quinta-feira, 26 de outubro de 2023

A seguir: milícias nacionais

As milícias nasceram modestas. Eram policiais e bombeiros empenhados em combater por conta própria o tráfico em comunidades da Zona Oeste do Rio. Vendo-se prestigiados pelos cidadãos, dedicaram-se à oferta de "serviços" de combustível, transporte e comunicações. Com a adesão de civis, passaram a vender "proteção" contra violências perpetradas por eles próprios. E, agora, aderiram à venda das drogas que diziam combater. Devido à grande rentabilidade, suas atividades se tornaram de risco, sujeitas a divergências pontuais com milícias concorrentes, traficantes profissionais e até com sua eventual aliada, a polícia.

Tais querelas não são dirimidas ao redor de mesas de mogno, mas em locais ermos e inesperados, ideais para emboscadas, execuções e chacinas. Isso exige a posse de considerável arsenal e, como nos negócios tradicionais, um contato amistoso com o fornecedor, seja quem for. O principal mercado das milícias é o Rio. Mas o Rio não fabrica a matéria-prima que lhes dá sustentação: as armas.


Ao contrário, todos os fabricantes ficam longe. As Forjas Taurus, das maiores do mundo em armas leves e pesadas, têm sede em São Leopoldo (RS). A CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos), que detém o monopólio da produção de munição militar e para segurança pública, em Ribeirão Pires (SP). E a estatal Imbel (Indústria de Material Bélico do Brasil), abastecedora de armas portáteis, munição e explosivos para o Exército, no DF, com sua unidade de produção de grosso calibre em Juiz de Fora (MG).

O Rio, servido por milicianos vindos de todos os estados, é apenas o escoamento disso e sua infeliz vitrine. Mas só por enquanto. Com a facilidade para desviar armas do Exército, tratar as fronteiras estaduais como peneiras e adquirir toda espécie de material bélico sob os narizes oficiais, as milícias descobriram que há um novo e promissor mercado a explorar.

O Brasil.

Milícia no Rio, algumas perguntas

"O crime organizado que não ouse desafiar o poder do Estado", disse Cláudio Castro enquanto 35 ônibus e um trem eram incendiados no Rio de Janeiro. À realidade coube consumar a ironia: é como se os fatos expusessem a inevitabilidade do caos que a falta de política de segurança já anunciara. Lembro de García Márquez em "Cem Anos de Solidão": "O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo"; apontar, sim, mas na cara de quem?

O governador quer que acreditemos que é uma luta de mocinhos contra bandidos; ele, claro, do lado dos primeiros. Quem dera a realidade fosse tão simples quanto sugere o maniqueísmo. Se fosse, a caça à cúpula de milicianos resolveria. Eis algumas questões. 

1: as autoridades fluminenses, de hoje e outrora, precisam explicar como permitiram que as milícias crescessem 387% em 16 anos, ocupando uma área de 64 Copacabanas. A resposta é que milícia lucra a partir e para o Estado. Sem desvendar os laços econômicos e sem controlar acesso a armas, nada será resolvido.

2: o governador precisa explicar por que nomeou, para chefiar a Polícia Civil, um policial influenciador digital homenageado por deputado ligado a miliciano; a resposta é que, em parte, a milícia manda no estado que nem sequer possui uma Secretaria da Segurança Publica.

3: os governos fluminense e federal precisam explicar por que jogar policiais de outros estados no Rio, via Força Nacional, resolveria a questão. Resposta: não resolverá. 

4: o MP-RJ precisa explicar por que, em 2021, extinguiu o órgão que apura má conduta de PMs (Gaesp).

5: Castro precisa explicar por que policiamento ostensivo também é seletivo: em 2019, apenas 6,5% das operações policiais no Rio ocorreram em áreas de milícia. Sem dizer como isso fortalece o mercado imobiliário das milícias, nada será resolvido. A tática de bangue-bangue não combaterá a milícia porque é, ela mesma, uma tática miliciana.
Thiago Amparo

Pelo fim da violência de um Estado sobre um povo sem Estado

Espera-se que a União Europeia (UE) apoie hoje, por unanimidade, um apelo a “pausas humanitárias” nos bombardeios israelenses em Gaza para permitir que alimentos, água, remédios e combustíveis cheguem aos palestinos com mais regularidade.

