sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Brasil com incontinência presidencial


Governantes estimulam infrações e instalam anarquia ambiental no país

Do alto de um palanque, o governador do Acre baixou uma nova lei ambiental no estado. “Não pague nenhuma multa, porque quem está mandando agora sou eu”, afirmou Gladson Cameli (PP), batendo orgulhosamente no peito. O ex-senador sempre condenou as punições aplicadas a produtores rurais por desmatamento, mas parece ter se embriagado com o poder depois que assumiu o novo cargo.

Num evento realizado no fim de maio, Cameli criticou o órgão estadual de fiscalização e repetiu três vezes que as multas ambientais já não valem mais nada. “Não pague, não. Eu que estou mandando”, declarou.

Sob o pretexto de evitar abusos e proteger a atividade econômica, alguns governantes decidiram partir para a anarquia. As regras de preservação continuam valendo, mas agora vêm acompanhadas de um estímulo à prática de crimes.


O governador do Acre pode até estar incomodado com punições que considera injustas, mas a Constituição estabelece que os estados têm o dever de fiscalizar qualquer ação que prejudique o meio ambiente.

O desmatamento quadruplicou no Acre nos últimos seis meses, segundo dados do Imazon. O repórter Fabiano Maisonnave perguntou a Cameli quantas multas foram aplicadas por seu governo nesse período. O governador não quis responder.

O presidente Jair Bolsonaro também já emitiu um salvo-conduto do tipo. Em abril, ele gravou um vídeo para avisar às madeireiras que os agentes do Ibama estavam proibidos de queimar caminhões e tratores usados no desmatamento ilegal.

O decreto 6.515, editado em 2008, autoriza a destruição desses equipamentos no local da ocorrência, mas o presidente virou o jogo e anunciou que o governo abriria um processo administrativo contra os fiscais.

Enquanto incentiva o descumprimento da lei, o governo fecha os olhos para as transgressões. Ao jogar dúvidas constantes sobre os dados que apontam um avanço do desmatamento na Amazônia, Bolsonaro deixa os infratores mais tranquilos.

Tosco, a palavra do ano

No ano passado a vencedora foi “fake” e agora desponta a mais forte candidata a palavra mais popular de 2019, que fez tanto sucesso porque define com precisão uma época do país marcada por ela. A linguagem é tosca, os debates são toscos, o presidente é a sua mais completa tradução.


“Não lapidado: pedra tosca. Que conserva características originais, sem interferências exteriores. Desenvolvido ou realizado sem cuidado ou refinamento; grosseiro, malfeito. Definido pelo excesso de indelicadeza, de grosseria; bronco. Desprovido de bons costumes, sem refinamento cultural; inculto: pessoa tosca”, diz o dicionário.

Mas a palavra do ano não define só a ele ou outras personalidades de seu circulo íntimo, se espalha pelo seu ministério, pelos seus fanáticos, pelas mentiras bizarras e desmentidos bisonhos. Tosca foi a invasão dos celulares de autoridades, como ensinou o hacker Walter Delgatti Neto. É facílimo, está ao alcance de qualquer adolescente. Porque o sistema de proteção de dados das operadoras é tosco.

O debate político não poderia ser mais tosco e rasteiro. Bolsonaro diz que quer acabar com o “viés ideológico” no governo, mas quer só trocá-lo pelo seu. Toscos têm profundo desprezo pela inteligência alheia.

O tosco mostra-se imune a influências externas, por melhores que sejam, prefere manter a ignorância original, que se torna um estilo com que muita gente se identifica, como um sinal dos tempos.

É diferente da burrice, como incapacidade de compreensão e raciocínio, é uma escolha pela intolerância e o radicalismo de ideias e atitudes de grupos formados no autoritarismo, no machismo, na homofobia e no racismo.

Os toscos odeiam a ciência e o refinamento porque lhes revelam sua ignorância e pequenez, cultivam a incultura como autenticidade e desprezam as artes porque não as conhecem. Confundem autoridade com autoritarismo grosseiro.

As guerras culturais em curso não são ideológicas nem religiosas ou racionais, são a vingança dos toscos contra a cultura e a civilização.
Nelson Motta

Justiça põe cabresto no capitão

Bons tempos aqueles, e nem tão distantes assim, em que autoridades da República, a começar pelo presidente, costumavam repetir ao se verem derrotadas em tribunais superiores: Decisões da Justiça não se discute, cumpre-se simplesmente.

O presidente Jair Bolsonaro aproveitou o encontro semanal com seus devotos por meio do Facebook para revelar seu inconformismo com decisões da Justiça que contrariam sua vontade.

Não teve peito para criticar o Supremo Tribunal Federal que ontem, por 10 votos a zero, confirmou que cabe à Fundação Nacional do Índio (FUNAI) demarcar as áreas indígenas.


Preferiu ir para cima da juíza federal que liberou a compra de milhares de radares a ser instalados em rodovias. Bolsonaro é contra radares. Quer acabar com os que existem. Por isso reclamou: “Está uma briga, porque a Justiça em cima da gente, que quer que a gente mantenha radares multando você. É a Justiça, lamentavelmente, se metendo em tudo”.

