sexta-feira, 27 de março de 2020

Relaxamento de medidas sanitárias pode levar Brasil ao colapso

Não demorou para que a falsa escolha entre a saúde e a economia chegasse ao Brasil. Após ter sido ventilada por Donald Trump há poucos dias, o presidente brasileiro e parte de sua cúpula de irresponsáveis não tardou a vir a público para fazer aquela que talvez tenha sido a sua pior aparição – e isso não é coisa pouca. Quando vi Bolsonaro discursar na ONU, escrevi para a Época artigo intitulado “O Espetáculo Brutal da Nulidade Absoluta”. O que o Brasil assistiu na última terça-feira foi o espetáculo brutal da nulidade absoluta elevado à undécima potência e amparado por uma pequena parte do empresariado brasileiro que não percebeu o que acontece quando se chafurda na ignorância e na desumanidade.

Tenho escrito e falado muito sobre a doença, as medidas sanitárias, seus efeitos na economia e as políticas para atenuar esses efeitos. Em artigo para O Estado de São Paulo publicado em 18 de março, elenquei todas as medidas emergenciais que o governo precisa tomar para ontem. As medidas contemplam R$ 50 bilhões para o SUS, o aumento de 50% para o valor do benefício do Bolsa Família, além da ampliação do programa, a destinação de R$ 30 bilhões para as micro e pequenas empresas que não têm acesso aos bancos públicos, a criação de uma renda básica emergencial no valor de R$ 500 a ser dada por 12 meses para os 36 milhões de brasileiros vulneráveis desassistidos registrados no Cadastro Único. Também incluí medidas de médio prazo – a crise é de longa duração –, como o crédito do BNDES para permitir a reconversão industrial, isto é, que fábricas possam se voltar para a produção de equipamentos médicos, além da inversão da pirâmide tributária brasileira. Invertê-la significa tributar rendas altas e patrimônios progressivamente, desonerando o consumo e a produção.


Após ter discutido publicamente e veiculado essas ideias, um consenso se formou entre os economistas mais ponderados do país. Mas o presidente optou por bater cabeça no lugar de cumprir o seu dever. Na verdade, optou por contrapor saúde e economia. As medidas sanitárias têm um custo econômico, sim. Por isso o governo deve pensar em uma agenda como a que propus. Mas, o relaxamento das medidas sanitárias no momento em que a epidemia começa a chegar com força no Brasil é ainda mais devastador para as vidas que serão perdidas e, evidentemente, para a economia.

Não é difícil enxergar como isso acontece. O Brasil tem uma população de 209 milhões. Sem as medidas sanitárias, os modelos epidemiológicos sugerem que a população contaminada pode chegar a 50% ou 60%. Estamos falando, portanto, de mais de 100 milhões de pessoas ao longo de algumas semanas. Dessas mais de 100 milhões de pessoas, dados de estudos científicos mostram que cerca de 20% precisarão de hospitalização. Logo, estamos falando de mais de 20 milhões de pessoas hospitalizadas quase ao mesmo tempo, algumas com quadros gravíssimos de insuficiência respiratória. Ou seja, podemos ter 10% ou mais da população potencialmente internada em um espaço curtíssimo de tempo. Contudo, não estarão, realmente, internadas, não é mesmo? O sistema de saúde brasileiro não tem capacidade para tanto – nenhum sistema de saúde em qualquer parte do mundo tem.

O que ocorreria? De início, haveria pânico no país, com o sistema de saúde em colapso total. Desse quadro não é difícil extrapolar a desintegração social em meio a motins, saques e todo o tipo de desordem. O sistema político entraria em falência. A economia morreria de insuficiência respiratória aguda em meio ao caos instalado. Se alguém acha que isso é cenário de filme, boa hora é para lembrar que a arte imita a vida, e não o contrário.

Bolsonaro trata a doença como “uma gripezinha”. Para muita gente, ela já se manifesta ou haverá de se manifestar desse modo. Mas para muita, muita gente o quadro será mais grave e as mortes se amontoarão. Não se escolhe entre a saúde e a economia. Os estragos econômicos das medidas sanitárias, nós, economistas, sabemos resolver. Já reconstruímos economias após guerras e depressões econômicas. Já a derrocada de um país porque o presidente não aceita o que a natureza lhe impõe é desafio que não está à altura de ninguém.

Não há escolha a ser feita, pois a vida é soberana. Primeiro a vida, depois a economia.
Monica de Bolle

Coronavírus traz trevas, mas ensina

A expansão da pandemia de coronavírus traz milhares de más notícias todos os dias. São mortes e casos da doença crescentes, com situações calamitosas principalmente na Itália, Espanha e agora nos EUA. Além da perda de vidas, os sistemas de saúde entraram em colapso em muitos lugares. A economia mundial terá seu pior desempenho desde a crise de 2008, na melhor das hipóteses produzindo uma grande recessão, e na pior, gerando uma depressão similar à da década de 1930. O Brasil não escapará dessa realidade, apesar de o presidente Bolsonaro dizer que teremos apenas uma “gripezinha”. É um período de trevas, mas do qual muitos ensinamentos podem surgir.

A crise atual tem uma multiplicidade de efeitos que a torna muito mais complexa do que qualquer outra depois da Segunda Guerra Mundial. Afetará não só a saúde, mas também a economia, a organização da sociedade, a política dentro dos países e as relações internacionais. Disso resulta a sensação de um cenário mundial sombrio.

No caso brasileiro, o problema é ainda maior não apenas por conta das nossas limitações de recursos e da enorme desigualdade social. No momento mais difícil do país em décadas, está no comando um timoneiro que pode ser caracterizado, tranquilamente, como o pior presidente da história do Brasil. Bolsonaro tem todos os predicados indesejáveis para enfrentar a crise atual: político radical que vive da polarização e não do diálogo, inimigo da ciência, da imprensa e de qualquer visão diferente da dele, além de não ter equilíbrio emocional para o posto que ocupa. O pior de tudo é que não consegue organizar e coordenar seu governo, inclusive muitas vezes atrapalhando seus ministros. É este o líder de que precisaríamos agora?

O cenário apresentado é muito difícil e desalentador. No entanto, o tamanho e a complexidade da crise estão trazendo grandes ensinamentos ao mundo. Não é possível dizer que todos aprenderão tais lições, porém, as pressões vindas da realidade serão muito fortes. Há quatro questões que exemplificam bem como a pandemia do coronavírus é elucidativa sobre a necessidade de se mudar a visão dominante.

