domingo, 8 de janeiro de 2023

Pensamento do Dia

 


O "eu" sempre isolará o "nós"

Inquietavam-se as terras do oeste sob os efeitos da metamorfose incipiente. Os estados ocidentais estavam intranquilos como cavalos antes de temporal. Os grandes proprietários inquietavam-se, pressentindo a metamorfose e sem atinar com a sua natureza. Os grandes proprietários atacavam o que lhes ficava mais próximo: o governo de poder crescente, a unidade trabalhista cada vez mais firme; atacavam os novos impostos e os novos planos, ignorando que tudo isto era efeito, e não causa. As causas escondiam-se bem no fundo e eram simples — as causas eram a fome, a barriga vazia, multiplicada por milhões; fome na alma, fome de um pouco de prazer e de um pouco de tranquilidade, multiplicada por milhões; músculos e cérebros que queriam crescer, trabalhar, criar, multiplicados por milhões. A última função clara e definida do homem — músculos que querem trabalhar, cérebros que querem criar algo além da mera necessidade — isto é o homem. Construir um muro, construir uma casa, um dique, e pôr nesse muro, nessa casa, nesse dique algo do próprio homem, é retirar para o homem algo desse muro, dessa casa, desse dique; obter músculos fortes à força de movê-los, obter linhas e formas elegantes pela concepção. Porque o homem, ao contrário de qualquer coisa orgânica ou inorgânica do universo, cresce para além de seu trabalho, galga os degraus de suas próprias ideias, emerge acima de suas próprias realizações. É isto o que se pode dizer a respeito do homem. Quando teorias mudam e caem por terra, quando escolas filosóficas, quando caminhos estreitos e obscuros das concepções nacionais, religiosas, econômicas alargam-se e se desintegram, o homem se arrasta para diante, sempre para a frente, muitas vezes cheio de dores, muitas vezes pelo caminho errado. Tendo dado um passo à frente, pode voltar atrás, mas não mais que meio passo, nunca o passo todo que já deu. Isto se pode dizer do homem, dizer-se e saber-se. Isto se constata quando as bombas caem dos aviões negros sobre a praça do mercado, quando prisioneiros são tratados como porcos imundos, e os corpos esmagados se consomem imundos na poeira. Pode ser constatado desta forma. Não tivesse sido dado esse passo, não estivesse vivo no pensamento o desejo de avançar sempre, essas bombas jamais cairiam e nenhum pescoço seria jamais cortado. Tenha-se medo de quando as bombas não mais caem, enquanto os bombardeiros ainda existam, pois que cada bomba é uma demonstração de que o espírito não morreu ainda. E tenha-se medo de quando as greves cessam, enquanto os grandes proprietários estão vivos, pois cada greve vencida é uma prova de que um passo está sendo dado. E isto se pode saber — tenha-se medo da hora em que o homem não mais queira sofrer e morrer por um ideal, pois que esta é a qualidade básica da humanidade, é a que a distingue entre tudo no universo.

Catador de plásticos na Indonésia

Os estados ocidentais inquietavam-se sob os efeitos da metamorfose incipiente. Texas e Oklahoma, Kansas e Arkansas, Novo México, Arizona. Califórnia. Uma família isolada mudava-se de suas terras. O pai pedira dinheiro emprestado ao banco e agora o banco queria as terras. A companhia das terras — que é o banco, quando ocupa essas terras — quer tratores, em vez de pequenas famílias, nas terras. Um trator é mau? A força que produz os profundos sulcos na terra não presta? Se esse trator fosse nosso, não meu, nosso, prestaria. Se esse trator produzisse os sulcos em nossa própria terra, prestaria na certa. Não nas minhas terras, nas nossas. Então, sim, a gente gostaria do trator, gostaria dele como gostava das terras quando ainda eram nossas. Mas esse trator faz duas coisas diferentes: traça sulcos nas terras e expulsa-nos delas. Não há quase diferença entre esse trator e um tanque. Ambos expulsam os homens que lhes barram o caminho, intimidando-os, ferindo-os. Há que pensar sobre isto.