Foi péssimo para ele o primeiro dia de decisões do Judiciário depois das férias de julho. Que tal ser obrigado a ouvir do ministro mais antigo do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, o seguinte: “O regime de governo e as liberdades da sociedade civil muitas vezes expõem-se a um processo de quase imperceptível erosão, destruindo-se lenta e progressivamente pela ação ousada e atrevida, quando não usurpadora, dos poderes estatais, impulsionados muitas vezes pela busca autoritária de maior domínio e controle hegemônico sobre o aparelho de Estado e sobre os direitos e garantias básicos do cidadão”.

Celso de Mello malhou o capitão porque o Congresso derrubara a Medida Provisória que ele assinou transferindo para o Ministério da Agricultura a atribuição de demarcar terras indígenas.

E apesar disso, Bolsonaro mandou ao Congresso uma nova Medida Provisória com o mesmo objetivo. Não poderia tê-lo feito porque a lei não permite, a não ser depois do intervalo de um ano.

O garoto Eduardo, no final do ano passado, foi gravado dizendo que bastariam um cabo e dois soldados para fechar o Supremo. O pai desculpou-se por ele. Mas se pudesse é o que faria.

Em uma sessão de menos de seis horas, o Supremo só tomou decisões que aborreceram o capitão. Quer que ele explique o ataque à memória do pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil.

Fernando Santa Cruz, militante político de esquerda em 1976, foi preso e morto pela ditadura. Para agredir o filho dele, Bolsonaro afirmou que Fernando fora morto por seus colegas da esquerda.

O ministro Sérgio Moro, da Justiça, chegou a acenar com a destruição das mensagens hackeadas pela República de Araraquara. Acabou desautorizado por Bolsonaro.

Mesmo assim, os ministros Luiz Fux e Alexandre de Moraes acharam por bem requisitar todas as mensagens e uma cópia do inquérito aberto pela Polícia Federal. Nunca se sabe, não é?

Todo cuidado com Bolsonaro é pouco. Por via das dúvidas, Moraes suspendeu eventuais apurações da Receita Federal que envolvam ministros do Supremo, do Superior Tribunal da Justiça e familiares.

E assim se passarão os próximos 3 anos e quase cinco meses de governo que ainda restam a Bolsonaro – a Justiça a lhe pôr freios, e ele a tentar enfraquecer o Estado de Direito.

Imagem do Dia


Desmatamento dispara no Xingu, um dos últimos 'escudos' da Amazônia

O desmatamento em unidades de conservação na bacia do rio Xingu, nos Estados do Pará e Mato Grosso, cresceu 44,7% em maio e junho de 2019 em comparação com o mesmo período do ano anterior, reforçando a tendência de alta no desflorestamento da Amazônia e ampliando as pressões sobre um dos principais corredores ecológicos do bioma.

Os dados são do Sirad X, boletim publicado a cada dois meses pela Rede Xingu+, que agrega 24 organizações ambientalistas e indígenas. Além de compilar imagens de satélite, o sistema usa radares que permitem detectar o desmatamento mesmo em períodos chuvosos do ano.

O boletim diz que, entre janeiro e junho deste ano, a região perdeu 68.973 hectares de floresta - área equivalente à cidade de Salvador. A bacia do Xingu abriga 26 povos indígenas e centenas de comunidades ribeirinhas, que dependem do bom funcionamento dos ecossistemas locais para sobreviver. A região tem tamanho comparável ao do Rio Grande do Sul.

Como mais da metade da bacia é composta por áreas protegidas, ela também serve como uma espécie de escudo da Amazônia em sua porção oriental, dificultando o avanço do agronegócio pela floresta. E ela é uma das últimas áreas do bioma amazônico em contato com o Cerrado, o que lhe confere papel central em estudos sobre biodiversidade.

Quando se compara o desmatamento de maio e junho no Xingu com o do bimestre anterior, o aumento foi de 81% para toda a bacia e de 405% para unidades de conservação.

É normal que o índice de destruição cresça no meio do ano, quando o clima mais seco facilita as derrubadas, mas o tamanho do aumento foi considerado alarmante pelos autores do estudo.

Para eles, o crescimento se explica por ações do governo Jair Bolsonaro que fragilizaram o combate a crimes ambientais e por declarações do próprio presidente que estariam encorajando atividades ilícitas, especialmente o garimpo.

Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, têm pregado uma mudança na política ambiental que reduza a ênfase em punições e considere o impacto econômico de atividades nocivas à natureza.

"O que acontece hoje no Brasil, infelizmente, é o resultado de anos e anos e anos de uma política pública da produção de leis, regras, de regulamentos que nem sempre guardam relação com o mundo real", disse Salles numa reunião com madeireiros em Rondônia, em julho.

Há duas semanas, a BBC News Brasil publicou uma reportagem sobre o avanço do garimpo ilegal em terras indígenas da Amazônia em 2019. Uma das áreas mais impactadas pela atividade fica na bacia do Xingu, a Terra Indígena Kayapó.

