segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Esqueletos no armário

Correndo de praia em praia, seguindo a mancha de óleo no Nordeste, tive uma noite livre para pensar na política nacional.

Dizem que é nova política. Não sei se tenho condições de entendê-la. Mas o exame da política de sempre é o critério que tenho para analisar esses fatos. Na minha tosca enciclopédia, dois verbetes dariam conta da fúria de Bolsonaro contra um ciclista e a divisão desse estranho partido que é o PSL: esqueletos no armário e racha, entendido aqui como a cisão num grupo partidário.

Esqueletos no armário podem ser cadáveres reais ou mesmo episódios que governos ou partidos querem ocultar porque a transparência, nesse caso, é indesejável. Fabrício Queiroz é um esqueleto no armário. Há muitas formas de tratar disso. Bolsonaro parece ainda inexperiente no assunto. Ao gritar que Queiroz estava com a mãe do ciclista, ele apenas usou a pior tática: chacoalhar os ossos e chamar a atenção de todos para o esqueleto rangendo contra a madeira.

Esqueletos no armário são corrosivos. Os ultrafiéis não se importam, talvez nem acreditem que essas coisas aconteçam nos bastidores. Há um grupo que simplesmente aceita, com o argumento de que o objetivo é maior e que essas coisas acontecem mesmo em todos os partidos.

Mas essa concordância entra em colapso quando o chamado objetivo maior não se realiza. Manter os esqueletos silenciosos no armário é uma tarefa difícil também a longo prazo. Bolsonaro, diga-se a seu favor, não é dos mais brilhantes na tarefa.

Outro tema que me interessou foi a história de um possível racha no PSL. É o partido de Bolsonaro, e ele disse que é preciso esquecê-lo. Disse ainda que o presidente do partido estava queimado para caramba. É um partido que movimenta milhões. E brigas partidárias, apesar de sua natureza diferente, lembram separações conjugais: quem fica com o quê?

No nosso movimento estudantil, os rachas, quando aconteciam, sempre desfechavam uma disputa em torno do mimeógrafo. Bem mais poético que agora.

Não há grandes divergências ideológicas no PSL. Não há correntes de pensamento definidas. São indivíduos e suas carreiras políticas. Se houvesse espaço, avançaria em outro verbete da tosca enciclopédia: as bancadas eleitas pelo populismo. São heterogêneas, compõem-se de gente que expressa proximidade com o líder, repete um ou outro dos seus slogans, e pronto.

Imagine o que acontece quando se injetam milhões de reais num agrupamento com essa consistência política? Não se trata mais de discutir quem fica com o quê, depois de uma divergência ideológica.

Nesse caso, o dinheiro é a própria razão do conflito. Dinheiro público, pois acabou o financiamento privado.

Nos partidos chamados nanicos, o fundo oficial é uma espécie de vaquinha que alimenta os dirigentes, consegue mantê-los com uma renda pessoal. Mas quando a soma é gigantesca, em R$ 350 milhões, como no PSL, é certo que vão se dilacerar para decidir quem gasta o quê, campanhas vão florescer; outras, submergir.

Sempre tive essa intuição sobre a briga atual do PSL. Temia, no entanto, supersimplificar. Afinal, é possível que tenham ideias. Ganhei um pouco de coragem para enunciá-la porque no momento em que perguntaram a Bolsonaro qual era o problema do PSL, ele respondeu: é o tesoureiro.

No tempo em que, diante da complexidade de governar o país, o problema do partido dominante é o tesoureiro, meu tosco arsenal carece de atualização. Faltam categorias. Esperava que o líder populista entrasse em conflito com sua base pantanosa. Pensei em infidelidade partidária, em choque de egos.

O tesoureiro me escapou. Tesoureiros de partidos costumavam ser presos, em tempos de financiamento privado. Agora, são o objeto de desejo.

A nova política não se cansa de me surpreender. Embora se diga defensora de valores tradicionais e prometa uma volta ao passado num mundo que se transformou profundamente, o seu tema central, no fundo, é o mais prosaico: dinheiro.

