as coisas acabam cada vez mais depressa! Não há mais condições para gravar palavras eternas em muros de catedral. Hoje estampam-se recados em camisetas descartáveis. Como esta crônica.
Carlos Drummond de Andrade 

As justificativas

Longe de nos dar elevação e profundidade, o sofrimento azedou-nos e rarefez-nos. Ninguém se cultivou, aperfeiçoou e enobreceu. De desleixo em desleixo, de transigência em transigência, de cobardia em cobardia, descemos do eremitério, onde poderíamos construir a nossa grandeza, ao soalheiro onde exibimos as misérias alheias, para indirectamente justificarmos as nossas
Miguel Torga, Diário V

Ruptura, para quê?

Uma ação disruptiva pressupõe substituição de processos ou procedimentos em direção ao futuro. Num momento em que a democracia representativa está em xeque no mundo ocidental, temos um governo de ruptura que sabe o que quer mudar ou destruir, mas não sabe o que colocar no lugar.

Bolsonaro foi eleito por um conjunto de circunstâncias que não lhe dá carta branca para governar apenas para os seus seguidores originais. Não há estelionato eleitoral, é verdade, mas também não é razoável que o presidente eleito possa fazer o que lhe dá na cabeça.

Apesar de continuar insistindo em temas polêmicos, como, desta vez, o trabalho infantil, pelo menos ele já sabe que há limites para suas idiossincrasias. Por isso, advertiu que não pretende apresentar nenhuma mudança na legislação brasileira, que o proíbe. O Congresso, o Judiciário e a opinião pública seriam obstáculos intransponíveis.


O presidente talvez tenha tido o seu primeiro mês de sucessos com a assinatura do acordo Mercosul-União Européia e aprovação da proposta de emenda constitucional da reforma da Previdência na Comissão Especial. Atos, no entanto, que foram limitados pelo protagonismo da Câmara, no caso da reforma, ou pelas regras internacionais a que o governo tem que se submeter, quando adere ao acordo com os países europeus.

Um governo que pretende se unir cada vez mais ao Ocidente, contra o que considera uma conspiração internacionalista de esquerda, terá que respeitar regras desse mesmo globalismo, seja com relação ao clima, seja à própria democracia.

A simples menção ao trabalho infantil, por exemplo, cria um mal entendido desnecessário. Mais uma vez Bolsonaro demonstra que não entende o peso de suas palavras. O aumento de produtividade na agricultura é dos maiores sucessos econômicos mundiais, à base de muito investimento em tecnologia e criatividade. Não pode ser colocado em dúvida devido ao pensamento retrógrado e extemporâneo do presidente da República.

Um governo que quer parear-se às democracias ocidentais não pode normalizar, pela boca de seu presidente, uma ação criminosa que dá vantagem competitiva no comércio internacional, fortemente questionada, à China, capitalismo de Estado que está sendo obrigado a abrir mão dessas más práticas por ter aderido à organizado internacionais como a Organização Mundial do Comércio. (OMC).

O que o presidente passou na infância, colhendo milho e carregando cachos de bananas nas costas aos 10 anos, é uma triste realidade ainda hoje no Brasil, e ele, como presidente, deveria dedicar-se a mudar essa situação de carência extrema, e não transformá-la em uma situação normal.

O trabalho enobrece, diz Bolsonaro. Mas, o trabalho infantil avilta. A proteção à criança e aos direitos humanos deveria vir em primeiro lugar para o presidente.
A visão do presidente a respeito de certas questões da democracia é simplificadora, quando não perigosa. Ao anunciar que levará o ministro Sérgio Moro à final da Copa América amanhã, disse que o povo mostrará quem tem razão, referindo-se à divulgação dos diálogos do hoje ministro da Justiça com os procuradores da Lava Jato.

Provavelmente o presidente e seu ministro serão aplaudidos. Bolsonaro transforma o Maracanã num moderno Coliseu, onde o povo decide a sorte do gladiador. A consulta direta ao povo, com que sonha Bolsonaro, é dos aspectos mais distorcidos da democracia.

O que parece ser uma atitude democrática, transforma-se em manipulação populista. Da mesma forma, plebiscitos podem ser utilizados com objetivos políticos, dependendo de quando forem convocados e organizados.

Não há nada de estranho que a chamada “democracia direta” tenha sido o principal mecanismo político de atuação dos governos bolivarianos da região, que Bolsonaro combate tanto. Os populismos se aproximam.

