sábado, 22 de agosto de 2020

Estados xipófagos

O atual presidente mergulhou a América na escuridão por tempo demais —muita raiva, muito medo, muita divisão

Joe Biden, candidato democrata à presidência dos EUA 


 

Falta Nabuco

No século XIX, adotamos políticas em favor dos escravos — fim do tráfico, ventre livre, liberdade a sexagenários — sem defesa da Abolição. A maldade no tratamento aos escravos ficou mitigada, mas a barbaridade do regime continuou, amarrando a economia e comprometendo a decência. Em 1888, os abolicionistas venceram a luta pelo fim do sistema escravocrata, mas até hoje mantemos uma trincheira da escravidão: a reserva da educação de qualidade para poucos.

Desde 1980, diversas medidas beneficiam a educação — Emenda Calmon, merenda, livros didáticos, Fundef, Fundeb, PNE-I e II, BNCC, piso salarial — mas ela continua entre as piores e mais desiguais no mundo, emperrando a eficiência da economia e dificultando a justiça social.


Quando imaginamos a tragédia que ocorreria se o Fundeb fosse extinto, em 31/12 próximo, sua prorrogação deve ser comemorada. Mas, ao lembrar que já está em vigor há dez anos, imaginamos que, apesar de alguma melhora, a educação ainda não dará o salto de que precisamos. Devemos parabenizar os que não deixaram o Fundeb acabar e até conseguiram ligeiro aumento de recursos. Parabenizá-los como a Rio Branco, pelo ventre livre; Eusébio de Queiroz, pela proibição do tráfico, Saraiva e Cotegipe, pela Lei dos Sexagenários. Mas nenhum deles foi um Nabuco, e o Fundeb está longe de ser nossa “Lei Áurea do século XXI”: educação entre as melhores do mundo e com qualidade da escola igual para todos.

Para concluir a Abolição, será necessário mais do que leis, uma estratégia com a meta de colocarmos nossa educação entre as melhores do mundo e igual para todos os brasileiros, independentemente da renda e do endereço da criança. Para isso, tratar educação de base como questão nacional, implantarmos um Sistema Unificado Nacional de Educação, com carreira federal para os professores, definição de padrões nacionais para edificações e equipamentos, todas as escolas em horário integral, todas como concessão federal. Uma estratégia educacionista que derrube a última trincheira da escravidão, rompa as amarras ao nosso desenvolvimento e construa justiça social.

Pensamento do Dia

 

As ações estão subindo. Assim como a miséria

Na terça-feira, o índice de ações S&P 500 registrou uma alta recorde. No dia seguinte, a Apple se tornou a primeira empresa americana da história a ser avaliada em mais de US $ 2 trilhões. Donald Trump está, claro, tentando nos convencer de que o desempenho do mercado de ações comprova que a economia se recuperou do coronavírus. Uma pena para os 173 mil americanos que morreram, mas, como ele diz, “essas coisas acontecem”.

Mas a economia provavelmente não está parecendo assim tão bem aos olhos dos milhões de trabalhadores que ainda não conseguiram seus empregos de volta e que acabaram de ver seu auxílio-desemprego cortado. O benefício suplementar de U$ 600 por semana promulgado em março expirou, e a substituição que Trump propôs é, em essência, uma piada de mau gosto.

Mesmo antes do corte da ajuda, a quantidade de pais de família relatando dificuldades para dar de comer aos filhos estava crescendo rapidamente. Esse número com certeza aumentará nas próximas semanas. E também estamos prestes a ver uma enorme onda de despejos, porque as famílias não estão mais recebendo o dinheiro de que precisam para pagar o aluguel e porque a proibição temporária aos despejos, assim como o auxílio suplementar ao desemprego, acabou de expirar.


Mas como pode haver essa desconexão entre a subida das ações e o crescimento da miséria? Os caras de Wall Street, que adoram letras e siglas, estão falando de uma “recuperação em forma de K”: valorização das ações e aumento da riqueza individual no topo da pirâmide, queda da renda e forte sofrimento na base. Mas isto é uma descrição, não uma explicação. O que está acontecendo de fato?

