quinta-feira, 11 de junho de 2020

Pensamento do Dia


Miséria, como sempre

O coronavírus colocou de novo no centro do nosso vocabulário uma palavra que a gente ouve há gerações e não consegue se livrar dela: miséria. O palavreado inócuo de sucessivos governos petistas alardeando exitosa “inclusão social” e “combate à pobreza” já havia sido desmentido pelos números antes mesmo da atual tripla crise política, econômica e de saúde pública – e Lula foi beneficiado por um ciclo de bonança internacional que não se repetirá por gerações.

No meio da pior crise de nossa memória o atual governo está demorando (assim como demorou para se adaptar ao jogo político) para entender que miséria é o fator que condicionará todos os cálculos políticos e estratégicos. Miséria é o que já jogou para o alto o caminho de ação no qual Paulo Guedes insistia ainda naquela semana de março na qual as medidas de emergência foram decretadas. A saber: o de que reformas estruturantes (Previdência, tributária, administrativa, de Estado, etc) produziriam dentro de um horizonte político conveniente, o de 2022, o “destravamento” da economia e consequente combate sustentável da miséria.


Ocorre que ela aumentou antes, e inverteu prioridades. A miséria está sendo agravada por uma crise que evidenciou de forma ainda mais brutal o grau de informalidade e vulnerabilidade de vastas camadas da nossa população, especialmente nas periferias das grandes capitais. Nesse contexto de pobreza gritante e crescente pode-se chamar o conjunto de parlamentares do que se quiser, menos de bobos, e a resposta que articularam até aqui (a de escancarar os cofres públicos) é o reconhecimento político da gravidade de uma situação social que ainda deve piorar antes de talvez melhorar, e não se sabe quando.

Em outras palavras, o dilema imposto ao governo pela miséria do País é como equilibrar o altíssimo custo político de parecer produzir ajuda insuficiente para milhões de necessitados versus o altíssimo custo fiscal de manter programas de renda básica. Diante da claque com que “dialoga” entrando ou saindo todo dia do Alvorada, Jair Bolsonaro já resumiu o problema para o qual ninguém tem solução. “Não tenho dinheiro para seguir nisso muito tempo”, afirmou.

Aproveitou também para repetir que a “culpa” é de governadores, do STF, de “terroristas” manifestantes, da imprensa ou, mais recentemente, da OMS, que estaria, por motivos políticos, interessada em “quebrar o Brasil” (desalojá-lo do poder, entende-se). Bolsonaro evidentemente aprecia os benefícios político-eleitorais trazidos por programas de distribuição de dinheiro, conforme demonstram as pesquisas. Porém, reconhece que não há mais espaço fiscal para criação de despesas obrigatórias (como prestação de benefícios desse tipo) – a não ser que se arrisque levar as contas públicas à insolvência.

Na busca desenfreada por uma resposta ao “que fazer” surgem as propostas lacradoras de internet, como a de reduzir salários nos três Poderes. É um poderoso símbolo, mas no mundo dos números ainda insuficiente para combater a miséria. Ou a de colocar na frente de qualquer outra reforma a do sistema tributário, que ajudasse, pela simplificação, a diminuir a informalidade – portanto, ampliando o alcance de benefícios sociais. Como é fartamente sabido, o grande obstáculo a qualquer reforma tributária é a ausência de lideranças políticas capazes de refazer o pacto federativo, fora descascar o abacaxi de equilibrar o jogo de interesses de múltiplos grupos econômicos e corporativistas.

Todos que lidam com história de campanhas políticas lembram da célebre frase de marqueteiros americanos quando tratavam de convencer um candidato à presidência (Bill Clinton) a manter o foco. “It’s the economy, stupid.” No Brasil a miséria impõe outra prioridade. “It’s the social, stupid.” É simplesmente não deixar pessoas morrerem de fome. E a gente achava que já tinha deixado isso para trás.

