quinta-feira, 2 de novembro de 2023
Idade da Estupidez
Há quem diga que este período da história da humanidade será conhecido como a Idade da Estupidez. O raciocínio corre sobre o fio da lógica e revela uma contradição. Ao mesmo tempo em que a ciência avança em todas as áreas, no terreno espiritual experimentamos o regresso ao breu da ignorância.
A absoluta maioria dos viventes é beneficiária do avanço, mas não é parte da inteligência que o produziu. Ao contrário, usa os seus resultados para espargir a sua estupidez. A internet é o melhor exemplo. Todas as pessoas podem expor suas ideias, o que é comemorado pelos idiotas da oclocracia com bumbos, trombones e urras à nova democracia. Estudo recente de universidades europeias sobre os conteúdos veiculados nas redes da web informa que 90% dos internautas têm a oferecer apenas sandices, bobagens, preconceitos, pieguices, superstições e todo o tipo de vulgaridade da vida pornográfica. Isso na Europa, onde o padrão intelectual é sabidamente superior ao nosso. Basta comparar a qualificação das nossas universidades no ranking mundial. Perdemos para o Cazaquistão.
O caldo de cultura produzido na internet é espesso em sabedoria extraída do senso comum. Conceitos latrinários de filosofia de boteco adquirem a aura de verdade porque é a verdade da maioria. Os fanáticos de todos os fundamentalismos fazem a festa. Aí incluídos defensores do “politicamente correto”. Gente que insiste em impor à vida pública regras morais e costumes que adotou na vida privada. O que parecia ser parte da luta contra os preconceitos tornou-se instrumento ditatorial de hordas que se organizam contra as liberdades de quem não concorda com suas ideias. Nada mais preconceituoso.
O fenômeno criou um mercado próspero para as teorias de baixa extração intelectual. Os pregadores propõem bobagens absurdas e a maioria, em sua idiotia, repete. A mídia que restou, conformada a esse mercado, reproduz a logorréia que escorre do computador para as manifestações públicas mais deprimentes. Entre elas, essa mania recente de mulheres a mostrar os seios, sendo que algumas deveriam ser proibidas pelo estado de decadência física em que se encontram.
Uma preocupação apresentada no estudo é com a reprodução do lixo cultural por outros meios também poderosos. A pesquisa tomou uma amostra entre professoras do primeiro grau. Todas se mostraram influenciadas por movimentos da ignorância e naturalmente repassam suas ideias aos alunos. Isso indica que teremos uma geração de imbecis bastante fundamentados em teorias estúpidas.
Há salvação? O estudo não é conclusivo. E sabemos que o estúpido é, antes de tudo, um forte, porque sua força se tornou expressão coletiva através da rede mundial da internet. Teremos que conviver com a praga de nosso tempo. O estúpido está em todos os lugares. Seja escabroso, rabelaisiano ou ecológico. Religioso fundamentalista ou acadêmico emérito e laureado. Sacerdote nutricionista, teórico dos gêneros e da liberdade sexual. Há estúpido sumítico e valetudinário, como há estúpido que crê na hierarquia de valores, no patriotismo boçal e no direito de extravasar seus recalques no futebol e no carnaval. Há também os que acreditam nos direitos intocáveis de cães, gatos e de todos os animais irracionais. Talvez por solidariedade e identificação.
Eu, com todo o respeito, não acredito que haja estúpido neófito. Sou pessimista. A vida mostrou-me que não há condição para ser idiota. O idiota é idiota independente de gênero, classe social, idade, escolaridade, opção política, profissão ou religião. O estúpido nasce glorioso. A estupidez se impõe porque é a expressão da maioria que está aí para aplaudi-la. E não duvide, a estupidez, se ainda não chegou, está preparada para assumir o poder em todas as instâncias. Argh!
A absoluta maioria dos viventes é beneficiária do avanço, mas não é parte da inteligência que o produziu. Ao contrário, usa os seus resultados para espargir a sua estupidez. A internet é o melhor exemplo. Todas as pessoas podem expor suas ideias, o que é comemorado pelos idiotas da oclocracia com bumbos, trombones e urras à nova democracia. Estudo recente de universidades europeias sobre os conteúdos veiculados nas redes da web informa que 90% dos internautas têm a oferecer apenas sandices, bobagens, preconceitos, pieguices, superstições e todo o tipo de vulgaridade da vida pornográfica. Isso na Europa, onde o padrão intelectual é sabidamente superior ao nosso. Basta comparar a qualificação das nossas universidades no ranking mundial. Perdemos para o Cazaquistão.