A primeira coisa a notar é que a economia real, ao contrário dos mercados financeiros, ainda está em péssimas condições. O índice econômico semanal do Federal Reserve de Nova York sugere que, embora tenha atingido seu ponto mais baixo alguns meses atrás, a economia ainda se encontra em uma depressão mais profunda do que em qualquer momento da recessão que se seguiu à crise financeira de 2008.

E, desta vez, as perdas de empregos se concentram entre os trabalhadores com salários mais baixos – ou seja, precisamente os americanos sem recursos financeiros para enfrentar tempos difíceis.

Mas e as ações? A verdade é que os preços das ações nunca se ligam intimamente ao estado da economia. Como diz uma velha piada de economistas, o mercado previu nove das últimas cinco recessões.

As ações sofrem, sim, o impacto de crises financeiras, como as rupturas que se seguiram à quebra do Lehman Bros. em setembro de 2008 e o breve congelamento dos mercados de crédito em março. Fora isso, os preços das ações seguem bastante desconectados de coisas como emprego ou mesmo PIB.

E, hoje em dia, a desconexão está ainda maior do que de costume.

Pois a recente ascensão do mercado foi amplamente impulsionada por um pequeno número de gigantes da tecnologia. E os valores de mercado dessas empresas têm muito pouco a ver com seus lucros atuais, muito menos com o estado da economia em geral. Em vez disso, esses valores refletem as percepções dos investidores sobre um futuro bem distante.

Veja o exemplo da Apple, com sua avaliação de US $ 2 trilhões. A Apple tem um índice preço/lucro – a relação entre sua avaliação de mercado e seus lucros – de cerca de 33. Uma maneira de olhar para esse número é dizer que apenas 3% do valor que os investidores colocam na empresa reflete o dinheiro que eles esperam ganhar ao longo do próximo ano. Eles esperam que a Apple seja lucrativa daqui a alguns anos, mas pouco se importam com o que acontecerá na economia americana nos próximos trimestres.

Além disso, os lucros que as pessoas esperam que a Apple obtenha daqui a alguns anos estão especialmente grandes porque, afinal, onde mais elas vão botar seu dinheiro? Os rendimentos dos títulos do governo americano, por exemplo, estão bem abaixo da taxa de inflação projetada.

E a avaliação da Apple na verdade está menos exagerada do que a de outras gigantes da tecnologia, como Amazon ou Netflix.

Portanto, as ações das gigantes da tecnologia – e as pessoas que as possuem – estão em alta porque os investidores acreditam que se sairão muito bem no longo prazo. A economia em recessão pouco importa.

Infelizmente, os americanos comuns obtêm muito pouco de sua renda com ganhos de capital e não podem viver de projeções otimistas sobre suas perspectivas futuras. Não adianta muito dizer ao proprietário do apartamento que você aluga para não se preocupar com sua atual incapacidade de pagar o aluguel, porque você com certeza terá um ótimo emprego daqui a cinco anos. Esse argumento só fará com que você seja expulso do apartamento e jogado na rua.

Então, esta é a atual situação dos Estados Unidos: o desemprego ainda está extremamente alto, em grande parte porque Trump e seus aliados primeiro não quiseram levar o coronavírus a sério, depois pressionaram por uma reabertura antecipada da economia em um país que não atendia a nenhuma das condições para a retomada dos negócios – e até agora se recusam a apoiar estratégias básicas de proteção, como o uso generalizado de máscaras.

Apesar desse fracasso épico, os desempregados ficaram com a cabeça fora da água durante meses graças ao auxílio federal, que ajudou a evitar uma catástrofe humanitária e econômica. Mas agora a ajuda acabou. E Trump e aliados estão encarando o iminente desastre econômico com a mesma seriedade com que encararam o iminente desastre epidemiológico.

Tudo sugere que, mesmo que a pandemia enfraqueça – o que não é, de forma alguma, uma certeza –, estamos prestes a ver um grande aumento na miséria nacional.

Ah, mas as ações estão em alta. Então por que deveríamos nos preocupar?

'Brasil vencendo a Covid', o escárnio


O primeiro compromisso do presidente Jair Bolsonaro na próxima segunda-feira será participar do "Encontro Brasil vencendo a Covid-19", no Palácio do Planalto. O número de mortos pela doença no país superou a marca de 113 mil e o O Brasil já registrou mais de 3,5 milhões de casos confirmados do novo coronavírus.