Denúncia


Denuncio a máquina de fabricar tristeza
denuncio os assassinos da paisagem
o verso e o reverso das escritas secretas
as organizações da angústia nocturna
os que precisam de criada para todo o serviço
e para uso próprio do menino da casa
os investigadores puristas da moral alheia
a oferta de flores injectadas de veneno
os que escrevem cartas de recomendação
os que apunhalam reputações com risos a três quartos
os que recebem à linha para dizer bem ou mal
os que têm a sua religião para as ocasiões
os segregacionistas das little rock
o santo e a senha de todos os lados
os fabricantes de morfina com nomes potáveis
a poética dolorosa de conversa fiada
e [sic] arame farpado camuflado em fitas de inauguração
os que têm coração apenas para as setenta pulsações
denuncio os denunciantes.

Armindo Mendes de Carvalho, "Camaleões e altifalantes"

Os mortos de cada um

Matemática, nem pensar. Em sua incompatibilidade com o conhecimento, Jair Bolsonaro mete as patas traseiras pelas dianteiras até na mais elementar aritmética. Basta ver seu uso das quatro operações: somar, diminuir, multiplicar e dividir.

Começou por dividir o povo brasileiro em “nós” contra “eles”, imaginando que sua facção —“nós”, digo, eles— fosse majoritária em relação aos que se oporiam aos seus desmandos —“eles”, digo, nós. Um ano e meio depois de sua posse, o resultado está nas ruas. Além dos 30 jecas que vão ao Alvorada para cacarejar aos seus palavrões, os que ainda saem para defendê-lo só podem redobrar em violência, já que estão minguando em número.


Ao mesmo tempo, Bolsonaro vê multiplicarem-se os que repelem sua política de negação da pandemia, agressão às instituições, destruição da Amazônia, extermínio do povo indígena, racismo explícito, desmantelamento da educação, da cultura e do patrimônio e suas agora declaradas ligações com corruptos. A aversão a ele já não se limita aos brasileiros de várias cores políticas e partidárias. Vem também de importantes instituições internacionais com quem o Brasil mantém —ou mantinha— relações. Quem vai querer negociar com um país nas mãos de um desequilibrado?

E, ao maquiar o número de vítimas diárias da Covid, para fazer parecer que elas estão diminuindo, Bolsonaro pensa que ninguém aqui sabe somar. Mas não é uma questão de tabuada. Por trás de cada número, há alguém que seguiu conosco pela vida, que nunca mais veremos e em cujo sofrimento final não suportamos nem pensar.

Cada um de nós já tem mais de uma pessoa por quem chorar nesta pandemia. Alguns dos meus mortos são Aldir Blanc, o desenhista Daniel Azulay, o economista Carlos Lessa, a cantora Dulce Nunes e o fotógrafo Pedro Oswaldo Cruz. Eu os estimava e admirava. As mentiras de Bolsonaro não os trarão de volta.
Ruy Castro

Desabafos

1. Quando o clássico autoritarismo nacional toma fôlego, ataca de cima e revela o desejo de retorno; quando a democracia é ameaçada por manifestações e agressões verbais que transformam adversários em inimigos; quando insultos são vociferados pelo presidente da República e alguns dos seus ministros — como o da Educação, o qual não tem ideia do que é um “povo indígena”—; quando se interfere na Justiça em favor do familismo — esse vírus central do privilégio e da corrupção—; quando vejo a olho nu a mais neurótica irresponsabilidade cívica; nada é mais necessário do que a lucidez das análises compreensivas. É preciso um desabafo sociológico.

Pois se a consciência, como mostraram Marx, Weber, Durkheim e, sobretudo, Freud, é o que nos torna entidades morais — com o dever inexorável de pensar duas ou mais vezes contra e a favor de nós mesmos — , nada é mais premente do que tentar conjugar o histórico com o eventual. A conjuntura não abole a estrutura; antes, pelo contrário (veja-se Marshall Sahlins), elas são interdependentes. Sistemas fundados no servilismo, na escravidão e no ressentimento coletivo reprimido suscitam a ilusão das soluções derradeiras, de regimes definitivos.

Ganha um fim de semana em Manhattan (com direito a pandemia e a tomar parte nos protestos contra a segregação racial) quem me indicar um comentário político que não seja sociológico.


