sábado, 12 de agosto de 2017

Um silêncio ensurdecedor

A chegada das Forças Armadas ao Rio de Janeiro fez desfilarem na minha memória três décadas de tentativas de conter a violência que assombra o estado. Como um choro cada vez com menos força, como uma faca que perde seu fio, a indignação e a angústia dos cariocas parecem deslizar perigosamente para o desalento.

É bom que as ruas estejam patrulhadas, que uma operação militar planejada se decida a enfrentar o crime organizado, um monstro que cresceu em todo o país e se estende aos países vizinhos, que domina e mantém sob o seu “governo” despótico a população mais pobre das grandes cidades confinada em territórios ocupados. E que lhe cobra “impostos” de todo tipo, dinheiro, fidelidade e submissão às suas leis e tribunais. Em troca, ganha balas perdidas que acham crianças e adolescentes. Esse monstro tem um comando, um projeto de poder político, as armas que o Exército tem, soldados treinados nos becos e muito dinheiro. É um inimigo de porte e nada garante o desfecho desse confronto.

Para a população do asfalto, o inimigo é o crime desorganizado, a violência que vem de qualquer lugar, que não se serve de fuzis de alta potencia — basta uma faca de cozinha bem afiada — e que vai matar quem passeie montado em uma bicicleta, falando no celular ou usando um cordão com santinhos no pescoço. Sabemos de onde vêm esses free-lancers do crime desorganizado que, há décadas, assaltam casas e apartamentos em quadrilhas improvisadas. A guerra contra eles é trabalho de Sísifo porque uma fábrica silenciosa produz em permanência a matéria-prima de que são feitos, em que se misturam ignorância, ódio, frustração e não pertencimento.

Uma sociedade sem espessura, sem promessa, sem projeto gera um imenso vácuo psicológico em que boiam fantasmas agressivos, o ódio do outro transformado em uma não pessoa, passível de ser assassinada pelo simples gosto de uma desforra contra um inimigo sem rosto que, por não ter rosto, está em toda parte e pode ser qualquer um.

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Ambos, o crime organizado e o desorganizado, são o avesso do Estado ausente, de governos eficientes apenas na organização de seus próprios crimes. Suas quadrilhas assaltaram o Estado com uma ousadia maior do que a dos assaltantes de rua. Se o abandono e o desprezo que esses governos votaram sempre aos mais pobres, negando-lhes as mínimas oportunidades, é o chão de onde brota a violência, o exemplo da criminalidade dos próprios governantes é o que a faz crescer. Não é um acaso se a violência explode, demencial, quando se revelam criminosos o ex-governador, vários secretários e juízes do Tribunal de Contas, deixando atrás de si terra arrasada e uma polícia mal paga, sem formação, sequer gasolina nos carros.

Quem consegue medir o efeito psicossocial de descobrir um estado de cima a baixo minado pela corrupção, governantes bilionários e funcionários sem salários? Eis porque a corrupção é, sim, um gravíssimo problema de segurança.

Não são as Forças Armadas que podem devolver a paz ao Rio. Nem se deve esperar delas o que não é sua função. Podem dar maior segurança às ruas e, com serviços de inteligência, destruir arsenais e enfraquecer o tráfico de drogas, o que não é pouco. Mas não estarão aqui para sempre. Nós, sim, continuaremos a conviver com uma crescente população jovem que nem estuda nem trabalha, escolhendo entre políticos cínicos que vão passando de pai para filho as tetas do Estado.

A menos que, acordando para a nossa trágica realidade onde nem os que ainda vão nascer são poupados, encaremos a verdade: tudo depende de nós. Temos a responsabilidade de eleger um governante decente e competente que reconstrua a confiança no Estado, condição sine qua non para restabelecer a segurança no Rio de Janeiro. Não existe um candidato feito sob medida, esperando por nós. Há um perfil necessário, e há o processo, que exige energia, pelo qual iremos ao encontro de quem mais se aproximar dele.

Até agora, os mesmos de sempre se apresentam para encenar um baile de fantasmas. Que venham a se eleger com votações pífias sob o olhar indiferente de quem se recusa a votar em candidatos desprezíveis escolhidos por partidos desprezados, esse desastre não pode se repetir.