Aliás, ele é também a causa do ruidoso esqueleto no armário. Não apenas por ofensas ao ciclista. Os ossos rangem estrepitosamente desde o momento em que Toffoli proibiu a cooperação entre receita e órgãos investigativos. É uma espécie de grito: há alguma coisa errada entre nós; logo, suprimam-se as investigações.
Fernando Gabeira

O amanhã

O conhecido samba-enredo da União da Ilha do Governador, campeão do carnaval carioca de 1978, que intitula a coluna, é de autoria de Paulo Amargoso e João Sérgio, nome desconhecido até da maioria dos sambistas, pois, na verdade, se trata do falecido procurador da República Gustavo Adolfo de Carvalho Baeta Neves, o Didi, também fundador da escola e autor de outros sambas antológicos. Não há carnaval em que suas músicas não sejam cantadas por foliões de todo o país. Naquele ano, na voz de Aroldo Melodia, O Amanhã empolgou as arquibancadas na Marquês de Sapucaí: A cigana leu o meu destino/ Eu sonhei/ Bola de cristal, jogo de búzios, cartomante/ Eu sempre perguntei/ O que será o amanhã?/ Como vai ser o meu destino?”

Era o primeiro desfile de regras rigorosas, o que gerou protestos do compositor mangueirense Angenor do Nascimento, o famoso Cartola: “Isso não é carnaval, é parada de militar”. Mas foi um desfile memorável, principalmente para a União da Ilha, cuja carnavalesca Maria Augusta não imaginava que o samba seria eternizado pelo gosto popular: “Já desfolhei o malmequer/ Primeiro amor de um menino/ E vai chegando o amanhecer/ Leio a mensagem zodiacal/ E o realejo diz/ Que eu serei feliz”. O refrão todo mundo canta até hoje: “Como será o amanhã/ Responda quem puder (bis)/ O que irá me acontecer/ O meu destino será como Deus quiser.”


Nem só de letra e melodia vive uma samba antológico, o contexto é fundamental para que o povo se identifique com a canção. O país vivia uma transição lenta e gradual, o projeto de Brasil potência dos militares havia naufragado. O general Ernesto Geisel amargava o fim do milagre econômico e muita insatisfação popular. A crise do petróleo e a recessão mundial interferiam fortemente na economia brasileira, os créditos e empréstimos internacionais minguavam. Nas eleições de 1974, o MDB havia conquistado 59% dos votos para o Senado, 48% da Câmara dos Deputados e a maioria das prefeituras das grandes cidades. Não havia eleição de prefeitos nas capitais.

Era um ambiente de incertezas. Logo depois do carnaval, eclodiram as greves operárias do ABC. No ano em que União da Ilha do Governador foi campeã, a oposição voltou a vencer as eleições, Geisel acabou com o AI-5, restaurou o habeas-corpus e abriu caminho para a volta da democracia, num processo de retirada em ordem dos militares da política que foi muito bem-sucedido. Era um momento de muitas incertezas e também de esperança. Mais ou menos como estamos vivendo agora, com sinal trocado, pois os militares voltaram ao poder com a eleição do presidente Jair Bolsonaro.

Embora o atual governo mal tenha completado 9 meses, ninguém sabe o que vai acontecer. Há uma tensão permanente entre as instituições. O presidente Bolsonaro protagoniza a radicalização política com uma retórica ultraconservadora. Entretanto, há um calendário e regras eleitorais claras, tudo vai desaguar nas eleições municipais do próximo ano e, depois, em 2022, quando teremos novas eleições gerais. Esse é o leito do processo político democrático. A incerteza maior está na economia. Apesar da iminente aprovação da reforma da Previdência e de um robusto programa de concessões e privatizações, a economia ainda não reagiu como deveria

A receita liberal do ministro da Economia, Paulo Guedes, até agora, resultou num cenário de estagnação, com desindustrialização, altas taxas de desemprego e baixa atividade econômica, apesar da inflação baixíssima e da queda dos juros, que devem baixar ainda mais, para 4,5%, segundo previsões do mercado. A especificidade da economia brasileira não foi bem-equacionada pela equipe de Guedes, formada por especialistas financeiros e técnicos que conhecem bem as finanças públicas, mas não dão conta das relações do governo com o setor produtivo e têm ojeriza à política industrial.