2. Por causa disso, reitero a pergunta que não pode calar: o que trouxe ao centro no cenário político brasileiro o capitão Bolsonaro e filhos? Eles — toscos e rudes — surgiram do nada ou foram feitos protagonistas porque a peça a que se assistia era desmoralizadora e dava cabo do próprio teatro, hoje — paradoxalmente — não menos ameaçado também por meio um agente externo sem intenção política: a pandemia.

3. Invoco o Rousseau do “Contrato social”: “Antes de examinar o ato pelo qual um povo se entrega a um rei, será melhor examinar o ato que o torna povo. Este ato é a verdadeira fundação da sociedade.”

Convenhamos que isso não é impossível, mas é difícil numa sociedade fundada de fora para dentro, debaixo de um autoritário e burocrático colonialismo radicalmente católico e anti-igualitário. Um sistema consolidado pela fuga, em 1808, da Corte portuguesa diante do avassalador surto democrático napoleônico. Um Brasil movido por laços de puxa-saquismo com punhos de renda, irmão de um desumano escravismo negro.

4. Fomos reino, império, república logo alterada como ditadura civil e militar. Pagamos, penamos e conseguimos a democratização. Hoje somos um Estado nacional que se quer moderno, próspero e democrático. Fizemos a nossa independência de Portugal ou foi o contrário? Mais: quando é que, como diz Octavio Paz focando o México e a América Espanhola, vamos nos tornar independentes e a favor de nós mesmos? Quando vamos enfrentar a nossa ambiguidade institucional e o protagonismo político do nosso familismo?

5. O mandonismo absolutista, irritante e errático de Jair Bolsonaro é revelador. Mostra uma total incompreensão do seu papel de — usemos um epíteto antigo — “supremo mandatário da nação”. O que vi no famoso vídeo foi como um líder influencia seus seguidores. Uns, é claro, mais do que outros. Mas ali, é óbvia a coerção a arremedar o líder, copiando o seu comportamento mal-educado e o seu vocabulário escabroso. Pois não há quem não deseje um líder capaz de desafiar o bom senso, por mais que isso seja uma infantilização e conduza ao desastre como, vale lembrar, foi o caso de uma Alemanha “altamente civilizada e ariana” na sua paixão por Hitler e pelo seu nacional-socialismo germânico.

6. Quando usamos de modo imperativo categorias constitutivas do regime democrático como liberdade, igualdade e justiça, corremos o risco de praticar terrorismo ideológico porque — dependendo do contexto — surge o silêncio. Quem seria contra a liberdade sem ser suspeito de fascismo? E, no entanto, ser privado de escolha ou do debate é estar na prisão do fascismo que — basta olhar para a história — é de direita e lamentavelmente também de esquerda.

Essa democracia que sempre e em todo lugar produz tantas crises deve ser a todo custo defendida. Justamente por isso, não pode deixar de ser pensada.

Brasil, que descanse em paz!


O homem da coragem errada

A qualidade de governante não se adquire sem fundamento, especialmente se o rolo compressor que brota de individualidade exacerbada é safra diária de disparates absurdos.

A combinação de coragem errada com circunstância ruim é um desastre. Abrir a boca para berrar só piora se a educação é nota de rodapé e o texto principal, palavrão. A agressividade nele é um método cujas ameaças são um ardil.

Sempre foi admitido no círculo das instituições mesmo quando as criticava sem pudor. Sua lógica é parecer fora dos costumes desde que foi inocentado no STM por desonra de conduta e nunca punido pelas injúrias e pelos desacatos como deputado. Duas escolas que tiraram dele a noção de castigo. Percebeu que a verdade é diminuída em valor quando a autoridade, civil e militar, de direita ou esquerda, está bem confortável em seu cargo e disposta a acreditar no que for.

