terça-feira, 27 de agosto de 2024

Pensamento do Dia

 


Ameaça climática já está no horizonte

Parecia uma cena do antigo cinema francês. Domingo de manhã, na bruma que cobria o lago Paranoá, um jovem de pé remava em sua prancha de stand-up paddle, enquanto a companheira, de chapéu e pernas cruzadas, observava o estranho horizonte. Não se via a outra margem. Os ventos pareciam levar à capital federal perguntas sobre o futuro.

Poucas vezes o céu de Brasília esteve assim tão encoberto. Queimadas ocorrem na região nessa época. Mas a novidade do fim de semana foi a chegada da densa bruma proveniente do Sul, de queimadas ocorridas em São Paulo e Goiás.

Algumas delas foram intencionais, segundo investigações preliminares de polícias estaduais. Em Goiás, um dos responsáveis pelo fogo admitiu que o mandante do crime teria intenções de prejudicar um adversário político.

O governo prontamente acionou a Polícia Federal para investigar se algumas das queimadas teriam mesmo sido propositais. E a extensão do fogo pela região central do país já assusta os experimentados agentes do Ibama.

A bruma, que parecia cenário de cinema romântico, na verdade tinha contornos de um denso filme de ação. Ou, quem sabe, de ficção científica.

De agora até outubro, o cheiro das queimadas estará mais forte do que o de costume. Como se buscasse chegar aos gabinetes oficiais para lembrar a urgência climática.

Por enquanto pouca gente estará na capital federal para perceber o aviso. Muitos deputados e senadores permanecerão em seus estados a maior parte do tempo até a data das eleições municipais. Decisões em Plenário serão cirúrgicas e rápidas.

O governo permanece em pleno funcionamento, mas não são poucos os ministros que dividirão suas atenções nos próximos dois meses, que coincidem com o pior período da época seca, com o destino de seus aliados políticos nas próprias bases.

Quando as chuvas de novembro finalmente chegarem, trazendo de volta a normalidade à capital federal, será o momento de averiguar se os sinais da natureza terão tido algum êxito em atualizar a visão de mundo de muitos dos que decidem o futuro do país.

As queimadas contribuem para as maiores emissões do Brasil de gases do efeito estufa. A redução dessas emissões dependerá da contenção de ações criminosas e da conscientização dos produtores rurais – além de apoio político.

Mas outro setor importante para a redução das emissões e para a contenção dos riscos climáticos é o de energia. Para estimular a produção de energias renováveis, o governo enviou importantes projetos de lei ao Congresso Nacional.

Um deles estimula a produção de energia eólica offshore, ou seja, no oceano. Uma prática cada vez mais frequente na Europa, por exemplo, e que parece bastante promissora no vasto litoral brasileiro.

Pois o projeto foi populado, em sua tramitação no Senado, por diversos jabutis – como são chamadas as emendas que pouco têm a ver com a proposta original. Uma dessas emendas, por exemplo, permite a prorrogação de contratação de térmicas a carvão – entre as mais poluentes do mundo – a um custo de R$ 92 bilhões.

Os poderosos lobbies do setor de energia têm feito a sua parte no convencimento de parlamentares. Muitos interesses regionais também estão em jogo quando se discute o processo de transição energética do país.

Lobbies bem menos poderosos ligados aos movimentos ambientalistas também procuram atuar no Congresso Nacional, com resultados muito mais modestos.

Os sinais emitidos pelo clima terão algum sucesso na mudança de ventos em Brasília? Não se pode ser muito otimista, quando o Legislativo tem sido marcado pela forte influência das bancadas ultraconservadoras.

De qualquer forma, a ameaça da mudança climática já está, de fato, no horizonte. Vai ser cada vez mais difícil fechar os olhos para ela.