Só um fato novo, gestado na sociedade, pode refundar a cidadania: uma candidatura que mobilize as pessoas e quebre esse silêncio ensurdecedor que grita a intensidade da nossa decepção com a política. Que impeça que na eleição tenhamos que escolher entre as palavras de ordem de uma velha esquerda ou as ordens sem palavras de uma nova direita.

Rosiska Darcy de Oliveira

Meu pai e o jato do Pezão

Meu pai tem 95 anos. Hélio telefona várias vezes por dia para sua gerente de banco para saber se o governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, depositou o que lhe deve. Hélio não consegue entender um monte de coisas – e não é por causa da idade. Como um governador que não pagou a mais de 200 mil servidores o 13º de 2016 e os salários e aposentadorias de maio, junho e julho deste ano decide alugar um jatinho por R$ 2,5 milhões para ter mais conforto? Hélio duvida de sua própria lucidez.

Não adianta eu tentar explicar a meu pai que Pezão está falido. Hélio responde que quem está falido para pagar aos servidores não contrata um jato que preste um “serviço de excelência” para o “chefe do Poder Executivo”. Informo que o objetivo é prático. O governador e sua equipe poderão fazer no ar reuniões “em poltronas giratórias” e, claro, eles precisam de “flexibilidade de horários de voos e disponibilidade de aeronaves para deslocamentos de trabalho e emergências”.

Que bacana. Mas Hélio acha que emergência é outra coisa. Estado de emergência é o que vivem mais de 200 mil servidores sem a remuneração que lhes é devida, pedindo dinheiro na rua ou aos filhos e parentes, ou morrendo por não conseguir comprar remédios. Emergência é o que vive a Uerj, a universidade estadual que já foi modelo de centro de conhecimento e formou ministros do Supremo Tribunal Federal, como Luiz Fux e Luís Roberto Barroso.

A Uerj hoje não consegue funcionar. A penúria da Universidade Estadual do Rio de Janeiro é tamanha que atinge não só os professores, mas o refeitório, os banheiros. Os jovens estudantes estão sem aula ou perspectiva. Ficam todos impressionados com o luxo do jato de Pezão, que poderia gastar muito menos voando como plebeu, em aviões de carreira. O governador acha “inseguro” não usar jatinho. As forças de segurança do Rio de Janeiro estão abismadas. Policiais civis e militares vivem diariamente em estado de emergência, com carros quebrados e helicópteros sem condições de decolar.


Hélio comemora o Dia dos Pais neste domingo com quatro meses atrasados de remuneração. Ele não entende – e quem sou eu para explicar? – como o governador ainda está solto por aí, indo para spa de luxo nas férias de inverno, rindo em Brasília, fazendo o gênero “devo, não nego, pagarei quando puder”. Meu pai entende menos ainda a barafunda que Pezão faz, ao separar servidores por categorias. Divide para reinar e para enfraquecer qualquer movimento. Dá mais a uns que a outros. Não seria inconstitucional? – pergunta meu pai, bacharel. E ainda tem essa história de ir soltando trocados para calar a boca. Minha filha, não dá para processar por danos morais o Estado e o governador? Procure um advogado sério. Chega de humilhação. Vamos criar jurisprudência.

Coitado do Pezão. Estamos implicando com um jatinho de R$ 2,5 milhões quando o governador do Rio de Janeiro é apenas mais um produto de um sistema político que premia traições e achaques. O Congresso trama a criação de um “fundo público” de R$ 3,6 bilhões para ajudar os políticos a fazer campanhas eleitorais em 2018. Isso aí não inclui o já bilionário Fundo Partidário. Fundo público a gente sabe de onde vem. E a divisão de “recursos” fica a cargo deles. É um fundo para “ajudar a democracia”. Ah, bom. Seria um objetivo nobre se fosse verdade.