Obtendo sucesso como um fora da ordem se envolveu em ações inimagináveis, bem abaixo do padrão de um país que fala tanto em Estado Democrático de Direito. E constatou que os fatos, vindos dele, não valem como prova. Bingo. Beneficiado pela simbiose dos radicais – um pacto entre espalha-brasas cujos extremos se alimentam –, livrou-se do confronto adulto e informado, o único que pode realmente detê-lo. Pôs em prática a ideia de que o medo ativa o inimigo. E decidiu que amigo é quem embarca na aventura destrutiva em que vive.

Uma boa maneira de conhecer a vida dos homens é observar o tom de voz e a frequência das palavras que usa. A palavra insincera cumpre a função de abolir a relação com a realidade que incomoda. Escorre e arrasta a culpa para longe da consciência que a utiliza. Deposita no outro a responsabilidade que não assume.

Ele está levando uma surra dos estereótipos que cultiva. Esqueceu-se de que na última eleição para presidir a Câmara teve quatro votos. Nem o filho votou. Mas como caiu para cima, sem nenhum atributo de liderança, mantém a astúcia: ser hostil à divergência de opinião é a principal característica do sucesso político há mais de 30 anos.

A reunião não seria jocosa mesmo se a veneziana continuasse fechada e o creia-em-mim não fosse tão paranoico. Já são 16 as vezes que a palavra-espetáculo que mais o excita é a referência ao sêmen usada como ponto final da frase. Um verdadeiro doping vocabular: não haverá outro dia igual a ontem; eu sou a Constituição; não respondo a ninguém que queira me julgar; não cedo ao Estado meu poder. Somado a essa mania de distorcer tudo, fazer gato-sapato da história dos judeus e misturar Confúcio com ignorância.

O sujeito cindido e espaçoso é assombrado. Meios-tons na economia, strip-tease na política, desprezo por doentes, apartheid social-ambiental rebaixando o perfil internacional do País. Jogador treinado no ringue parlamentar, usa o baralho sem conhecer todas as cartas e ameaça com recursos de poder que não possui.

Mas joga a isca. Anunciar, sem ser contestado, que tem seus tontons macoutes voluntários e ativos é de rir sem alegria. Ai de ti, SNI. A ameaça sem dubiedade às instituições Supremo, Congresso, mídia lembra “acorda, amor. É a dura, numa muito escura viatura”.

Os serviços de inteligência estão totalmente atomizados e acabam operando uns contra os outros. Não servem nem para antecipação de decisão, nem para contrainformação. Ao invés de o Estado organizar sua sinergia para proteger o País, o presidente usa os buracos na doutrina de segurança e defesa para fazê-la mais vulnerável.

Interessante é saber de onde vem esse desejo de desobedecer. Com as críticas do ministro da Justiça soubemos como se concilia o sistema de Justiça com a ideia de que “lei errada não se cumpre”. O crime organizado gosta da confusão criada por presidente que prega não ter medo da ameaça legal.

Refém do temperamento bilioso, coloca, cuidadosamente, a mão suja na mão de quem lhe estende a mão, assinando a culpabilidade de um Estado que zomba da doença e da morte. Quanto ao resto, quem quiser ver algo melhor que veja. Na eleição desanca o Parlamento, no governo confirma o ditado: quem não tem cão caça como gato.

Domingos imorais. Quando a pata do animal escavou o asfalto em busca de um ponto de apoio o arreio afrouxou e ele caiu do cavalo dias depois ao escorregar em outro Estado. Foram cinco voltas inúteis num Super Puma, porta aberta, pondo todos em risco. Se fosse bombeiro não se exibia, nem pisava na mangueira.

A combustão alimenta o paradoxo. A cada hora finge ir ao máximo nas palavras por imaginar que no grito tira a vantagem de quem o ameaça. As aversões ocultas, as dificuldades de apego, a falta de altruísmo e empatia não caracterizam nosso Estado. Governante que induz a população, durante pandemia, a desprezar os riscos de adoecer e morrer pode terminar em tribunal de reparação.

Mantida ativa a sementeira o grão se multiplica em cem, desatarraxa a sociedade e atrela a democracia a um alfinete. Destravar a granada é enquadrar seu impulso de guerra na sabedoria de buscar a paz obrigatória, dever de quem governa.