O fim das intermediações do Congresso, próprias dos sistemas democráticos, é sonho de consumo de presidentes autoritários, de direita ou de esquerda. Este é o tipo de ação basicamente antidemocrática, pois uma coisa é criticar a atuação do Congresso e exigir mudanças na sua ação política para aproximar-se de seus representados, o povo.

Outra muito diferente é querer ultrapassar o Poder Legislativo e outras instituições fazendo uma ligação direta com o eleitorado através de um governo plebiscitário.
Merval Pereira

Bolsonaro não compreende que tempo dos Césares passou

A maior e a mais aparente aflição dos brasileiros se dá em torno da retomada do desenvolvimento econômico. Sem ele, continuam elevados os índices de desemprego e a crise social. Mas, desenvolvimento econômico depende da solidez de instituições que evitem incertezas; capazes de estabelecer pactos entre os mais distintos setores de uma sociedade naturalmente diversificada.

Instituições são impessoais, perenes, estáveis e estabelecem procedimentos gerais. São avessas ao personalismo, ao apelo populista, à tentação do diálogo direto que políticos pretensamente carismáticos busquem estabelecer com as massas - como na Venezuela, por exemplo. A sociedade moderna é democrática e não pode prescindir de instituições.

Infelizmente, o presidente Jair Bolsonaro parece não compreender isso. Não se "dobra" à realidade de instituições democráticas - baseadas na Constituição que, por sinal, eleito, prometeu defender. Insiste no voluntarismo de recorrer diretamente ao que entende como "o povo", desqualificando instituições. Seu achado da vez consiste em submeter a si e ao seu ministro da Justiça ao julgamento das multidões nos estádios de futebol - como se ali estivesse toda a sociedade.

O tempo dos césares passou. De lá para cá, a humanidade viveu avanços: aperfeiçoou o convívio do poder com os cidadãos, estabeleceu regras e métodos por meio da "democracia representativa", estabilizou relações. É isso que traz segurança, investimento, bem-estar. Fora disso, não há democracia; apenas a deturpação de seu conceito e o aprofundamento da crise.

Pensamento do Dia


Por que contestar um bloqueio de Twitter na Justiça?

Por que contestar um bloqueio de Twitter na Justiça? Há menos de uma semana o ministro da Educação, Abraham Weintraub, me bloqueou para leitura e comentário em sua conta. Bloqueou dezenas de professores que estranharam seu humor desrespeitoso aos ex-presidentes Lula e Dilma no episódio da cocaína no avião presidencial. O tema da controvérsia é menos importante para analisar o fato inédito de que 111 advogadas se uniram para judicialmente contestar o bloqueio. Há quem se inquiete com o número de juristas: por que uma centena de advogadas para algo que poderia ser resolvido com uma nova conta de Twitter? Uma leitura superficial pode sugerir ainda ser esse um caso desimportante com tantas questões urgentes à democracia brasileira, em particular no campo da educação. Ou mesmo dúvidas genuínas de se uma contestação como essa não seria irônica se eu mesma bloqueio usuários em minha conta pessoal.

Responderei às três perguntas, pois cada uma delas toca em uma dimensão da democracia. Começo por onde entendo ser a disputa: esse é um caso sobre direito à participação política. A união de 111 mulheres é um sinal da resistência na diversidade feminista: são mulheres de todas as partes do país, jovens e experientes, negras e indígenas, mulheres com deficiência. Todas são advogadas, um campo aberto de possibilidades à interpretação feminista sobre o justo. Certamente, entre elas há aproximações e diferenças ideológicas, mas todas estão de acordo que um ministro de Estado não tem o direito de silenciar cidadãos na participação política. Esse é o tema da ação – o Twitter, como outras mídias sociais, é parte do espaço público de participação política, inclusive um dos fronts prediletos dos bolsonaristas. Por isso, o repúdio foi tão visceral à ação por parte dos que acreditam dominar o jogo virtual pela mentira ou ódio.

Erra quem descreve a ação como uma disputa sobre o direito ou não de bloquear seguidores em comunidades virtuais; a demanda é sobre participação política livre de censura. Há precedentes judiciais em outros países, como nos Estados Unidos ou no Canadá. Em ambos os países, se entendeu que a voz do representante político não pode impor censura, ou seja, não pode bloquear usuários que respeitem o protocolo de comunicação, a cordialidade e os bons modos das redes sociais. No meu caso, não faltei com as regras de etiqueta para a comunicação, o bloqueio por arbitragem do Twitter, mas uma censura do ministro Weintraub. Quando um ministro de Estado se pronuncia pelo Twitter se movem políticas e estratégias do poder. Não há a separação entre o personagem público e o privado neste caso: ao se tornar ministro, é sempre o ator político que se pronuncia, ainda mais em uma conta cuja biografia se lê “ministro da Educação”. Há, portanto, uma mudança nos regimes de aparição do poder e as mídias sociais são um canal de imediatismo dos efeitos, por isso o dever de transparência deve ser imposto aos agentes políticos formais.