Quanto aos combustíveis, Israel insiste em dizer que é contra seu fornecimento. O Hamas, que governa Gaza, que se vire para obtê-los. Gaza entra no 20º dia de guerra às escuras. Mais de 100 recém-nascidos mantidos em incubadoras correm o risco de morrer.

Aparentemente, estabeleceu-se o consenso na UE depois do que um diplomata descreveu como “reuniões difíceis” entre os Estados-membros que gastaram dias a discutir sobre que terminologia utilizar em relação ao direito de Israel defender-se.


Rascunhos de uma declaração oficial a ser assinada numa conferência de líderes em Bruxelas, nesta quinta-feira, propunham um apelo a “uma pausa humanitária” para permitir “acesso rápido, seguro e sem entraves à ajuda a ser dada aos necessitados”.

O termo “pausa” foi considerado por vários Estados-membros demasiado próximo da expressão “cessar-fogo”, o que poderia enfraquecer o direito de Israel à autodefesa. Pausa ou pausas? Essa foi a discussão seguinte. Alguns Estados argumentaram:

“Se forem muitas pausas, elas beneficiarão o Hamas. Se forem menos, mas pausam muito longas, beneficiarão do mesmo jeito”.

A abertura permanente de um corredor humanitário talvez fosse pior. Como o direito de Israel ao ataque, em resposta ao ataque que sofreu, poderia conviver com a passagem contínua de ajuda humanitária? Isso equivaleria ao cessar-fogo que Israel não quer.

É dura, como se vê, a vida dos diplomatas, embora luxuoso, confortável e bem equipado o espaço onde se reúnem para debater os desafios da humanidade. Eles de nada carecem. Mas, para que tenham êxito, dependem do ok dos seus empregadores.

A dificuldade em chegar a acordo sobre a língua reflete um dos episódios mais embaraçosos para a UE em muitos anos. Uma fonte disse ao The Guardian que havia “uma variedade muito grande de pontos de vista sobre a crise” no Oriente Médio.

Não deixou de haver, mas o sofrimento dos palestinos impõe algum tipo de entendimento em seu socorro. À guerra entre Israel e Hamas, deve seguir-se de imediato a solução de dois Estados, segundo o presidente Joe Biden.

É tudo o que os palestinos querem desde que perderam para Israel a maior parte de suas terras no fim dos anos 1940, e desde que as maiores potências mundiais lhes asseguraram o direito à criação do próprio Estado.

O que temos hoje? A violência de um Estado sobre um povo sem Estado.

Moral acoberta os crimes

Ah, a palavra “moral”! Sempre que aparece, penso nos crimes que foram cometidos em seu nome. As confusões que este termo engendrou abarcam quase toda a história das perseguições movidas pelo homem ao seu semelhante. Para além do facto de não existir apenas uma moral, mas muitas, é evidente que em todos os países, seja qual for a moral dominante, há uma moral para o tempo de paz e uma moral para a guerra. Em tempo de guerra tudo é permitido, tudo é perdoado. Ou seja, tudo o que de abominável e infame o lado vencedor praticou. Os vencidos, que servem sempre de bode expiatório, “não têm moral”.

Pensar-se-á que, se realmente glorificássemos a vida e não a morte, se dessemos valor à criação e não à destruição, se acreditássemos na fecundidade e não na impotência, a tarefa suprema em que nos empenharíamos seria a da eliminação da guerra. Pensar-se-á que, fartos de carnificina, os homens se voltariam contra os assassinos, ou seja, os homens que planeiam a guerra, os homens que decidem das modalidades da arte da guerra, os homens que dirigem a indústria de material de guerra, material que hoje se tornou indescrivelmente diabólico. Digo “assassinos”, porque em última análise esses homens não são outra coisa. A sangue-frio, anos antes de estalar qualquer conflito, preparam-se para obrigar os outros a obedecer-lhes; enumeram mentalmente todas as formas concebíveis de horror e destruição, e dedicam-se à tarefa calmamente, deliberadamente, implacavelmente, esperando apenas pelo momento certo para levarem à prática os seus planos.

