sexta-feira, 3 de maio de 2024

Pensamento do Dia

 


A implosão da mentira

Mentem no passado. E no presente
passam a mentira a limpo. E no futuro
mentem novamente.
Mentem fazendo o sol girar
em torno à terra medieval/mente.
Por isto, desta vez, não é Galileu
quem mente,
mas o tribunal que o julga
herege/mente.

Mentem como se Colombo partindo
do Ocidente para o Oriente
pudesse descobrir de mentira
um continente.

Mentem desde Cabral, em calmaria,
viajando pelo avesso,
iludindo a corrente em curso,
transformando a história do país
num acidente de percurso.
Affonso Romano de Sant’Anna, "A implosão da mentira e outros poemas"

De volta aos trogloditas


A cultura do cancelamento nos embruteceu como sociedade
Wilson Gomes

Incertezas da crise brasileira

O que nos espera lá adiante na história social e política? Tudo indica que, em comparação com o que fomos e com as certezas que já tivemos do que poderíamos ser, nosso lá adiante será a confirmação de uma opção preferencial pelo atraso. Uma opção acidental, por ação e omissão, aos trancos e barrancos de uma história política sem a nervura própria de partidos doutrinários. Em que mais teve voz a incompetência e o oportunismo do que a consciência política propriamente dita.

Essa anomalia chegou ao auge no governo de 2019 a 2022, em que o Brasil foi capturado por um êmulo do Chacrinha, que iniciava seus programas de TV com a advertência: “Vim para confundir”, por meio do desmonte do nosso modesto patrimônio de conquistas democráticas.

Alguns episódios dramáticos de nossa história revelam todo seu sentido nesta atualidade de incertezas. Quando começou nossa decadência? Quando começou o fim de nossa confiança em nós mesmos? Um sinal preocupante de nossa ruína é a persistência de um Brasil bipolar, que estreita nossas alternativas sem abrir-nos a possibilidade de superação democrática de nossas limitações.


Em nenhum lugar do mundo o caminho da história é aberto no rumo do passado. Para ser apenas o que já fomos não é necessário andar para trás. Basta ficar onde já estamos bloqueados desde 1964. O nacional-desenvolvimentismo industrialista, do desenvolvimento econômico com desenvolvimento social, foi revogado pelo crescimento econômico com desenvolvimento social meramente residual. Surgiu a categoria ideológica de “exclusão social”, na verdade inclusão social perversa.

No lugar da urbanização crescente, a urbanização patológica das grandes cidades. No lugar da educação desenvolvimentista, a educação superficial e insuficiente da mão de obra de durabilidade limitada e descartável. É isso que dá entregar um país ao mando do neoliberalismo econômico de periferia.

A direita não tem motivos para se preocupar. Para ela, o poder é o sistema de benefícios subjetivos, próprio da desfiguração do que é propriamente o poder político. A reunião do governo Bolsonaro de 22 de abril de 2020 foi deplorável confissão de pouco caso pelo poder, pelo país e pelo povo brasileiro. Mesmo o dos cúmplices e subalternos do mando, civis e militares. Eles sabem que precisam uns dos outros, dos iguais. Aquilo foi o indício desavergonhado da transformação da nossa decadência em espetáculo.

Mas a esquerda não tem motivos para não se preocupar. Sua missão histórica de levar adiante a construção social e política hoje do Brasil de amanhã vem sendo comprometida por sua fragmentação. E por suas vacilações em relação tanto a urgências sociais e políticas de governo quanto a prioridades sociais, econômicas, educacionais.

Sobretudo sua dificuldade para definir uma coalização política de centro-esquerda que revigore a social-democracia como aliada e dê aos diferentes grupos de esquerda um protagonismo real na política social e na democracia. Que oponha a consciência do presente como história à indigência de concepções que oscilam entre a porta do botequim e o gazofilácio de igreja fundamentalista. Nesse movimento, o protagonismo dos verdadeiros cristãos precisa reencontrar a igreja dos profetas e da comunidade, o da expulsão dos vendilhões do templo.

O processo político não substitui nem precede as outras dimensões do processo social: a cultura, a educação, a ciência, a própria economia. A criatividade minguou. O país vacila numa espécie de indiferença de povo que renunciou ao seu destino.

Hoje, “patriota” é basicamente quem está no rol dos que foram capturados na insurgência de 8 de janeiro de 2023 e estão sendo processados como delinquentes políticos e condenados a longas penas. Inconscientes e alienados, acham que estão cumprindo uma missão de Deus, pois tudo sugere que muitos acreditam que foram chamados por ele a um serviço pela pátria.

A esquerda se fragiliza porque capturada pela armadilha do contraponto com a extrema direita militarizada cuja identidade se apoia num imaginário manipulado. Uma direita que, negação da democracia, não demonstra competência como mediação de superação de impasses políticos da sociedade brasileira.

