segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Pensamento do Dia

 

Kahn Yunis no 59º dia de bombardeio em Gaza

O sobrevivente

A forma mais baixa do sobreviver é o matar. Assim como o homem mata o animal de que se alimenta; assim como este jaz indefeso diante dele, que pode cortá-lo em pedaços e reparti-lo, na qualidade da presa que incorpora para si e para os seus, assim também ele quer matar o ser humano que lhe atravesse o caminho, que o enfrente e que, ereto, se apresente como seu inimigo. Quer matá-lo para sentir que segue existindo, ao passo que ele não mais. O morto, porém, não deve desaparecer por completo: sua presença física como cadáver é imprescindível a esse sentimento de triunfo. Agora pode-se fazer com ele o que se quiser, sem que ele seja capaz de fazer mal algum. O morto jaz e jazerá para sempre; jamais tornará a levantar-se. Pode-se tomar-lhe a arma; podem-se cortar fora pedaços de seu coro e conservá-los para sempre como troféus. Esse momento da confrontação com aquele a quem matou impregna o sobrevivente de uma espécie de força bastante singular, não comparável a nenhum outro tipo de força. Não há momento que mais clame por seu próprio retorno.


E isso porque o sobrevivente sabe de muitas mortes. Se esteve presente a uma batalha, assistiu aos outros tombando à sua volta. Partiu para a batalha com o propósito muito consciente de afirmar-se perante os inimigos. Seu objetivo declarado era abater o maior número possível deles, e somente logrará vencer se consegui-lo. Para ele, vitória e sobrevivência são uma só coisa. Contudo, também os vitoriosos têm seu preço a pagar. Em meio aos mortos, jazem muitos dos seus. O campo de batalha compõe-se de uma mescla de amigos e inimigos; o amontoado de mortos é um só. Nas batalhas, por vezes ocorre de não se poder separar os mortos de ambos os lados: uma vala comum reunirá, então, os restos de todos.

A esse amontoado de mortos que o cerca, o sobrevivente contrapõe-se como o felizardo e o preferido. Que ele disponha ainda de sua vida, quando tantos outros que o acompanhavam momentos antes já não a têm mais, constitui um fato monstruoso. Os mortos jazem desamparados; dente eles, ereto, ergue-se o sobrevivente; é como se a batalha houvesse sido travada para que ele sobrevivesse. A morte foi desviada para os outros. Não que ele houvesse evitado o perigo; em meio a seus amigos, ele enfrentou a morte. Aqueles tombaram; ele permanece de pé, e se gaba.

Todos os que já estiveram numa guerra conhecem esse sentimento de grandeza diante dos mortos. O luto pelos camaradas pode ocultá-lo; mas destes há poucos, ao passo que os mortos são sempre muitos. A sensação de força por, contrariamente a estes últimos, se estar vivo e de pé é, no fundo, mais vigorosa do que qualquer pesar; trata-se do sentimento de se ter sido eleito dentre muitos cujo destino é manifestamente idêntico. De algum modo, e simplesmente pelo fato de ainda estar vivo, o sobrevivente sente-se o melhor. Ele provou o seu valor, pois vive ainda. E provou-o dentre muitos, pois todos quantos jazem no chão não vivem mais. Aquele que obtém êxito frequente nesse sobreviver é um herói. Ele é mais forte. Possui mais vida em si. Os poderes superiores lhe têm afeto.
 Elias Canetti, "Massa e Poder"

Enquanto houver carne...


Não podemos ver mais crianças com as feridas da guerra, com as queimaduras, com os estilhaços espalhados pelo corpo, com os ossos partidos. A inação dos que têm influência está a permitir a morte de crianças. Esta é uma guerra contra as crianças
James Elder, porta-voz da UNICEF no hospital Nasser, em Gaza

Fundo para pobres? Nem pensar

Discute-se a destinação de recursos para um fundo e o senador Meira de Vasconcelos intervém:

“Agora não é possível fazer mais, no estado em que se acha o orçamento.”

Volta-se a discutir a criação de um fundo, desta vez para incentivar a permanência de estudantes pobres no ensino médio, pois é lá que mora a maior taxa de evasão escolar. Os jovens teriam acesso a um pé de meia ao fim de cada ano, depois de terem sido aprovados.

A Medida Provisória que cria esse programa saiu na semana passada e já está debaixo de chumbo. Ectoplasmas da ekipekonômica reclamam da metodologia aplicada à despesa, e papeleiros chegam a falar em “contabilidade criativa”.

Tudo bem, mas a fala do senador Meira de Vasconcelos nada tem a ver com a MP patrocinada pelo MEC. Ela aconteceu em 1883, quando o visconde de Paranaguá tratava da necessidade de um reforço para o Fundo Emancipador dos Escravos. (Burlado, esse fundo pouco funcionou. Cinco anos depois a abolição libertou os escravizados, sem qualquer indenização.)


Meira de Vasconcelos havia governado Minas Gerais e batalhado pelo progresso da agricultura. Não integrava a tropa de choque escravagista. Sabia fazer contas e por isso protegia o orçamento. Só não percebia que estava na maior nação escravista do mundo, com os dias contados.

No tiroteio contra a MP ninguém tratou do alcance social da medida. Em 2010 ninguém falou contra a anabolização do Fundo de Financiamento Estudantil, o Fies. Ele se destinava a custear as anuidades de estudantes das universidades privadas, sem fiador real e a juros baixos.

Em tese, foram dois fundos. Na vida real, o programa do MEC põe dinheiro no bolso de quem precisa e foi aprovado ao fim do ano letivo. Já o Fies punha dinheiro no bolso das faculdades privadas, que transferiram para a Viúva suas carteiras de inadimplentes.

O Fies fez a alegria dos papeleiros e deixou um calote de R$ 54 bilhões. O programa do MEC instituído pela MP do governo deve custar até R$ 20 bilhões e já se articula o seu encolhimento, como encolheu-se o Fundo de Emancipação dos Escravos. Afinal, Meira tinha alguma razão, pelo estado em que se encontrava o orçamento.

Numa crueldade dos deuses, o ministro da Educação ao tempo em que foi bombado o Fies era o atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

O debate em torno da criação do fundo de bolsas para alunos pobres do ensino médio começou da pior maneira possível.

A janela aberta pelo ministro da Educação, Camilo Santana, permite que a iniciativa privada entre na dança. Ela pode participar desse programa de bolsas patrocinando cinco, cinquenta ou quinhentos jovens nos municípios ou nos estados, com direito à divulgação publicitária de cada iniciativa.