Confrontados com uma nova guerra - porque uma guerra engendra sempre outras - não poderemos esperar que estas “vítimas” se mostrem caridosas e magnânimas. Tendo sofrido contra vontade, exigirão inevitavelmente que os seus filhos e filhas paguem o mesmo tributo... Portanto, o que eu digo é que, se esta escravidão de sacrifício e vingança não é imoral, se não é a forma mais absoluta da imoralidade, então esta palavra não tem sentido. Não estamos a ser destruídos e corrompidos pelos escritos pornográficos ou obscenos; estamos a ser destruídos e condenados, em todos os sentidos, pela guerra e pelo planeamento da guerra.

Henry Miller, "O Mundo do Sexo"

Pensamento do Dia

 


A Rosa de Hiroshima

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A antirrosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.
Vinicius de Moraes




Não se deixem cegar pela raiva

Joe Biden tentou refrear a sede de vingança do Estado de Israel pelos ataques do Hamas de 7 de outubro. “Não se deixem cegar pela raiva.” Biden recordou que na reação aos ataques do 11 de setembro foi isso que aconteceu aos Estados Unidos e que, por isso, admitiu, cometeram erros. Nestas palavras está implícito um mea culpa pelas decisões do pós-11 de setembro, que culminaram na invasão do Afeganistão com o apoio das forças aliadas, mas à revelia da ONU.


O Afeganistão foi um banho de sangue. Morreram quase 50 mil civis com a invasão e durante a ocupação. Em nome de quê? Desmantelar a organização terrorista Al Qaeda e tirar do poder o regime talibã. Correu muito mal. Nada foi conseguido. Sobretudo, para o que interessa aqui, os civis afegãos nada sabiam da Al Qaeda e pouco sabiam das duas torres que tinham colapsado. Foram bombardeados e foram vítimas de uma ação militar pensada e organizada sem os considerar como sujeitos de quaisquer direitos, nem sequer do direito à vida.

Robert Fisk foi o jornalista ocidental que ficou no Afeganistão, mesmo depois dos primeiros bombardeamentos. Relatou as mortes, a destruição de aldeias e o total desrespeito pelas vidas daquelas pessoas. Foi o grande defensor do povo afegão. E, por isso, foi penalizado e até ridicularizado publicamente. Fisk, no seu livro A Grande Guerra pela Civilização, relatou em detalhe o que vos estou a contar e relatou até a forma como foi alvo de chacota impiedosa por ter sido o único a sentir empatia pelo sofrimento afegão. Não cedeu à pressão da lógica que estava estabelecida: os Estados Unidos tinham sido vítimas de um ataque terrorista sem precedentes e estavam, por isso, legitimados a agir da forma que entendessem ser a adequada. Robert Fisk deu conta de outros jornalistas que ainda assistiram a ataques aos civis afegãos, mas nenhum deles estava disposto a denunciá-los.

O livro de Robert Fisk é importante para a justiça histórica e para que não esqueçamos tudo aquilo que somos capazes de fazer, de apoiar ou, simplesmente, aquilo a que somos capazes de fechar os olhos. Ficar calado perante uma injustiça é participar nela.

Fiquei surpreendida com o mea culpa de Biden. Não esperava que reconhecesse que a sua nação cegou com a raiva e que aquilo que fez a seguir não deve servir de exemplo para outras nações em situações que possam ser comparadas, como é o caso de Israel agora. Esteve bem Joe Biden. Nada disto é suficiente para fazer pazes com a política externa dos Estados Unidos, nem nada que se pareça, mas o que é justo é justo. Neste caso, Biden fez duas coisas que merecem elogio: deu um bom conselho e fez uma autocrítica.

Metemos a cabeça debaixo da areia quando os nossos aliados violam o direito internacional e a seguir apagamos da memória coletiva que tenha acontecido. Eternizamos o luto pelo sofrimento daqueles que, de alguma forma, nos são próximos e assumimos que é causa legítima para quase tudo.

Não se diga que a nossa seleção daqueles que são próximos assenta em distâncias ou geografia. Os israelitas e os palestinianos estão à mesma distância e na mesma geografia. É outra coisa muito mais inconfessável. Uma coisa que atira os mortos afegãos, iraquianos, palestinianos e tantos outros para um saco sem fundo. Cabem lá imensos e o saco nunca rebenta.