Paulo Delgado

Obrigada a quem continua criando um pequeno espaço de cooperação e carinho

Enquanto escrevo este texto (e aqui, sinto muito, vem o chatíssimo aviso habitual: o artigo leva 15 dias para ser publicado) percebo ao redor um desalento que começa a impregnar como uma garoa. Faz três meses que começamos este apocalipse em estado de choque, mas estimulados, unindo nossas forças contra a escuridão e querendo acreditar que a bondade e a generosidade sairiam reforçadas. Agora, por outro lado, vejo que muitos andam com o ânimo abatido, assustados com a irritação áspera e crescente, com a fúria na política e nas ruas, com a falta de solidariedade dos irresponsáveis que descumprem as normas de proteção mais básicas. “Esta crise não está fomentando o melhor das pessoas, e sim o pior”, me disse um amigo.


Pois bem, eu não sou assim tão pessimista. E vou dar um exemplo: na pesquisa de março do CIS [agência pública espanhola de pesquisas de opinião], na pergunta relativa a como as pessoas viam sua situação econômica, só 35,8% responderam que a consideravam “boa” ou “muito boa”. Mas no levantamento de abril essa cifra subiu para 69,8% dos espanhóis; e em maio chegou a 70,1%. Enquanto a economia do nosso país afunda e a pior tempestade da história se intensifica, 7 em cada 10 compatriotas consideram que sua situação é boa ou muito boa, dobrando, em dois espantosos meses, a percentagem anterior ao estado de alarme. Esses dados do CIS foram muito criticados. Tinham mudado a empresa pesquisadora e desapareceu a opção de responder “regular”, antes escolhida por 38%. Mas, destes, 33% marcaram “bom”, e só 4% responderam “ruim”. Algo muito estranho, para o que não encontro outra explicação além da ativação vertiginosa dos neurônios-espelhos, aqueles que estão na própria base da empatia e que nos permitem ser melhores do que habitualmente somos. Um amigo querido, jornalista e jovem, me disse recentemente: “Meu salário bruto é de quase 1.500 euros e recebi 440 do ERTE [8.334 e 2.446 reais, respectivamente; ERTE é um mecanismo que permite a suspensão ou redução temporária da carga horária e do salário do trabalhador]. E agradeço”. Esse agradeço é a chave de tudo. A pandemia tirou a imensa maioria dos espanhóis da contemplação do nosso próprio umbigo; obrigou-nos a nos colocarmos no lugar dos outros, a nos condoermos com as graves dores que esta crise nos trouxe, a nos preocupar com os mais fracos e os mais desprotegidos. Estou certa de que, se tivessem feito a pergunta do CIS ao meu amigo, teria optado pela resposta “bom”, com seus míseros 440 euros. Aumentamos o estoicismo e a resiliência; e, sobretudo, começamos a olhar para os outros com genuína compaixão, uma linda palavra que significa justamente sentir com.

O que na verdade está cheio de lógica, pois é o comportamento habitual do ser humano nestes casos. Numerosos estudos demonstram que os coletivos em situação mais precária são mais solidários que os capitalistas, porque precisam dessa ajuda mútua para sobreviver. É um recurso genético, mas isso não impede que seja lindo.

E assim, do mesmo jeito que meu amigo agradece seus 440 euros, quero agradecer a todos esses concidadãos que se juntam emocionalmente em torno dos mais fracos, que são capazes de encarar com integridade seus próprios medos e estão dispostos ao sacrifício. Obrigada aos que continuam aplaudindo todos os dias, criando esse pequeno espaço transversal de cooperação e afeto. Obrigada também aos que aplaudem, embora depois esmurrem uma frigideira, que me consta que os há; as pessoas têm todo o direito a protestar, mas, quanto àqueles que além de protestar continuam aplaudindo, acredito que não se deixaram embotar pelo sectarismo agressivo e fratricida de uns quantos que tampouco são tantos (um apelo: se em vez de encherem a paciência por meia hora limitassem o panelaço a 10 minutos, a saúde mental e auditiva do país melhoraria). Obrigada a todos os que põem máscaras para cuidar do próximo: os energúmenos que descumprem sem motivo são poucos. Comprovar como tem gente responsável me traz um sorriso fraternal aos lábios e, como não se vê isso sob a proteção, proponho que adotemos o sinal de sorriso da língua de sinais: bater o ar com o dedo indicador estirado junto à comissura da boca, em direção à orelha. Em suma: obrigada, amigos todos, compatriotas, por tentar sulcar com corações brancos estas águas tão turvas.