Foice no escuro

É de se lembrar aos que porventura se entusiasmem pelo personagem encarnado na figura de Pablo Marçal (PRTB) na disputa pela Prefeitura de São Paulo: em 1959, a cidade "elegeu" para vereador, com 100 mil votos, Cacareco, rinoceronte fêmea residente no zoológico.

A rebeldia daquele eleitorado de 65 anos atrás não provocou efeito prático algum. Apenas marcou a entrada do episódio na história dos protestos contra os políticos tradicionais.E daí? Daí que os rebeldes se acreditaram engajados pela via do repúdio, mas jogaram no lixo a oportunidade de fazer uma boa escolha.


São Paulo é a maior, mais rica, mais poderosa e mais complexa cidade da América do Sul. Merece e carece de melhores opções para governantes por parte de seus residentes, interessados que deveriam estar em manter esse lugar de destaque.

Paulistanos orgulham-se da posição que também é motivo de admiração no restante do país. O estado é a locomotiva-mestre do desenvolvimento, como se diz, e a cidade tem papel preponderante nessa pujança.

A capital paulista não deve ser governada na base da galhofa, da subversão de regras de legalidade e civilidade. Necessita ser levada a sério, com governantes e governados que se deem ao respeito.

Não pode ser objeto de piadas ou de escárnio, muito menos de disputas que obedeçam à dinâmica de brigas de foice no escuro, como os atritos entre o clã Bolsonaro e o histriônico Marçal. Caberia aos candidatos adversários, aos partidos, aos organizadores de debates, às campanhas, à Justiça Eleitoral e, sobretudo, ao eleitorado, dar um jeito de encontrar a melhor maneira de retomar o rumo adequado desse debate político.

Se não for assim, estaremos mal. Vamos nos arriscar, absolutamente todos, a aceitar a lógica da contestação vazia contida na preferência por um similar de Cacareco que só nos leva ao fundo do poço da negação da política.

Pablo Marçal revela a ameaça em gestação

Sinto que é hora de planejar férias. Nada de grandes viagens, mas apenas um mergulho no território da literatura e de outras artes. Isso me ajudou na pandemia. Encontrei a obra de Jorge Luis Borges, quatro volumes editados pela Globo Livros, um refúgio de sensibilidade e erudição. Saltei alguns poemas, mas foi um tempo enriquecedor.

O ato de interpretar o cotidiano da política brasileira desgasta e pede um respiro anual. Pressenti o desgaste do STF quando decidiu julgar, sem estrutura adicional, milhares de pessoas. Prisões consideradas ilegais, problemas na própria cadeia, gente com câncer precisando de tratamento e, sobretudo, penas consideradas muito pesadas — enfim, uma sequência de problemas que acabariam se voltando contra a Corte.

Tentei ser discreto, mas não deixei de mencionar minha apreensão. O resultado foi a desconfiança de que protegia a direita. Da mesma forma que a própria direita acusa a defesa de direitos humanos como proteção de bandidos.


O Supremo agora tomou uma decisão importante, determinando que as emendas parlamentares sejam transparentes e rastreáveis. O Congresso queria retaliar, atribuindo-se o poder de anular decisões do STF. Tomar posição nesse caso valeu críticas dos que combatem o STF.

Enfim, como respondeu o personagem de Samuel Beckett que apanhava todos os dias quando lhe perguntaram quem bateu:

— São os mesmos de sempre.

Isso faz parte do jogo e pode ser levado com certo humor. Mas outros problemas me deixam mais preocupado. Pensei que as eleições municipais fossem discutir as mudanças climáticas e a necessidade de melhor proteção das cidades, sobretudo das áreas mais vulneráveis. A observação do debate em São Paulo não só me desapontou, como trouxe à cena uma imensa ameaça. Sabemos que o crime organizado se infiltra na política. Mas, para sobreviver, precisa aceitar as regras do jogo.

O que acontece lá é diferente. Um homem apontado como criminoso por inquéritos policiais entra na cena política cometendo crimes abertamente, como se invadisse uma residência e rendesse a família. E nada acontece.