A Presidência não forneceu mais informações sobre o que acontecerá no encontro, que está previsto para ocorrer das 11h ao meio-dia, será aberto à imprensa e transmitido ao vivo pela TV Brasil.

Nem luto, nem melancolia


Não é a vida que segue. É a morte, que segue em seu macabro trabalho auxiliada pelas hordas daqueles que a amam mais do que a vida. Lutemos para que os arqueólogos do futuro, quando escavarem os restos de nossa civilização não encontrem como nossa principal realização a indiferença.

“Na minha opinião, a desorientação e a paralisia
da nossa capacidade funcional, sob a qual penamos, são
essencialmente determinadas pela circunstância de
não conseguirmos manter a nossa anterior atitude perante a
morte e de ainda não termos achado outra nova”
Sigmund Freud


Mais de três milhões de pessoas infectadas. Mais de cem mil mortos. Os dados são estarrecedores por si mesmos, ainda mais se somarmos a esse quadro macabro os vinte milhões de casos e os mais de setecentos mil mortos pela pandemia no mundo todo. Nossa reação, no entanto, é muito estranha. Parece-nos preocupar muito mais o andamento da vida, a suposta volta a normalidade ou, pior, os efeitos econômicos que podem se desencadear.

Os seres humanos passaram a enterrar seus mortos, segundo os estudiosos, há mais ou menos cento e trinta mil anos, associando ao evento formas ritualísticas e o uso de adornos corporais, urnas, artefatos e rituais fúnebres. Para a famosa antropóloga Margaret Mead, a primeira evidência daquilo que seria a civilização humana poderia ser encontrado no fóssil de um fêmur cicatrizado, uma vez que isso indicaria que o grupo teria cuidado do ferido e não o abandonado para morrer.

Parece haver uma relação entre quantidade e qualidade no que tange a nossa reação diante da morte. A morte de um ser distante costuma nos afetar pouco. Uma quantidade significativa, como em um acidente ou catástrofe, pode gerar uma comoção. No entanto, essa constatação nos deixa ainda mais incomodado uma vez que a atual pandemia parece indicar que em situações em que esse número ultrapassa cifras assustadoras acabamos por ficar diante de uma reação de passividade e negação anestesiante.

A morte nos coloca diante de uma ambivalência. Ela é vista como uma pura casualidade natural, como parte inevitável da existência, mas ao mesmo tempo como ameaça inexorável de destruição da pessoa, como ameaça suprema e aterrorizante. Freud tendia a acreditar que a base de nossa atitude perante a morte residia nessa ambivalência: isto é, um mecanismo de defesa diante de uma ameaça de nossa própria morte que ora a naturaliza como mera casualidade, ora nos serve de artifício para contornar a culpa que advém do desejo inconsciente da morte de outra pessoa. Para ele, tal atitude desdobra-se no culto da separação do corpo e da alma, fundamento de todo comportamento religioso.

Freud acreditava que essa postura seria resultado de um processo civilizatório. Ou seja, seria inexistente no ser pulsional “primitivo” movido por instintos e paixões, em mais uma expressão da premissa freudiana da luta entre instinto (primitivo) e razão (civilização). É, no entanto, essa premissa que leva o pai da psicanálise ao espanto quando se defronta com a atitude dos povos que ele julgava “civilizados” no exercício sistemático da matança na primeira grande guerra. Vejamos em suas palavras:

“Estava-se, pois, preparado para que a humanidade se visse ainda, por muito tempo, enredada em guerras entre os povos primitivos e os civilizados, entre raças humanas diferenciadas pela cor da pele e, inclusive, entre os povos menos evoluídos ou incultos da Europa. Mas das grandes nações da raça branca, dominadoras do mundo, às quais coube a direção da humanidade, que sabia estarem ocupadas com os interesses mundiais, e cujas criações são os progressos técnicos no domínio da natureza e os valores culturais, artísticos e científicos, destes povos esperava-se que saberiam resolver de outro modo as suas discórdias e seus conflitos de interesses.” [Sigmund Freud, “A nossa atitude diante da morte”, Escritos sobre a guerra e a morte (Covilhã: Universidade de Beira Interior, 2009)].