Desserviço à Pátria

Aconteceu o que a cadeia de comando das Forças Armadas mais temia quando o general da ativa Eduardo Pazuello caiu de paraquedas (sem trocadilho) no Ministério da Saúde. Depois das idas e vindas, confusão e tumulto, com os números das vítimas e de infecções por Covid-19, o desmanche da pasta passa a ser associado aos militares. Não só pela sua forte presença em uma área onde são estranhos no ninho, mas também por serem os executores de uma estratégia de esperar pela “contaminação por rebanho” defendida pelo presidente da República desde o início da pandemia.

Seria ilusório acreditar que os militares do Ministério estão apenas cumprindo ordens, por disciplina e respeito à hierarquia. Há absoluta sintonia entre eles e o presidente Jair Bolsonaro no tocante à estratégia adotada. É próprio de sua formação ver as mortes como efeito colateral de uma guerra, compensado pelo objetivo de aniquilar o inimigo.

Em sendo assim, as mortes da Covid-19 são efeitos colaterais do enfrentamento da pandemia pela via do povoamento das ruas para que o maior número de pessoas adquiram anticorpos. No máximo, lamentam as vidas ceifadas – segundo o presidente, o destino de todos nós.

A banalização das mortes da pandemia é decorrente de uma política eugenista adotada por Bolsonaro com o respaldo do núcleo militar palaciano. Nela, só os mais fortes sobrevivem.


Muito se fala da preparação dos militares, ao longo de toda uma carreira. De fato, podem estar prontos para o exercício de suas funções profissionais e constitucionais, mas isto não os capacita necessariamente como gestores da administração civil, em particular em áreas sensíveis como a saúde. Não têm a formação, o preparo e o conhecimento necessários para gerir o Sistema Único de Saúde, ainda mais em tempos de pandemia.

A negação da ciência é algo estranho à formação dos militares. Desde o fim da guerra do Paraguai, quando foram fortemente influenciados pelo positivismo, o conhecimento científico é visto como condição necessária para o progresso, ao lado da ordem.

Pois bem, quando o general Eduardo Pazuello assina um protocolo sobre o uso da cloroquina, sem o menor embasamento em evidências científicas, ou despreza o isolamento social e as estatísticas como fundamentos para o combate à pandemia, está negando aquilo que lhe foi ensinado na academia militar. Benjamin Constant deve estar se revirando no túmulo por causa do negacionismo dos militares encastelados no Ministério da Saúde.

Conceitos militares quando aplicados à vida civil costumam provocar desastres. Isso vem acontecendo com as técnicas de informação e contrainformação, elementos da guerra psicológica adversa, desde os tempos da doutrina de Segurança Nacional elaborada pela Escola Superior de Guerra, em 1947. A informação é vista como segredo militar a ser guardado sob sete chaves e a contrainformação como elemento estratégico para desnortear o inimigo.

O princípio cabe na lógica de uma guerra objetiva ou fria, onde a meta é exterminar o inimigo. Entende-se que em tais circunstâncias não se informe as baixas e o número de mortos. Só que a batalha contra o coronavírus é completamente diferente das guerras tradicionais. O objetivo não é matar, é salvar vidas. Daí porque a transparência, a informação, os dados fidedignos e as evidências científicas são armas para derrotar o inimigo.

Ter um general sem o menor preparo para comandar o Ministério da Saúde é tão absurdo como seria nomear um infectologista ou um epidemiologista para comandar o Exército Brasileiro.

Não se trata de jogar nas costas do general toda a responsabilidades pelos absurdos cometidos pelo governo Bolsonaro contra a saúde pública.