Vamos reagir. Se não for nas ruas, é preciso gritar contra manobras, em abaixo-assinados virtuais, redes sociais. O aumento indecente de 16,7% para procuradores da República em 2018 já caiu – e muito se deve à reação da sociedade e à presidente do STF, Cármen Lúcia, que alegou a grave crise financeira para defender o não reajuste. Com a defesa de Cármen, ministros do Supremo deram 8 votos contra o aumento e 3 a favor. Os 16,7% eram apoiados pela futura procuradora-geral, Raquel Dodge, a mesma que foi encontrar o presidente Michel Temer fora do expediente, à la Joesley, no Palácio do Jaburu. Agora sabemos que Temer liberou R$ 5,7 bilhões para emendas de parlamentares neste ano. Foi esse o preço da fidelidade a um presidente sem autoridade moral para colocar o Brasil no rumo certo.

Meu pai sabe que o país anda mal das pernas, pior que ele. O único sinal positivo é que, hoje, pelo menos, a roubalheira está às claras. Perto de um século de vida, meu pai acha que os representantes do povo deveriam exibir um pouco mais de compostura para ganhar um mínimo de respeito, em casa e fora de casa. Como os pais políticos educam seus filhos? Façam o que eu digo e o que eu faço. Vocês ficarão podres de ricos graças ao compadrio.

Feliz Dia dos Pais para quem tem a consciência tranquila.

Provocação da reforma eleitoral deveria ser abortada na rua

Não consigo encontrar um substantivo melhor do que “provocação” para definir a manobra que, à luz do dia e com velocidade supersônica, está criando a classe política brasileira, sem nem consultar a sociedade, sob o pretexto de reforma eleitoral. Provocação, porque estão fazendo não nas sombras, mas a céu aberto, sem medo da reação da opinião pública da qual se sentem donos e senhores quando não simplesmente a desprezam.

É uma provocação porque essa maioria de políticos, unidos agora todos em um abraço de paz, com medo de cair nas redes da Lava Jato e de não conseguirem se reeleger, estão começando a votar uma reforma eleitoral que é, para eles, a melhor e mais fácil anistia geral para corruptos. É um escárnio que, depois dos trilhões que os políticos receberam ilegalmente com o escândalo de corrupção da Petrobras, que já levou muitos para a prisão, agora se concedam, por lei, a bagatela de mais de três bilhões de reais para suas campanhas eleitorais. Dinheiro roubado mais uma vez das necessidades muito mais urgentes da população, como o que falta nos hospitais até mesmo para emergências médicas, para que os jovens continuem estudando nas universidades públicas ou para pagar os salários dos professores e funcionários públicos.


Em vez de apresentar uma reforma austera nas campanhas eleitorais que hoje, com a Internet e as redes sociais, não precisam nem da metade das de antes, votam uma festança de dinheiro público. Em vez de promover uma reforma para a substituição de um Congresso que se revelou incapaz de representar a sociedade e que pensa apenas em sua sobrevivência, apostam, ao contrário, em um sistema no qual terminariam eleitos os mesmos que estão hoje. Conhecidas as artimanhas dos partidos e seus chefes, é mais do que evidente que com a nova reforma eleitoral serão eleitos aqueles que tenham mais fundos públicos para suas campanhas que poderão continuar sendo milionárias, mas agora com o nosso dinheiro.

Tudo isso sem uma discussão com as forças da sociedade, sabendo que podem estar condicionando o futuro de um país já envenenado com seu desgosto com a classe política. E não pensaram em outras reformas, como do recall para que os eleitores possam, se não cumprirem suas promessas, retirar o mandato dos políticos eleitos. Ou sem pensar em abolir o foro privilegiado que só serve para encobrir seus crimes e adiar os processos judiciais. Ou em admitir o voto distrital, que aproximaria os candidatos do povo. Ou sem pensar em aceitar um prazo para a reeleição dos deputados, ou para permitir candidaturas fora dos partidos com mecanismos para facilitar que qualquer cidadão dispute um lugar na vida pública sem passar pela humilhação das organizações políticas.