Talvez tenha uma sensibilidade especial para esse tipo de problema. Mas, para mim, é o desdobramento da política da extrema direita na versão mais agressiva e, infelizmente, com chances de crescer. Steve Bannon, ex-assessor de Trump, já previu o surgimento de uma extrema direita mais audaciosa e disruptiva. Parece que isso acontece no Brasil.

Os ensinamentos básicos são estes: os políticos são corruptos ou comunistas; em ambos os casos, pode-se acusá-los de qualquer coisa sem provas. Para combater o sistema político, todos os meios são válidos, é possível cometer tantos crimes quantos forem tolerados por uma Justiça Eleitoral hesitante e tardia.

As eleições na maior cidade do Brasil trazem um ensinamento sobre o qual será preciso refletir. Não se trata apenas de uma aventura política camuflada pela luta anticorrupção. É um pouco mais que isso. É a mensagem apocalíptica de que todos são criminosos, e é preciso escolher entre os que falam diretamente com seus medos e preconceitos.

Até que ponto isso pode avançar? A extrema direita no poder na Itália temperou seu discurso. Mas essa é a tendência ou o que vemos no Brasil é algo que aponta para algum futuro, um tempo em que a própria tecnologia favorece a barbárie?

Não é simples formular o antídoto. Por onde começar? Pelo mundo político que precisa se voltar para as expectativas elementares da sociedade? Pelos setores da sociedade que conseguem se identificar com a barbárie na esperança de algo melhor?

Desses problemas não se tiram férias. A nova variante da extrema direita não se opõe apenas ao sistema político, à imprensa e à academia. Ela desafia abertamente a lei pelos crimes comuns em que se formou, mas também pela metralhadora giratória de falsas acusações. Houve todo um preparo do TSE para combater fake news. Chegaram com uma nova embalagem e ainda não foram reconhecidos.

A pilantragem nunca deu tantos votos

"Mas entretanto eu errei no golpe/ Você no golpe também tinha errado/ Você julgando que eu desse moleza/ Atrás de moleza também tenho andado", diz a letra do samba-choro "Dois Bicudos". Os autores, Cartola e Aluísio Dias, contam a história de dois golpistas, que antes trocavam carícias e agora não se beijam. A situação lembra a de Jair Bolsonaro e Pablo Marçal nas eleições de São Paulo.


Os golpistas-bicudos têm espantosas semelhanças, a começar pela compulsão de mentir. Estão ligados ao crime; falam em nome de um Deus só deles; manipulam as redes; vendem-se como antissistema; ignoram qualquer projeto de governo e atacam o Estado; defendem a trapaça como um ideal de vida. Correm na mesma faixa da direita para seduzir o eleitor e representam a enganação política —que sempre existiu— levada ao paroxismo.

Um já esteve na Presidência, e as consequências todos sabemos. O outro quer chegar lá. O coach leva uma vantagem em relação ao capitão: seu trabalho como golpista foi mais eficaz. Durante anos ele participou de uma quadrilha especializada em invadir contas bancárias pela internet. Quem foi fisgado —e quem não foi no país que trocou o jeitinho pelo golpinho?— não esquece.

Marçal foi condenado, o crime prescreveu. Bolsonaro está livre. O ex-presidente tem um medo pânico de perder o controle das forças conservadoras, impossibilitando os planos de reverter a inelegibilidade (por enquanto, tais planos continuam a ser articulados no Congresso).

Mesmo assim, o choque entre Bolsonaro e Marçal tem alguma coisa do antigo telecatch —mordidas, cabeçadas, dedos nos olhos, tijoladas na cabeça e tesouras voadoras de mentirinha. Enquanto eles brigam, ou encenam a briga, estão capturando as atenções. Guilherme Boulos, o candidato da esquerda, e Tabata Amaral, do centro, vão ficando em segundo plano. A pilantragem nunca deu tantos votos como hoje.