O texto é de 1915 e trata da primeira guerra. Freud morreu em setembro de 1939, no mesmo mês e ano que Hitler invadia a Polônia e dava início à Segunda Guerra Mundial, na qual as nações brancas a quem “coube a direção da humanidade” se mergulhariam de novo numa carnificina organizada a fim de resolver seus problemas na disputa dos “interesses mundiais”. Acreditamos que sua reação diante da Segunda Guerra não produziria no psicanalista o mesmo espanto que a primeira, ainda que o mesmo horror e aversão. Freud era um homem da ciência – e estes, como fica patente na frase apresentada, não são imunes ao preconceito. O traço distintivo é que o cientista não procura esconder os fatos sob o ataque de argumentos e justificativas, mas se propõe a entender aquilo que o confronta de forma incômoda. Diante da eclosão do conflito, Freud sentencia: “A guerra, em que não queríamos acreditar, estalou e trouxe consigo a decepção”.

O problema, portanto, é saber por que que as sociedades “civilizadas” se entregavam à barbárie da guerra. O esforço das ditas nações civilizadas, prescrevendo aos indivíduos que dela participavam “elevadas normas morais”, muitas vezes rigorosíssimos, acabam por impor uma acentuada renúncia à satisfação das pulsões. Imerso nisto que Freud denomina de “cultura”, o homem branco civilizado – contradizendo tudo aquilo que Maquiavel afirmou sobre o fenômeno político moderno – estaria disposto a aceitar a renúncia das “extraordinárias vantagens que o uso da mentira e do engano proporcionam na luta contra os outros homens”. Na guerra, no entanto, os mesmos Estados que se empenham em prescrever normas morais aos seus cidadãos se empenham em matar, mentir e promover o ódio contra outros povos, sobrepondo à condição de estrangeiro a de inimigo.

Para não nos alongarmos em demasia na análise do autor, bastaria dizer que para Freud o que a psicanálise chegou a constatar é que os ditos instintos primitivos não desaparecem no ser civilizado, sendo antes, por assim dizer, canalizados em uma direção positiva. Mais do que isso: que os seres humanos são constituídos de instintos de natureza elementar, ligados às necessidades primordiais que em si mesmos não são nem bons nem maus. Desta maneira, voltamos à ambivalência, isto é, à coexistência numa mesma pessoa de um “imenso amor e um intenso ódio”. E, como sabemos, para a psicanálise esses impulsos frequentemente tomam a mesma pessoa por objeto – daí a ambivalência de amar quem tolhe seu desejo ou odiar quem é objeto de seu afeto.

Não apenas os indivíduos como também as nações se edificam, segundo tal premissa, na renúncia dos instintos em nome da civilização. Ocorre que diante das supostas vantagens de tal conduta a sociedade torna-se o exercício sistemático de repressão dos impulsos fundamentais, forçando a maioria das pessoas a viver, nas palavras de Freud, “muita acima de seus meios”, aceitando formalmente as imposições morais e convivendo na prática com seus impulsos, tornando-se uma pessoa hipócrita. Tal constatação leva a Freud a acreditar que uma determinada sociedade é composta de fato muito mais por hipócritas do que por pessoas de cultura, de forma que chega a pensar se a hipocrisia não seria indispensável à cultura. Quando vemos os horrores da guerra, diante da decepção com que se esperava da conduta civilizada, devemos nos lembrar que aqueles que praticam os horrores, de fato, “não caíram tão baixo como temíamos, porque não tinham subido tão alto, como a seu respeito julgávamos”.

Não apenas o fato de multidões se ocuparem em levar a cabo o horror da guerra, como também a constatação de que há multidões praticando uma espécie de “cegueira lógica” (o termo é do próprio Freud) faz com que cidadãos civilizados e cultos acabem por se apresentar com uma particular “obstinação e credulidade acrítica perante afirmações mais discutíveis”. Intervém aqui a racionalização, não como atitude científica, mas como mecanismo de defesa diante da emergência de impulsos que nos colocam diante de uma situação de ambivalência. Por exemplo, uma vez dirigido meu ódio a um outro povo ou país, o desejo é de sua aniquilação. No entanto, matar milhares de pessoas é moralmente condenável… A menos que se trate de um povo “perigoso”, “encarnação do mal”, munido de “armas de destruição em massa” que podem atingir e pulverizar minha sala de estar e a garagem onde guardo meu carro de último tipo (mas para o qual ainda falta pagar quarenta e oito prestações) – aí sim, se torna justificável jogar bombas, destruir cidades, assassinar milhares de pessoas incluindo crianças. Veja que o próprio Freud estaria disposto a aceitar que a guerra fosse o meio utilizado entre “os povos primitivos e os civilizados, entre raças humanas diferenciadas pela cor da pele e, inclusive, entre os povos menos evoluídos ou incultos da Europa”, mas se espanta quando a beligerância se apresenta como recurso entre os “civilizados”.