O caldo de cultura produzido na internet é espesso em sabedoria extraída do senso comum. Conceitos latrinários de filosofia de boteco adquirem a aura de verdade porque é a verdade da maioria. Os fanáticos de todos os fundamentalismos fazem a festa. Aí incluídos defensores do “politicamente correto”. Gente que insiste em impor à vida pública regras morais e costumes que adotou na vida privada. O que parecia ser parte da luta contra os preconceitos tornou-se instrumento ditatorial de hordas que se organizam contra as liberdades de quem não concorda com suas ideias. Nada mais preconceituoso.
O fenômeno criou um mercado próspero para as teorias de baixa extração intelectual. Os pregadores propõem bobagens absurdas e a maioria, em sua idiotia, repete. A mídia que restou, conformada a esse mercado, reproduz a logorréia que escorre do computador para as manifestações públicas mais deprimentes. Entre elas, essa mania recente de mulheres a mostrar os seios, sendo que algumas deveriam ser proibidas pelo estado de decadência física em que se encontram.
Uma preocupação apresentada no estudo é com a reprodução do lixo cultural por outros meios também poderosos. A pesquisa tomou uma amostra entre professoras do primeiro grau. Todas se mostraram influenciadas por movimentos da ignorância e naturalmente repassam suas ideias aos alunos. Isso indica que teremos uma geração de imbecis bastante fundamentados em teorias estúpidas.
Há salvação? O estudo não é conclusivo. E sabemos que o estúpido é, antes de tudo, um forte, porque sua força se tornou expressão coletiva através da rede mundial da internet. Teremos que conviver com a praga de nosso tempo. O estúpido está em todos os lugares. Seja escabroso, rabelaisiano ou ecológico. Religioso fundamentalista ou acadêmico emérito e laureado. Sacerdote nutricionista, teórico dos gêneros e da liberdade sexual. Há estúpido sumítico e valetudinário, como há estúpido que crê na hierarquia de valores, no patriotismo boçal e no direito de extravasar seus recalques no futebol e no carnaval. Há também os que acreditam nos direitos intocáveis de cães, gatos e de todos os animais irracionais. Talvez por solidariedade e identificação.
Eu, com todo o respeito, não acredito que haja estúpido neófito. Sou pessimista. A vida mostrou-me que não há condição para ser idiota. O idiota é idiota independente de gênero, classe social, idade, escolaridade, opção política, profissão ou religião. O estúpido nasce glorioso. A estupidez se impõe porque é a expressão da maioria que está aí para aplaudi-la. E não duvide, a estupidez, se ainda não chegou, está preparada para assumir o poder em todas as instâncias. Argh!
Fábio Campana (1947|2021)
Notícias de uma guerra que chega até nós
A coisa mais tenebrosa que conheci foram os campos de concentração de Auschwitz e Birkenau, na Polônia, designados pelo regime nazista de Adolph Hitler como o lugar para a “Solução Final” para os judeus. Entre o começo de 1942 e o fim de 1944, homens, mulheres, crianças e anciãos de toda a Europa foram transportados em trens para serem eliminados em câmaras de gás e crematórios naquele complexo macabro. Cerca de 1,3 milhão e 3 milhões de prisioneiros foram ali exterminados, sendo 90% judeus. Aproximadamente 150 mil poloneses, 23 mil ciganos, 15 mil soldados soviéticos e 400 testemunhas de Jeová também foram executados, morreram de fome, doenças ou em experiências médicas.
Tudo o que já havia visto sobre o Holocausto, em fotos, vídeos e filmes, nem se compara à experiência tenebrosa da visita ao local. O maior espanto é constatar como a racionalidade humana é capaz de banalizar o mal. Por isso mesmo, não estranhei a reação de Dani Dayan, presidente do Centro para a Memória do Holocausto de Israel, ao criticar o uso da Estrela Amarela pelos diplomatas de seu país na reunião do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), na segunda-feira: “O emblema amarelo simboliza o desamparo do povo judeu. Hoje, temos um país independente e um exército forte, somos mestres do nosso próprio destino. Hoje, deveríamos colocar um botton de bandeira branca na lapela, não um emblema amarelo”, disse, sobre o uso indevido da Estrela de Davi.