Um homem, uma família, expulsos de suas terras, esse veículo enferrujado arrastando-se e rangendo pela estrada rumo ao Oeste. Perdi as minhas terras; um trator, um só, arrebatou-as. Estou sozinho e apavorado. E uma família pernoita numa vala e outra família chega e as tendas surgem. Os dois homens acocoram-se no chão e as mulheres e as crianças escutam em silêncio. Aqui está o nó, ó tu que odeias as mudanças e temes as revoluções. Mantém esses dois homens apartados; faze com que eles se odeiem, receiem-se, desconfiem um do outro. Porque aí começa aquilo que tu temes. Aí é que está o germe do que te apavora. É o zigoto. Porque aí transforma-se o “Eu perdi minhas terras”; uma célula se rompe e dessa célula rompida brota aquilo que tu tanto odeias, o “Nós perdemos nossas terras”. Aí é que está o perigo, pois que dois homens nunca se sentem tão sozinhos e abatidos como um só. E desse primeiro “nós” nasce algo muito mais perigoso: “Eu tenho um pouco de comida” mais “Eu não tenho nenhuma”. Quando a solução desta soma é “Nós temos um pouco de comida”, aí a coisa toma um rumo, o movimento passa a ter um objetivo. Apenas uma pequena multiplicação, e esse trator, essas terras são nossas. Os dois homens acocorados numa vala, a pequena fogueira, a carne que se cozinha numa frigideira comum, as mulheres caladas, de olhos vidrados; atrás delas as crianças, escutando com o coração palavras que seu cérebro não abrange. A noite desce. A criança sente frio. Aqui, tome esse cobertor. É de lã. Pertenceu à minha mãe — tome, fique com ele para a criança. Sim, é aí que tu deves lançar a tua bomba. É este o começo da passagem do “Eu” para o “Nós”.

Se tu, que tens tudo que os outros precisam ter, puderes compreender isto, saberás também defender-te. Se tu souberes separar causas de efeitos, se tu souberes que Paine, Marx, Jefferson, Lenin foram efeitos e não causas, sobreviverás. Mas tu não poderás compreender. Pois que a qualidade da posse cristalizou-se para sempre na fórmula do “Eu” e sempre te isolarás do “Nós”.
Os estados ocidentais inquietam-se sob os efeitos da metamorfose incipiente. A necessidade é um estimulante do ideal, o ideal, o estímulo para a ação. Meio milhão de homens caminha pelas estradas; um milhão mais prepara-se para a caminhada; dez milhões mais sentem as primeiras inquietudes.
E tratores abrem sulcos múltiplos nas terras abandonadas.
John Steinbeck, "As vinhas da ira"

Ora, direis, ouvir óvnis

O governo Lula dispõe-se a desarmar corpos e espíritos. O problema é saber qual a realidade visada, se a real-histórica ou a paralela. Um lance pertinente: na última sexta-feira de 2022, hasteou-se a bandeira a meio-pau no QG de Brasília, em homenagem a Pelé. Lá fora, para os acampados, era o sinal do golpe imaginado. Seguiu-se uma profusão de louvações aos céus e, frente aos vídeos, um homem corpulento bradava "perdeu, mané".

Na realidade paralela, o perdedor transformava-se em vitorioso. No real-histórico, naquela mesma hora, o verdadeiro derrotado já estava a bordo de um avião militar rumo à Flórida. A sequência de eventos é miúda, mas tem carga simbólica. Primeiro, a fuga patética do mandatário pela lateral do palácio, sem aviso público. Depois, Orlando constava como destinação real, mas no imaginário coletivo era mesmo a Disney, o Shangri-la pequeno burguês que o ex-ministro da economia achava incompatível com empregadas domésticas. O desgoverno fantasioso de verdade dava lugar aos parques temáticos da fantasia.


É natural que a descrição dessa passagem de poder oscile entre referências realistas e imaginárias. Estas últimas sempre estiveram e continuam ativas na realidade construída pela rede fechada de desinformação do extremismo, em que a sociedade se desenha como uma Babel de caos e perdição. Não se desarma de um dia para outro uma máquina de destruição do sentido da história e do senso comum, em que o verossímil parece abduzido por aliens. Sobre a transmissão do cargo, disse uma manifestante: "Essas imagens da posse de Lula são montagens da mídia, recuso-me a acreditar".

Em 1975, avaliando a Revolução dos Cravos, Jean-Paul Sartre observou que alguns jornais portugueses ainda não haviam percebido que "acabou a ditadura e querem continuar imbecilizando o povo". Entre nós, ao contrário, a imprensa corporativa dignificou a informação, em confronto com um setor da esfera digital, ávida por monetização de conteúdos a qualquer preço moral. Nesta, ex-mandatário ainda manda.