Importa saber a quem há o dever de transparência para a proteção da participação política: apenas aos representantes do Estado. Há uma diferença entre ser uma pessoa comum, uma celebridade e um representante do povo. Pessoas comuns e celebridades tem o direito de selecionar sua comunidade e representantes do governo político tem o dever de acolhimento. Todos os dias bloqueio usuários que são desrespeitosos com a comunidade de diálogo que desejo conviver. Não há incoerência no exercício deste direito de seleção com a ação da qual sou requerente: sou uma cidadã, cuja voz não determina tampouco representa o poder de governo do Estado brasileiro. É como uma cidadã, professora universitária e pesquisadora, que reclamo meu direito ao livre acesso à informação e ao diálogo político. É meu direito constitucional de participação política que está em jogo.
Debora Diniz 

Liberdade e expressão, uma coisa só

A liberdade de expressão existe porque ninguém é dono da verdade. Nem o Supremo. O risco do erro sempre será o preço da liberdade
Fernando Schüler

Em matéria de fake news, não existe nada igual ao jornalismo praticado no Brasil

Há dois cariocas que fazem muita falta – Vinicius de Moraes e Sérgio Porto. Se ainda estivessem entre nós, ficariam surpresos com o reaproveitamento de suas ideias geniais. Tudo aqui no Brasil agora acontece de repente, não mais que de repente, como dizia o poeta, e o festival de besteira que o jornalista identificou nos anos 60 se tornou um nunca-acabar. E tudo parece ser aparente, nada é para valer, vivemos num mundo virtual caboclo jamais imaginado por visionários como George Orwell, Aldous Huxley ou Friedrich Nietzsche.

Todos sabem que o maior problema do país é o crescimento da dívida pública, mas esse assunto ninguém se interessa em discutir, é considerado uma espécie de fake news, o fenômeno da moda, que realmente está a motivar as autoridades.


O Supremo Tribunal Federal saiu na frente e abriu rumorosa investigação sobre as fake news. No início, houve uma discussão infernal, o relator Alexandre de Moraes tomou uma série de iniciativas ruidosas. Mas de repente, não mais que de repente, tudo parou e a própria investigação passou a ser encarada como fake news.

O Congresso Nacional, ao invés de se preocupar com as questões que inquietam o país, imitou o Supremo e acaba de abrir a CPI das Fake News para dar sequência a esse moderno festival de besteiras, pois sua investigação também não vai chegar a lugar algum.

Os parlamentares ainda não entenderam que no Brasil é tudo fake news. Vejam o caso do The Intercept. A cada dia o site binacional publica diversas notícias manipuladas para atacar o ministro Sérgio Moro e a Lava Jato, é tudo imediatamente desmentido, mas sabe-se que no dia seguinte virão outras notícias, que também serão desmentidas e por aí a coisa vai, num moto-contínuo totalmente despropositado.

Na verdade, o Brasil do Século XXI é uma espécie de laboratório da maluquice universal. Aqui debaixo do Equador, o Big Brother de Orwell é o aparelho celular, que as pessoas ficam manuseando o dia inteiro; o Admirável Mundo Novo de Huxley é a Belíndia, uma mistura de Bélgica e Índia vislumbrada pelo economista Edmar Bacha, onde a riqueza total insiste em conviver com a miséria absoluta, como se isso pudesse dar certo; e o Zaratustra de Nietzsche não conseguiu prever nada do que aconteceria nessa terra ensolarada e preguiçosa.

Ao contrário do que teria constatado Orson Welles quando por aqui esteve, é tudo mentira. Nesta semana, por exemplo, os jornais e os analistas alardearam que a Bolsa de Valores bateu todos os recordes, com os investidores entusiasmados com a aprovação da reforma da Previdência, fato que na verdade ainda nem ocorreu.

A disparada da Bolsa também é uma fake news, porque a reforma meia-sola da Previdência não vai ter influência na economia, quem investe na Bolsa são os otários de sempre, que abandonaram os fundos por causa da baixa rentabilidade e acham que descobriram a pólvora financeira.