Bolsonaro defende liberar a mineração em terras indígenas e costuma dizer que "o índio não pode continuar sendo pobre em cima de terra rica". A medida depende de aval do Congresso.

Várias das principais associações indígenas brasileiras são contrárias à atividade, temendo seus impactos sociais e ambientais.

Segundo os autores do Sirad X, "o garimpo tem se destacado como o principal vetor do desmatamento" em áreas protegidas do Xingu.

Altamira (PA), onde fica a hidrelétrica de Belo Monte, foi o município da bacia que mais desmatou, com 18 mil hectares de floresta destruídos em maio e junho.

O Pará foi responsável por 82% do desmatamento ocorrido na bacia no bimestre, enquanto o Mato Grosso respondeu por 18%.

A unidade de conservação mais impactada foi a Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo do Xingu, no Pará, palco de 38% de todo o desmatamento ocorrido na bacia em maio e junho.

Segundo o boletim, a reserva já perdeu 36% de suas florestas, o que os autores atribuem à "ausência de zoneamento que defina as áreas destinadas à conservação" e à "falta de operações de fiscalização e monitoramento ambiental in loco".

A BBC questionou o Ibama e o ICMBio sobre o aumento nos índices de desmatamento no Xingu e sobre as críticas à postura do governo quanto a crimes ambientais. Não houve respostas.

Questionada em 23 de julho sobre o aumento do garimpo em terras indígenas, a Funai respondeu oito dias depois. Em nota, o órgão diz ter apoiado 444 ações preventivas ou de fiscalização em 241 terras indígenas entre janeiro e julho de 2019 - e que tem buscado ampliar suas parcerias com órgãos ambientais e policiais estaduais.

"Para tal, está sendo realizado um conjunto de reuniões junto ao Ibama, à Polícia Federal, às Secretarias Estaduais de Segurança Pública, entre outros. Tais esforços já foram realizados nos Estados de Rondônia, Roraima, Pará e Mato Grosso", diz a Funai.

Para Miguel Trefaut Rodrigues, professor de zoologia da USP e um dos maiores especialistas em répteis e anfíbios do mundo, a bacia do Xingu tem uma importância central nos estudos sobre a dispersão e diferenciação de espécies que habitam as florestas brasileiras.

Isso porque a região engloba alguns dos últimos trechos preservados onde o bioma amazônico se encontra com o Cerrado - áreas que no passado provavelmente serviram como corredores para espécies que se deslocavam entre a Mata Atlântica e a Amazônia, tornando-as ambientes megadiversos.

Trefaut diz que entender como se deu esse deslocamento é um dos maiores desafios da zoologia moderna - mas que os estudos, ainda incipientes, dependem da preservação da mata.

"Derrubar essa área vai acabar com os resquícios e evidências de contato (entre a Amazônia e a Mata Atlântica) que houve no passado", ele afirma à BBC.

O zoólogo diz ainda que, quando um trecho da floresta é desmatado, há um impacto irreversível para a fauna daquele ponto, pois a grande maioria das espécies não tolera as temperaturas mais altas de ambientes sem cobertura vegetal.

"A fauna vai embora: desaparecem todos os roedores, lagartos, sapos, cobras e a maior parte das aves. Um ou dois bichinhos podem tolerar ambientes abertos, mas a maior parte dos bichos amazônicos some para sempre."

O jogo de Bolsonaro

Tanto o jornalista José Roberto de Toledo, editor do site da Piauí, quanto o cientista político Christian Lynch, do IESP-Uerj, observaram o mesmo recentemente. Estes mais ou menos 30% de aprovação de Jair Bolsonaro não são tão pouco quanto parecem. Para os padrões médios americanos, a aprovação de Donald Trump é também historicamente baixa. O novo premiê britânico, Boris Johnson, tem os piores números de início de governo dos últimos 40 anos. Esta semana agora, numa entrevista que decidiu conceder de improviso à repórter Jussara Soares, do Globo, o presidente também garantiu: “Sou assim mesmo”, ele disse a respeito de suas declarações agressivas . “Não tem estratégia.” Acredite o desavisado que quiser acreditar. Porque seus 30%, as redes sociais e as declarações fazem, juntas, parte de um mesmo pacote. E compõem, sim, um tipo novo de jogo na política.


O que Bolsonaro, Trump e Johnson têm em comum é um discurso particularmente agressivo. Ofendem, flertam abertamente com a extrema-direita, seu comportamento foge ao padrão de qualquer chefe de Estado recente. Esta agressividade é sintoma e é reflexo do ambiente em que se elegeram. Nos EUA, o Partido Democrata está cindido entre esquerda e liberais. Há conflitos na bancada na Câmara e faz muito tempo que, entre os pré-candidatos à presidência, perfis tão distintos estão disputando.

Estão brigando para determinar que perfil ideológico tem chance de vencer Trump. Os derrotados perigam dar as costas para o partido. Com os trabalhistas ingleses é igual. Seu atual líder, Jeremy Corbyn, representa uma esquerda que não chegava ao comando do partido há décadas, e assim abafou os liberais que dominavam a sigla. Fragmentado, sem saber para onde caminhar, o Partido Trabalhista ainda não consegue fazer frente ao governo.