O primeiro ensinamento advindo dessa crise diz respeito à importância do Estado no século XXI. Obviamente que os governos não são capazes de resolver sozinhos todos os problemas coletivos, precisando criar formas de coordenar suas ações junto à sociedade, ao mercado, aos especialistas e aos organismos internacionais.

Também não é desejável que o aparelho estatal seja gigantesco e defina todo o raio de ação dos indivíduos, pois essa postura o torna, ao mesmo tempo, ineficiente e incontrolável. Todavia, o aumento da complexidade dos problemas no mundo contemporâneo torna necessária a existência de uma organização legítima e qualificada para liderar a esfera pública: o Estado, ressuscitado pelo coronavírus.

Problemas ambientais, efeitos perversos da revolução tecnológica, epidemias, envelhecimento da população e diversas formas antigas e novas de desigualdade são temáticas que não serão resolvidas por uma visão estreita de liberalismo econômico, ainda mais se ela vier acompanhada pela falta de liberalismo político. Nada substituirá o Estado no curto ou médio prazo no campo da ação coletiva. Sua ausência, como comprova a atual pandemia, resulta em algum tipo de distopia, ao estilo “Mad Max” ou “Blade Runner”.

Em linhas gerais, todas as nações precisam hoje de um Estado competente, aberto à participação social, capaz de atuar em rede com outros atores e que seja, concomitantemente, preventivo em relação aos problemas e adaptável a novas situações. É de uma estrutura pública como essa que o Brasil precisa hoje. O problema é que o governo Bolsonaro faz um discurso e tem uma prática que batem de frente com este modelo estatal. Sua descrença em relação aos especialistas e aos políticos, a dificuldade em dialogar e criar mecanismos de concertação social, a falta de visão de futuro, a desorganização governamental e, principalmente, uma liderança presidencial que se orienta pela manutenção do poder e não por projetos de políticas públicas resumem a engrenagem da atual gestão.

O Estado é extremamente necessário na criação das condições que viabilizam um desenvolvimento mais sustentável dos países, especialmente em setores como educação, saúde, meio ambiente e ciência e tecnologia. Esse é o segundo grande ensinamento trazido pela pandemia do coronavírus. Após a crise de 2008, os líderes mundiais, em sua imensa maioria, dividiram-se em dois tipos: os que acreditavam que a globalização econômica resolveria os problemas das nações e os que colocaram toda a sua fé num populismo nacionalista baseado em valores culturais conservadores. Obviamente que a segunda tendência é muito mais maléfica, mas ambas as visões ignoraram um fato básico: uma sociedade que garante o bem-estar de seus cidadãos depende de boas políticas públicas, especialmente aquelas que ampliam o estoque de capital individual e social para além da riqueza econômica.

Sem ignorar o efeito avassalador e sorrateiro do novo vírus, o fato é que o se vê hoje são países, incluindo aí os ricos, que não têm uma estrutura de saúde adequada para os desafios do século XXI. É inacreditável que uma nação que tem as melhores universidades do mundo, como os Estados Unidos, não consiga ter hospitais com cobertura decente para sua população. Mas os americanos não estão sós nesta história, dado que a Europa, berço do Estado de bem-estar social, mostrou-se muito mais vulnerável do que se imaginava. Outras epidemias virão, como também desastres naturais por conta da questão climática e desafios enormes para modificar a educação e os empregos frente às inovações da Quarta Revolução Industrial. Que lugar do mundo mais desenvolvido está efetivamente se preparando para o que vem pela frente? O coronavírus deixou o rei nu.

O governo Bolsonaro nos coloca a léguas de distância do que já está sendo insuficiente no mundo desenvolvido. Suas políticas educacionais, ambientais e para a ciência são desastrosas. Mesmo que o país cresça bem nos próximos três anos, o que parece cada vez mais distante, haverá uma perda enorme dos tipos de capital que realmente geram a riqueza e o bem-estar das nações. Afinal, quanto custa no longo prazo destruir a universidade e a pesquisa científica de uma nação? Será que a equipe do Paulo Guedes sabe fazer essa conta?

A condução da crise do coronavírus pelo ministro da Saúde pode ter gerado esperança em boa parte da população, até porque finalmente apareceu alguém que conhece políticas públicas e que não está preocupado em encontrar inimigos imaginários em guerras culturais. Sem tirar os méritos de Mandetta, sua eficácia tem mais a ver com o conhecimento acumulado pela coalizão sanitarista que criou o SUS.

Só que a racionalidade científica não pode imperar no governo Bolsonaro, de modo que o presidente sabota a política de seu próprio governo. A prova de fogo para o presidente, entretanto, se dará no tratamento médico da população e não nas redes sociais que o apoiam.

Desse ponto pode ser feito o gancho com o terceiro ensinamento da crise do coronavírus, muito valioso para o Brasil: a desigualdade se faz mais presente em enormes catástrofes naturais ou pandemias. A maneira como a doença se espalhar e afetar as periferias e favelas, bem como o tamanho e a efetividade das propostas econômicas do governo Bolsonaro para os mais pobres e informais, serão as duas peças-chave para avaliar o sucesso e a legitimidade do grupo governante. E não haverá como fazer a escolha por priorizar a saúde ou a economia, em nenhum lugar do planeta (“sorry, Trump”) e muito menos num país tão desigual como o nosso.

A conclusão dos ensinamentos oriundos da crise do coronavírus é a necessidade de melhorar profundamente a política contemporânea. É preciso ter, em primeiro lugar, maior coordenação entre as partes dos sistemas políticos e das esferas de governo. Os Estados Unidos e a Itália mostram o quão elevado é o custo em termos de vidas humanas derivado da descoordenação entre o governo nacional e os subnacionais. O Brasil pode caminhar pelo mesmo caminho se o presidente continuar apostando na guerra contra governadores e prefeitos. Cabe recordar aqui que o Ministério da Saúde fornece as diretrizes gerais e o financiamento de boa parte da política, mas quem executa são os Estados e os municípios, sendo eles, portanto, as principais peças desse quebra-cabeça federativo.

As lideranças políticas internacionais foram colocadas em xeque com a pandemia. E já não há mais lugar para os “outsiders” e suas ideias exóticas nesta crise, pois ficou claro que é necessário combinar expertise técnica, responsabilidade e capacidade de articulação, três elementos que não cabem na prática populista vigente. Para sair desse buraco, tão profundo quanto o da década de 1930, será necessário ter Roosevelts e Churchills, e não Trumps e Bolsonaros.

O coronavírus terá de ser enfrentado, com transparência, evidenciais científicas, planejamento, articulação com os principais atores políticos e sociais, solidariedade com os mais pobres e desapego em relação ao poder. Se prevalecer a irresponsabilidade e Bolsonaro deixar mais gente ser morta pela pandemia, ela irá enterrar o seu mandato.