Ademais, seu fardo de culpa deve ser compartilhado com o general Braga Netto, suposto coordenador geral no combate à pandemia, que ainda não disse a que veio. Sua atuação é pífia. Só foi visível seu esmero em ofuscar e torpedear o então ministro Luiz Henrique Mandetta.

Eduardo Pazuello pode ser um bom paraquedista, um bom comandante de tropa, mas é um desastre no combate à pandemia. Faz mal à sua biografia, desserve à pátria e à credibilidade do Exército. Faria melhor se voltasse para a tropa.

Oficiais da ativa das Forças Armadas extrapolam aqueles incrustados no núcleo de generais palacianos. Somam-se a eles centenas de outros alocados em cargos governamentais, não raro fora de suas áreas de expertise, comprometendo a imagem da instituição. Só no ministério da Saúde são vinte e cinco em postos estratégicos.

Até para evitar que a bomba da pandemia estoure no colo das Forças Armadas, é imperioso que o general Eduardo Pazuello se afaste. Já passou da hora do Ministério da Saúde voltar para as mãos de quem é do ramo. Só assim não haverá novas trapalhadas e o Brasil poderá vencer o coronavírus. Pazuello é a certeza da derrota.

O Brasil vai deixar as pessoas morrerem?

A saúde no Brasil não é uma maravilha, nem nunca foi. Mas andou fazendo progressos. Trinta e poucos anos atrás, os deputados constituintes reunidos em Brasília resolveram cometer a ousadia de garantir a todos os brasileiros o acesso à saúde. Muita gente nem sabe disso, mas, antes de 1988, só havia dois jeitos de obter tratamento médico: pagando caro por ele ou recebendo caridade, talvez de uma instituição da Igreja, como a Santa Casa.

A nova Constituição de 1988 foi direta e clara: saúde passou a ser não só direito de todos, mas também dever do Estado. Haveria no país um sistema público, gratuito e universal de saúde, como em quase todos os países desenvolvidos do mundo (os EUA são a exceção notável), garantindo que dinheiro não seria necessário para evitar que alguém seja abandonado para morrer sem atendimento. Nascia do nada, com uma promessa no papel, o SUS, Sistema Único de Saúde.

E se eu sair dizendo que o SUS é uma das grandes maravilhas da humanidade, sei que não vou convencê-lo. Não é uma maravilha: o SUS tem carência de equipamentos, filas monstruosas, que em algumas especialidades se estendem por anos, leitos de menos, tabelas tão defasadas a ponto de que um médico não ganha muito mais para fazer um procedimento para a rede do que ganharia dirigindo um Uber.

Mas, com todos os seus defeitos, é inegável que o SUS diminuiu a barbárie deste país. Isso é evidente nos números. Da criação do SUS até hoje, a mortalidade infantil caiu incríveis 70%, graças principalmente a um programa barato chamado Saúde da Família: equipes de saúde espalhadas por todo o território nacional, perto da população toda. Essas equipes mal dispõem de equipamento ou medicamento, mas a mera presença de médicos e enfermeiros salvou a vida de milhares de bebês recém-nascidos, que ganharam o direito de crescer e de escapar da miséria.

A expectativa de vida do brasileiro engordou uma década inteira desde o surgimento do SUS: vivíamos em média 66 anos, hoje passamos dos 76. Parecia que estávamos mesmo tornando-nos um pouquinho mais próximos dos países civilizados da Europa ou da Ásia, onde a vida costuma passar dos 85 anos.


O primeiro grande teste do novo sistema de saúde brasileiro foi, imagine você, uma pandemia: a aids, que surgiu naqueles 1980s e de lá para cá mataria 30 milhões de pessoas no planeta. O vírus HIV espalhou tragédia pelo mundo, mas foi especialmente destrutivo na África Subsaariana, onde encontrou terreno fértil: pobreza extrema que dificultava acesso aos medicamentos, lideranças populistas espalhando desinformação e crendices, ninguém ouvindo os cientistas, a não ser uns malucos negacionistas.