No Brasil, mesmo com nossa pluralidade de partidos, o cenário é muito similar. Num ambiente de agressividade e rancor, esquerdas e liberais não se entendem — e abrem espaço para esta nova direita representada, aqui, por Jair Bolsonaro. Porque a oposição não se entende, e não tem cheiro de que vá se entender tão cedo, o cenário é de fragmentação. Não é só isso, porém, que faz dos 30% mais do que parecem.

Redes sociais têm uma característica própria. De longe, parecem democráticas. Afinal, qualquer um pode ir lá dar seu pitaco. Mas poder publicar e alcançar um público amplo são coisas distintas. Os algoritmos favorecem declarações que incitem emoções fortes. São as que chamam mais atenção, por isso mais lidas e mais comentadas. Não importa se há cem comentários negativos e dez positivos. Quanto mais comentado, mais o sistema mostra aquele post ou tweet para outros. Sim: nas redes sociais, até a repulsa ajuda o ultrajante a ganhar distribuição. É uma tecnologia que não premia a moderação, premia o extremismo.

Daí há um segundo aspecto. O número de coisas diferentes que as pessoas leem nas redes é limitado. Declarações ultrajantes muito distribuídas e criticadas ocupam mais e mais espaço — expulsando o resto. Num jogo de ocupação de território da informação exposta, o estilo Bolsonaro (ou Trump) é o que tem maior sucesso garantido.

E, assim, tudo se junta. Porque, depois de um ultraje após o outro, quem não abandonou o presidente é porque está fechado mesmo com ele. O núcleo de sua base é grande, e é sólido. Enquanto que, no outro lado, o que há é fragmentação, desânimo, depressão ou raiva. Um núcleo coeso, mobilizado pelas redes, as redes dominadas, e a oposição dilacerada. Sua Excelência que ora ocupa o Alvorada diz que não tem estratégia. Tem sim. E funciona.

O desempregado com filhos

Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão.

Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.

Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.

Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão que te resta.

Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.

Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.

Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a cabeça.

Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.
Gonçalo M. Tavares, "O senhor Brecht" 

Ressurreição em cima de todos

O comportamento e a coragem do coronel Ustra servem de exemplo para todos os que um dia se comprometeram a dedicar-se inteiramente ao serviço da pátria. Apesar de travar uma luta de Davi contra Golias, a sua vitória é certa porque no final o bem prevalece sobre o mal
Weslei Antônio Maretti, coronel reformado do Exército escolhido por Jair Bolsonaro para compor a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos

Horrípilo e quizilento

As recentes declarações em que Jair Bolsonaro redefine o sentido de ultraje contribuem para a aposentadoria dos covardes adjetivos "controverso" e "polêmico", bem denunciados por Antonio Prata no domingo. Contudo, não é fácil a vida dos escribas.

Palavras como desumano, insensível, sórdido, asqueroso, repulsivo, cruel, nojento, grotesco e torpe têm sido usadas na imprensa e nas redes, inclusive por uma parcela dos que se alinham (se alinhavam?) com o presidente.

Deixemos de lado as ponderações sobre até que ponto os sentimentos de indignação, horror e perplexidade traduzidos por essas palavras estão nos planos de Bolsonaro.


Se ele quer atiçar as paixões do núcleo mais ultradireitista e antidemocrático de seus apoiadores, ainda que ao preço de afastar a turma que não se enquadra no figurino alucinado, cabe a analistas políticos —ou psiquiátricos— especular sobre suas motivações, objetivos e chances de sucesso.

O próprio Bolsonaro estimula a interpretação de que ao metralhar disparates está só expressando seu eu. Invoca assim a valorização pervertida da "autenticidade" como valor máximo, um dos princípios que norteiam as redes sociais e seu culto ao amadorismo tosco.

"Sou assim mesmo, não tem estratégia", declarou ao jornal O Globo na terça (30). "Se eu estivesse preocupado com 2022, não daria essas declarações." Isso pode fazer sentido, mas não é o atormentado mundo interior do presidente o tema desta coluna.

Interessa aqui a capacidade que nossas palavras têm —ou não têm— de dar conta de uma realidade desafiadora. Como as instituições políticas, a linguagem também pode perder potência diante da erosão provocada por ataques repetidos, sistemáticos, maquinais.

Funciona assim: embora os adjetivos listados ali em cima possam ser excelentes escolhas vocabulares no contexto, trata-se de palavras estridentes e extremas que não se prestam bem à repetição.

Toda vez que uma declaração de Bolsonaro é chamada de asquerosa, repulsiva, desumana ou sórdida, podemos ter certeza de que sua próxima declaração soará um pouco menos asquerosa, repulsiva, desumana e sórdida.

Isso ocorre por uma fadiga semântica que é exclusiva do reino das palavras, sem relação com nosso grau de indignação íntima diante da realidade à qual elas se referem.