'Fábrica' de pobres

O mesmo sistema de poder que fabrica a pobreza é o que declara guera sem quartel aos desesperados que gera
Eduardo Galeano, "O ensino do medo"

Bolsonaro queima suas caravelas e vai para o tudo ou nada

Esta semana marcou uma virada sem retorno na trajetória do presidente da República. De problema político, a provocar conflitos e a desatar crises entre os Poderes na esperança de destruir a democracia e instalar uma ditadura no seu lugar, Jair Messias Bolsonaro passou também à condição de um grave problema sanitário que ameaça à saúde dos brasileiros.

Os próximos serão dias dilacerantes com a elevação dos casos confirmados de coronavírus e do número de mortos. E os dias mais trágicos ainda não terão chegado. Calculam técnicos do Ministério da Saúde que o pico da primeira onda da pandemia só se dará daqui a quatro semanas, coincidindo com o pico de mais duas epidemias: influenza e dengue. Tempestade perfeita.

Os Estados Unidos são o novo epicentro do coronavírus no planeta, ultrapassando em número de infectados a China, a Itália e a Espanha. Em Nova Iorque, nas últimas 24 horas completadas ontem à noite, morreram mais de mil pessoas. Há pelo menos meio milhão de infectados nos países que costumam remeter seus dados oficiais à Organização Mundial da Saúde.

Jamais se saberá com exatidão quantos de fato foram contaminados e quantos perderam a vida. É assim nas pestes. Aqui, cientistas desconfiam que os números estejam sendo achatados, ou por deficiência dos sistemas de registro, ou por falta maior de conhecimento da doença, ou por razões ocultas que ainda não foram decifradas, mas que poderão vir a ser um dia.



Depois de estimular seus governados a circularem e se divertirem sem remorsos, o presidente populista de esquerda do México, uma espécie de Bolsonaro de lá, recuou assombrado e decretou a quarentena obrigatória. Menos mal, mas tarde. O prefeito de Milão admitiu que errou ao patrocinar uma campanha publicitária onde garantiu que sua cidade não se fecharia. Fechou-se.

Justamente agora, a Secretaria de Comunicação da presidência da República do Brasil, a mando dos filhos de Bolsonaro e com o seu aval, está prestes a lançar a campanha “O Brasil não pode parar”. Sentindo-se autorizados pelo presidente eleito com o voto de apenas 39% dos brasileiros, devotos do Mito marcam carreatas em apoio ao fim da quarentena bancada pelos governadores.

Em contraste, na França, onde o coronavírus matou 365 pessoas nas últimas 24 horas, o presidente Emmanuel Macron prorrogou o período de confinamento. O presidente Donald Trump, que havia dito que o confinamento no seu país só iria até a Páscoa, engoliu o que disse. Fez um acordo com o Congresso e gastará o equivalente a 6% do PIB para socorrer quem precisa.

Como perdeu o bonde da História por ignorância ou escolha pensada e repensada, Bolsonaro faz o contrário. Atrasa a liberação de recursos para os Estados, o anúncio de medidas para que não se esvaziem rapidamente os bolsos dos que vivem na economia informal, e sabota as providências tomadas em sentido contrário por seus próprios auxiliares, além de detratá-los.

Por toda parte, a azeitada máquina bolsonarista de distribuição de notícias faltas e de produção de eventos se move para acirrar os ânimos e dividir o país, jogando uma parte dele contra a outra. Não importa que a grande maioria dos brasileiros diga apoiar a quarentena. Quem sabe a maioria não se desmanchará quando souber que a quarentena não acabará tão cedo?

Além da tempestade, teríamos então o crime perfeito: deixa-se que os velhos morram (menor pressão sobre a Previdência). E os mais pobres (menor pressão sobre outros gastos). Devolvem-se os jovens ao trabalho. Com salários reprimidos, naturalmente. Salvam-se os que por sorte se salvaram ou por dispor de renda que pagou melhor atendimento. Seleção das espécies.

Do desprezo de Bolsonaro pela vida alheia, do seu absoluto despreparo para exercer a função que exerce, o país teve mais uma vergonhosa amostra quando ele afirmou ao rebater a suspeita de que a pandemia causará grande estrago: “O brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele.”

A Agência Brasileira de Inteligência, órgão do governo, preveniu a tempo Bolsonaro para o que estava por vir – ele não ligou ou não quis ligar ou começou a pensar sobre a vantagem que poderia retirar disso. A agência opera com vários cenários – o pior, de colapso total e rápido do sistema de saúde, da fome que possa matar os desassistidos, de saques e de convulsão social.

É tudo o que almejam Bolsonaro e os que compartilham dos mesmos propósitos. Esperam que em nome do restabelecimento da ordem possam, enfim, apelar para os militares. Dificilmente o Congresso aprovaria a decretação do Estado de Defesa ou do Estado de Sítio. Mas Bolsonaro e sua malta já se contentariam com sucessivas e localizadas operações de Garantia da Lei e da Ordem.

Realizadas por ordem expressa da Presidência da República, as missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ocorrem nos casos em que há o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem. O Exército é despachado para lugares que exijam sua presença por tempo determinado. Para os Bolsonaro já estaria de bom tamanho.

Em meio a uma epidemia do tamanho desta, que obriga o Congresso e a Justiça a funcionarem virtualmente, não se remove um presidente do cargo via processo de impeachment que é demorado. Os ex-presidentes Fernando Collor e Dilma Rousseff só caíram quando o povo foi para as ruas. Nem se quisesse, o povo agora iria. Panelaço faz barulho, mas não derruba presidente.

O que fazer com Bolsonaro que nem sob a pressão da farda renunciará? No passado, ele afrontou a farda ao planejar jogar bombas em quartéis. Afrontou ao cobrar o título de capitão em troca do seu afastamento do Exército por indisciplina e conduta antiética. Os generais fizeram cara feia, mas aceitaram a oferta. Resultado: hoje, batem continência para ele.

O desejo de Bolsonaro de ser promovido a ditador não será satisfeito pelas Forças Armadas. Não se conte, porém, com sua ajuda para que Bolsonaro peça o boné e vá para casa. Caberá aos civis de todas as cores que abominam as trevas desatarem esse nó.

Nada será como antes

A luta para conter a expansão da pandemia gerou alguns efeitos colaterais positivos. Como a disseminação do home office, o trabalho à distancia, que os americanos chamam de smart office. Porque é mesmo mais produtivo e dispensa espaço.