Se essa provocação que estão tecendo ponto a ponto, com pressa, aqueles que deveriam ser a representação e a alma da sociedade civil não levar as pessoas para a rua, quando é que outra coisa vai levar? E desta vez poderiam estar todos os cidadãos juntos, porque a provocação não de uma ou de outra ideologia, é um tapa em toda a sociedade, que é considerada menor de idade e talvez, o que é pior, capaz de engolir esta e outras provocações que queiram inventar, agora de forma aberta, rindo de todos. Ou a sociedade protesta agora ou amanhã será tarde demais. Não haverá mais tempo para parar uma provocação que diz respeito ao momento atual e que poderá sobretudo condicionar por muito tempo o futuro político deste país já muito humilhado por uma classe política velha e sob suspeita.

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Na América do Sul, só o Paraguai tem IR menor que o do Brasil

O Brasil está entre os países que menos tributam renda no mundo. De cada R$ 100 que o governo recolhe aqui, cerca de R$ 21 vem dos impostos cobrados sobre rendimentos e lucros, enquanto R$ 41,25 tem origem no consumo de bens e serviços e R$ 25,9, nas contribuições previdenciárias.

Entre os vizinhos na América do Sul, só o Paraguai tarifa menos. Lá, 15,1% da arrecadação vem da taxação sobre renda, lucros e ganhos de capital, mostra pesquisa com dados de 2015 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A Argentina tem uma proporção semelhante à do Brasil, de 20,9%. Na Venezuela, a fatia dos tributos sobre renda na arrecadação total é de 22,5%. No Chile, chega a 36,4%. A média dos 35 países que fazem parte da OCDE é de 34,3%.

Os países com alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) costumam dar ênfase maior à tributação sobre renda. Quando se taxa mais o consumo, as famílias de baixa renda acabam pagando proporcionalmente mais impostos. É o que os especialistas chamam de "sistema tributário regressivo".

Isso porque os mais pobres gastam praticamente tudo o que ganham com bens de primeira necessidade, com produtos que são pesadamente tributados, diz a professora de direito tributário do mestrado profissional da Fundação Getulio Vargas (FGV) Tathiane Piscitelli. "A concentração da tributação no consumo acentua desigualdades", avalia.

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A correção dessas distorções, diz a advogada, passa pelo aumento das alíquotas de Imposto de Renda, como proposto pela equipe econômica nesta semana e descartado pelo governo dias depois - mas não para aí.

No Brasil, todo trabalhador com carteira assinada que ganha acima de R$ 4.664,68 recolhe 27,5% dos rendimentos e quem recebe até R$ 1.903,98 está isento. Entre as duas pontas, há três outras faixas de tributação, de 7,5%, de 15% e de 22,5%, que incidem a depender do nível salarial do contribuinte. A proposta era criar uma quinta faixa, de 35% sobre os salários superiores a R$ 20 mil.

A alíquota máxima brasileira é mais baixa do que a de países com nível de desenvolvimento semelhante, como Índia (35,54%), Argentina (35%) e África do Sul (45%), mostra levantamento da KPMG com dados de 2017. Os suecos com maior renda chegam a pagar 61,85% ao fisco, maior percentual da lista de 135 países.

"O aumento da alíquota faria sentido do ponto de vista de justiça fiscal, mas não resolveria o problema", pondera a professora da FGV.

Isso porque a mudança proposta pela Fazenda só incluiria os assalariados, deixando de fora os profissionais liberais que atuam como pessoa jurídica, que recolhem volume menor de impostos sobre os rendimentos, e aqueles que recebem lucros e dividendos, completamente isentos de tributação.Direito de imagemREUTERSImage caption

É difícil estimar quantos dos trabalhadores que hoje trabalham como PJ no país fazem isso para escapar da tributação mais elevada do Imposto de Renda para Pessoa Física (IRPF), diz o pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV (Ibre-FGV) e professor do Instituto de Direito Público (IDP) José Roberto Afonso, mas os dados da Receita Federal dão alguns indicativos nesse sentido.

Entre os 27,5 milhões de brasileiros que declararam Imposto de Renda em 2016, 7,9 milhões eram empregados do setor privado - e recolhiam, portanto, como pessoa física -, enquanto 6,8 milhões, número que o pesquisador considera elevado, disseram ser proprietários de empresas ou autônomos, que via de regra são taxados com alíquotas menores.