Ao ostentar a estrela amarela na lapela com o slogan “Nunca Mais”, o embaixador de Israel na ONU, Gilad Erdan, afirmara que era um símbolo de orgulho e uma forma de lembrar que juraram se defender, e que o antissemitismo e o ódio aos judeus estão crescendo pelo mundo. No regime nazista na Alemanha e nos países ocupados na II Guerra Mundial, todos os judeus foram obrigados a usar uma estrela amarela costurada na roupa para serem identificados. Depois, nos campos de concentração, foram numerados com uma tatuagem no braço.
O uso da estrela amarela pelos diplomatas era uma remissão ao Holocausto, por causa do ataque terrorista do Hamas de 7 de outubro, no qual 1.400 pessoas foram assassinadas e 250 foram sequestradas em Israel. A retaliação de Israel é legitimada perante a opinião pública mundial não somente com a narrativa da luta contra o terrorismo, mas, também, com a memória dos fatos que mais mexem com corações e mentes dos judeus de todo o mundo, inclusive no Brasil: os campos de extermínio nazistas.
Em contrapartida, o repúdio ao massacre de crianças, mulheres e idosos em Gaza, que somam aproximadamente 75% dos 8,5 mil palestinos mortos pelo exército de Israel, extrapola o mundo árabe e mobiliza todo o Oriente muçulmano. Tornou-se o epicentro da nova “guerra fria” entre Estados Unidos e a Rússia, em lugar do conflito da Ucrânia. Não há o menor sinal de paz no horizonte. Nem mesmo um cessar-fogo humanitário, a não ser que seja aprovada alguma resolução no Conselho de Segurança da ONU, que vive seu maior impasse. A China, que hoje assume a presidência do colegiado, até agora foi espectadora privilegiada. Veremos qual será seu papel.
As notícias são desanimadoras. Há 240 reféns de Israel nas mãos do Hamas. O número de funcionários das Nações Unidas mortos na Faixa de Gaza aumentou para 67, segundo informação divulgada pela Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente. Um bombardeio no campo para refugiados na cidade de Jabalia, no norte de Gaza, deixou 50 mortos e mais de 300 feridos.
O coronel Richard Hecht, porta-voz do exército de Israel, confirmou que as forças armadas do país atacaram o campo para matar um dos comandantes do Hamas. Os rebeldes Houthis do Iêmen também entraram na guerra, que acontece a mais de 1.600km de sua sede em Sanaa, e lançaram drones e mísseis contra Israel. Continuam as escaramuças entre o Hezbollah e o exército israelense, na fronteira com o Líbano. Na Cisjordânia ocupada, os conflitos de rua com os soldados israelenses se intensificam.
Em 2009, o historiador britânico-judeu Tony Judt, que faleceu no ano seguinte, num antigo intitulado O que fazer?, vaticinou que a opção de deixar “mediocridades incompetentes” à frente de Israel e da Autoridade Palestina teria consequências catastróficas. “Graças ao tratamento abusivo dos palestinos pelo ‘Estado judeu’, o imbróglio israelense-palestino é o motivo mais iminente para o ressurgimento do antissemitismo em todo o mundo. É o fator mais eficiente no recrutamento de agentes para os movimentos islâmicos radicais. E priva de um sentindo as políticas externas dos Estados Unidos e da União Europeia para uma das regiões mais delicadas e instáveis do mundo. Algo diferente precisa ser feito.”
Para Judt, Israel vivia um drama existencial: continuar sendo um Estado judeu e deixar de ser uma democracia liberal, como propõe o premiê Benjamin Netanyahu, ou se tornar uma democracia multiétnica e deixar de ser um Estado judeu, com a anexação dos territórios palestinos ocupados. A terceira opção é empurrar os palestinos de Gaza para o deserto do Sinai e promover uma limpeza étnica nos territórios ocupados da Cisjordânia.