O Brasil precisou de uma pandemia para aceitar que o home office é mais inteligente, mais econômico e mais eficiente que o presencial, com tudo por escrito ou gravado. Trabalhando em ambientes informais, de short, de calcinha, ou até nu, estirado no sofá, onde estiver mais cômodo, usando o laptop, o celular ou o Skype para fazer o que tem que ser feito. Mas cuidado: o trabalho em casa exige mais (auto) disciplina e responsabilidade. E com crianças de férias fica complicado.
É uma grande mudança de conceito, antecipada há 20 anos por Domenico De Masi com seu “Ócio criativo”. Na economia digital não interessa mais “alugar uma pessoa” por oito horas diárias num imenso escritório caríssimo. O que importa é “comprar um serviço”, seja uma planilha de custos, a análise de um produto, um relatório sobre materiais, uma petição, o custo de uma obra, todos os infinitos trabalhos de escritório que podem ser feitos à distancia. É bom para patrões e empregados.

De Masi descobriu em suas pesquisas que na maioria dos escritórios e repartições na Itália toda a rotina de trabalhos podia ser feita até a hora do almoço. Depois, não havia mais nada a fazer, a não ser fofocar, inventar controles, e ralentar trabalhos. Seria muito melhor terminar seus deveres e passar a tarde em casa com a família, num ambiente acolhedor, com mais chances de ter boas ideias e resolver problemas. Com todo mundo ao alcance de um clique.

Certamente é melhor conviver com amigos de que você gosta do que com “o pessoal do escritório” que lhe é imposto, ter que ver todo dia a cara daquele chefe abominável, o que importa é trabalhar quando quiser, onde quiser, e entregar a tarefa bem feita. Os burocratas terão que ser reeducados. Os escritórios e repartições públicas estão com os dígitos contados.
Nelson Motta

Pensamento do Dia


Uma "gripezinha" que pode acabar derrubando Bolsonaro

Jair Messias Bolsonaro gosta de bater de frente. Essa é a sua natureza, e quem achava que a Presidência da República traria um pouco de sensatez e leveza no trato ao ex-militar se enganou. Isso voltou a ficar evidente em sua fala agressiva de terça-feira à noite e no acesso de fúria direcionado ao governador de São Paulo, João Doria.

Em vez de aproveitar a crise para se apresentar como estadista, Bolsonaro se deixa levar por escaramuças egocêntricas, das quais ele só pode sair perdedor.

Claro que se pode ter opiniões diferentes sobre quanto tempo o isolamento social por causa da epidemia de coronavírus deve durar. Essa questão é debatida em todo o mundo, o que é perfeitamente compreensível. Pois, em todo o mundo, a paralisação da atividade econômica vai lançar as economias numa crise, possivelmente numa recessão.

O Brasil não pode se permitir isso, diz Bolsonaro, e também empresários ligados a ele deram declarações semelhantes. E este é, de fato, um ponto que também deve ser considerado.

Decisivo, porém, é como se abre essa discussão. No caso de Bolsonaro, isso soa tão assustador como as declarações de um de seus apoiadores, o empresário do setor de gastronomia Junior Durski, para quem o Brasil não pode parar por causa de 5 mil ou 7 mil mortes.




Já Bolsonaro falou de uma "gripezinha", o que, mais uma vez, mostra o grau de empatia de que ele dispõe: zero. Pior ainda, parece não lhe fazer diferença alguma se ele ofende outras pessoas, como os parentes das mais de 50 vítimas que o novo coronavírus já deixou no Brasil.

Mas também na atual situação Bolsonaro é fiel a si mesmo. A diferença é que quando ele elogiou o torturador da ditadura, o coronel Ustra, poucos se incomodaram - a ditadura, afinal, já passou faz tempo. Quando ele atacou os indígenas brasileiros, isso também não incomodou quase ninguém - os índios, afinal, moram bem longe. Quilombolas ele também pode ironizar - afinal, quantas pessoas conhecem um quilombola? No caso do coronavírus, porém, tudo muda: ninguém quer correr o risco de infectar os próprios pais, que poderiam ter uma morte lenta e cheia de sofrimento.

Bolsonaro não entendeu isso. Na sua limitada visão de mundo militar, vítimas são parte do jogo, e o que interessa é o todo. Além disso, ele espera que todas as autoridades o obedeçam cegamente. A suposta carta branca aos seus ministros é só fachada. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, precisa defender as atitudes irresponsáveis de Bolsonaro - como as selfies com manifestantes em 15 de março ou a exigência de acabar com o isolamento social - mesmo sabendo que tudo isso está errado.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, é outro que se meteu numa situação desconfortável. Em vez de reduzir o endividamento do Estado e diminuir a máquina estatal por meio de privatizações e da reforma administrativa, como ele queria, precisa agora fazer novas dívidas de centenas de milhões de reais e aumentar o papel do Estado na economia.

A reforma trabalhista iniciada no governo do presidente Michel Temer também terá que ser reavaliada em breve, ao que tudo indica. O Brasil tem mais de 40 milhões de pessoas na informalidade. São pessoas que estão desprotegidas diante de uma crise como a atual. Agora é necessário admitir que tudo isso foi irresponsável. Será que o neoliberal Guedes vai virar à força um social-democrata? Seria melhor para ele. Mas o provável é que ele se vá antes disso.

É impossível saber de quanto tempo o Brasil vai precisar para superar as consequências econômicas da crise do coronavírus. O dinheiro economizado com a reforma da Previdência logo vai ser gasto nos novos pacotes de ajuda. Com suas duras críticas ao lockdown, Bolsonaro já está tentando se vacinar contra a próxima crise econômica. Numa entrevista na televisão, ele já disse que os milhões de desempregados não serão culpa dele. Mas, se ele não é o responsável, o que está fazendo na cadeira de presidente?

O declínio da sua autoridade, nos últimos dias, é assustador. Aliados se afastam, e ele perde apoio também no Congresso. Bolsonaro corre o risco de não ser mais levado a sério. Ele conseguirá se recuperar dessa situação? Ou seus rivais moderados, como os governadores João Doria e Wilson Witzel, vão ficar com os eleitores da direita?

Até parece que o novo coronavírus escolheu a dedo uma vítima especial: Jair Messias Bolsonaro. Quem achava que isso não ia dar em mais do que uma "gripezinha" ainda vai se surpreender.

