sexta-feira, 3 de maio de 2024

Vítima das Embalagens

Entro no chuveiro. Relaxo na água quentinha. Pego o xampu. É novo. Tento virar a tampa. Não cede. Aproximo meus olhos míopes. Está envolta em um plástico duro, transparente. Puxo. Minhas unhas curtas resvalam. A batalha demora alguns instantes. Minhas investidas não produzem resultado algum. Tenho cabelos oleosos. Sem um bom xampu, fico tão charmoso quanto um tapete de pele de carneiro. Ataco a tampa a mordidas. Meus dentes rangem. Mal arranco uma lasquinha. O xampu cai da minha mão. Abaixo-me. Tropeço. Caio sentado. O frasco continua invicto.

Recentemente, também fui vítima de uma lata de patê de fígado. Era daquele tipo que vem com uma chavinha. O segredo é enrolar a chavinha bem devagar em torno do topo, até que a parte de cima se solte. Teoricamente. Como sempre, fiquei com a chavinha inútil numa mão e a lata fechada na outra. Os amigos bebiam cerveja na sala. Quis enfiar a chavinha de novo. Impossível. Tentei com o abridor. Não havia ângulo para apoiar. Peguei uma faca e um martelo. Fui esfaqueando a lata pela parte de cima. Cavava um buraco, em seguida outro do lado, e assim por diante. Quando achei que dava, puxei. Abri.

Mas a lata, cheia de pontas metálicas, bateu na minha mão.

Espalhei patê pelo piso. Eu me cortei. Um cortezinho ridículo, mas corte. Os amigos vieram correndo. Falaram em tétano e pronto-socorro. Jurei nunca mais comprar patê de fígado com chavinha. -


Frascos, latas e semelhantes levam qualquer ser humano à beira da loucura. Remédios e vitaminas são hors-concours. Só provam uma coisa: quem conseguir abrir está perfeitamente saudável. As aspirinas têm vindo com uma tampa na qual há uma setinha minúscula em relevo. A tal setinha tem de encaixar com outra marquinha. Algo tão minucioso quanto abrir um cofre sem o segredo. Para quem está estalando de dor de cabeça, uma delícia. Alguns sucos vêm em embalagens de papelão com um recorte picotado. "Aperte aqui", diz um aviso. Aperto e não acontece nada. Depois de inúmeras tentativas, arrebento o papelão no lugar errado. O suco esguicha para o copo pelo lado. Um horror.

Engoli derrotas até de embalagens de produtos de limpeza. Algumas vêm com uma tampa simples. Aberta, descobre-se uma nova tampa. O lugar onde devia haver um furinho está tapado com plástico resistente. Tudo bem. E uma medida natural do fabricante para impedir que o detergente alague o caminhão de entrega. Mas a tampa é planejada numa medida tal que nada consegue fazer o furinho. A ponta das facas não penetra. Nem a da tesoura de cozinha. Tento com um garfo. A dimensão é perfeita. Quase consigo. Empurro um dente do garfo no plástico. Entorta para o lado, mas não faz o furinho. Fico com o garfo destruído e a embalagem fechada. Paro alguns segundos. Tomo um café. Cravo chaves de fenda de tamanhos variados. Nenhuma serve. Lembro-me do abridor de vinhos. Tenho um superchique, de design italiano, que reservo para os dias de visita. Quase acabo com o abridor, mas consigo. Furinho feito, vou lavar os pratos. Espremo a embalagem e o produto sai por todos os lados. As várias tentativas criaram pequenas aberturas. Espirra até no armário da cozinha. Minha orelha fica cheia de detergente.

Estou consciente de que os fabricantes têm sólidas razões para me torturar dessa maneira. Proteger o produto é uma delas. Impedir que crianças abram frascos indevidos é outra. Nesse último caso, trata-se de pura ilusão. Petiscos em saquinhos metálicos indevassáveis e bugigangas eletrônicas treinaram a meninada. Para minha humilhação, qualquer garotinho abre uma embalagem complexa em segundos. Eu me sinto como se fosse um alienígena, ainda não adaptado para conviver com os progressos da civilização. Tenho saudade das embalagens do passado. Quando bastava um pouco de firmeza para torcer tampas ou usar o abridor de latas. Força, só para estourar a rolha da garrafa de champanhe. Mas, aí, sempre valia a pena, por conta da comemoração.
Walcyr Carrasco

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