Tudo o que já havia visto sobre o Holocausto, em fotos, vídeos e filmes, nem se compara à experiência tenebrosa da visita ao local. O maior espanto é constatar como a racionalidade humana é capaz de banalizar o mal. Por isso mesmo, não estranhei a reação de Dani Dayan, presidente do Centro para a Memória do Holocausto de Israel, ao criticar o uso da Estrela Amarela pelos diplomatas de seu país na reunião do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), na segunda-feira: “O emblema amarelo simboliza o desamparo do povo judeu. Hoje, temos um país independente e um exército forte, somos mestres do nosso próprio destino. Hoje, deveríamos colocar um botton de bandeira branca na lapela, não um emblema amarelo”, disse, sobre o uso indevido da Estrela de Davi.
Ao ostentar a estrela amarela na lapela com o slogan “Nunca Mais”, o embaixador de Israel na ONU, Gilad Erdan, afirmara que era um símbolo de orgulho e uma forma de lembrar que juraram se defender, e que o antissemitismo e o ódio aos judeus estão crescendo pelo mundo. No regime nazista na Alemanha e nos países ocupados na II Guerra Mundial, todos os judeus foram obrigados a usar uma estrela amarela costurada na roupa para serem identificados. Depois, nos campos de concentração, foram numerados com uma tatuagem no braço.
O uso da estrela amarela pelos diplomatas era uma remissão ao Holocausto, por causa do ataque terrorista do Hamas de 7 de outubro, no qual 1.400 pessoas foram assassinadas e 250 foram sequestradas em Israel. A retaliação de Israel é legitimada perante a opinião pública mundial não somente com a narrativa da luta contra o terrorismo, mas, também, com a memória dos fatos que mais mexem com corações e mentes dos judeus de todo o mundo, inclusive no Brasil: os campos de extermínio nazistas.
Em contrapartida, o repúdio ao massacre de crianças, mulheres e idosos em Gaza, que somam aproximadamente 75% dos 8,5 mil palestinos mortos pelo exército de Israel, extrapola o mundo árabe e mobiliza todo o Oriente muçulmano. Tornou-se o epicentro da nova “guerra fria” entre Estados Unidos e a Rússia, em lugar do conflito da Ucrânia. Não há o menor sinal de paz no horizonte. Nem mesmo um cessar-fogo humanitário, a não ser que seja aprovada alguma resolução no Conselho de Segurança da ONU, que vive seu maior impasse. A China, que hoje assume a presidência do colegiado, até agora foi espectadora privilegiada. Veremos qual será seu papel.
As notícias são desanimadoras. Há 240 reféns de Israel nas mãos do Hamas. O número de funcionários das Nações Unidas mortos na Faixa de Gaza aumentou para 67, segundo informação divulgada pela Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente. Um bombardeio no campo para refugiados na cidade de Jabalia, no norte de Gaza, deixou 50 mortos e mais de 300 feridos.
O coronel Richard Hecht, porta-voz do exército de Israel, confirmou que as forças armadas do país atacaram o campo para matar um dos comandantes do Hamas. Os rebeldes Houthis do Iêmen também entraram na guerra, que acontece a mais de 1.600km de sua sede em Sanaa, e lançaram drones e mísseis contra Israel. Continuam as escaramuças entre o Hezbollah e o exército israelense, na fronteira com o Líbano. Na Cisjordânia ocupada, os conflitos de rua com os soldados israelenses se intensificam.
Em 2009, o historiador britânico-judeu Tony Judt, que faleceu no ano seguinte, num antigo intitulado O que fazer?, vaticinou que a opção de deixar “mediocridades incompetentes” à frente de Israel e da Autoridade Palestina teria consequências catastróficas. “Graças ao tratamento abusivo dos palestinos pelo ‘Estado judeu’, o imbróglio israelense-palestino é o motivo mais iminente para o ressurgimento do antissemitismo em todo o mundo. É o fator mais eficiente no recrutamento de agentes para os movimentos islâmicos radicais. E priva de um sentindo as políticas externas dos Estados Unidos e da União Europeia para uma das regiões mais delicadas e instáveis do mundo. Algo diferente precisa ser feito.”
Para Judt, Israel vivia um drama existencial: continuar sendo um Estado judeu e deixar de ser uma democracia liberal, como propõe o premiê Benjamin Netanyahu, ou se tornar uma democracia multiétnica e deixar de ser um Estado judeu, com a anexação dos territórios palestinos ocupados. A terceira opção é empurrar os palestinos de Gaza para o deserto do Sinai e promover uma limpeza étnica nos territórios ocupados da Cisjordânia.