Thomas Milz

A dor em tempos de coronavirus

Desde o dia 1º de março, uma letra e um número colocados no alto da folha da declaração de óbito podem significar a diferença entre uma despedida digna e um enterro expresso na cidade de São Paulo, a mais atingida no Brasil até agora pela pandemia do novo coronavírus. À dor da perda, soma-se a tragédia de não não poder sequer dizer adeus. Todos os casos confirmados de morte pela doença e também aqueles em circunstâncias que indiquem essa possibilidade, como pessoas acima de 60 anos com problemas respiratórios, recebem a sigla D3 no atestado do serviço funerário municipal, o que se traduz num protocolo que prevê velório de no máximo dez minutos, ao ar livre, com limite de até dez pessoas, e caixão totalmente lacrado. Apenas em uma manhã de quarta-feira, ÉPOCA contabilizou 19 casos com esse desfecho no Cemitério Vila Formosa, o maior da América Latina, na Zona Leste paulistana. No dia anterior, o Ministério da Saúde atestara 12 novas mortes confirmadas pelo novo coronavírus em todo o país.

“Morreu com mais de 60 anos e teve como causa do falecimento insuficiência respiratória, a gente já carimba D3”, disse um funcionário do Serviço Funerário do Município de São Paulo. A vestimenta dos coveiros também mudou na esteira da crise. As luvas simples e uniformes comuns deram lugar a trajes especiais, completamente vedados, com máscaras para o rosto e luvas duplas — por baixo das antigas, os profissionais utilizam outras, cirúrgicas, para reforçar a precaução contra o contato.

A transformação mais dramática se dá para quem perdeu pai, mãe, amigo. “O caixão de meu pai estava fechado, sem visor para vermos seu rosto. A madeira estava lacrada como se ele oferecesse risco de contaminação. Isso é desolador. Queríamos pelo menos dar um beijo em seu rosto, fazer um carinho de despedida, pois ele foi um homem muito bondoso para toda a família”, contou a comerciante Jandira Fonseca Santos, de 51 anos, o rosto coberto por uma máscara e a 1 metro de distância do caixão do pai.

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A cena daquela manhã havia começado a se desenrolar na madrugada do domingo 22, quando Ignácio Fonseca Santos, de 81 anos, já doente, sentiu uma dor no peito e dificuldade para respirar. Jandira o levou ao pronto-socorro, a médica deu orientações para o confinamento e prescreveu um exame para coronavírus. Na noite de segunda-feira, a filha sentiu uma brisa entrando pela janela e resolveu vestir uma camisa no pai. Jandira percebeu que as pernas e os braços do idoso estavam muito frios, gélidos, na verdade. Mas ele garantiu estar bem. Ela foi até a cozinha passar um café quente. Quando voltou ao quarto do pai com uma xícara, Ignácio já estava morto. O resultado do exame não chegou a ficar pronto, mas o atestado de óbito indicava a possibilidade de morte pelo novo coronavírus, o que se refletiu naquele desfecho. Ignácio, portanto, está fora das estatísticas do Ministério da Saúde.

O velório durou apenas dez minutos marcados no relógio, conforme o previsto. Além de Jandira, acompanhava o corpo apenas sua irmã, Maria de Fátima Fonseca. Quando faltavam dois minutos para o ritual se encerrar, um funcionário do cemitério foi até as filhas de Ignácio avisar que o carro estava pronto para levar o corpo. O enterro na cova rasa, em meio à terra vermelha e fofa, foi ainda mais rápido que o velório.

Em razão da escassez de testes no Brasil, apenas pacientes que apresentam sintomas graves da doença, como dificuldade para respirar (a chamada Síndrome respiratória aguda grave), e tenham tido contato com pessoas infectadas estão sendo submetidos a exames. O governo já prometeu ampliar a capacidade, como fizeram outros países, e mais de 20 milhões de testes estão sendo aguardados para as próximas semanas. Essa dinâmica, contudo, provoca uma escalada dos casos suspeitos, e a hipótese de subnotificação de pessoas realmente infectadas. Desde a quinta-feira 19, o Ministério da Saúde deixou de divulgar a quantidade de possíveis infectados, mas algumas secretarias estaduais de Saúde seguem monitorando os números. Em Minas Gerais, por exemplo, havia 12 mil casos suspeitos e apenas 153 confirmados até a tarde de quinta-feira. No mesmo dia, no Brasil, os casos confirmados beiravam 3 mil, e as mortes 77, em números que crescem dia após dia. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirmou em coletiva à imprensa na quarta-feira que já é esperada uma escalada rápida nos números assim que os novos testes chegarem.

A sigla D3 no alto da certidão de óbito não significa um atestado formal de que a pessoa foi vítima do novo coronavírus. Há casos que foram confirmados pelos hospitais e outros em que simplesmente as circunstâncias indicam a possibilidade, mesmo sem um exame, o que recomenda cautela dos profissionais que vão fazer o enterro. É uma padronização administrativa do Serviço Funerário de São Paulo, sem validação médica, o que pode gerar distorções. Procurada para explicar os critérios que levam à classificação de morte suspeita, a prefeitura de São Paulo, responsável pelo serviço, afirmou que o código D3 “é usado para a segurança dos funcionários que realizam os manejos dos corpos com suspeitas ou casos confirmados da Covid-19” e que não é “parâmetro estratégico sobre os óbitos” decorrentes da doença. Ainda segundo a prefeitura, não há contabilização sobre o número de declarações de óbito expedidas sob o código D3 em São Paulo desde o início da pandemia.

Os enterros-relâmpago não distinguem classe social nem fronteira. No Rio de Janeiro, o empresário Christiano Bandeira de Mello, filho da empresária Mirna Bandeira de Mello, morta na segunda-feira após uma semana internada com o novo coronavírus, enterrou a mãe sem um amigo ou parente sequer. “Tive de sepultar minha mãe sozinho. Se fosse em condições normais, ela teria milhões em seu enterro”, afirmou Christiano ao colunista de ÉPOCA Guilherme Amado, numa conversa por telefone, pouco antes de desligar para participar de uma missa on-line em memória da mãe. “É um vírus letal para quem não está com uma saúde perfeita. Pode acontecer com qualquer pessoa. Infelizmente foi com minha mãe”, lamentou.

Mesmo quando não há suspeita de coronavírus como causa da morte, a recomendação para evitar aglomerações leva ao cancelamento de velórios e a enterros restritos a poucos parentes, se tanto. Na semana passada, no enterro de Affonso Arinos de Mello Franco, acadêmico da Academia Brasileira de Letras (ABL), que morreu aos 89 anos, de infarto, não houve velório — para complicar, a maioria dos integrantes da ABL faz parte do grupo de risco em razão da idade.

Na Itália, que contabiliza centenas de mortos a cada dia pelo novo coronavírus, os funerais foram banidos. “Essa pandemia mata duas vezes. Primeiro, te isola de quem você ama logo antes da morte. Depois, não te permite um fecho”, disse um funcionário de uma funerária em Milão à BBC. Histórias assim já se repetem na Espanha e nos Estados Unidos, novos epicentros da doença que já deixou mais de 15 mil mortos pelo mundo todo desde que surgiu, no final de dezembro passado, na China.