Preço 'barato'


Não tenho a menor ideia de que os palestinos estão dizendo a verdade sobre o número de mortos... Tenho certeza de que inocentes foram mortos, e esse é o preço de se travar uma guerra...
Joe Biden

'Tudo está acabando'

Não há nada em seu rosto que dê sinais sobre as tragédias recentes que ele viu.

Os corpos sem vida de crianças retirados dos escombros; as tendas cheias de mortos envoltos em panos brancos; edifícios indo abaixo pela força devastadora dos ataques aéreos.

O médico Mahmoud Badawi tem visto a humanidade ser destruída diante de seus olhos.


"Há muitas situações difíceis", diz ele. "Como motorista de ambulância, você se acostuma com o que está acontecendo. Quer sejam mãos, cabeças ou corpos cortados... estamos acostumados com isso."

"Não descansamos."


A ambulância em que ele trabalha corre de uma cena de carnificina para outra. Num beco estreito em Gaza, ele recolhe os corpos de duas crianças vítimas de um ataque aéreo. Um homem se aproxima segurando nos braços um menino que foi gravemente ferido.

Badawi chama um amigo que está ajudando a equipe de emergência a socorrer as vítimas e lhe pede que tome cuidado especial com o menino.

"Nasser, a cabeça dele está aberta."

No entanto, Mahmoud mantém a compostura. Não é que ele não se comova diante de tudo o que vê, mas a necessidade exige que ele se concentre naqueles que podem ser salvos.

Enquanto ele fala com um jornalista da BBC, ouve-se o som de um míssil explodindo.

"Não descansamos muito, com tudo o que está acontecendo. A situação está muito ruim. Agora vamos tentar localizar uma área bombardeada para chegar aos feridos e aos mortos."

Questionado sobre qual é a situação dos suprimentos médicos, Mahmoud diz em tom grave: "Tudo está acabando".

De acordo com a autoridade de saúde liderada pelo Hamas em Gaza, mais de 6 mil palestinos foram mortos nas últimas duas semanas. Cerca de 40% seriam crianças.

A Organização das Nações Unidas (ONU) alertou que quase um terço dos hospitais e dois terços dos centros de atendimento primário tiveram de fechar "devido a danos causados pelos ataques ou pela falta de combustível".

A ONU diz que o seu estoque de combustível está se esgotando e que "escolhas difíceis" terão de ser feitas nos próximos dias sobre quais serviços priorizar.

Israel recusa-se a permitir a entrada de combustível na Faixa de Gaza porque afirma que o produto pode ser levado pelo Hamas — grupo que o país acusa também de estar acumulando combustível.

Em Gaza, os dias e as noites misturam-se impiedosamente. A guerra é constante e está por todo lado desta pequena faixa de terra — a área total da Faixa de Gaza é de apenas 365 km².

Israel ordenou que cerca de um milhão de moradores na parte norte de Gaza evacuassem para o sul, para que suas forças ataquem o Hamas. Mas há contínuos ataques aéreos israelenses no sul de Gaza, para onde milhares de pessoas fugiram.

Fugir ou não, para onde fugir, onde se abrigar — todos os dias e noites em Gaza estão repletos de escolhas difíceis.

A situação faz também com que, para os trabalhadores de emergência, não haja como voltar para casa — para um local seguro.

Quando está trabalhando, Mahmoud se preocupa com a esposa e os seis filhos, assim como eles se preocupam com o médico. Quando o bombardeio é intenso, ele tenta ligar de hora em hora. Mas a comunicação telefônica é difícil em meio à guerra.

"A conexão com a família é muito difícil. Mal temos serviço para poder ligar e saber se eles estão bem ou não."

Mahmoud se esforçou para criar uma família com preocupações sociais. Ele tem orgulho de seus filhos. Uma filha está estudando para ser médica — ela se inspira no trabalho do pai e em sua própria experiência de guerra em Gaza quando criança. Há também um filho que é enfermeiro; outro se qualificou como professor.

À medida que a noite chega, há uma pausa no bombardeio. Mahmoud faz também uma pausa e fica entre a ambulância e uma pilha de escombros. Ele segura uma maca na mão esquerda, aguardando a próxima emergência. A adrenalina diminui. Ele fica brevemente imóvel e seus olhos olham para longe.

Estão cheios de tristeza por tudo o que viram.