O filho do homem
Houve a guerra e vimos desmoronar muitas casas e agora não nos sentimos mais seguros em casa como antes, quando estávamos quietos e seguros. Há algo de que não se cura, e os anos vão passando, mas não nos curamos nunca. Quem sabe teremos de novo uma luminária sobre a mesa e um vaso de flores e os retratos dos nossos queridos, mas não acreditamos mais em nenhuma dessas coisas, porque antes tivemos de abandoná-las de repente ou as procuramos em vão entre os escombros.
É inútil acreditar que podemos sair curados de vinte anos como aqueles que passamos. Os que foram perseguidos nunca mais reencontrarão a paz. Um toque insistente de campainha à noite não pode significar outra coisa para nós que não a palavra “delegacia”. E é inútil dizer e repetir a nós mesmos que por trás da palavra “delegacia” agora talvez haja rostos amigáveis, a quem poderíamos pedir proteção e assistência. Em nós essa palavra sempre provoca desconfiança e assombro. Se observo meus meninos dormindo, penso com alívio que não precisarei acordá-los no meio da noite para fugir. Mas não é um alívio pleno e profundo. Sempre acho que mais cedo ou mais tarde precisaremos nos levantar de novo na noite e escapar e deixar tudo para trás, quartos quietos e cartas e lembranças e roupas.
Uma vez sofrida, jamais se esquece a experiência do mal. Quem viu as casas desabando sabe muito bem quanto são precários os vasos de flor, os quadros, as paredes brancas. Sabe muito bem de que é feita uma casa. Uma casa é feita de tijolos e argamassa, e pode desabar. Uma casa não é tão sólida. Pode desabar de um momento para outro. Atrás dos serenos vasos de flor, atrás das chaleiras, dos tapetes, dos pavimentos lustrosos de cera há o outro vulto verdadeiro da casa, o vulto atroz da casa caída.
Não nos curaremos nunca desta guerra. É inútil. Jamais seremos gente tranquila, gente que pensa e estuda e modela sua vida em paz. Vejam o que aconteceu com nossas casas. Vejam o que aconteceu com a gente. Nunca vamos ser gente sossegada.
Conhecemos a realidade em sua face mais terrível. Mas já nem sentimos mais desgosto. Ainda há alguns que se queixam de que os escritores se servem de uma linguagem amarga e violenta, que contam coisas duras e tristes, que apresentam a realidade em seus termos mais desolados.
Nós não podemos mentir nos livros, nem podemos mentir em nenhuma das coisas que fazemos. E talvez este seja o único bem que nos veio da guerra. Não mentir e não tolerar que os outros mintam a nós. Assim somos, os jovens de agora, assim é a nossa geração. Os mais velhos ainda são muito apegados à mentira, aos véus e às máscaras que recobrem a realidade. Nossa linguagem os entristece e ofende. Não entendem nossa atitude diante da realidade. Nós estamos perto da substância das coisas. Esse é o único bem que a guerra nos deu, mas só nos deu a nós, jovens. Aos outros, mais velhos que nós, a guerra só trouxe insegurança e medo. E também nós, os jovens, temos medo, também nós nos sentimos inseguros em nossas casas, mas não estamos indefesos diante desse medo. Temos uma dureza e uma força que os outros, antes de nós, jamais conheceram.
Para alguns a guerra só começou com a guerra, com as casas desmoronadas e os alemães, mas para outros ela começou antes, desde os primeiros anos do fascismo, e por isso a sensação de insegurança e de permanente perigo é ainda maior. O perigo, a sensação de precisar se esconder, a sensação de precisar deixar de repente o calor da cama e das casas, começou, para tantos de nós, há muitos anos. Insinuou-se nas diversões juvenis, nos acompanhou nos bancos de escola e nos ensinou a ver inimigos em todo lado. Assim foi para muitos de nós, na Itália e em outros lugares, e se acreditava que um dia poderíamos caminhar em paz pelas ruas de nossas cidades; mas hoje, quando talvez possamos caminhar em paz, hoje nos damos conta de que não nos curamos daquele mal. Assim somos constrangidos a buscar sempre novas forças, sempre uma nova dureza para contrapor a qualquer realidade. Somos impelidos a buscar uma serenidade interior que não nasce dos tapetes e dos vasos de flor.