Esse setor da rede eletrônica constitui-se hoje como intelectual orgânico coletivo de facções extremistas. Como rede e público são culturalmente a mesma coisa, os dispositivos imbecilizam ao mesmo tempo em que são imbecilizados. Em termos hermenêuticos, a expressão "perdeu, mané" é um vigoroso corte real, de fundo psicanalítico. É imperativo aplicá-la com rigor de lei às retropias do terror doméstico que, de tão familiares, na risonha avaliação do novo ministro da Defesa, poderiam "esvair-se". No entanto, persistem. Enquanto isso, na frente do QG, acampam cachorros de rua atraídos por lixo e resquícios de churrasco. Estes não darão ouvidos a ovnis.

Lula 3, o começo

‘Bom dia, democracia. Como é lindo o teu rosto (...)’, postou no 2 de janeiro o imortal da Academia Brasileira de Letras Marco Lucchesi, recém-nomeado presidente da Biblioteca Nacional. Difícil achar palavras mais gostosas para o arrastão de alegria vivenciado pelo Brasil no festão da posse do presidente Lula. Deu até vontade de responder, em voz alta, “Bom dia”, e sorrir. Ninguém, nada, conseguirá apagar da História nacional o radioso domingo inaugural do terceiro mandato presidencial de Lula. Foi o Brasil subindo a ladeira — no caso, a rampa do Palácio do Planalto. Correu mundo a imagem do casal presidencial e vice ladeados por um cacique (o grande Raoni, de 90 anos), um artesão, um professor, um metalúrgico, um ativista de inclusão, uma catadora, um menino da periferia, uma cozinheira e a cadela vira-lata Resistência, tudo junto e misturado, com um mar de povo alegre ao fundo. O Brasil existe, diria dias depois o jurista Silvio Almeida, em seu apaixonado discurso de posse como ministro dos Direitos Humanos.


“Estamos tão habituados à velha antinomia entre razão e paixão, entre espírito e vida, que quase nos assustamos com a ideia de um pensar com paixão — quando o pensamento e o viver pleno se fundem”, escreveu Hannah Arendt mais de meio século atrás. Sim, a alegria coletiva assusta, a autenticidade e a diversidade individual assustam, a realidade e a bagunça democrática assustam quem está impregnado de preconceitos. O medo aprisiona e levou a veterana colunista Anna Marina, do Estado de Minas (cujo caderno de cultura, Pensar, é um dos melhores da imprensa brasileira), a se sentir ofendida com o que viu na TV: “Podemos ter índios, pretos e estropiados compondo nosso povo, mas colocar essa seleção na cara da nação me pareceu uma forçada de mão. Essa gente responsável por representar o novo poder me causou péssima impressão”. O jornal que publica a coluna diária de Anna Marina há décadas é o mais influente de Minas Gerais, estado que, por sua vez, tem o terceiro maior colégio eleitoral do país. A visão racista do “dessa gente” nada tem de excepcional, apenas não costuma ser explicitada de forma tão direta nos jornais.

O Brasil que gostaria de não ter povo, ou aquele para quem o povo deveria ter a gentileza de permanecer invisível, não deixou de existir com a vitória de Lula. Está apenas se recompondo do baque eleitoral.

Para alguns, nem isso. Basta entrar no perfil de Jair Bolsonaro no Twitter. Naquele espaço virtual, onde o ex-mandatário tem 10,8 milhões de seguidores, ele continua a se apresentar como “Capitão Paraquedista do Exército Brasileiro. Presidente da República Federativa do Brasil. Candidato à reeleição com o número 22”. É o negacionismo de fachada, no qual nem ele acredita, mas lhe é indispensável para ganhar tempo. Acovardado em Orlando na casa de um casal brasileiro fraudador do Auxílio Emergencial, Jair mantém no seu perfil virtual um endereço fictício: “Brasília, Brasil”. Em realidade, demonstra pouco apetite para retornar à pátria tão falsamente invocada ao longo de quatro anos. Aqui, mais cedo ou mais tarde, e com desfecho imprevisível, ele tem encontro marcado com a Justiça. Não só ele, como sua prole. Por via das dúvidas, entre o primeiro e o segundo turnos, o primogênito, senador Flávio Bolsonaro, e seu irmão Eduardo, deputado federal, já encaminharam a papelada de requerimento da cidadania italiana.