Maria Francisca, de 61 anos, também foi sepultada no Cemitério Vila Formosa com suspeita do novo coronavírus. Com medo da doença, nenhum parente compareceu ao velório durante os dez minutos reservados em uma tenda ao ar livre para o último adeus. Na hora de levar o corpo para a cova, por volta das 9h40 de quarta-feira, um funcionário gritou “quem está acompanhando o corpo de Maria Francisca?”. Não houve resposta. Deu-se início a um dilema. O que fazer com o caixão? Um funcionário da administração telefonou para o nome que aparecia na guia do cadáver, e uma hora e meia depois surgiu no cemitério Fernanda Gusmão, de 63 anos, amiga de Maria Francisca.

“Os parentes estão todos confinados com suspeita de coronavírus. Não podem sair de casa. Irei acompanhar o enterro”, anunciou. Fernanda usava máscara e luvas de látex. Seguiu o caixão da amiga a pelo menos 10 metros de distância e não chegou perto da cova em que Maria Francisca foi enterrada sem qualquer flor. “Faço parte do grupo de risco. Só estou aqui porque ninguém merece ser enterrado feito indigente”, disse, quando saía às pressas.

Na manhã que ÉPOCA passou na Vila Formosa, até uma criança de 6 anos foi sepultada sob essa classificação. Quando a mãe viu o caixão todo lacrado com fita adesiva e sem o visor de vidro, entrou em desespero. Os parentes guardavam uma certa distância do caixão, mas ela não; tentava forçar a abertura para colocar flores em volta do filho. Foi preciso o diretor do cemitério ir até ela para explicar que, se o caixão fosse aberto, todos no local correriam risco de contaminação. Ela insistia: “Poxa, só uma florzinha. Deixa, por favor. Nunca mais vou ver meu menino. Deixa...”. O apelo dramático não surtiu efeito. O filho foi velado em dez minutos e enterrado em menos de cinco. “O que poderia consolar o coração de uma mãe que não consegue fazer um velório decente para seu filho?”, questionou Lourival Panhozzi, presidente da Associação Brasileira de Empresas e Diretores do Setor Funerário.

O ritual da despedida e do luto é um passo relevante na aceitação da perda e posterior superação da dor, dizem psicólogos e psicanalistas. Quando essa cerimônia é negada a quem fica, os efeitos podem ser duradouros. “Geralmente um parente aceita completamente a perda em um ano. Mas, se não houver uma oportunidade de despedida, essa aceitação pode durar uma vida”, pontuou a psicóloga Júlia Catani. Ela afirma que há alternativas para tentar tornar a não despedida menos dolorosa. “Pode-se fazer um ritual dentro de casa com um encontro de amigos e parentes ou orações mesmo sem o corpo.”

Apesar das restrições severas em vigor no Brasil e em boa parte do mundo, não há casos de contágio do novo coronavírus por meio de cadáveres. Um dos problemas é que mesmo depois da morte o vírus pode permanecer nas roupas e objetos ainda por várias horas, o que tem levado às medidas de lacração quase imediata do caixão.

Até por isso, não há um consenso em relação aos procedimentos para o sepultamento. Uma portaria assinada pelo governador de São Paulo, João Doria (PSDB), no dia 21 de março determina que os parentes não podem tocar os corpos dos mortos durante o velório. Em Mato Grosso, o governador Mauro Mendes (DEM) proibiu qualquer tipo de velório e funerais por três meses.

O Ministério da Saúde publicou no dia 23 de março um documento de 16 páginas com diretrizes também rigorosas para manejo de corpos durante a pandemia. Em época de isolamento social, por exemplo, o governo federal não recomenda que os corpos de pessoas com teste positivo para Covid-19 e até mesmo de suspeitos de contaminação sejam velados. Isto é, os corpos devem seguir do hospital ou de casa para o Instituto Médico Legal (IML), de lá diretamente para a funerária e depois direto para a cova.

Na contramão dessa tendência, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou no dia 24 um guia de orientação aconselhando que os corpos das vítimas da nova doença sejam velados normalmente. “Até agora não há evidências de pessoas que tenham sido infectadas pela exposição aos corpos de pessoas que morreram da Covid-19”, disse a OMS. Em outro trecho, a entidade internacional afirmou que “a dignidade dos mortos, sua cultura, religião, tradições e principalmente seus familiares devem ser respeitados”. A recomendação para evitar aglomerações em velórios e que eles sejam feitos em local aberto, entretanto, continua mantida.

“Acho um exagero o que está sendo feito no Brasil. O coronavírus é um organismo poderoso, mas ele não perfura vidros e madeira. Todo mundo tem o direito de se despedir com dignidade de seus familiares, independentemente do que tenha sido o motivo da morte”, disse Lourival Panhozzi, da entidade do setor funerário.

'Cegueira' dos criminosos

Sem a vida humana nada se compra nem se vende. É impossível entender que o presidente ignore a gravidade da situação. É hora de harmonizar a Nação, evitar conflitos e buscar a paz social. A discórdia e a dissensão em nada ajudam o País
José Sarney, ex-presidente da República

A biopolítica e o apocalipse em câmara lenta

Vasco Santos, psicanalista e editor, lê nas entrelinhas do estado de emergência que o coronavírus tem permitido uma oportunista intensificação da biopolítica, para controlar, vigiar e punir.

Parece que não passa um dia em que não sejamos ameaçados com crises e selvajarias. De algum modo, esse parece ser o ar que se respira, aquilo que se lê por toda a parte, desde os jornais aos cartazes publicitários que encontramos nas ruas. Sentimos que se tornou constante o cerco, cujo intuito parece ser o de gerar um estado de alarme, inquietar o espírito e livrar-se da inteligência. Vasco Santos, psicanalista e editor literário, está entre essas poucas vozes que têm procurado minar a campanha à volta da epidemia do novo coronavírus. Em seu entender, esta é, antes do mais, uma epidemia oportunista conduzida pelos media e que nos reenvia à “experiência medieval da praga”. Em declarações ao i, explica como funciona este discurso virtual que se produz a par da realidade, umas vezes sobrepondo-se-lhe, outras deturpando-a, transcrevendo os dados de tal modo que produzam um efeito perturbador. Substituindo a experiência, o efeito de uma comunicação que reduz a linguagem à simples mecânica do lugar-comum é o de lançar no ar uma “poluição moral, procurando-se, ontem como hoje, um objecto contra-fóbico oriental alheio às comunidades atingidas”. Assim, o Covid-19 é uma reformulação do bacilo da peste, que não morre nunca, mas apenas desaparece por uns tempos, fica a aguardar pacientemente por uma aberta, para de novo acordar os seus ratos e os mandar morrer numa cidade feliz.


