segunda-feira, 8 de abril de 2019

Brasil na real


Bolsonarinho paz\ e amor

Piadas, tapinhas nas costas, abraços efusivos e fotos. O mesmo Jair Bolsonaro que até poucos dias atrás enxovalhava políticos e jornalistas agora é todo sorrisos. Na quinta-feira, passou o dia recebendo presidentes de partidos, fez carinho, falou coisas em que ele não crê, pediu desculpas em particular pelas caneladas públicas que distribuiu. Na manhã seguinte divertiu-se em um café da manhã com a imprensa. Respondeu a mais de 30 perguntas, disse frases de efeito, brincou e gargalhou como se amigo fosse de gente que ele cansou de xingar. 

Não há como maldizer uma conversão para melhores modos, especialmente se eles podem pacificar ânimos, destravar o governo e fazer o país andar. O problema é acreditar em mudança de humor tão repentina e radical. E que a tal transfiguração exibida tenha alcançado o espírito do presidente. Pouco ou nada provável. 

Nem os mais próximos creem nessa metamorfose.



Gustavo Bebbiano, escudeiro desde a primeira hora, demitido da Secretaria-Geral da Presidência porque tinha em sua agenda um encontro com a “inimiga” TV Globo, não deve ter entendido nada. Foi punido por uma condescendência que agora o presidente pratica. Nas redes sociais, os combatentes amenizaram o tom de repente, encolheram os palavrões e as agressões gratuitas aos que até ontem eram os diabólicos representantes da velha política. Tudo a confirmar a existência de uma ordem unida.

Sem ter o que mostrar 100 dias depois de tomar posse e com estilo populista que o aproxima do seu maior rival, Bolsonaro parece ter sido aconselhado a encarnar algo semelhante ao “Lulinha paz e amor” que a marquetagem do ex criou. Mesmo sem ter a ginga de Lula, o capitão, quando quer, consegue manejar tiradas para construir narrativas que o interessam. 

“Tem vídeo meu que circula e eu penso: falei isso mesmo?”, disse aos jornalistas, debochando de si. Ao mesmo tempo rejeitou a hipótese de se redimir ou, pelo menos, se explicar pelos impropérios que vomita: “Vou me arrepender porque fiz xixi na cama aos 5 anos? Saiu, pô!”. 

Com esse discurso, ele se coloca como ingênuo, como quem fala sem pensar e deixa escapar frases como a lançada contra a deputada Maria do Rosário, que não merecia ser estuprada por que era feia, ou a de que ele não conseguiria amar um filho homossexual – “prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí”. Imagina que pode colocar todas as ofensas que imputou a muitos na categoria do “saiu, pô!”.

Seus fiéis torcedores dirão que é o jeito Bolsonaro de ser, “sincerão”. Mas não conseguem explicar por que só agora, depois de se ver encurralado por não conseguir adesão no Congresso nem de seu próprio partido, o PSL, a sinceridade perdeu a beligerância.

Há quem garanta que o presidente se assustou com a corrosão veloz de sua popularidade. Ou que tenha sido convencido pelos militares depois de a sirene de risco disparar quando o seu ministro da Fazenda, Paulo Guedes, foi escorraçado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara sem que uma só alma servisse como extintor. 

Parte do quebra-cabeças será resolvido nesta semana, quando o destino do ministro da Educação Ricardo Vélez for selado para o bem ou para o mal. No digladio escancarado, a turma da farda, que prega a tolerância, pode ou não vencer os seguidores de Olavo de Carvalho, catequista do caos adorado pela prole do presidente. 

Nesse puxa e estica, é arriscado apostar se o Bolsonaro dócil da semana passada vai resistir ao fel que os fundamentalistas, temporariamente sob controle, adoram esparramar. A conferir se sua conversão à realidade tem alguma chance de ser fruto do juízo ou se é mera enganação. 