A pandemia de Aids na África foi uma tragédia humana avassaladora, incalculável: mais da metade das mortes por HIV no mundo aconteceu lá. E depois essa primeira tragédia foi engrossada por uma segunda: o colapso econômico, que advém da mortandade. No crepúsculo do século 20, calculava-se que os países da África Subsaariana tinham visto 20% de seu PIB evaporar, diante do fracasso em conter a pandemia.

Enquanto isso, o Brasil, dotado de SUS, saiu-se bem. Os técnicos do Ministério da Saúde levaram a sério o dever novo estabelecido na Constituição e foram em busca de uma solução. Negociaram duro com a indústria farmacêutica internacional, inclusive ameaçando quebrar as patentes dos medicamentos. Acabaram conseguindo obter o coquetel anti-aids a um preço baixo o suficiente para que fosse possível comprar grandes lotes.

Os brasileiros, assim como os suecos, os franceses, os alemães, os dinamarqueses, os portugueses, os japoneses, os australianos, os canadenses, se contaminados com o HIV, passaram a poder ir ao SUS e retirar os remédios gratuitamente.

O Brasil foi o primeiro país em desenvolvimento a oferecer testes e tratamento contra o HIV para toda a população e virou exemplo raro de história de sucesso de um país que não é rico e ainda assim conseguiu conter uma pandemia antes de ter sua economia devastada por ela. Sem esse sucesso, dificilmente o Brasil teria fôlego para a prosperidade que viria a partir dos final dos anos 1990 - assim como a África não teve.

É por isso que é tão chocante que, nas ações contra o Covid, o Brasil esteja decididamente caminhando na trilha dos países africanos que se ferraram com a aids: ignorando e até perseguindo cientistas, não fazendo testes para não saber, deixando as curvas de contágio subirem rápido demais, espalhando crendices e gerando ruído na comunicação.

O descaso do governo brasileiro com o Covid ficou evidente na já histórica reunião de gabinete na qual se falou dos maiores absurdos, mas não houve um minuto de discussão embasada sobre como conter a doença - só sobre como aproveitar a distração que ela causa para emplacar agendas obscuras.

A consequência da inoperância já pode ser sentida: o Brasil é o país do mundo com mais contágios e com mais mortes por dia. Tudo indica que caminhamos para uma crise econômica pesadíssima e longuíssima, enquanto os países que levaram a ameaça a sério já planejam a retomada.

Mas o mais chocante é que o Brasil, contra aquilo que está prometido na Constituição, parece ter aceito o fato de que vai deixar milhares morrerem. Se, nos anos 1980, funcionários do Ministério da Saúde enfrentaram o mundo para salvar sua população, agora parecemos resignados com nossa própria incompetência.

O Brasil tem plenas condições de vencer essa ameaça: tem um sistema público de saúde, tremendamente subfinanciado mas presente no território todo. E tem também um sistema privado, que tem mais leitos de UTI que o público, e que tem sido fartamente irrigado com dinheiro público - um terço do orçamento do Ministério da Saúde é para financiar saúde privada.

Grande parte dos nossos hospitais privados juridicamente são instituições filantrópicas, sem fins lucrativos, cheias de benefícios fiscais. Até por isso, o governo tem todo o direito, garantido por lei, de requisitar esses leitos para organizar uma fila única e impedir que as pessoas morram em casa, sem atendimento. E a rede privada tem a obrigação, inclusive constitucional, de ceder os leitos.

Nada disso está sendo feito. Estamos há duas semanas sem nem ministro da Saúde, com o governo federal fazendo nada para conter a tragédia e boicotando quem faz. Deixando que os hospitais privados, financiados com dinheiro público, atendam só quem pode pagar, enquanto os hospitais públicos estão em colapso e nossas taxas de mortalidade superam de longe as de qualquer país decente.

Isso não é só uma tragédia. É um crime também. É uma grande infâmia, dessas que serão contadas por gerações e deixarão lições sobre os perigos de um mal governo. Governante que não cumpre seu dever e que, por isso, causa milhares de mortes é criminoso. Espero que os nossos paguem.