Digamos que fosse possível a um falante bater seu próprio recorde de declarações escalafobéticas dia após dia, num crescendo infernal e sustentável por tempo indeterminado.

À medida que esse sujeito hipotético fosse subindo na escala da infâmia, as palavras atiradas contra ele pelas pessoas civilizadas e sãs que o rodeiam se tornariam cada vez mais débeis, até caírem no chão como mariposas úmidas.

Quando o cara chegasse, digamos, a alardear as delícias da degustação de bebês humanos assados em fogo lento com batatas, o poder de comunicação de um adjetivo como "atroz" seria zero.

Se repetidas demais, palavras estridentes e extremas evocam histeria e perdem credibilidade. Sua estridência deve ser poupada para a raridade dos momentos extremos. Quando estes se tornam banais, elas perdem.

O que fazer então? Bom, trata-se de um caso típico de problema do reino das palavras que não tem solução no reino das palavras.

Mesmo assim, não custa muito caçar uns sinônimos para evitar a repetição e retardar o esgotamento da linguagem, enquanto a história não dá um passo à frente. Nauseoso, alguém? Horrípilo? Quizilento?
Sérgio Rodrigues 

Pensamento do Dia


Bolsonaro um dia vai bater no muro

O jurista Miguel Reale defende interdição. O ministro do STF Marco Aurélio Mello acha que o ideal é uma mordaça. O colunista Zé Simão sugere uma daquelas injeções que veterinários e caçadores aplicam para imobilizar animais selvagens. Parece majoritária hoje no país a opinião de que é preciso haver um meio de fazer Jair Bolsonaro parar de dizer (e fazer) coisas absurdas, que agridem a cidadania, desrespeitam a história e ofendem valores fundamentais da democracia.

Só que Bolsonaro não pára. Em sua escalada retórica, é uma jamanta sem freios descendo desembestada a ladeira, em velocidade cada vez maior. No caminho, vai atropelando, arrastando, esmagando o que passa na frente. Incontrolável, o presidente não ouve ninguém – e não hesita em esmagar os próprios auxiliares que dele ousam discordar.

É preciso lembrar, porém, o que acontece com caminhões desembestados ladeira abaixo. Uma hora param. Quando ninguém consegue segurar, se estrepam. Capotam, batem em outras jamantas em sentido contrário ou se espatifam de encontro a muros e prédios. Esse é o destino que espera Jair Bolsonaro, que ainda está início da ladeira, se não der um jeito de frear.

Em vez de mordaças, injeções paralisantes ou interdições, a oposição está propondo a saída institucional: o impeachment. Mas, no momento em que se completam sete meses de governo, e no dia seguinte à aprovação da reforma liberal mais sonhada pelo establishment "a Previdência" dificilmente a iniciativa vai andar. Mais por essas circunstâncias do que por qualquer razão formal ou jurídica. Afinal, estamos cansados de saber que não é preciso base legal para aprovar um impeachment – basta um estado de espírito político.

Esse estado de espírito, apesar da escalada de absurdos na narrativa bolsonariana, ainda não se configurou – o que não quer dizer que não virá. Depende essencialmente de dois fatores:

1. A perda, mais acelerada do que já se registra, da popularidade presidencial. Muitos acreditam que Bolsonaro capricha no discurso do atraso e da intolerância para manter unida sua base mais radical. A questão é saber a que tamanho esse núcleo chegará. Nas últimas pesquisas, apesar da sangria, ainda tinha 30%. Dificilmente, porém, este será o piso de Bolsonaro, e é possível que o desgaste se acelere depois da última rodada de afirmações absurdas. Presidentes impopulares, em ponto de impeachment, não costumam ter mais de 10% de aprovação. Nessa hora, o establishment político debanda e começa a articular o futuro.

2. A reação da economia. Se a promessa de que a reforma da Previdência trará investimentos, empregos e retomada do crescimento não se concretizar nos próximos meses – o que é difícil; não restará discurso ao establishment econômico. PIB e empresariado toleram Bolsonaro por causa da agenda liberal de Paulo Guedes. Se esta se esvaziar, ou se mostrar ineficaz, as elites econômicas se juntam ao andar de baixo e apoiam o impeachment.

Só que nada disso é para já. Aconselha-se aos passageiros da jamanta que se segurem na boléia porque a descida está apenas começando.

Hora de acordar

Se há algo que deve nos preocupar não é exatamente o que faz o sr. Bolsonaro, mas o que nós não fazemos
Vladimir Safatle 

Prezado Jair,

A disputa eleitoral acabou, presidente. É hora de seguir adiante

Escrevi-lhe uma carta aberta às vésperas da eleição para dizer que torcia pelo sucesso do seu governo e pedir que pensasse no comportamento dos seus filhos, na questão dos direitos humanos e do meio ambiente, desse apoio à Lava-Jato, não fosse tão boquirroto. Santa ingenuidade! O senhor, pelo visto, não leu O GLOBO aquele dia — ou leu e achou que se tratava de psicologia reversa.