Não há paz para o filho do homem. As raposas e os lobos têm seus covis, mas o filho do homem não tem onde pousar a cabeça. Nossa geração é uma geração de homens. Não é uma geração de raposas e de lobos. Cada um de nós teria grande vontade de pousar a cabeça em algum lugar, cada um gostaria de ter uma pequena toca enxuta e aquecida. Mas não há paz para os filhos dos homens. Cada um de nós uma vez na vida se iludiu achando que podia dormir sobre qualquer coisa, apossar-se de uma certeza qualquer, de uma fé qualquer, e então repousar o corpo. Mas todas as certezas de antes nos foram arrancadas, e a fé jamais será algo em que enfim se possa mergulhar no sono.
E agora somos gente sem lágrimas. O que comovia nossos pais já não nos comove nada. Nossos pais e as pessoas mais velhas que nos reprovam pelo modo como criamos os meninos. Queriam que mentíssemos aos nossos filhos como eles mentiam a nós. Queriam que nossas crianças se divertissem com bonecos de pelúcia em graciosos cômodos pintados de rosa, com arvorezinhas e coelhos estampados nas paredes. Queriam que cercássemos de véus e de mentiras a infância deles, que lhes ocultássemos cuidadosamente a realidade em sua verdadeira substância. Mas nós não podemos fazer isso. Não podemos fazer isso com crianças que acordamos no meio da noite e vestimos ansiosamente no escuro, para fugir ou nos esconder ou porque a sirene de alarme rasgava o céu. Não podemos fazer isso com crianças que viram o assombro e o horror em nossa cara. Não podemos começar a contar a essas crianças que elas foram trazidas pela cegonha, ou lhes dizer que os mortos partiram numa longa viagem.
Há um abismo intransponível entre nós e as gerações anteriores. Os perigos que eles corriam eram irrisórios, e suas casas só desmoronavam muito raramente. Terremotos e incêndios não eram fenômenos que se verificassem com frequência e para todos. As mulheres tricotavam malhas, ordenavam o almoço à cozinheira e recebiam as amigas em casas que não desabavam. Cada qual meditava e estudava e esperava organizar sua vida em paz. Era um outro tempo, e talvez se vivesse bem. Mas nós estamos atados a esta nossa angústia e, no fundo, satisfeitos com nosso destino de homens.
É inútil acreditar que podemos sair curados de vinte anos como aqueles que passamos. Os que foram perseguidos nunca mais reencontrarão a paz. Um toque insistente de campainha à noite não pode significar outra coisa para nós que não a palavra “delegacia”. E é inútil dizer e repetir a nós mesmos que por trás da palavra “delegacia” agora talvez haja rostos amigáveis, a quem poderíamos pedir proteção e assistência. Em nós essa palavra sempre provoca desconfiança e assombro. Se observo meus meninos dormindo, penso com alívio que não precisarei acordá-los no meio da noite para fugir. Mas não é um alívio pleno e profundo. Sempre acho que mais cedo ou mais tarde precisaremos nos levantar de novo na noite e escapar e deixar tudo para trás, quartos quietos e cartas e lembranças e roupas.
Uma vez sofrida, jamais se esquece a experiência do mal. Quem viu as casas desabando sabe muito bem quanto são precários os vasos de flor, os quadros, as paredes brancas. Sabe muito bem de que é feita uma casa. Uma casa é feita de tijolos e argamassa, e pode desabar. Uma casa não é tão sólida. Pode desabar de um momento para outro. Atrás dos serenos vasos de flor, atrás das chaleiras, dos tapetes, dos pavimentos lustrosos de cera há o outro vulto verdadeiro da casa, o vulto atroz da casa caída.
Não nos curaremos nunca desta guerra. É inútil. Jamais seremos gente tranquila, gente que pensa e estuda e modela sua vida em paz. Vejam o que aconteceu com nossas casas. Vejam o que aconteceu com a gente. Nunca vamos ser gente sossegada.
Conhecemos a realidade em sua face mais terrível. Mas já nem sentimos mais desgosto. Ainda há alguns que se queixam de que os escritores se servem de uma linguagem amarga e violenta, que contam coisas duras e tristes, que apresentam a realidade em seus termos mais desolados.