No momento, o governo prepara uma emenda constitucional, chamada PEC Emergencial, com uma lista de medidas duras para serem adotadas por um prazo de dois anos. Não deve mexer no teto de gastos (que limita as despesas à inflação) e deve fazer um ajuste na chamada regra de ouro, mecanismo que impede que o governo faça dívidas para pagar despesas correntes, como salários. O governo também pretende, no próximo ano, aprovar outras mudanças, que chama de PEC DDD: desvincular (retirar os “carimbos”), desindexar (remover a necessidade de conceder automaticamente reajustes) e desobrigar o pagamento de despesas.

Muitos economistas têm dúvidas quanto ao êxito de Guedes, mas nem por isso o presidente Jair Bolsonaro tem um plano B para economia. Ele já disse que vai continuar com o Posto Ipiranga. É uma situação meio inédita, com o real desvalorizado frente ao dólar e a economia quase em deflação. Há sinais de que o modelo liberal clássico não dá conta do recado nesses novos tempos de globalização e revolução tecnológica, assim como havia fracassado o modelo desenvolvimentista social-democrata. No fundo, ao lado do rentismo, o não-trabalho e o não-emprego na nova economia aprofundam as desigualdades, reduzem nosso mercado interno e ampliam as demandas sociais, sem que o governo tenha recursos para cuidar dos mais pobres, investir na educação e e modernizar a infra-estrutura. No atual modelo, além do empreendedorismo, só o capital estrangeiro salva, mas ele ainda prefere outros destinos.
Luiz Carlos Azedo

Imagem do Dia


Monotonia

Um colega redator da Revista do Globo comentando qualquer coisa a meu respeito, diz que deve ter sido bom para mim mudar de ares, pois que "já estava correndo risco de se tornar monótona, comentando sempre os acontecimentos da Ilha do Governador, onde reside". Creio que há um engano nesse reparo do caro colega: não estou correndo risco de me tornar monótona; eu já estou é ficando pau como diabo com estas eternas histórias de ilha e do Ceará, com esta lengalenga infindável em redor do meu quintal. Helás, ninguém se apercebe disso melhor do que eu própria; e bem quisera libertar-me desse círculo de peru onde fico a rondar sem fuga, bicando o mesmo grão de milho. Mas nunca fui pessoa de largos horizontes. Tenho por obrigação o escrever esta crônica todas as semanas, falando do que vejo e de quem conheço; - que hei de fazer se a vida da gente é estreita, estreitos os caminhos por onde anda, poucos em número e em variedade os conhecidos? Aliás, quero crer que o colega ainda se engana em outro ponto: si cette chanson vous embête, o mal não está no assunto da cantiga, propriamente, mas no intérprete. Pode-se jamais sair - já não digo de uma ilha tão grande, mas jamais sair de uma rua ou de uma casa, e até mesmo ficar eternamente contemplando o próprio nariz - e através dele enxergar em massa as galáxias do céu, e jamais ser monótono. A monotonia está é dentro de nós próprios - dentro de mim, para especificar bem.


Tanto é que a tal mudança de ares parece que não me fez benefício de monta; vi tanta coisa, tanta gente, tanta casa, tanta água e tanta terra - e, meu Deus - em que foi que aproveitei? Me comparo com um corrupião da Paraíba que descobri atirado numa gaiola, no Jardim Zoológico de Londres. O bicho desbotado e triste, bicava um pedaço de fruta. Junto dele cantavam passarinhos de nome ilustre, desses que Shakespeare já citava, toutinegras e cotovias, nem sei. Mas não adiantava: quando o corrupião abriu o bico, não cantou de rouxinol nem de melro, como seria de esperar. O que ele soltou foi o velho "sofrê... sofrê!..." angustioso que aprendera ainda no ninho, no brejo paraibano...