Assim, acrescenta Afonso, um eventual aumento da alíquota para pessoa física, se feito isoladamente, poderia ampliar os incentivos à chamada "pejotização".

O diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), Bernard Appy, lembra que a maior tributação dos profissionais que se constituem como PJ também estava em estudo pela equipe econômica e, nesse sentido, seria uma medida bem-vinda, ainda que pontual.

A reforma que não reforma

A divisão ideológica que o PT semeou junto à parcela mais politizada da sociedade brasileira tem ressonância apenas epidérmica no Congresso. O instinto de sobrevivência da classe política, independentemente de ideologia, a mantém unida no essencial. A divergência é apenas tópica, coreográfica.

Isso ficou claro em todas as tentativas (ainda não esgotadas) de mudar a legislação para deter a Lava Jato e blindar os políticos.

Esta semana, o Conselho de Ética do Senado optou, “em nome da pacificação da Casa” (foi o que a maioria alegou), por arquivar o processo por quebra de decoro das cinco senadoras do PT e PCdoB que, há duas semanas, ocuparam a mesa diretora para impedir fisicamente a votação da reforma trabalhista.

A reforma política é mais um desses momentos corporativos. Dois tópicos a resumem: o chamado voto distritão e o financiamento público de campanha, que importará num desembolso de nada menos que R$ 3 bilhões e 600 milhões dos cofres públicos.


São medidas que mantêm o chamado status quo. O sistema eleitoral vigente, complicado até para ser explicado, contempla coligações partidárias para as eleições proporcionais de deputados.

Não se elegem os individualmente mais votados, mas as coligações. Feita a totalização dos votos, verificam-se quantas cadeiras cada coligação terá – e os mais votados ali dentro (ainda que escassamente votados) irão ocupá-las.

Isso permite que uma coligação encabeçada, por exemplo, por uma celebridade da TV ou do futebol, como Tiririca ou Romário, obtenha tal soma de votos excedentes que possibilite beneficiar candidatos que de outra forma jamais seriam eleitos – e, inversamente, exclua os que, ainda que bem votados, integrem uma coligação de menor glamour.

Isso fez com que, na atual Câmara dos Deputados, apenas 107 dos 513 titulares – um quinto do total - tenham sido efetivamente eleitos. Pegaram carona nos puxadores de votos. São deputados biônicos, beneficiários de votos terceirizados.

Claro que isso precisa mudar. E o diagnóstico da mudança ideal já estava posto há muito tempo: o voto distrital, que poderia ser puro (o ideal) ou misto, que reservaria parcela dos candidatos ao sistema proporcional. No distrital puro, pega-se, por exemplo, um estado como São Paulo, que tem direito a 70 cadeiras na Câmara, e divide-se em 70 distritos. Cada distrito elegerá um representante.

Não há espaço para biônicos ou arrivistas. Cada distrito conhece o seu representante, sabe onde encontrá-lo e pode rastrear sua atuação. No sistema atual, bem poucos se lembram em quem votaram. O resultado é o que vemos. Ninguém presta contas de coisa alguma; nem o eleito, nem o eleitor se conhecem.

O distritão beneficiará os candidatos mais conhecidos, os caciques, com domínio da máquina partidária e dos fundos do partido para financiar a campanha. Reduz, assim, o horizonte de renovação.

Em síntese, contraria o anseio da sociedade por mudança radical no perfil de sua representação, além de enfraquecer ainda mais a consistência doutrinária dos partidos, já de si uma ficção.

Quanto ao financiamento público, repete a velha mentalidade estatal brasileira: se falta dinheiro, tunga-se o contribuinte.

O sindicalismo brasileiro, por exemplo, beneficiou-se do imposto sindical e entrou em crise ao vê-lo suprimido pela reforma trabalhista. Nem cogita de vir a ser sustentado por seus filiados, que só o seriam na medida em que lhe fossem prestados bons serviços.

O governo Temer, diante do rombo orçamentário, não teve dúvidas: em vez de cortar despesas, aumentou os impostos da gasolina, ensaiou um aumento do imposto de renda e não exclui novas investidas. Reduzir o tamanho do Estado? Nem pensar.