Aqui, no entanto, entra de forma abrupta a morte na escala de um horror imensurável. Lembre-se que um dos primeiros mecanismos de defesa seria a naturalização da morte como mera casualidade inevitável, como parte da vida. Assim procedendo, todavia, operamos na verdade no sentido de “eliminá-la da vida”, tentamos “silenciá-la”. A antiga atitude diante da morte não mais nos serve, mas ainda não se desenvolveu uma nova atitude, gerando desorientação e paralisia. A matança em massa só pode ser racionalizada se for radicalmente atribuída a um outro, distante e distinto. No fundo, segue Freud, nos comportamos como se ninguém acreditasse na própria morte, ou, em outras palavras fosse imortal. A morte é uma coisa que atinge os outros.

Guardamos nossa atitude perante a morte para pessoas próximas e queridas, ou para figuras heroicas que representam para nós a interrupção que a morte configura, um aventureiro tentando subir ao cume de uma montanha, um time inteiro de jogadores mortos em um acidente de avião, um navio que se julgava imune a naufrágios. A morte desse outro nos atinge por que nos colocamos catarticamente em seu lugar. A guerra e como veremos a pandemia, não comporta a atitude convencional diante da morte. As pessoas morrem, não como antes, mas aos milhares de forma que não podem ser consideradas acidente ou casualidade.

Apesar de fenômeno distinto por sua natureza, o ser humano não pode reagir a ele a não ser com os meios psicológicos que dispõe. A morte da pessoa amada ou próxima, daqueles com que o indivíduo se identifica, ou mesmo uma abstração qualquer que se coloque no lugar do objeto (como pátria, liberdade ou algum outro valor), produz uma reação que Freud descreve como luto. Em outras palavras, o trabalho psíquico que diante da constatação que o objeto amada não mais existe opera no sentido de retirar todo o investimento libidinal das ligações com este objeto. A noção de trabalho aqui se apresenta uma vez que o psiquismo que tenta caminhar na direção descrita enfrenta na verdade uma forte oposição, pois ninguém abandona o investimento da libido no objeto ainda que agora ausente. Resiste, se afasta da realidade, sofre, pode desenvolver o que Freud denomina de “psicose alucinatória do desejo”. Mas o normal é que a realidade acabe por se impor e o trabalho do luto está feito.

Existiria um outro estado, que parte da mesma situação de perda mas se caracteriza por um profundo esvaziamento do ego e um rebaixamento acentuado da autoestima, estado que Freud nomeia de melancolia. Diferente do luto, no qual o mundo se torna pobre e vazio, na melancolia é o próprio ego que se esvazia levando a quadros de um profundo e doloroso desânimo, a suspensão do interesse pelo mundo externo, uma sentida perda da capacidade de amar, um rebaixamento muito mais acentuado da autoestima levando a autorrecriminação e em casos mais agudos à autopunição. Outra diferença é que na melancolia a perda do objeto parece se deslocar da consciência, ao passo que no luto nada na perda é propriamente inconsciente.

Por mais interessantes que sejam as diferenças entre os dois estados e certamente as implicações clínicas envolvidas, os que nos chama a atenção é que ambos implicam num doloroso processo de desligamento do objeto. Ocorre, diz Freud em um comentário marginal (mas que para nós assume caráter determinante), que tal processo de desligamento envolve um custo psicológico muito grande, de tal forma que: “Se o objeto não tiver para o ego um significado tão grande, reforçado por milhares de laços, sua perda não se prestará a provocar um luto ou uma melancolia.”