Vasco Santos cita outro psicanalista, Wilhelm Reich, em tempos colaborador de Freud, que traçou um diagnóstico essencial deste tempo dizendo que “existe uma energia orgânica mortal” e que esta se respira na atmosfera. Tornou-se tão familiar a ideia expressa por Karl Kraus em Janeiro de 1917, num dos seus aforismos – “O estado em que vivemos é o verdadeiro apocalipse: o apocalipse estável” –, que, hoje, mesmo um fabulista tão popular como Murakami reconhece que “toda a gente alimenta o secreto anseio de que o fim do mundo chegue a tempo de o testemunhar”.

Já no final dos anos 1970, o poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger notava que o apocalipse era uma noção que tinha vindo a degenerar, sendo arrancado do território do sagrado, como uma visão profética e aterradora, para tornar-se mais um mito profano, desses que são traficados como “afrodisíacos”. Assim, o velho pesadelo, esse no sentido do qual a maçã que caiu da árvore do conhecimento parecia rolar, tornou-se mais outra metáfora para o colapso do capitalismo. E precisamente porque é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, torna-se evidente esse raciocínio que leva Enzensberger a encarar a ideia do fim do mundo como uma “utopia negativa”. Mas esta noção, quando processada no quotidiano e entregue às feras da imprensa e da opinião, com essa forma de senso comum que se materializa nos clichés, nessa corrupção da linguagem que, em última instância, torna-nos reféns de uma espécie de paranóia vazia, um abismo de falsificações, um manto de tagarelice que cobre o mundo inteiro e provoca em nós um estado permanente de ansiedade. Essa é a nova condição em que estamos a acompanhar a expansão de um vírus, “afinal, modesto e tímido”, como refere Vasco Santos, mas que “serve para impor a ordem, higienizar o corpo e a cidade e relativizar o contrato social”.

Há muito que os autores que lançaram um olhar impiedoso sobre o regime desta intriga nos dizem que o estado de excepção se torna revelador da normalidade social e acentua os mecanismos que permitem aos aparelhos de Estado “vigiar e punir”. “Se as fissuras que se abrem entre os factos não fossem preenchidas com maços de frases feitas; se a esquizoidia do laboratório não fosse dissimulada pela convicção de fazer o Bem, e um Bem cada vez mais avançado, se o raciocínio devastador não se considerasse a encarnação do Senso Comum, se... – a máquina deixaria de trabalhar, e a grande era da experimentação mergulharia num súbito, pesado silêncio”, escreve Roberto Calasso. E acrescenta: “O burburinho da Opinião Pública ajuda a evitar que tal aconteça. É agora este o insuperável combustível psíquico que impulsiona a vida. Como Kraus observou certa vez: ‘A vida continua. Mais do que é legítimo’”.

Mas estamos num plano em que a vida já não faz o sentido que fazia antes, em que o próprio mundo se nos torna estranho, e quanto mais avançamos, menos sabemos. Neste ponto, Vasco Santos recorre ao testemunho de Paulo Varela Gomes que, diante deste problema, propõe que se ponha de parte a biologia: “É evidente que o centro da questão não está nos factores biológicos da Peste, mas sim nos organismos sociais humanos que a contraem, a espalham (e a protegem?). Seguidamente, é necessário não procurar na infraestrutura das formações económicas e sociais a inserção directa da doença; a Peste é, com efeito, um fenómeno ideológico e político, isto é, pertence ao Estado e aos seus Aparelhos”.

No caso específico do Covid-19, Vasco Santos nota que este tem permitido pôr em prática “uma estratégia higienista, antipsicanalítica pela acentuada diminuição da empatia, pela distância social legitimada”. Esta intensificação da biopolítica leva a que se possa notar a tendência que há hoje para que, como refere o autor e editor italiano Roberto Calasso, nós próprios sejamos “uma entidade administrável, que poderá até permanecer por muito tempo na quietude de um armazém, mas que a qualquer momento pode ser chamada a contribuir para o reequilíbrio do massacre”. O que se diz sobre as medidas extraordinárias que a guerra exige vale também para as epidemias, . E Vasco Santos vê como o novo coronavírus e as medidas de contenção que este tem exigido acentuam “a ideologia da saúde (por falência da ideia de salvação) e forcluem a morte, esse tabu excelentíssimo de agora”.

“Desinfectamos magicamente as mãos porque somos contra a morte”, acrescenta, antes de nos remeter para o ensaio de Susan Sontag A Doença como Metáfora. É ali que a ensaísta norte-americana nos diz que “a doença é o lado sombrio da vida, uma espécie de cidadania mais onerosa”. “Todas as pessoas vivas têm dupla cidadania, uma no reino da saúde e outra no reino da doença. Embora todos prefiram usar somente o bom passaporte, mais cedo ou mais tarde, cada um de nós será obrigado, pelo menos por um curto período, a identificar-se como um cidadão do outro país”.

Neste momento, estando confusos, atordoados com a informação que nos sacode em rajadas, sucessivos balanços, números de vítimas, de mortos, não sabemos bem o que pensar das medidas de prevenção. Boa parte de nós acolhemo-las, satisfeitos porque alguma coisa está a ser feita, e, assim que as coisas se agravem, será natural que as medidas também se agravem. Seguimos as notícias da pandemia relatada em tom patético e apocalíptico como em tempos nos reuníamos no templo para que o cura nos abalasse diariamente com enormidades e ninharias. Enquanto esta “catástrofe permanente” se apossa de tudo, causando em nós habituação, fica muito claro que o apocalipse, que em tempos tinha algo de venerável, na sua constituição prodigiosa recorrendo a metáforas soberbas, terríficas, está cada vez mais distante de uma ideia do sagrado. Assim, como notava Enzensberger, esta catástrofe tornou-se um “fenómeno inteiramente secularizado”.