O que justifica que o Rio de Janeiro, que deixou de ser capital da República há 57 anos, tenha mais funcionários públicos federais que Brasília? Pois tem: 250 mil contra 175 mil.

Ao proibir o financiamento empresarial às campanhas, o STF expôs a ficção do sistema partidário: sem raízes na sociedade, quem irá espontaneamente financiar 35 legendas, que se igualam em conteúdo e metas – e cuja conduta a Lava Jato vem mostrando?

Não havendo adesão espontânea, apela-se para a impositiva: o aumento do fundo partidário. Gostando ou não, crendo ou não nos partidos e na legitimidade das regras do jogo, o eleitor-contribuinte está sendo instado mais uma vez a financiá-los.

A crise dos partidos

A crise de representação dos partidos políticos não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Ocorre em todo o mundo, em consequência de vários fenômenos, alguns mais antigos, como o surgimento dos meios de comunicação de massas, outros mais recentes, como o crescente papel das redes sociais na formação de opinião. Mas, no caso brasileiro, tem ingredientes que são bem característicos da nossa formação política.

Os partidos políticos, tal como os conhecemos, surgiram após a Revolução Francesa e na sociedade industrial estruturada em classes mais ou menos definidas. Sua transformação em partidos de massa, com características ideológicas definidas, a partir do final do século XIX, decorreu de projetos programáticos e do surgimento de democracias de massa, mas não se pode dizer que estivessem intrinsecamente comprometidos com elas. Os partidos comunista e fascista, por exemplo, foram vocacionados para assaltar e manter o poder pela força, não para exercê-lo no âmbito da democracia representativa.


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No Brasil, onde as ideias políticas acabam sempre mitigadas, os partidos já nasceram dissociados de seus objetivos programáticos. No Império, por exemplo, a luta de liberais (luzias) e conservadores (saquaremas) gravitava em torno do tema centralização/descentralização, ou seja, do exercício e controle do poder nas províncias; do ponto de vista programático, porém, ambos eram monarquistas e intransigentes defensores da escravidão. O movimento abolicionista desenvolveu-se à margem dos partidos; assim como o movimento republicano, era mais bem representado pela Escola Militar da Praia Vermelha do que pelo minúsculo partido ao qual emprestava o nome.

De certa maneira, o mesmo fenômeno se repete na crise da República Velha, na qual as elites regionais se digladiaram na luta pelo poder, até que as sucessivas crises da economia do café e o grande debate “agrarismo e/ou industralização” implodiram o pacto perverso das elites oligárquicas e seu sistema excludente e elitista de partidos regionais que se revezavam no poder a partir do eixo Rio-São Paulo.

A opção da elite cafeeira paulista pela industrialização gerou uma disjuntiva na qual o eixo da modernização se deslocou da República Velha para o Estado Novo, depois da Revolução de 1930, da fracassada Revolta Constitucionalista de 1932 e do incipiente levante comunista de 1935. A tentativa de constituir um sistema de representação corporativista na Constituinte de 1937, claramente de inspiração fascista, com a entrada do Brasil na guerra contra o nazifascismo, morreu no nascedouro.

Com a redemocratização, em 1945, a Guerra Fria se encarregou de fraudar o sistema representativo da Segunda República. O Partido Comunista (PCB), que ressurge no pós-guerra como um partido de massas, foi posto na ilegalidade, o que reforçou sua vertente golpista; e a antiga União Democrática Nacional (UDN), que nasceu da resistência à ditadura de Vargas, derivou de forma irreversível para o golpismo. Os três partidos de vocação verdadeiramente democrática eram o Partido Social-Democrata (PSD), conservador, elitista e ligado às oligarquias; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), um partido de massas, nacionalista e populista; e o pequeno Partido Socialista Brasileiro (PSB), uma pequena agremiação de intelectuais progressistas.

Esses partidos protagonizaram os melhores e piores momentos da vida nacional, até o golpe de 1964, após o qual foram todos expurgados da vida política, com a reforma partidária imposta pelos militares, uma tentativa frustrada de implantar o bipartidarismo no Brasil. O projeto de institucionalização do regime autoritário, que havia derivado para o fascismo após o Ato Institucional no. 5, era uma espécie de “mexicanização” do país, no qual a hegemonia absoluta da Arena seria a via de transferência do poder para os civis.