As frases infelizes continuaram, e seguem num crescendo. Os “paraíbas” que o digam. E as mulheres (“Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”. E os que estão abaixo da linha da pobreza (“Fome no Brasil é uma grande mentira"). E os que acreditavam numa nova forma de fazer política (“Vou privilegiar filho meu sim"). Até esta nova carta ser postada, sabe-se lá quantos novos despautérios terão sido ditos.

Presidente, não é preciso ir aonde vivem os “paraíbas” para ver que há fome no país. No Rio de Janeiro, seu domicílio eleitoral, o que não falta são cidadãos vivendo sob marquises e viadutos, revirando lixeira atrás de comida. Não daria para matar, em sete meses, a fome dos brasileiros que o PT em 13 anos não tirou da miséria (o partido desviou bilhões que poderiam servir para isto). A fome existe e continuará aí se a corrupção for apenas substituída pela incompetência.

A expectativa das privatizações e da aprovação das reformas já teve efeitos positivos. Mas isso aconteceu apesar do senhor, não por sua causa. Enquanto a equipe econômica faz o dever de casa e o Congresso se articula, o senhor e os seus filhos provocam quase uma crise política por dia. Foram criados 408 mil empregos formais no primeiro semestre. Imagine se não houvesse ninguém atrapalhando...

“O Brasil não pode ser um país do mundo gay, do turismo gay. Temos famílias." Miami atrai mais turistas que o Brasil inteiro, presidente. E lá não tem Chapada Diamantina, Lençóis Maranhenses, barroco mineiro, carnaval, Parintins. Liberar o visto foi um bom começo, mas não dispomos de infraestrutura nem segurança; voar aqui é caro, os portos são ruins, os parques nacionais são para os abnegados. Na Espanha, o turismo responde por quase 15% do PIB. Abandone essa obsessão pelos gays por um minuto: estamos falando de empregos, de renda.

O problema da Amazônia não está no Inpe, que só coleta os dados do desmatamento. Está em quem desmata, depreda, degrada. O desmanche da política ambiental será um legado macabro para o próximo governo e as gerações futuras. Desenvolvimento sustentável não interessa apenas aos “veganos que comem só vegetais”. Ou o senhor crê que os carnívoros vivam num planeta à parte?

A censura acabou faz tempo, e vem o senhor falar em colocar “filtro” na Ancine, ou extingui-la. O cinema é uma indústria poderosa (lucro global de U$ 96,8 bilhões em 2018). Peça ao embaixador Zero3 para se informar com o Trump a respeito do que essa atividade faz pela cultura e pela economia dos Estados Unidos. E deixe a censura na cova onde ela estava enterrada desde o fim da ditadura.

Autoridades dos três Poderes tiveram seus celulares invadidos, e essa vulnerabilidade não o preocupa (“Não tem nada que comprometa. (...) Perderam tempo comigo”). Há mais uma chacina no sistema prisional e sua reação é “Pergunta para as vítimas dos que morreram lá”. E ainda tripudia e mente sobre um desaparecido político e uma jornalista torturada.

A disputa eleitoral acabou, presidente. É hora de seguir adiante. Entretanto, em vez de cauterizar a ferida aberta pela polarização ideológica, o senhor se empenha em infectá-la.

Lula não inventou a corrupção nem Dilma, o ridículo. Tampouco é sua a invenção da falta de compostura, civilidade e empatia. Mas é preciso que se dê conta de que governa o Brasil, não a Bolsolândia. Que 57 milhões de brasileiros o escolheram porque queriam no poder um “homem comum”, com aqueles princípios morais tão escassos nos governos anteriores. E estes sete meses não fizeram jus a essa esperança.

O sentimento anti-PT ajudou a elegê-lo. A repulsa ao seu comportamento pode trazer o passado de volta. O senhor tem até outubro de 2022 para começar a se portar como um presidente. Não espere chegar lá para refrear esse falastrão descontrolado. Pode ser tarde demais.

Doente de Brasil

Jair Bolsonaro é um perverso. Não um louco, nomeação injusta (e preconceituosa) com os efetivamente loucos, grande parte deles incapaz de produzir mal a um outro. O presidente do Brasil é perverso, um tipo de gente que só mantém os dentes (temporariamente, pelo menos) longe de quem é do seu sangue ou de quem abana o rabo para as suas ideias. Enquanto estiver abanando o rabo – se parar, será também mastigado. Um tipo de gente sem limites, que não se preocupa em colocar outras pessoas em risco de morte, mesmo que sejam funcionários públicos a serviço do Estado, como os fiscais do IBAMA, nem se importa em mentir descaradamente sobre os números produzidos pelas próprias instituições governamentais desde que isso lhe convenha, como tem feito com as estatísticas alarmantes do desmatamento da Amazônia. O Brasil está nas mãos deste perverso, que reúne ao seu redor outros perversos e alguns oportunistas. Submetidos a um cotidiano dominado pela autoverdade, fenômeno que converte a verdade numa escolha pessoal, e portanto destrói a possibilidade da verdade, os brasileiros têm adoecido. Adoecimento mental, que resulta também em queda de imunidade e sintomas físicos, já que o corpo é um só.