Pobre Brasil do aqui e agora

O que fazer quando o presidente e o chanceler de seu país dizem, em Israel, que o nazismo foi um movimento de esquerda? O ideal é dar de ombros e seguir na vida cotidiana. Essas afirmações bombásticas são feitas para provocar debate. Não tenho tempo para ele.

Sinto muito pelos professores de História no Brasil. Terão de explicar como um movimento de esquerda invadiu a União Soviética, uma espécie de meca da esquerda mundial naquele período. E como milhões de pessoas morreram a partir desse fogo amigo.

Os professores de História terão de se consolar com os de Geografia, que ainda acham que a Terra tem uma forma arredondada. São colegas com uma tarefa mais dura: explicar que a Terra não é plana, como querem os novos ideólogos.

Estamos passando por uma revisão completa. Seus autores se acham geniais. O chanceler Ernesto Araújo disse que o nazismo é de esquerda, dentro do Museu do Holocausto, em Israel. Ali, o nazismo é considerado um movimento de extrema direita.


Mas o chanceler disse que há teorias mais profundas. Os judeus, que sofreram com o nazismo e ergueram um museu para lembrar suas vítimas, são superficiais: ainda não descobriram a verdade das obscuras teorias conspiratórias que embalam o governo brasileiro.

A direita embarca na canoa usada pela esquerda no passado recente. Não há mais respeito às evidências ou provas científicas. O que importa é a versão. Não houve desvio de dinheiro público, apenas procuradores e juízes perseguindo honestos políticos.

Eles convergem na tentativa de conformar os fatos às suas convicções ideológicas. O que foi aquela gritaria na Câmara? Nada mais que uma aversão compartilhada à palavra tchutchuca.

Suspeito que direita e esquerda são machistas da mesma maneira que suspeito que a Terra seja arredondada, e o nazismo tenha sido um movimento de extrema direita. Tenho pavor dessas gritarias noturnas na Câmara. Na minha época descobri: servem apenas para prejudicar o sono. Saem todos tensos e irados e têm dificuldade em dormir. Só isso. Uma reforma da Previdência é coisa séria. É possível alterar a proposta do governo. Mas é muito difícil negar a importância de alguma reforma, antes que a Previdência quebre como na Grécia.

Há mais de um século a esquerda desenvolve suas técnicas de provocação. Guedes precisa mais que o curso de alguns dias para enfrentá-la com êxito.

Minha experiência mostra que nessas constantes trocas de insultos, sempre alguém vai insinuar que o outro é gay. Com o tempo, certas pessoas se acostumam. É o meu caso. Tive a sorte, como na música de Cazuza, de ser chamado de viado e maconheiro. O único problema era ser chamado de apenas um desses dois nomes. Ficava esperando o outro como se estivesse faltando algo.

É como a piada de um homem que vivia no andar de baixo, e todas as noites o vizinho de cima chegava meio bêbado e tirava as botas ruidosamente. O homem reclamou. O bêbado voltou do botequim, jogou a bota esquerda com força, mas se lembrou do vizinho. Tirou a bota direita com muito cuidado, silenciosamente. O vizinho de baixo não dormiu esperando que ele jogasse a outra.

Todas aquelas pessoas xingando as outras na Câmara: não há nada de pessoal naquilo. Apenas histeria política.

É preciso superar logo essa fase de sensibilidade à flor da pele. Entender que é o país que está em jogo. E não depende apenas da reforma da Previdência.

A política externa toma um rumo radical, sem que o tema seja discutido adequadamente no Congresso. Nesse sentido, é uma política tão autoritária como a que nos ligou ao bolivarianismo. Não expressa a visão nacional.

O Ministério da Educação não funciona. Todos as semanas demitem e contratam. A ida do ministro Vélez à Câmara mostrou que não tem projeto. Exceto o de reescrever sua parte da história do golpe militar. Ele é modesto diante do chanceler que quer reescrever a história da Segunda Guerra Mundial e levar sua mensagem cristã a todos os recantos do mundo.