A triste constatação que se nos impõe e que remete à primeira parte de nossa reflexão sobre a guerra, é que para boa parte de nossa população romperam-se os milhares de laços e vínculos que os unia aos seus semelhantes. Os outros são apenas isso, outros. Mais que isso, inimigos e ameaças que se tornam objeto do ódio e não da identidade. O país fraturado racionalizou uma guerra interna que dá vazão a um profundo ressentimento, como nos explicou Maria Rita Kehl em Ressentimento (Boitempo, 2020), de maneira que outro pode receber o investimento do ódio e sua aniquilação não se converter na ambiguidade que está na base tanto do luto como da melancolia. Sua morte é somente isso, sua morte, seu desaparecimento. Não diz respeito àquele que odiava, não remete à sua própria morte, nem move sua culpa por desejá-la. É uma radical negação da morte, o exercício supremo de silenciá-la e, portanto, uma brutal afirmação de imortalidade para aquele que a nega.

Não se trata de uma mera fratura política. Como imaginava Freud na defesa de sua desejada civilização, ela só poderia se impor por meio de um longo período de incidência de uma cultura e dos meios de apresentar-se forte o suficiente diante das pulsões primordiais. Mas aquilo que se impõe como civilização, já nos alertava Walter Benjamin, pode se apresentar como barbárie. Uma relação entre seres humanos que se apresenta como uma fantasmagórica relação entre coisas, seres humanos reificados e coisas fetichizadas. Uma sociabilidade em que própria vida não é mais que um meio de vida, em que os outros se degradam em meros meios de realização individual a serem usados e descartados. Não nos surpreende, portanto, que os “milhares e laços” que se obliteram sob o manto mercantil das coisas acabem por fazer com que os outros não tenham um grande significado para muitos e suas morte não os toquem de forma alguma como uma perda.

A pandemia, diferentemente da guerra, parece eliminar os traços incômodos da intencionalidade, da defesa dos sagrados interesses mundiais, da defesa da civilização ou dos direitos de certos povos se afirmarem como direção da humanidade. Na sua objetividade viral ela se espalha e mata, depois se espalha e volta a matar novamente. A racionalização possível é a conhecida casualidade incontrolável, natural e inevitável. O outro que morre é um ser descartável, não por ser o inimigo propriamente dito, mas por não ser aquele que se julga imortal. No início na pandemia da aids muitos a julgavam como um castigo que eliminaria os homossexuais, da mesma forma um rabino ortodoxo afirmou que a atual epidemia era a espada sagrada eliminando os pecadores até ser ceifado por ela. Não nos esqueçamos da “cegueira lógica” e das extraordinárias vantagens que a mentira proporciona na luta contra os outros. Nesse registro se inclui o “vírus chinês”, os remédios milagrosos, a relativização da doença (“gripezinha”, “resfriadinho”), a negação do isolamento, o combate ao uso de máscaras e outras manifestações de irracionalidade (“E daí?”, “É a vida…”)

Mais de três milhões de casos e mais de cem mil mortes. Do meu ser são arrancados milhares de rostos, minhas mãos se tornam invisíveis diante de meus olhos e a noite é tomada por um rio de murmúrios que escapam dos corpos sem vida quando deito em minha cama. Hoje morreu uma pessoa que eu não conhecia, que nunca conhecerei e isso abre em mim um abismo que nem todas as palavras do mundo podem preencher. A indiferença e a negação me apunhalam como uma segunda morte que segue as milhares de mortes e fico com a clara impressão de que a senhora que cobre seu esqueleto com um manto escuro e segura a foice afiada em suas mãos levou muitas pessoas que já não estavam vivas.

Não é a vida que segue, é a morte que segue em seu macabro trabalho ajudada pelas hordas daqueles que a amam mais do que a vida. Lutemos para que os arqueólogos do futuro, quando escavarem os restos de nossa civilização não encontrem como nossa principal realização a indiferença.

“Toda tristeza do mundo
Não cabe em meus olhos
Por isso a derramo neste rio
Para que outros matem sua sede”

Mauro Iasi

Festival de sandices que exaure o Brasil

Este governo é uma fábrica de ideias péssimas. Algumas delas parecem, no primeiro momento, mentira. Taxar desempregado para financiar um programa de emprego e ainda batizá-lo de verde e amarelo. Adiar de 65 para 70 anos a idade na qual o idoso da extrema-pobreza terá direito a receber integralmente o Benefício de Prestação Continuada. Pegar dinheiro do Bolsa Família para financiar propaganda do Planalto. Todas essas ideias já foram derrotadas, felizmente. Mas o que elas têm em comum? Uma insensibilidade social que chega a ser caricata.