Em boa parte porque a esquerda se fragmentou no que poderia ter sido diversificação das orientações políticas como expressões da diversidade social de uma sociedade que se desagregava e continua se desagregando. Uma esquerda representativa da pluralidade social e ideológica, mas com dificuldades para desenvolver uma consciência de referência de uma coalização possível de oposição ao totalitarismo e de crítica social do autoritarismo de um capitalismo da menos-valia e do prejuízo.

Vítima das Embalagens

Entro no chuveiro. Relaxo na água quentinha. Pego o xampu. É novo. Tento virar a tampa. Não cede. Aproximo meus olhos míopes. Está envolta em um plástico duro, transparente. Puxo. Minhas unhas curtas resvalam. A batalha demora alguns instantes. Minhas investidas não produzem resultado algum. Tenho cabelos oleosos. Sem um bom xampu, fico tão charmoso quanto um tapete de pele de carneiro. Ataco a tampa a mordidas. Meus dentes rangem. Mal arranco uma lasquinha. O xampu cai da minha mão. Abaixo-me. Tropeço. Caio sentado. O frasco continua invicto.

Recentemente, também fui vítima de uma lata de patê de fígado. Era daquele tipo que vem com uma chavinha. O segredo é enrolar a chavinha bem devagar em torno do topo, até que a parte de cima se solte. Teoricamente. Como sempre, fiquei com a chavinha inútil numa mão e a lata fechada na outra. Os amigos bebiam cerveja na sala. Quis enfiar a chavinha de novo. Impossível. Tentei com o abridor. Não havia ângulo para apoiar. Peguei uma faca e um martelo. Fui esfaqueando a lata pela parte de cima. Cavava um buraco, em seguida outro do lado, e assim por diante. Quando achei que dava, puxei. Abri.

Mas a lata, cheia de pontas metálicas, bateu na minha mão.

Espalhei patê pelo piso. Eu me cortei. Um cortezinho ridículo, mas corte. Os amigos vieram correndo. Falaram em tétano e pronto-socorro. Jurei nunca mais comprar patê de fígado com chavinha. -


Frascos, latas e semelhantes levam qualquer ser humano à beira da loucura. Remédios e vitaminas são hors-concours. Só provam uma coisa: quem conseguir abrir está perfeitamente saudável. As aspirinas têm vindo com uma tampa na qual há uma setinha minúscula em relevo. A tal setinha tem de encaixar com outra marquinha. Algo tão minucioso quanto abrir um cofre sem o segredo. Para quem está estalando de dor de cabeça, uma delícia. Alguns sucos vêm em embalagens de papelão com um recorte picotado. "Aperte aqui", diz um aviso. Aperto e não acontece nada. Depois de inúmeras tentativas, arrebento o papelão no lugar errado. O suco esguicha para o copo pelo lado. Um horror.

Engoli derrotas até de embalagens de produtos de limpeza. Algumas vêm com uma tampa simples. Aberta, descobre-se uma nova tampa. O lugar onde devia haver um furinho está tapado com plástico resistente. Tudo bem. E uma medida natural do fabricante para impedir que o detergente alague o caminhão de entrega. Mas a tampa é planejada numa medida tal que nada consegue fazer o furinho. A ponta das facas não penetra. Nem a da tesoura de cozinha. Tento com um garfo. A dimensão é perfeita. Quase consigo. Empurro um dente do garfo no plástico. Entorta para o lado, mas não faz o furinho. Fico com o garfo destruído e a embalagem fechada. Paro alguns segundos. Tomo um café. Cravo chaves de fenda de tamanhos variados. Nenhuma serve. Lembro-me do abridor de vinhos. Tenho um superchique, de design italiano, que reservo para os dias de visita. Quase acabo com o abridor, mas consigo. Furinho feito, vou lavar os pratos. Espremo a embalagem e o produto sai por todos os lados. As várias tentativas criaram pequenas aberturas. Espirra até no armário da cozinha. Minha orelha fica cheia de detergente.

Estou consciente de que os fabricantes têm sólidas razões para me torturar dessa maneira. Proteger o produto é uma delas. Impedir que crianças abram frascos indevidos é outra. Nesse último caso, trata-se de pura ilusão. Petiscos em saquinhos metálicos indevassáveis e bugigangas eletrônicas treinaram a meninada. Para minha humilhação, qualquer garotinho abre uma embalagem complexa em segundos. Eu me sinto como se fosse um alienígena, ainda não adaptado para conviver com os progressos da civilização. Tenho saudade das embalagens do passado. Quando bastava um pouco de firmeza para torcer tampas ou usar o abridor de latas. Força, só para estourar a rolha da garrafa de champanhe. Mas, aí, sempre valia a pena, por conta da comemoração.
Walcyr Carrasco

Milei e Bolsonaro: o desprezo pelas universidades públicas

Ganhou cinco prêmios Nobel, formou 16 presidentes e estava entre as 100 melhores universidades do mundo: essas são apenas algumas das conquistas da Universidade de Buenos Aires (UBA). Incrível, né? Mas isso não impediu Javier Milei, o polêmico presidente argentino, de descrever a universidade como "um espaço de doutrinação comunista e lavagem cerebral".