Dizem que cada escritor, durante toda a vida, dispõe apenas de dois ou três assuntos. Vive a moê-los no seu moinho, a apresentá-los com roupagens que imagina diferentes, - mas o conteúdo é sempre o mesmo. Eu talvez não tenha dois nem três, só tenho um... E se já estou assim cacete agora, imaginem como não estarei daqui a uns vinte anos, contando, como todo velho, sempre os mesmos casos, sempre os mesmos casos...

*

O que me salva um pouco, talvez, é que neste país - como em quase todo o mundo, não há, como se imagina, o gosto da mudança, da variedade. Nem sei mesmo se seria prudente a ideia de mudanças. O povo não gosta de variedade, o povo gosta é de continuidade. Se não mudo nunca, sou uma quantidade garantida, não lhe dou surpresas, não invento modas - o que é sempre incômodo. O inventor de modas é um fator de insegurança, enquanto o amante da continuidade é fator de paz. Claro que é chato. Mas o futuro é dos chatos.

Não vê o caso de Getúlio? Nunca mudou, desde que o conhecemos. Há vinte anos faz as mesmas coisas, dá os mesmos golpes, repete as mesmas trapaças. A pregação feita para as eleições de 30 é perfeitamente idêntica à que fez para as de 50. Variam ambas na forma, apenas, porque os "negros" que escreveram os discursos não são os mesmos - uns morreram, outros estão velhos demais... Ele não cumpriu o que prometeu em 30 - e sabe-se que não cumprirá também o que prometeu em 50. Mas faz bem ao povo ouvir a mesma história, faz bem rever a velha cara do homem no palácio; o mais forte argumento a favor da recondução do caudilho foi "que já se estava acostumado com ele...".

Fico pois aqui com as minhas velhas histórias, os meus casos repetidos... Água mole em pedra dura... Quem sabe ainda não acabo sendo qualquer coisa neste país?

Rachel de Queiroz ( O Cruzeiro - 25/11/1950)

A direita expõe a sua divisão

O apelo de Onyx Lorenzonni, chefe da Casa Civil da presidência da República, para que a direita permaneça unida só faz sentido como admissão velada de que ela está partida ou prestes a se partir. Ao formular o apelo durante encontro de conservadores promovido no fim de semana em São Paulo, Lorenzoni chegou a chorar.

Ou o ministro é muito emotivo ou a situação da direita brasileira inspira cuidados com menos de 10 meses de governo Bolsonaro. Podem ser as duas coisas. O descolamento do presidente da República da defesa candente que sempre fez do combate à corrupção provocou fissuras em sua base de apoio.


Ao nomear o ex-juiz Sérgio Moro ministro da Justiça e da Segurança Pública, Bolsonaro teve a intenção de reforçar seu compromisso com a luta contra a roubalheira de qualquer natureza e o crime organizado que catapultou o Brasil para a cabeceira da lista dos países mais violentos do mundo. Dela tão cedo sairá.

O Caso Queiroz obrigou Bolsonaro a dar meia volta. Por envolver seu filho Flávio, eleito senador, e as ligações entre a família e milicianos do Rio de Janeiro. Foi um golpe forte nas pretensões do presidente. Embora a investigação do caso esteja suspensa por decisão do ministro Dias Toffoli, ela poderá ser retomada em breve.

Bolsonaro tornou-se cedo demais refém da mais alta Corte de Justiça, pois é isso o que ele é e será até o fim do seu mandato. E o Supremo Tribunal Federal, por meio do seu presidente, conseguiu equilibrar o jogo disputado com um presidente recém-eleito que imaginava ter condições de subjugar os demais poderes.

A maioria dos devotos de Bolsonaro pode ainda não ter entendido o que se passa, mas a parcela menor e mais influente entendeu e não gostou. Daí a aflição de gente do tipo Lorenzoni, os garotos Carlos e Eduardo e o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho. Daí a euforia dos que abandonaram a nau dos Bolsonaros a tempo.