É desta ordem os relatos que tenho recolhido nos últimos meses junto a psicanalistas e psiquiatras, e também a médicos da clínica geral, medicina interna e cardiologia, onde as pessoas desembarcam queixando-se de taquicardia, tontura e falta de ar. Um destes médicos, cardiologista, confessou-se exausto, porque mais da metade da sua clínica, atualmente, corresponde a queixas sem relação com problemas do coração, o órgão, e, sim, com ansiedade extrema e/ou depressão. Está trabalhando mais, em consultas mais longas, e inseguro sobre como lidar com algo para o qual não se sente preparado.


O fenômeno começou a ser notado nos consultórios nos últimos anos de polarização política, que dividiu famílias, destruiu amizades e corroeu as relações em todos os espaços da vida, ao mesmo tempo em que a crise econômica se agravava, o desemprego aumentava e as condições de trabalho se deterioravam. Acirrou-se enormemente a partir da campanha eleitoral baseada no incitamento à violência produzida por Jair Bolsonaro em 2018. Com um presidente que, desde janeiro, governa a partir da administração do ódio, não dá sinais de arrefecer. Pelo contrário. A percepção é de crescimento do número de pessoas que se dizem “doentes”, sem saber como buscar a cura.

Vou insistir, mais uma vez, neste espaço, que precisamos chamar as coisas pelo nome. Não apenas porque é o mais correto a fazer, mas porque essa é uma forma de resistir ao adoecimento. Não é do “jogo democrático” ter um homem como Jair Bolsonaro na presidência. Tanto como não havia “normalidade” alguma em ter Adolf Hitler no comando da Alemanha. Não dá para tratar o que vivemos como algo que pode ser apenas gerido, porque não há como gerir a perversão. Ou o que mais precisa ser feito ou dito por Bolsonaro para perceber que não há gestão possível de um perverso no poder? Bolsonaro não é “autêntico”. Bolsonaro é um mentiroso.

Podemos – e devemos – discutir como chegamos a ter um presidente que usa, como estratégia, a guerra contra todos que não são ele mesmo e o seu clã. Como chegamos a ter um presidente que mente sistematicamente sobre tudo. Podemos – e devemos discutir – como chegamos a ter um antipresidente. Assim como podemos – e devemos – perceber que a experiência brasileira está inserida num fenômeno global, que se reproduz, com particularidades próprias, em diferentes países.

Esse esforço de entendimento do processo, de interpretação dos fatos e de produção de memória é insubstituível. Mas é necessário também responder ao que está nos adoecendo agora, antes que nos mate.

Em 10 de julho, o psiquiatra Fernando Tenório escreveu um post no Facebook que viralizou e foi replicado em vários grupos de Whatsapp. Aqui, um trecho: “Acabei de atender a um homem de 45 anos, negro, sem escolaridade. Nos últimos cinco anos, viu seus colegas de setor serem demitidos um a um e ele passou a acumular as funções de todos. Disse-me que nem reclamou por medo de ser o próximo da fila. Tem sintomas de esgotamento que descambam para ansiedade. Qual o diagnóstico para isso? Brasil. Adoeceu de Brasil. Se eu tivesse algum poder iria sugerir ao DSM (o manual de transtornos mentais da psiquiatria) esse novo diagnóstico. Adoecer de Brasil é a mais prevalente das doenças. Entrei agora na Internet e vi que a reforma da previdência corre para ser aprovada sem sustos. O povo, adoecido de Brasil, permanece inerte. Vai trabalhar sem direito a aposentadoria até morrer de Brasil”.


Alagoano da pequena Maribondo, Fernando Tenório fez residência e atuou na rede pública de saúde mental do Rio de Janeiro. Atualmente, mantém consultório na capital fluminense e atende trabalhadores de um sindicato do setor hoteleiro. O psiquiatra me conta, por telefone, que cresceu muito o número de pessoas que chegavam ao seu consultório com sintomas como taquicardia, desmaios na rua, sinais de esgotamento corporal, dores de cabeça frequentes, sentimentos depressivos. Eram pessoas que estavam objetiva e subjetivamente esgotadas pela precarização das condições de trabalho, como jornada excessiva, acúmulo de funções, metas impossíveis de cumprir, falta de perspectivas de mudança, insegurança extrema. Tinham um “trabalho de merda” e, ao mesmo tempo, medo de perder o “trabalho de merda”, como testemunharam acontecer com vários colegas.

O psiquiatra diz que ele mesmo se descobriu adoecido meses atrás. “Fiquei muito mal, porque me senti quase um traficante de drogas legais. Estava tratando uma crise, que é social, no indivíduo. E, de certo modo, ao dar medicamentos, estava tornando essa pessoa apta a sofrer mais, porque a jogava de volta ao trabalho.” Na sua avaliação, o adoecimento está relacionado à precarização do mundo do trabalho nos últimos anos, acentuada pela reforma trabalhista aprovada em 2017, e foi agravado com a ascensão de um governo “que declarou guerra ao seu povo”. “O Brasil hoje é tóxico”, afirma.