Esse projeto sofreu sucessivas derrotas eleitorais — 1974 e 1978 — e foi sepultado com a anistia e a volta do pluripartidarismo, em 1979. Nova derrota do regime nas eleições de 1982, nas quais a oposição conquistou os principais governos estaduais, e a campanha das Diretas, Já!, apesar de frustrada, resultaram na derrota definitiva do regime, com a eleição de Tancredo Neves, em 1985, que não assumiu, mas cujo vice, José Sarney, convocou uma Constituinte e completou a transição.

O regime partidário que resultou da Constituição de 1988, cuja marca é a ampla liberdade para formação de partidos, já surgiu, porém, em meio às mudanças no mundo descritas no começo desse artigo, embora com a aparência de que algo novo estava nascendo. O PMDB emergiu da ditadura como o grande partido político liberal democrático. Com o colapso do socialismo real no Leste Europeu, o surgimento do PT como partido de massas, ligado aos sindicatos e aos movimentos sociais, sinalizava, porém, uma ruptura com o comunismo e o populismo. Fundado por políticos e intelectuais progressistas, o PSDB oferecia à sociedade brasileira um programa social-democrata moderno, em sintonia com as necessidades de modernização do país.

Esses três grandes partidos, mas não somente, derivaram para o patrimonialismo e o clientelismo. Com seu transformismo, ameaçam garrotear a democracia brasileira, como principais artífices de uma reforma política cujo objetivo principal é salvar seus quadros enrolados na Operação Lava-Jato de uma degola eleitoral, em vez de renovar os costumes políticos do país.

Paisagem brasileira

Anavilhanas
Arquipélago de Anavilhanas, Manaus (AM)

Mantido marketing-espetáculo, suor do contribuinte será injetado no lamaçal

O Congresso assa em fogo alto o que os parlamentares chamam de reforma política. Na verdade, trata-se de uma reforma eleitoral. O miolo da picanha é o Bolsa Eleição, um fundo criado para financiar com verba pública as campanhas políticas. Coisa de R$ 3,6 bilhões. O gasto é inevitável, pois o Supremo Tribunal Federal proibiu em boa hora as doações eleitorais de empresas. Mas há um problema: criado por um Congresso apodrecido, o novo fundo pode servir para sujar verba limpa.

No Brasil, a propaganda eleitoral na TV consome quase 50% da verba de uma campanha. Contratado a peso de ouro, o marketing-espetáculo não realça as qualidades do candidato, esconde os seus defeitos. Pior: forja qualidades inexistentes. O eleitor elege uma coisa e recebe outra. Como não pode devolver o produto, tem que aturá-lo por quatro anos, até a próxima eleição.

Na prática, o financiamento público já vigora no Brasil, por meio do horário eleitoral gratuito e do fundo partidário, que custam algo como R$ 1,8 bilhão. Outra parte passa por baixo da mesa. Os políticos retiram dos cofres públicos o grosso do dinheiro gasto na eleição, trocando apoio empresarial por contratos públicos. A Lava Jato escancarou essa prática. Como a pseudo-reforma não inclui providências para baratear as campanhas, o Bolsa Eleição pode derramar a verba limpinha do contribuinte no mesmo caldeirão de lama que inclui o caixa dois.

Desconexão

O político não tem o privilégio do artista, que pode ser um canalha em particular se sua obra o redimir.

Uma única gravura de Picasso absolve toda uma vida de mau-caráter.

Hoje, estuda-se a obra do Marquês de Sade com a mesma isenção moral com que se estuda a obra de Santo Agostinho — que nem sempre foi santo — e ninguém quer saber se o escritor enganava o Fisco ou batia na mãe se seus livros são bons.

Bem, querer saber, queremos, mas pelo valor da fofoca, não para informar a apreciação do seu trabalho.