Enquanto isso, a Brasília oficial vai virando uma colorida nova capital do poder nacional, com vestidos, batas, cocares, terninhos e pantalonas convivendo entre ternos e gravatas. Se o núcleo político do governo anterior abrigava 38% de militares (sendo um da ativa), entre os 37 integrantes do primeiro escalão de Lula os militares representam apenas 2%. Por si só, o refluxo para algum porão brasiliense do general da reserva Augusto Heleno já torna o Palácio do Planalto mais arejado. Os novos ocupantes da casa nem sequer pretenderam confiar no apego à democracia do Gabinete de Segurança Institucional chefiado por ele. Dispensaram seus serviços antes mesmo de serem empossados.

Na manhã de sexta-feira, sentado na cabeceira de uma mesa cujo tamanho Vladimir Putin apreciaria, Lula reuniu toda a banda de seu primeiro escalão e as lideranças do seu governo no Congresso.

— Este será o mandato de minha vida — voltou a dizer, refraseando o que já dissera durante a campanha.

Veterano no cargo, desta vez está determinado a errar o mínimo possível. Como primeiro incêndio a apagar está a nomeação, por indicação do União Brasil, de Daniela Carneiro para a pasta do Turismo.

Sob qualquer ângulo que se olhe, ela introduz na cúpula do poder federal, direta ou indiretamente, o veneno miliciano da Baixada Fluminense. O risco é alto. Qualquer decisão será difícil de tomar logo nos primeiros dias de mandato. É Lula 3, o começo. Bom dia, democracia.

Analfabetos, vocês existem e são valiosos

Os discursos de posse dos novos ministros mostraram uma mudança nunca antes vista na politica nacional. Em todas áreas, mostram que viramos uma página. Saímos do obscurantismo para o respeito à ciência, da insensibilidade social para o comprimisso com os pobres, do descuido com o meio ambiente para a defesa da natureza, dos sonhos autoritários à participação democrática, da anti-cultura ao prestígio dos artistas, do desprezo à educação ao educacionismo explícito, do isolamento internacional à presença no mundo.

Cada um e cada uma dos ministros e ministras, sem exceção demonstraram uma visão de mundo diferente do atraso que prevaleceu nos últimos quatro anos. Com o Ministro Silvio Almeida ficou claro que os direitos humanos voltaram a ser preocupação nacional: saímos do esquecimento para a valorização de cada grupo “minoritário”.


No seu discurso de posse, o ministro citou cada grupo social que existe e precisa ser atendido com os respectivos direitos humanos que lhes são privados.

Talvez sem perceber, ao citar cada um deles, esqueceu o grupo que, de tão excluido, nem é considerado privado de direito humano. Brasil esquece que os mais de milhões de seus adultos analfabetos são privados do direito humano fundamental de saber ler seu idioma. Falamos “tortura nunca mais”, como se cada um destes dez milhões não fosse torturado cada minuto em que está acordado: não é capaz de ler o nome do filho, escrever uma carta à mãe, saber qual remédio está tomando ou dando a uma parente, nem mesmo se a bandeira em frente é do seu país. O analfabetismo não é visto como um chicote açoitando permanentemente dentro do cérebro de quem não pode se orientar porque não sabe ler. O analfabeto é um escravo que desde 1988 foi solto, mas até hoje não foi liberto, tem o direito de andar, mas não de se orientar no caminho.

Esta é uma das causas da permanência do analfabetismo, 130 anos depois da proclamação da república: além do abandono da educação das crianças para manter cavada a “última trincheira da escravidão”, o analfabetismo de adultos não é tratado como uma questão de direitos humanos. Considera-se fazer leis necessárias para cuidar das mulheres, dos negros, dos povos originários, dos LGBTQIA+, dos presos. mas não dos analfabetos. O ministro Silvio Almeida tem todas qualidades para tratar o analfabetismo como negação de direito humano fundamental, porque os analfabetos existem e são valiosos.

O Brasil precisa entender que tratar o assunto do analfabetismo como questão apenas de educação, é como considerar a tortura como questão apenas da saúde do torturado. É preciso cuidar dos ferimentos das vítimas da tortura, mas também termos leis que eliminem tortura no futuro. Da mesma forma, é preciso ensinar a ler cada um dos analfabetos adultos, como se fossem vítimas da tortura de viver sem saber ler, e também garantir que todas crianças aprendam a ler na idade certa, porque este é um direito humano fundamental.