terça-feira, 25 de junho de 2024

Direita, volver

Repercutiu uma discussão sobre se a universidade deveria abrir-se mais para o pensamento de direita. Houve quem enxergasse no argumento laivos de "Sobre a Liberdade", de John Stuart Mill, com sua ênfase no valor inerente da individualidade e da liberdade de expressão. Para o influente filósofo inglês oitocentista, uma opinião silenciada pode conter boa parte de verdade. Logo, diversidade e debate são eticamente saudáveis numa democracia, onde a razão estaria sempre com o povo, suposta expressão da vontade coletiva.

Mas argumento como intervenção racional no pensamento político precisa ser validado por prova prática. Isso ganha urgência nas mutações da experiência concreta, em que razão e percepção podem deixar de coincidir. São, portanto, viáveis alguns reparos empíricos à alegada ausência de direita no campo universitário.


É que em 50 anos de trabalho na maior universidade federal do país jamais tivemos percepção de domínio da esquerda, entendida como militância orientada pela revolução emancipatória. Esse foi sempre o fantasma útil da repressão. A realidade se matiza por silenciosa maioria conservadora, uma coorte de progressistas (centro-esquerda, social-democracia) e nichos convictos das utopias religiosamente reveladas pelo determinismo histórico.

A direita stricto-sensu, espectro reacionário de ideias, sempre esteve embuçada nas fileiras conservadoras. Calava por vergonha, mesmo durante a ditadura. Expõe-se agora como ultradireita, que é o brutalismo das situações extremas, apoiada no anonimato da desinformação das redes ou na blindagem parlamentar. Sem nada formular de interesse nacional, controla as duas casas legislativas federais, retrocede com religiosos a uma sinistra teocracia, realiza por ideologia o que os militares não conseguiram com armas.

Cabe, assim, duvidar da vontade dessa ultradireita de estar na universidade, espaço articulado, tanto nas ciências humanas como nas exatas, em torno da verdade. Aliás, direita e esquerda são termos antigos em que o mundo não mais se reconhece: o que é dado a ver ultrapassa qualquer realidade original. Politicamente, arma-se um projeto neobárbaro de poder, com as massas realocadas, da falência dos partidos populares, para a ultradireita.

Numa socio-ecologia da mentira, não é mais questão de pensamento, e sim de checagem de dados. Os extremistas sabem, como Thomas Jefferson, que "o preço da liberdade é a vigilância". Daí o recente ataque da câmara de horrores ao Netlab, laboratório de pesquisa em desinformação da ECO/UFRJ, assim como a outras iniciativas do gênero no Brasil e no mundo. Neobarbarismo, protofascismo são só termos aproximativos. O que há mesmo é pulsão brutalista de morte na dispersão de palavras, de sentido e de vida.

Muniz Sodré 

As diferenças não somem assim com facilidade

Em 1930, a escritora Rachel de Queiroz, uma menina, mal saída do curso superior e tendo recém-lançado “O Quinze”, abriu fogo contra um tal “manifesto” formulado e assinado pelo que havia de mais reacionário no governo de então. Da noite pro dia, Rachel se tornou musa, estrela que iluminava nosso curto céu democrático.

Mas não foi apenas a ação intempestiva dela que influenciou. Rachel começou a escrever artigos sobre liberdade de expressão que mandava publicar nos jornais mais à mão.

Na mesma época, numa mesa da Rua do Comércio, em Maceió, se reunia um grupo de amigos que, embora não se expressasse de um só modo, tinha algumas ideias em comum. E uma dessas era a ideia de liberdade. Eles achavam que sem liberdade não era possível construir alguma coisa que valesse à pena, sobretudo no campo cultural.


Durante anos esses amigos lutaram por uma expressão cultural decente e viram na questão estabelecida por Rachel de Queiroz um espaço importante para desenvolvê-la. Cada um deles continuou a desenvolver o que fazia, vinculados ao que já estavam compondo como cultura.

Graciliano Ramos mantinha seus relatórios da Prefeitura de Palmeira dos Índios no grupo. Jorge de Lima seguia fazendo seus poemas misteriosos. Raul Lima e Waldemar Cavalcanti precisavam continuar seus estudos. Théo Brandão fazia de Viçosa a cidade de seus sonhos folclóricos. Diégues Jr. seguia escrevendo nos jornais do Rio e Recife, descobrindo nomes mais ligados ao novo e à confirmação de uma cultura nacional, como havia acontecido recentemente, com um concerto de Heitor Villa Lobos.

E ainda havia aqueles que, não podendo deixar os lugares em que estavam acolhidos, contribuíam com pedaços de seus conhecimentos e ideias novas. Assinalo, até com exaltado reconhecimento, nomes como Jorge Amado, da Bahia, ou Gilberto Freyre, do Recife.

Essa mesa da Rua do Comércio acabou se tornando um elemento constitutivo e fundamental do movimento modernista no Nordeste. Eles não impuseram nada ao que devia ser o Modernismo, não estabeleceram regras para o movimento, não impuseram nenhum rumo para seus artistas.

Quando o Modernismo se tornou um valor nacional, capaz de determinar o que éramos e para onde queríamos ir, o exemplo nordestino, tenho certeza, acabou sendo oportuno para o movimento. Eles não se negavam a discutir a importância dos paulistas, não tinham nada a ver com as disputas gaúchas. Nunca nos metemos nessas questões de prioridades.

A simples luta pela negação de amarras criativas, em defesa da liberdade e contra manifestos pré-estabelecidos garantia o valor da obra.