Aspirante a candidato a presidente em 2022, Wilson Witzel, o alucinado governador do Rio, é desde já uma pedra no sapato de Bolsonaro, que disso não cansa de passar recibo. Flerta com o PSL que Bolsonaro fustiga interessado em controlar seu caixa. E tenta tomar dele a bandeira da guerra ao crime.

Pela direita, com o cuidado de distanciar-se de sua ala extremista, trafegam João Doria (PSDB), governador de São Paulo, e o apresentador de televisão Luciano Huck. Moro a tudo observa como se não tivesse interessado. A sucessão de Bolsonaro foi precipitada por ele mesmo à falta de planos para governar.

A nova normalidade

Gérard Araud, ex-embaixador francês em Washington, foi o diplomata que, há tempos, respondeu à infeliz declaração de Jair Bolsonaro de que devia ser “insuportável viver em certos lugares da França”, por causa dos imigrantes. Araud disse apenas: “63.880 homicídios no Brasil em 2017; 825, na França. Sem comentários”. Observador da avalanche populista que gerou figuras como Bolsonaro e Donald Trump, ele deu uma pertinente entrevista a Fernando Eichenbergh, no Globo do dia 6 último. Eis alguns trechos.

“As pessoas de esquerda estão erradas em crer que um populista é um conservador como qualquer outro. Ele governa também contra os conservadores. O populista pisa sobre os próprios princípios da política. Na democracia, há o respeito, você não insulta, não ataca a vida privada. Mas os dirigentes populistas zombam totalmente dessas convicções. E se descobre que, no fim das contas, parte da população não considera isso grave. Torna-se uma nova normalidade.

“Me pergunto o que ocorrerá quando Bolsonaro e Trump desaparecerem da cena política. Tenho dúvida se as coisas voltarão a ser como antes. A primeira lição é a degradação do discurso político.

“O Brasil comete um erro pensando que obterá benefícios ao se alinhar a Trump. Quando Trump diz ‘America first’, significa ‘America alone’. [...] Ele não tem aliados, amigos ou inimigos. Que o filho de Bolsonaro seja embaixador nos EUA, não haverá nenhuma consequência para Trump. Dois continentes estão ausentes da sua política: a África e a América Latina. Nesta, só lhe interessa o México, por causa da imigração, e a Venezuela, pela crise política. Para o resto do continente, é a total indiferença.

“A palavra do especialista não existe mais. E há as mídias sociais. Antes, quatro bêbados em um bar falavam uma bobagem, mas aquilo ficava entre eles. Hoje, falam nas redes sociais e se tornam 4.000 imbecis”.

Ruy Castro

Mal de Parkinson da burocracia

São da mesma natureza os impulsos de gastar tudo ou mais do que se ganha, de esgotar rapidamente a capacidade de armazenamento dos aparelhos e contas digitais na nuvem e o que faz as burocracias incharem. Esses impulsos obedecem à Lei de Parkinson. Seu formulador foi o britânico Cyril Parkinson, sem parentesco conhecido com o médico James Parkinson, descobridor da doença degenerativa. Cyril Parkinson, historiador e escritor, derivou a lei que o faria conhecido no final da Segunda Guerra Mundial, quando um fenômeno no departamento que administrava as colônias britânicas chamou sua atenção. Mesmo com o desmantelamento do império e a perda das colônias, o departamento continuava crescendo e, em pouco tempo, atingiu o dobro do tamanho ostentado no auge da dominação territorial britânica na Ásia e na África. Se não forem contrariadas, observou ele, as burocracias tendem a ocupar todos os espaços e a se expandir, multiplicar suas tarefas e, com elas, seus ganhos e privilégios — na proporção inversa da carga real de trabalho requerida de seus integrantes.