“O nosso monstro de sete cabeças responde por uma série de nomes: Estado-polícia, paranóia, burocracia, crise económica, corrida às armas, destruição do meio ambiente”, escreve o ensaísta alemão. “Em tempos, as pessoas viam o apocalipse como um ato da Justiça divina, ao passo que hoje parece um produto metodicamente calculado das nossas acções, e aos espíritos que tomamos como responsáveis pela sua abordagem chamamos comunistas, magnatas do petróleo, terroristas, multinacionais; os gnomos de Zurique e os Frankensteins dos laboratórios de biologia (...) O apocalipse costumava ser um evento singular, que nos acometeria sem aviso como um raio rasgando céus azuis: um momento inimaginável que apenas os visionários e os profetas poderiam antever – e, como é óbvio, ninguém quereria ouvir os seus avisos e previsões. O nosso fim do mundo, por sua vez, é cantado nos telhados até pelos pardais; falta-lhe o elemento surpresa; parece ser apenas uma questão de tempo. A desgraça que esperamos que se abata sobre nós é insidiosa e torturante de tão vagarosa na sua abordagem – é o apocalipse em câmara lenta”.

Vilão invisível

A gente senta para escrever uma coluna. Tema livre. Livre ma non troppo. Dois temas forçam a porta: nossa catástrofe econômica e a pandemia coronavirótica. Como evitá-los, se as pessoas só falam e querem falar deles? Como sair, sem culpa, pela tangente, desviar-se por amenidades, perder-se na estratosfera cultural, divagar sobre coisas mais leves, menores, miúdas? Miúdas como o pibinho da dupla caipora Jair & Guedes, por exemplo.

Versava sobre o pibinho a última crônica de Gregório Duvivier, na Folha de S. Paulo. Divertida, como sempre, com os inuendos fálicos de que o nosso diminuto produto interno bruto nunca escapa quando encolhe além do esperado. Esperado pelos entendidos, não por mim, que nada entendo de economia, só ajudo a pagar a conta. E é justamente porque, como todos vocês, ajudo a pagar a conta, que me preocupo com os rumos da economia.

No final do século passado, ainda no governo FHC, com o dólar a R$ 1,20, reivindiquei, na revista Bravo!, o direito de falar de economia mesmo sendo leigo no assunto, porquanto numa enquete com palpites de diversas categorias profissionais sobre o futuro da economia mundial, nos dez anos seguintes, os economistas não tiraram o primeiro lugar. Nem o segundo. Nem o terceiro.

Mais surpreendentes foram os campeões de acertos: os lixeiros europeus.

De onde viria a presciência do pessoal da limpeza urbana?, perguntei-me na época. A única pista encontrada foi que os lixeiros talvez tenham uma visão mais clara, além de empírica, de como funciona a economia por trabalharem em contato direto e permanente com o que a sociedade consome, desperdiça e joga fora. O lixo é um dos índices mais confiáveis de nosso poder de compra e de nossa capacidade para controlar gastos.

Ao cabo dessa especulação, sugeri que FHC acrescentasse um gari à equipe de Pedro Malan, proposta que, por inútil, não estendo ao capitão que ora nos desgoverna.


Mas chega de economia. Fiquemos no huis clos paradoxalmente imposto e condenado pela pandemia do coronavírus. Não sei se vocês já se deram conta, mas nem no auge do existencialismo Sartre mostrou-se tão certeiro como agora. O distanciamento entre as pessoas recomendado pelos sanitaristas fez dele o filósofo do momento. Agora, mais do que nunca, o inferno são os outros.

No claustro a que o coronavírus, essa aids assexuada, nos condenou, só nos restarão tarefas e lazeres solitários ou quase isso. Com eles espantaremos o tédio, mas não, infelizmente, a paranoia. Graças ao convívio nas redes sociais, ainda encontramos ânimo para achar graça na desgraça. Há dias, no Twitter, alguém comentou que, de tanto esfregar o braço e as mãos com água, sabão e álcool gel, apareceu uma cola que fizera na faculdade em 1993. Uau! Um pentimento braçal.

Em nossa compulsória vida monástica ficaremos mais, como dizem os franceses, “cultivés”. Leremos mais, veremos mais filmes e ouviremos mais música. Leituras escapistas ou atinentes à pestilência em curso? Se atinente, ficção ou não ficção? Filmes sobre epidemias e pandemias é o que não falta, mamma mia!

Ainda não parei para pensar numa playlist que vá além da 5.ª Sinfonia de Mahler, que, no filme de Visconti, Morte em Veneza, baseado no romance de Thomas Mann, embala os últimos dias de Aschenbach, vítima de um amor platônico em tempos de cólera. As canções e danças macabras de Mussorgsky também cabem, mas para que insistir na depressão?

Graças à covid-19, aprendi uma palavra nova: fômite ou fómite. Não tem ainda no Houaiss. É o nome técnico que se dá a qualquer objeto inanimado ou substância capaz de absorver, reter e transportar organismos contagiantes ou infecciosos (de germes a parasitas), de um indivíduo a outro. Tudo que possa contaminar ao menor contato – torneira, maçaneta, corrimão, copo, botões de elevador, teclas, sapatos, etc. – é um fômite.

Para nos livrar de possíveis germes (e vírus!) transmitidos por fômites que lavamos bem as mãos e os pulsos ao chegarmos da rua; tanto melhor se com o mesmo apuro de Larry David na comédia de Woody Allen, Tudo Pode Dar Certo, cantando “Parabéns pra você” duas vezes seguidas: 20 segundos, no relógio. Taí um filme a ser visto durante nossa reclusão virótica. Escapista, mas didático. E infinitamente mais leve que O Sétimo Selo, de Bergman.

Aprendi o novo vocábulo com a personagem de Kate Winslet no filme Contágio. Lançado aqui em 2011, só o vi na noite de terça-feira; em casa, que não sou besta de ir a uma sala de cinema. A distância no tempo lhe fez bem, aumentou-lhe a ressonância. Dirigido com pulso firme por Steven Soderbergh, não inova em nada, mas antecipa fielmente a escalada pânica que o noticiário ora nos despeja diariamente, presentificando uma calamidade que se tornou menos ficcional quando a covid-19 reapareceu na China, meses atrás.

O vírus de Contágio surge em Hong Kong, propaga-se com espantosa e incontrolável velocidade, dizima populações e alguns dos protagonistas do filme. Não é um vilão visível, antropomorfizado, sob a forma de zumbi ou de um serial killer com fetiches e traumas mal resolvidos. Por isso, mete mais – muito mais – medo.

É menos um espetáculo de horror do que um thriller sobre o desamparo do ser humano e suas reações a um ataque súbito e frontal à sua vulnerabilidade, agravado pela intromissão de fake news no circuito, como o que agora enfrentamos. Com um final feliz: uma vacina é descoberta a tempo de salvar o resto da humanidade.

Em dezembro, antes do surto da covid-19, Contágio era o 270.º filme mais visto e baixado da Warner Bros. Já pulou para o segundo lugar. Prefira o streaming à cópia física alugada. Caixinha de DVD é um fômite de alta periculosidade.