A nova péssima ideia, que no primeiro momento pareceu fake news, é a de adiar o Censo para 2022 e usar os recursos para reforçar o orçamento do Ministério da Defesa. O país simplesmente não pode mais atrasar o registro do seu retrato demográfico, de todas as múltiplas informações que só se consegue com o Censo. Ele fica mais urgente porque já foi adiado por um ano, por causa da pandemia, e porque em 2015 não foi feita a contagem da população.

O vice-presidente Hamilton Mourão admitiu que isso está em análise. O IBGE nada tem a dizer oficialmente sobre o assunto. O temor cresce porque, apesar do excelente quadro técnico do IBGE, a atual direção do órgão sofre de excessiva submissão ao Ministério da Economia, como ficou demonstrado no episódio dos cortes no orçamento do Censo. Mourão argumentou que os projetos do Ministério da Defesa estão atrasados. Se a construção de uma fragata for adiada o país não vai naufragar. Mas sem dados para orientar as políticas públicas ficará à deriva.

"Jair e seus anões", Becs (Argentina)

Algumas ideias mostram um governo sem rumo, que atira a esmo. Aliás, como gosta de atirar. Ele decidiu vetar máscaras em comércio, escolas, igrejas. Felizmente o Congresso derrubou. Tentou tirar a obrigatoriedade de cadeirinha de segurança para criança e aumentar a quantidade aceitável de infrações do trânsito. O Ministério da Economia quis adiar a vigência do Fundeb para 2022, o que criaria um caos no ano que vem. O presidente mandou o Exército produzir milhões de comprimidos de cloroquina e o presidente chegou a correr atrás de uma ema para persuadi-la a ingerir a medicação. O Ministério da Justiça fez um dossiê contra policiais que se declaram antifascistas, ato que serve como autodeclaração da tendência política desta administração. Falou-se em reduzir de 8% para 6% o recolhimento do FGTS, tirando do trabalhador para ajudar o patrão. Cada uma que parece duas.

Há ideias que são fixas. A melhor representante dessa categoria persistente é a CPMF. Não há uma proposta que saia do Ministério da Economia que não seja condicionada à criação do imposto de nome não dito, mas de feição fácil de reconhecer.

Quando as sandices são empilhadas e analisadas percebe-se que não há um centro gerador das más ideias. Há método na coisa. O governo segue as modernas técnicas de gestão descentralizada. De cada ponto pode sair maluquice. Essa de trocar o Censo por armamento, por exemplo, não se sabe de onde surgiu. É tão ruim que seu autor não teve a coragem de defendê-la publicamente. Mourão falou porque foi perguntado e deu uma esperança: dependerá do Congresso.

O ex-presidente do IBGE Roberto Olinto definiu a proposta como “escândalo inaceitável” e explicou algo que não ocorreu aos nossos governantes. “Ter o Censo é também fazer a defesa do país”, porque, como explicou à repórter Adriana Fernandes do “Estadão”, “é muito mais estratégico ter o conhecimento do país”. O Brasil muda muito, é complexo, tem enormes desigualdades e carências, e sairá ainda mais desigual desta pandemia. Que cabeça pode conceber a proposta que, como disse Olinto, “rompe qualquer protocolo de produção de estatística mundial de qualidade”?

Muitas das ideias ruins são derrotadas depois de batalhas no Congresso, na Justiça ou no debate público. Mas elas todas juntas mostram que, se vivo fosse, o genial Sérgio Porto, Stanislaw Ponte Preta, poderia reinaugurar o que ele batizou de “festival de besteiras que assola o país”. Hoje, o termo “sandice” define mais precisamente certas ideias governamentais. E em vez de assola, talvez a palavra “exaure” seja mais exata. O país está esgotado de tanto brigar pelo que é óbvio, pelo que deveria estar claro, pelo que já estava garantido. Agora será necessário lutar para que o IBGE faça o Censo. Que insensatez.