“Os gastos sobem até empatar com as receitas”, diz também a Lei de Parkinson. Essa parte foi levada tão a sério no Brasil que a entronizamos no texto da Constituição de 1988, criando despesas obrigatórias vinculadas à arrecadação. A lei descoberta pelo britânico é incontrastável. Ela nos interessa especialmente agora quando, finalmente, com a entrada na pauta da Reforma Administrativa, vamos enfrentar o desafio de tornar suportável o peso do Estado sobre os ombros de quem investe, empreende e contrata. Pessoas que, na formulação dos economistas clássicos, pagam um preço alto para correr riscos. É evidente por si mesmo que a oferta de empregos depende da disposição desse pessoal de aceitar os riscos de investir. A Reforma Administrativa vai confrontar burocracias federais que, não importa sob quais governantes, incharam seus privilégios na proporção inversa do trabalho requerido delas. As evidências variam conforme a metodologia adotada, mas todos os estudos demonstram o mesmo fenômeno que chamou a atenção do britânico encarregado das colônias. O Ministério da Economia informa que, entre 2001 e 2018, os gastos com o funcionalismo federal cresceram o dobro da inflação no mesmo período. A Pesquisa de Domicílios do IBGE mostra que oito de cada dez burocratas federais estão entre os brasileiros 20% mais ricos. O Banco Mundial revelou, na semana passada, que os funcionários da União ganham o dobro dos brasileiros empregados no mesmo nível na iniciativa privada.

A farra com dinheiro público no Brasil nem de longe é exclusiva dos altos funcionários. Baseado nos seus ganhos, nossos parlamentares são da Califórnia. Não tem ninguém de crachá federal da Tanzânia ou do Haiti. Os parlamentares da Califórnia são os mais bem pagos dos Estados Unidos. Eles ganham o equivalente a 36.000 reais mensais. Os rendimentos deputados federais do Brasil se igualam aos da Califórnia – estado onde, atenção, a renda per capita é seis vezes superior à brasileira. Difícil encontrar distorções mais paralisantes para um país em busca de justiça social.

São muitos os servidores públicos de valor. A maioria é honesta e operosa. Alguns são heróis e ganham aquém de seu merecimento. Como grupo, porém, são detentores de uma regalia rara de se encontrar em regimes republicanos. A reforma será bem-sucedida se conseguir que, ao invés de trabalhar em seu próprio benefício, a burocracia estatal se engaje na criação da “máquina mercado-governo de inovação”, que o Paul Romer, ganhador do Nobel de economia do ano passado, aponta como essencial para a sobrevivência dos países. Cyril Parkinson morreu há 26 anos, no dia 9 de março. Fica a sugestão ao Congresso. Depois de aprovar a reforma administrativa, fazer dessa data o Dia Nacional da Luta Contra o Mal de Parkinson da Burocracia— não precisa ser feriado.
Eurípedes Alcântara

Pensamento do Dia


O capitão quer guerra

Jair Bolsonaro quer guerra. Na sexta-feira, o capitão participou de uma solenidade no Complexo Naval de Itaguaí. Diante de operários e oficiais da Marinha, fez mais um discurso em tom de combate. “Temos inimigos dentro e fora do Brasil. O de dentro são os mais terríveis. O de fora nós venceremos com tecnologia e disposição, e meios de dissuasão”, afirmou.

O Brasil já teve um presidente que se sentia perseguido por “forças terríveis”. Agora é comandado por um ex-militar que vê perigos em toda parte.

A retórica de Bolsonaro expõe uma personalidade viciada em confronto. No último dia 2, no Planalto, ele falou em “dar a vida pela pátria”. “Não nos esqueçamos que o inimigo está aí do lado, o inimigo não dorme”, advertiu.


Em agosto, no QG do Exército, jurou “lealdade ao povo” e conclamou o povo a “marchar para o sucesso”. “Não nos faltam é inimigos como os de sempre, que teimam em ganhar a guerra de informação contra a verdade”, afirmou.