O velho cardeal Richelieu já dizia no século XVII: o homem é imortal, sua salvação está no outro mundo. O Estado não dispõe de imortalidade: sua salvação se dá aqui ou nunca.

O show do trilhão

Na audiência da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, na última quarta-feira, falou-se 44 vezes sobre a necessidade, exposta pelo ministro Paulo Guedes, de a reforma da previdência gerar uma potência fiscal de R$ 1 trilhão nos próximos dez anos. Aliás, "potência fiscal" foi outra expressão muito utilizada nos debates: 19 vezes.

Descontadas a baixaria de alguns deputados e a falta de tato do ministro - que acabaram dominando a cobertura da mídia e a atenção do público -, o debate foi um belo exercício democrático. Mas expôs o muito o que ainda temos que avançar em termos de concepção de políticas públicas e transparência no Brasil.


Quem só assistiu aos "melhores momentos" da audiência não percebeu que, logo antes da sua desrespeitosa crítica do tigrão e do tchuchuca, o deputado Zeca Dirceu (PT/PR) pediu a Paulo Guedes a apresentação dos estudos e projeções que levaram o governo a eleger a reforma da previdência como sua prioridade para este início de governo, em detrimento da reforma tributária. Sua fala veio logo após o deputado José Nelto (Podemos/GO) perguntar ao ministro por que ele não resolveu buscar o tal R$ 1 trilhão na revisão dos incentivos e benefícios fiscais, que sangram R$ 300 bilhões por ano aos cofres públicos federais.

Atribui-se a Winston Churchill a ideia de discutir detalhadamente num documento os prós e contras de uma decisão governamental complexa. Em 1922, quando era Secretário de Estado para as Colônias, o futuro primeiro-ministro publicou uma análise profunda a respeito de qual posicionamento a Inglaterra deveria seguir em relação à Palestina e ao movimento sionista. Como o documento tinha a capa branca, ficou conhecido como "White Paper".

Desde então, governos de diversos países (Canadá, Austrália, Nova Zelândia, União Europeia) têm desenvolvido a cultura de publicar "livros brancos" sobre políticas públicas e regulatórias de grande impacto social, com o objetivo não apenas de explicar em pormenores a natureza das mudanças, mas também para colher sugestões de melhorias.

Um século depois, no Brasil impera a cultura do "powerpoint". No programa de governo do então candidato Jair Bolsonaro, as propostas para a economia se resumiam a 17 slides - sendo apenas um deles dedicado à reforma da previdência. Ao consultar os sites do Ministério da Economia e da Presidência da República, não se encontra muito mais do que um arquivo com 41 slides para explicar o alcance da reforma e suas implicações na vida dos cidadãos.

Não é sem razão que a falta de dados foi a principal queixa apresentada pelos parlamentares na audiência, tanto de oposição quanto do centro. Deputados do PT, do PSOL e do PDT cobraram à exaustão a memória de cálculo dos custos de transição para o regime de capitalização. Pompeo de Mattos (PDT-RS) exigiu detalhamentos sobre o novo sistema: se haverá contribuição dos empregadores, como será a administração dos fundos. Gilson Marques (Novo-SC), por sua vez, quis saber sobre os impactos esperados da reforma em termos de investimento e crescimento no curto prazo.

Eduardo Braide (PMN-MA) e Gil Cotrim (PDT-MA) questionaram sobre o impacto das mudanças do BPC e da aposentadoria rural na economia dos munícipios pequenos do Norte e Nordeste. O deputado Luizão Goulart (PRB-PR) queixou-se da falta de dados sobre o impacto da reforma nos Estados e municípios.