O ataque também afetou o orçamento das instituições públicas de ensino superior na Argentina. Atualmente, o país tem a maior inflação do mundo, cerca de 290 % anuais, mas foi liberado para a instituição o mesmo orçamento de 2023. Emiliano Yacobitti, o vice-reitor da UBA, disse em uma entrevista que o hospital universitário precisou até cancelar algumas cirurgias e que a instituição corre o risco de eventualmente não conseguir arcar mais com despesas operacionais básicas, como luz e água.


Tive a oportunidade de conversar com Estefanía Paola Cuello, advogada e professora de Teoria do Estado e História do Direito na Faculdade de Direito da UBA. "Sou contra as políticas de cortes levadas a cabo por Milei. As universidades favorecem a construção da identidade do país, uma vez que promovem e endossam a própria função do Estado. Atacar elas é atacar qualquer possibilidade de aproximação dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade", afirmou.

Segundo ela, governos como o de Milei tendem à disciplina e à censura dos centros de pensamento. "Contudo, no caso particular da Argentina, o atual executivo está adotando um papel exageradamente ridículo e desnecessário na sua gestão pública. Milei transcende os discursos comuns na América Latina que lutam contra o ‘marxismo cultural'. Ao lado de Milei, Bukele parece moderado e Bolsonaro sério. Mas sua busca vai além de uma posição ideológica. É a busca pelo posicionamento digital através do desprezo por qualquer manifestação cultural séria. O presidente argentino busca ser uma estrela das redes sociais, uma réplica vulgar de Bukele".

O caso Argentino me lembra muito o caso brasileiro. A USP, a Unesp, a Unicamp, a UFRJ, a UFRGS, a UFBA, a UFMG e muitas outras instituições de ensino superior público brasileiro são referência mundial, mas isso não as impediu de serem alvo de perseguição do ex-presidente, Jair Bolsonaro. Ele e Milei compartilham, além de outras características, um aparente ódio pelo ensino superior público, classificando as universidades como supostos centros de esquerda e espaços de comunismo, que fazem lavagem cerebral.

A UFRJ, assim como a UBA, chegou bem próximo de fechar as portas simplesmente por correr o risco de não conseguir pagar as despesas de luz.

Espaços plurais

A semelhança descrita acima não é coincidência e para entender melhor eu entrevistei Paolo Ricci, cientista político e professor da Universidade de São Paulo (USP). "Há certo consenso na literatura em chamar esses políticos de populistas. Em seus discursos, é uma constante a contraposição entre o povo, moralmente puro, e os "outros", a elite, vistos como corruptos e imorais fazendo amplo uso de uma linguagem emotiva. Na América Latina, a direita populista centra sua fala contra a esquerda taxada não apenas de ser corrupta, mas de ser comunista e socialista; uma caracterização extremamente marginal. Em geral, o que caracteriza um discurso populista é a simplificação de questões complexas dando a entender que os populistas possuem soluções para os problemas que os "outros" não conseguem enfrentar", afirmou.

Ele continua: "Um dos elementos destacados pelos estudiosos é o aspecto antipluralista dos populistas no sentido de se apresentar com os únicos que representam o povo. Aqui, portanto, temos que reconhecer um aspecto autoritário no populista, voltado para deslegitimar a ação do opositor em termos competitivos e representativos. Milei e Bolsonaro se enquadram nessa ideia. Se a literatura tem clareza sobre o populismo autoritário de Bolsonaro, Miliei ainda está sob avaliação, mas há fortes similaridades entre os dois".

O ataque às universidades, segundo ele, não é uma constante entre os governos populistas. Esses ataques no Brasil são "uma tentativa a mais de deslegitimar o PT e, mais em geral, a esquerda e suas pautas que encontram expressão no âmbito universitário, como as pautas identitárias".

Já na Argentina, segundo Cuello, "este movimento, talvez, tenha sido uma tentativa de se destacar pelo contraste e se opor diametralmente às políticas públicas características dos governos de Cristina Fernández de Kirchner e do peronismo em geral. Possivelmente, ele procurou atrair o eleitorado antiperonista e o emergente eleitorado libertário".

Além disso, os dois especialistas também concordam em um importante aspecto: não é verdade que há uma hegemonia esquerdista nas universidades públicas. Elas são, muito pelo contrário, espaços heterogêneos de correntes e posicionamentos.

Faço no mestrado em uma universidade pública e cursei a graduação em outra, ambas estão entre as melhores do país. São centros de excelência e que não "doutrinam" seus alunos, mas sim os provocam para despertar o próprio senso crítico.

Graças à formação que recebemos, conseguimos, inclusive, perceber o quanto governantes como os aqui descritos se maquiam com uma narrativa pró-povo, anticorrupção e a favor da liberdade, quando na verdade são antidemocracia e não se preocupam nem um pouco com próprio povo.

Muitos deles, talvez não coincidentemente, não estudaram em uma universidade pública. Se dedicassem o mesmo tempo que gastam falando mal delas as visitando, saberiam o que realmente acontece lá e talvez teriam posicionamentos diferentes e mais respeitosos com instituições que, inclusive, impulsionam o desenvolvimento do país.