O poeta W.H. Auden escreveu (mais ou menos) que o tempo — que é intolerante com o bravo e o inocente e esquece numa semana uma figura bela — adora a linguagem e perdoa todos os que vivem dela, e com esta estranha disposição perdoa a Kipling suas opiniões e perdoa tudo em Paul Claudel, só pelo que ele botou no papel.

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O tempo de Auden só precisa de mais tempo quando o pecado do artista, como o dos reacionários Kipling e Claudel, for o da ideologia errada.

Pois se não se admite no político a perversão privada do artista, a única inconveniência intolerável no artista é a incorreção política. Assim, um Louis-Ferdinand Céline e um Wilson Simonal continuam esperando a remissão que o tempo já deu, por exemplo, a Nelson Rodrigues, e que um Jean Genet nem precisou esperar. Mas cedo ou tarde a terão.

Políticos como o lendário Ademar de Barros e Maluf, que declaradamente roubavam mas faziam, reclamavam para si um pouco dessa imunidade do artista. Suas obras justificavam seus pecados, quando não eram uma decorrência deles.

O sistema de conveniências e corrupção aberta que domina o atual Congresso brasileiro, certamente o pior que já tivemos, pressupõe a mesma desconexão entre moral privada e moral aparente, ou uma justificativa sem disfarce para a traquinagem sem proveito.

A cultura do clientelismo, em que o proveito substitui a ética, está baseada nesta perversão.

A reação crescente a este despudor explícito vem com a conclusão de que aqui não se tem nem a ética nem o proveito, a não ser para quem concorda que valia tudo, por exemplo, para manter o Temer no governo, às favas a vergonha, como diria o Gilmar.

Em cleptocracias mais avançadas, como os Estados Unidos, a obra dos artistas do desenvolvimento, todos bandidos, redimiu-os. Empresários corruptores e políticos corruptos fizeram do país o que ele é hoje.

O capitalismo americano domou-se a si mesmo, ou controlou-se razoavelmente. O Congresso deles tem picaretas e vendidos iguais aos nossos, mas não tão evidentes.

O tempo de Auden adora a linguagem e perdoa seus craques, o tempo americano adora o sucesso e perdoa todos os seus meios. Aqui, avançamos, resolutamente, para o passado.

Fora de hora

Raquel Dodge ainda não assumiu a Procuradoria-Geral da República, mas já cometeu o primeiro deslize. É o mínimo que se pode dizer de seu encontro às escondidas com Michel Temer, investigado e denunciado pela Lava Jato. A subprocuradora chegou ao Palácio do Jaburu depois das 22h de terça-feira. A reunião foi omitida da agenda oficial do presidente. Veio a público na manhã seguinte, no blog da repórter Andréia Sadi no portal G1.

Além de fora da agenda, a conversa aconteceu fora de hora. No mesmo dia, Temer pediu que o procurador Rodrigo Janot seja afastado das investigações que o envolvem. Ao visitá-lo, Dodge desautorizou o chefe e passou a ideia de que concorda com a ofensiva do presidente contra a instituição que passará a comandar.

Nenhum texto alternativo automático disponível.

Procurada para explicar o encontro, a subprocuradora contou uma história da carochinha. Ela disse à Folha que Temer queria combinar detalhes de sua posse, em setembro.

Não faz sentido que o presidente e a futura chefe do Ministério Público Federal se encontrem tarde da noite para discutir esse tipo de assunto. A não ser que os dois estejam de olho no emprego dos cerimonialistas, que são pagos para enviar os convites, contratar o bufê e encomendar os arranjos florais da cerimônia.

Segunda colocada na lista tríplice da Procuradoria, Dodge foi escolhida após receber apoio do ministro Gilmar Mendes, que é desafeto de Janot e já salvou o mandato de Temer no TSE. Sua candidatura também entusiasmou caciques do PMDB, como José Sarney e Renan Calheiros.

A subprocuradora tem currículo para comandar o Ministério Público, mas ainda terá que demonstrar independência de quem a nomeou.

De um procurador-geral, espera-se uma atitude de distanciamento em relação aos políticos. O ocupante do cargo não pode perseguir ninguém, mas não deve manter intimidade com investigados em potencial. Neste caso, não basta a prática. Também é preciso cuidar das aparências.