Na ausência de guerras reais, o presidente se dedica a fabricar inimigos imaginários. No início do governo, a ameaça viria dos comunistas, que estão em extinção desde a queda do Muro de Berlim. Em seguida, foi a vez de estudantes, professores, artistas e jornalistas.

Com a onda de queimadas na Amazônia, entraram na mira cientistas e ambientalistas que alertam para os riscos de destruir a floresta. Depois a fúria se voltou contra líderes da centro-direita europeia, como Angela Merkel e Emmanuel Macron.

A pregação contra “inimigos internos” é usadapor todo regime autoritário. Na ditadura brasileira, o conceito fazia parte da doutrina de segurança nacional. Servia para simular um ataque iminente e justificar a repressão feroz aos opositores.

No caso de Bolsonaro, a estratégia se mistura a uma tendência à paranoia. Nos últimos tempos, o capitão passou a enxergar inimigos até nas próprias bases. Personagens como o cantor Lobão e o deputado Alexandre Frota, que o apoiaram com fervor, viraram desafetos do governo. Agora o alvo é o PSL, o partido do clã presidencial. Aliados que resistem à nova cruzada, como o senador Major Olímpio, estão prestes a entrar na lista dos proscritos.

Olho vivo

Em nome da autodefesa se destrói a democracia
Mario Vargas Llosa

Pastiche de direita

A foto de Eduardo Bolsonaro abraçado a um mastro com a Bandeira do Brasil, copiando até o semblante “enternecido” de Donald Trump na mesma pose com a bandeira dos Estados Unidos, é o resumo do que é a direita bolsonarista hoje: um pastiche cafona da alt-right norte-americana, sem consistência filosófica e ideológica nenhuma, que se utiliza de dinheiro público do Fundo Partidário e dos métodos do PT para se financiar e se comunicar e envolta em brigas intestinas justamente pela falta de coesão política.

A semana foi tomada por uma crise provocada pelo presidente da República, que decidiu atirar contra seu partido, o PSL, ao tirar uma selfie com um admirador. A partir daí, ameaçou deixar a legenda, os parlamentares que o seguem ficaram que nem barata tonta sem saber para onde iam, mas, por enquanto, fica todo mundo onde está. E por quê?

Porque o PSL enriqueceu na esteira da febre bolsonarista. É ele, por meio da Fundação Índigo, que financia eventos como a versão brazuca da CPAC, feita sob medida para o filho do presidente e candidato a embaixador posar de especialista em relações internacionais e a plateia saudar Trump a plenos pulmões.

Portanto, a “nova direita” brasileira faz o que a velha política sempre fez: se financia com dinheiro público injetado em partidos sem nenhuma identidade programática, por pura conveniência. Também na semana que passou veio à tona em mais detalhes, por meio de reportagem da revista Crusoé, a conexão entre o comando bolsonarista e uma rede de blogueiros, youtubers, sites de propaganda e milicianos digitais, alguns com polpudos salários em cargos públicos e gabinetes, para fritar ministros, tutelar o presidente, assassinar reputações e plantar fake news.

Também nisso a direita bolsonarista bebe dos métodos da alt-right representada por Steve Bannon, que, a despeito de ter sido afastado pelo papai Trump pelo seu potencial tóxico, é idolatrado pela família e pelos assessores do presidente do Brasil.

Mas Bannon não é a única fonte de inspiração: afinal, foi o odiado PT que inaugurou a engenharia de financiar blogs e sites “alternativos” contra o “PIG”, então chamado por Lula e asseclas de Partido da Imprensa Golpista. Os extremos sempre se encontram num ponto: a demonização da imprensa como forma de banir o contraditório e tentar espalhar seu populismo, seja de direita ou de esquerda.

E o que o Brasil colhe em termos de política externa com sua casta dirigente fazendo cosplay do trumpismo para ficar bem na fita com os Estados Unidos? Na semana que passou o saldo foi um mico monumental. A expectativa de que tanta adulação fosse valer um fast track para a entrada brasileira na OCDE, o clube dos países ricos, sucumbiu diante da realidade pragmática: os Estados Unidos continuarão usando a retórica da boa vizinhança com o Brasil, mas na hora do “vamos ver” vão cuidar dos próprios interesses, sobretudo na pauta econômica e comercial.

