sábado, 12 de agosto de 2017

Desconexão

O político não tem o privilégio do artista, que pode ser um canalha em particular se sua obra o redimir.

Uma única gravura de Picasso absolve toda uma vida de mau-caráter.

Hoje, estuda-se a obra do Marquês de Sade com a mesma isenção moral com que se estuda a obra de Santo Agostinho — que nem sempre foi santo — e ninguém quer saber se o escritor enganava o Fisco ou batia na mãe se seus livros são bons.

Bem, querer saber, queremos, mas pelo valor da fofoca, não para informar a apreciação do seu trabalho.

O poeta W.H. Auden escreveu (mais ou menos) que o tempo — que é intolerante com o bravo e o inocente e esquece numa semana uma figura bela — adora a linguagem e perdoa todos os que vivem dela, e com esta estranha disposição perdoa a Kipling suas opiniões e perdoa tudo em Paul Claudel, só pelo que ele botou no papel.

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O tempo de Auden só precisa de mais tempo quando o pecado do artista, como o dos reacionários Kipling e Claudel, for o da ideologia errada.

Pois se não se admite no político a perversão privada do artista, a única inconveniência intolerável no artista é a incorreção política. Assim, um Louis-Ferdinand Céline e um Wilson Simonal continuam esperando a remissão que o tempo já deu, por exemplo, a Nelson Rodrigues, e que um Jean Genet nem precisou esperar. Mas cedo ou tarde a terão.

Políticos como o lendário Ademar de Barros e Maluf, que declaradamente roubavam mas faziam, reclamavam para si um pouco dessa imunidade do artista. Suas obras justificavam seus pecados, quando não eram uma decorrência deles.

O sistema de conveniências e corrupção aberta que domina o atual Congresso brasileiro, certamente o pior que já tivemos, pressupõe a mesma desconexão entre moral privada e moral aparente, ou uma justificativa sem disfarce para a traquinagem sem proveito.

A cultura do clientelismo, em que o proveito substitui a ética, está baseada nesta perversão.

A reação crescente a este despudor explícito vem com a conclusão de que aqui não se tem nem a ética nem o proveito, a não ser para quem concorda que valia tudo, por exemplo, para manter o Temer no governo, às favas a vergonha, como diria o Gilmar.

Em cleptocracias mais avançadas, como os Estados Unidos, a obra dos artistas do desenvolvimento, todos bandidos, redimiu-os. Empresários corruptores e políticos corruptos fizeram do país o que ele é hoje.

O capitalismo americano domou-se a si mesmo, ou controlou-se razoavelmente. O Congresso deles tem picaretas e vendidos iguais aos nossos, mas não tão evidentes.

O tempo de Auden adora a linguagem e perdoa seus craques, o tempo americano adora o sucesso e perdoa todos os seus meios. Aqui, avançamos, resolutamente, para o passado.

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