A Previdência, para se normalizar, precisa que o país saia da recessão e haja combate à sonegação e às fraudes legais e ilegais, como a “pejotização” de trabalhadores de alta renda. Aliás, se a economia estivesse crescendo, ninguém nem falaria em reformar a Previdência, seria mais uma fake news.

Os parlamentares da CPI mista terão muito trabalho, se realmente quiserem combater esse fenômeno. Basta lembrar que o ministro da Economia, Paulo Guedes, avisou que, se mudassem a reforma da Previdência, pediria demissão e iria morar lá fora; a ministra Damares Alves, da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, também fala em abandonar o governo; o ministro Marcelo Antônio, do Turismo, diz que está cem por centro tranquilo em relação às candidatas laranjas; e o presidente Jair Bolsonaro mandou os filhos pararem de interferir no governo.

Ninguém se importa com essas notícias, porque todos sabem que é tudo fake news. O importante é a decisão da Copa América, com a presença de Bolsonaro e Moro. E la nave va, cada vez mais fellinianamente.

O imprevisto triunfo de Antônio Conselheiro

Li “Os sertões”, do Euclides da Cunha, há muitos anos, quando ainda acreditava, ingenuamente, que conseguiria um dia compreender o Brasil. Não é para isso que servem, afinal, os textos fundadores de um qualquer país?

O livro, publicado em 1902, é um produto dessa época, para o melhor e para o pior, sendo o pior a utilização de teses racistas, próximas do chamado “darwinismo social”, para defender a superioridade da “raça branca” e combater a mestiçagem. Nesse sentido, “Os sertões” ajudam-nos mais a compreender aquele estranho momento da irracionalidade humana que possibilitou, décadas depois, a ascensão do nazismo, do que a entender o Brasil. Cientificamente, o livro vale como um contributo tropical para a história da estupidez.

Já enquanto reportagem de guerra, o texto de Euclides da Cunha não envelheceu. Isso acontece, suspeito, porque não se trata apenas de uma reportagem de guerra, mas de uma guerra reportada por um verdadeiro escritor.


Euclides da Cunha, o escritor, sobrepõe-se o tempo todo ao Euclides da Cunha, o jornalista, apaixonando-se pelas suas personagens e dando-nos a ver a Guerra de Canudos na sua intimidade mais intensa, muito para além do óbvio e do mero relatar de eventos.

Assim, enquanto reportagem de guerra na sua forma literária, como fariam, muitos anos mais tarde, Gabriel García Marquez em “Operação Carlota” ou Ryszard Kapuscinski, em “Mais um dia de vida” (ambos sob a guerra civil angolana, e se os cito aqui é porque me sinto mais próximos deles), “Os sertões” serve o propósito de nos auxiliar a compreender um pouco do que é o Brasil dos nossos dias. Naqueles sertões dos finais do século XIX já se desenhavam todas as grandes contradições do país hoje presidido por Jair Bolsonaro: as profundas divisões de classes, com uma suposta elite urbana de origem europeia, convencida dos seus direitos de mando consuetudinário, e um mundo rural miserável e arcaico, presa fácil de seitas religiosas ultraconservadoras e de discursos messiânicos.

Muitos sertões depois, Antônio Conselheiro chegou triunfante ao Planalto, com os seus rudes jagunços armados até aos dentes, e a confusa distopia de um Brasil enclausurado no passado, sujeito ao Deus furioso do Antigo Testamento e respeitador da família e dos valores tradicionais. O inusitado é que, desta vez, Antônio Conselheiro e o seu exército de piedosos pistoleiros não só não foram travados pelos militares e pela elite urbana como contaram com o ativo apoio destes.

“Os sertões” ajudam-nos a entender o Brasil? Será que se tivéssemos todos lido e discutido o texto de Euclides da Cunha, com mais interesse e mais profundidade, poderíamos ter previsto o regresso triunfante de Antônio Conselheiro?

Não tenho a certeza. Acredito, contudo, que, relendo-o hoje, talvez consigamos compreender melhor o coração deste Brasil arcaico, mágico, feroz e cruel, que gerou Antônio Conselheiro, e que é o mesmo, afinal, que gerou os militares e a elite supostamente europeia e supostamente moderna que o matou. Por isso estão todos juntos hoje. Juntos, mas não misturados. Juntos, mas não para sempre.
José Eduardo Agualusa