Após a publicação do post, Tenório sentiu ainda mais o nível da toxicidade cotidiana do país: recebeu xingamentos e ameaças. Um dos agressores lembrou que sua filha, cuja foto viu em uma rede social, um dia poderia ser estuprada. A menina é um bebê de menos de 2 anos.

“Tóxico” é palavra de uso frequente de brasileiros ao relatarem o sentimento de viver em um país onde já não conseguem respirar. Na constatação de que o governo Bolsonaro já aprovou 290 agrotóxicos em apenas sete meses, o envenenamento ganha uma outra camada. É como se os corpos fossem um objeto atacado por todos os lados. País que ultrapassou a possibilidade das metáforas, a toxicidade do Brasil abrange todas as acepções.

Mas que adoecimento é este que Tenório chama de “doente de Brasil”? Um psicanalista que prefere não se identificar por temer represálias explica que aumentou muito nos consultórios os quadros depressivos provocados pelo momento vivido pelo Brasil, em que especialmente pessoas ligadas à esquerda, mas não necessariamente ao PT, sentem uma total perda de sentido e horizonte. “Para a psiquiatria, a depressão é a tristeza sem contexto. Ou seja, ela é relacionada à estrutura psíquica de cada pessoa, às fundações e alicerces construídos na infância”, explica. “O que temos vivido hoje nos consultórios é o aumento da depressão com contexto, esta que não tem a ver com a estrutura do indivíduo e que nem vai melhorar no divã. Esta em que o uso de medicamentos só vai servir para obscurecer o esclarecimento das questões. Esta que só pode ser sanada por mudanças sociais.”

O rompimento dos laços, como a divisão das famílias provocada pela polarização política, tornou as pessoas ainda mais sujeitas ao adoecimento mental e com menos ferramentas para lidar com ele. Como disse um filósofo, ninguém deixa de dormir porque está tendo uma guerra no outro lado do mundo, com exceção daqueles que vivem a guerra. Com isso, ele queria dizer que as pessoas perdiam o sono muito mais por pequenas dores e preocupações comezinhas com as quais se identificavam, como as relacionadas à família e ao mundo dos afetos, do que por enormes barbáries que ocorriam no outro lado do mundo.

O que os brasileiros testemunharam foi uma inversão: a política, que sempre foi algo do campo público, invadiu o campo privado, passando a ser um fator íntimo, um fator primeiro de identificação. Dias atrás uma amiga presenciou uma conversa em que duas garotas decidiam quais os critérios para dividir apartamento com uma outra. “Não suportaria dividir com uma petista”, disse uma delas. Essa conversa, exceto no caso de militantes mais radicais, dificilmente aconteceria anos atrás: ninguém costumava perguntar qual era a orientação política antes de dividir a casa com alguém.

A eleição, que costumava ser um acontecimento pontual, da esfera pública, tornou-se algo crucial na esfera privada. Do mesmo modo, o inverso também aconteceu. Questões íntimas, como a orientação sexual de cada um, como o que acontece na cama de cada um, passaram a ser discutidas publicamente. Esse fenômeno atingiu fortemente laços que cada um considerava incondicionais, como os familiares, laços com os quais se contava para enfrentar a dureza da vida. E acentuou ainda mais os quadros depressivos e persecutórios, aumentando ansiedade e angústia, corroendo a saúde.
O sofrimento é agravado pela constatação de que as instituições não barram a violência do governo e do governante
Uma psicanalista de São Paulo, que também prefere não se identificar, acredita que o adoecimento do Brasil de 2019 expressa a radicalização da impotência. As pessoas, hoje, não sabem como reagir à quebra do pacto civilizatório representada pela eleição de uma figura violenta como Bolsonaro, que não só prega a violência como violenta a população todos os dias, seja por atos, seja por aliar-se a grupos criminosos, como faz com desmatadores e grileiros na Amazônia, seja por mentir compulsivamente. Não sabem, também, como parar essa força que as atropela e esmaga. Sentem como se aquilo que as está atacando fosse “imparável”, porque percebem que já não podem contar com as instituições – constatação gravíssima para a vida em sociedade. E então passam a sentir-se como reféns – e, seguidamente, a atuar como reféns.

“Como reagimos à violência de alguém como Bolsonaro, que faz e diz o que quer, sem que seja impedido pelas instituições?”, questiona. “Toda a nossa experiência dá conta de que a vida em sociedade é regulada por instâncias que vão determinar o que pode e o que não pode, que têm o poder de impedir a quebra do pacto civilizatório, este pacto que permite que a gente possa conviver. Nesta experiência de que há um regulador, se uma pessoa é racista, ela vai ser processada – e não virar presidente do país. O que vivemos agora, com Bolsonaro, é a quebra de qualquer regulação. E isso tem um enorme impacto sobre a vida subjetiva. Ninguém sabe como reagir a isso, como viver numa realidade em que o presidente pode mentir e pode até mesmo inventar uma realidade que não corresponde aos fatos.”