Nós não podemos mentir nos livros, nem podemos mentir em nenhuma das coisas que fazemos. E talvez este seja o único bem que nos veio da guerra. Não mentir e não tolerar que os outros mintam a nós. Assim somos, os jovens de agora, assim é a nossa geração. Os mais velhos ainda são muito apegados à mentira, aos véus e às máscaras que recobrem a realidade. Nossa linguagem os entristece e ofende. Não entendem nossa atitude diante da realidade. Nós estamos perto da substância das coisas. Esse é o único bem que a guerra nos deu, mas só nos deu a nós, jovens. Aos outros, mais velhos que nós, a guerra só trouxe insegurança e medo. E também nós, os jovens, temos medo, também nós nos sentimos inseguros em nossas casas, mas não estamos indefesos diante desse medo. Temos uma dureza e uma força que os outros, antes de nós, jamais conheceram.
Para alguns a guerra só começou com a guerra, com as casas desmoronadas e os alemães, mas para outros ela começou antes, desde os primeiros anos do fascismo, e por isso a sensação de insegurança e de permanente perigo é ainda maior. O perigo, a sensação de precisar se esconder, a sensação de precisar deixar de repente o calor da cama e das casas, começou, para tantos de nós, há muitos anos. Insinuou-se nas diversões juvenis, nos acompanhou nos bancos de escola e nos ensinou a ver inimigos em todo lado. Assim foi para muitos de nós, na Itália e em outros lugares, e se acreditava que um dia poderíamos caminhar em paz pelas ruas de nossas cidades; mas hoje, quando talvez possamos caminhar em paz, hoje nos damos conta de que não nos curamos daquele mal. Assim somos constrangidos a buscar sempre novas forças, sempre uma nova dureza para contrapor a qualquer realidade. Somos impelidos a buscar uma serenidade interior que não nasce dos tapetes e dos vasos de flor.
Não há paz para o filho do homem. As raposas e os lobos têm seus covis, mas o filho do homem não tem onde pousar a cabeça. Nossa geração é uma geração de homens. Não é uma geração de raposas e de lobos. Cada um de nós teria grande vontade de pousar a cabeça em algum lugar, cada um gostaria de ter uma pequena toca enxuta e aquecida. Mas não há paz para os filhos dos homens. Cada um de nós uma vez na vida se iludiu achando que podia dormir sobre qualquer coisa, apossar-se de uma certeza qualquer, de uma fé qualquer, e então repousar o corpo. Mas todas as certezas de antes nos foram arrancadas, e a fé jamais será algo em que enfim se possa mergulhar no sono.
E agora somos gente sem lágrimas. O que comovia nossos pais já não nos comove nada. Nossos pais e as pessoas mais velhas que nos reprovam pelo modo como criamos os meninos. Queriam que mentíssemos aos nossos filhos como eles mentiam a nós. Queriam que nossas crianças se divertissem com bonecos de pelúcia em graciosos cômodos pintados de rosa, com arvorezinhas e coelhos estampados nas paredes. Queriam que cercássemos de véus e de mentiras a infância deles, que lhes ocultássemos cuidadosamente a realidade em sua verdadeira substância. Mas nós não podemos fazer isso. Não podemos fazer isso com crianças que acordamos no meio da noite e vestimos ansiosamente no escuro, para fugir ou nos esconder ou porque a sirene de alarme rasgava o céu. Não podemos fazer isso com crianças que viram o assombro e o horror em nossa cara. Não podemos começar a contar a essas crianças que elas foram trazidas pela cegonha, ou lhes dizer que os mortos partiram numa longa viagem.
Há um abismo intransponível entre nós e as gerações anteriores. Os perigos que eles corriam eram irrisórios, e suas casas só desmoronavam muito raramente. Terremotos e incêndios não eram fenômenos que se verificassem com frequência e para todos. As mulheres tricotavam malhas, ordenavam o almoço à cozinheira e recebiam as amigas em casas que não desabavam. Cada qual meditava e estudava e esperava organizar sua vida em paz. Era um outro tempo, e talvez se vivesse bem. Mas nós estamos atados a esta nossa angústia e, no fundo, satisfeitos com nosso destino de homens.
Natalia Ginzburg, "As pequenas virtudes"
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