A forma mais baixa do sobreviver é o matar. Assim como o homem mata o animal de que se alimenta; assim como este jaz indefeso diante dele, que pode cortá-lo em pedaços e reparti-lo, na qualidade da presa que incorpora para si e para os seus, assim também ele quer matar o ser humano que lhe atravesse o caminho, que o enfrente e que, ereto, se apresente como seu inimigo. Quer matá-lo para sentir que segue existindo, ao passo que ele não mais. O morto, porém, não deve desaparecer por completo: sua presença física como cadáver é imprescindível a esse sentimento de triunfo. Agora pode-se fazer com ele o que se quiser, sem que ele seja capaz de fazer mal algum. O morto jaz e jazerá para sempre; jamais tornará a levantar-se. Pode-se tomar-lhe a arma; podem-se cortar fora pedaços de seu coro e conservá-los para sempre como troféus. Esse momento da confrontação com aquele a quem matou impregna o sobrevivente de uma espécie de força bastante singular, não comparável a nenhum outro tipo de força. Não há momento que mais clame por seu próprio retorno.
E isso porque o sobrevivente sabe de muitas mortes. Se esteve presente a uma batalha, assistiu aos outros tombando à sua volta. Partiu para a batalha com o propósito muito consciente de afirmar-se perante os inimigos. Seu objetivo declarado era abater o maior número possível deles, e somente logrará vencer se consegui-lo. Para ele, vitória e sobrevivência são uma só coisa. Contudo, também os vitoriosos têm seu preço a pagar. Em meio aos mortos, jazem muitos dos seus. O campo de batalha compõe-se de uma mescla de amigos e inimigos; o amontoado de mortos é um só. Nas batalhas, por vezes ocorre de não se poder separar os mortos de ambos os lados: uma vala comum reunirá, então, os restos de todos.
A esse amontoado de mortos que o cerca, o sobrevivente contrapõe-se como o felizardo e o preferido. Que ele disponha ainda de sua vida, quando tantos outros que o acompanhavam momentos antes já não a têm mais, constitui um fato monstruoso. Os mortos jazem desamparados; dente eles, ereto, ergue-se o sobrevivente; é como se a batalha houvesse sido travada para que ele sobrevivesse. A morte foi desviada para os outros. Não que ele houvesse evitado o perigo; em meio a seus amigos, ele enfrentou a morte. Aqueles tombaram; ele permanece de pé, e se gaba.
Todos os que já estiveram numa guerra conhecem esse sentimento de grandeza diante dos mortos. O luto pelos camaradas pode ocultá-lo; mas destes há poucos, ao passo que os mortos são sempre muitos. A sensação de força por, contrariamente a estes últimos, se estar vivo e de pé é, no fundo, mais vigorosa do que qualquer pesar; trata-se do sentimento de se ter sido eleito dentre muitos cujo destino é manifestamente idêntico. De algum modo, e simplesmente pelo fato de ainda estar vivo, o sobrevivente sente-se o melhor. Ele provou o seu valor, pois vive ainda. E provou-o dentre muitos, pois todos quantos jazem no chão não vivem mais. Aquele que obtém êxito frequente nesse sobreviver é um herói. Ele é mais forte. Possui mais vida em si. Os poderes superiores lhe têm afeto. Elias Canetti, "Massa e Poder"