Bolsonaro e os filhos vivem a ilusão de que sua chegada ao poder representa uma transformação súbita do Brasil – um País desigual social, econômica, cultural e regionalmente – numa pátria de direitistas empunhando a Bíblia e lendo Olavo de Carvalho.
Vera Magalhães

Irmã Dulce, olha por nós

Irmã Dulce, que estás no céu, agora mais santificada do que nunca, tem piedade dos conterrâneos que aqui deixaste na via crucis do deus-dará, na sagrada provação de remar contra a maré. Perdoa nossas urgências, mãe dos pobres. Tomaste posse ontem, mal te ajoelhaste aos pés dos Deus-pai, e já estou aqui nesta prece pública de socorro. Primeiro da fila, eu mendigo teus canonizados favores e sei, envergonhado, que acelero na contramão de tua suave índole baiana. Desculpa a pressa pagã, anjo bom da Bahia - mas é que tá difícil.

Esta é uma oração cívica, o clamor de quem já não sabia mais a quem rogar salvação e súbito te vê sentada, brasileiríssima, à mão direita da delicada nuvem dos santos católicos. Olha por este teu velho pelourinho. Faz a poesia suprema de lançar sobre todos que aqui ficaram, de preferência hoje ainda, o claro raio de sua mensagem ordenadora.

Sei que o sofrimento é parte da qualificação católica. Carregar a cruz, pagar pelos pecados e só aí então, depois de suportada a dor dos espinhos, provar o mel da aleluia e da suprema delícia da ressurreição. Abrevia-nos, porém, ó bem aventurada dos desvalidos, este momento de implacável suplício que ora nos acomete a honra e apequena a fé. Dá uma força aí.

Eu sei que passaste há bem pouco por aqui, Santa Dulce dos Pobres, e ainda tens no colo o peso dos famélicos que pediam uma palavra de esperança. Continuam todos nas calçadas, tudo como dantes em nossa miséria de séculos - mas há novos problemas.

O Brasil, que desde ontem te tem no altar dos poucos orgulhos nacionais, é um país cada vez mais sozinho, um barracão tosco erigido à glória das mentiras, ao culto do meu pirão primeiro e ao louvor do blasfemo. Já fomos um trecho do hino do Esporte Clube Bahia, aquele do "Ninguém nos vence em vibração". Viramos um samba canção triste do Antonio Maria. Ninguém nos ama, ninguém mais nos quer por perto. 

Eu poderia te poupar, irmã Dulce dos pés descalços, deste estresse cívico de receber uma oração com pedido de urgência logo no primeiro dia em que usas a auréola de santa. Foi mal. Eu poderia seguir a ordem natural das coisas e redigir esta santa petição de súplicas a Frei Galvão, o brasileiro que também teve o êxtase da canonização e está há mais tempo no cargo de santo. Mas, sem desmerecer os milagres do paulista, e há anos deposito minha crença nas suas pílulas miraculosas, eu sei que uma santa baiana entenderá melhor o novo mal que agora nos acomete. Esta oração roga por tua interferência divina.

Os governos mudam, irmã Dulce, e desta vez eles acrescentaram à falta de pão, saúde e bons modos uma calamidade inédita - a falta de alegria. A tristeza tornou-se a grande senhora. Em nome de um Cristo que não é o teu, nem também o meu, ela dá as cartas num país que se arrasta macambúzio pelo breu das tocas. Chama de putas as artistas, quer acabar com o carnaval e vê o rabo do diabo em tudo que, vira e mexe, dá prazer. A morte é rainha. Atira ódio para todos os lados.

Tenho certeza, e aqui me despeço genuflexo, que uma menina baiana vestida no abadá dos santos perceberá o desatino dos tempos - zombam da fé os insensatos - e nos ajudará a todos com a alegria que for possível, na paz dos homens bons, e amém.