Na sua intervenção, a deputada Clarissa Garotinho (Pros-RJ) metralhou o ministro com perguntas diretas e objetivas: quantos brasileiros se aposentam por idade? Qual o percentual daqueles que se aposentam hoje com menos de 20 anos de contribuição? Quais as projeções de aumento da idade mínima para os próximos anos em caso de aumento da expectativa de sobrevida? Quantos são os brasileiros que só recebem um salário mínimo de pensão como benefício? Qual é o valor médio da aposentadoria do trabalhador, em relação a seu salário do ativa, antes e depois da reforma?

Na sua vez de faltar, Paulo Guedes fugiu das respostas. Depois de ser cobrado em muitos apartes e questões de ordem, o ministro mobilizou sua equipe, que preparou uma resposta por escrito às dúvidas da deputada fluminense. Ela se declarou satisfeita com os dados recebidos. Mas o restante da sociedade não teve acesso a eles.

Apesar da boa vontade e da coragem de Paulo Guedes de comparecer a duas audiências no Congresso, falta transparência e comunicação para destacar o alcance e a importância da reforma proposta. Paulo Guedes explicou na audiência que foram traçados vários cenários possíveis sobre a opção ou não de trabalhadores jovens pela capitalização. O deputado Subtenente Gonzaga (PDT-MG) cobrou coragem ao governo de publicar esses dados, pois a reforma não pode ser tratada como um cheque em branco dado ao governo.

As críticas ao governo partem, inclusive, daqueles que se dispõem a apoiar o governo pela aprovação da reforma. Do Dr. Frederico (Patriotas-MG) à deputada Adriana Ventura (Novo-SP), o ministro Paulo Guedes foi cobrado pelas falhas de comunicação dos benefícios da reforma para a população. Na visão deles falta ao governo uma "narrativa de justiça e de transparência atuarial, (...) uma narrativa propositiva ao cidadão", nas palavras do deputado Samuel Moreira (PSDB-SP).

Paulo Guedes, ao longo de sua intervenção na Câmara, disse que sua equipe estudou "o sistema norueguês, o sistema sueco, o sistema canadense, o sistema italiano, o sistema chileno, o sistema brasileiro. Olhamos várias propostas e tentamos combinar algumas coisas". Seria muito bom para a população ter acesso a esses estudos.

Faltam números, simulações. Faz muita falta um Livro Branco da Reforma da Previdência.

Imagem do Dia

Iain Stewart

Bolsonaro não vê o problema, que dirá a solução

Confrontado com as más notícias contidas na pesquisa do Datafolha, Jair Bolsonaro fugiu da realidade à moda do avestruz. Enfiou a cabeça nas profundezas de sua autoestima. E apertou o botão de dane-se: "Não vou perder tempo comentando pesquisa Datafolha", disse aos repórteres.

Numa de suas revelações mais ruinosas, a sondagem informou que, para 61% dos brasileiros, Bolsonaro fez menos do que se esperava dele nos primeiros dias como presidente. Entretanto, a notícia que mais atormentou Bolsonaro foi a de que os brasileiros consideram Lula e Dilma mais inteligentes do que ele.

Não é que Bolsonaro tenha ficado mal na foto. Para 58%, ele é muito inteligente, contra 39% que o consideram pouco inteligente. O problema é que, no início dos seus mandatos, Lula e Dilma eram vistos como muito inteligentes por um contingente maior de pessoas: 69% e 85%, respectivamente. O capitão gargalhou no Twitter: "Kkkkkkkk".

Ao fugir de uma análise mais qualificada da pesquisa, Bolsonaro perde a oportunidade de constatar que pode estar sofrendo precocemente os efeitos de uma presidência atípica. Em 2018, parte expressiva do eleitorado votou no capitão não por gostar dele, mas por odiar o PT. Bolsonaro venceu porque seus votos foram vitaminados pelos eleitores que não votavam de jeito nenhum em Fernando Haddad.

Quem escolheu um vitorioso por exclusão, saiu das urnas com um pé atrás. E passou os últimos 100 dias olhando para o Planalto de esguelha, à espera de que o novo inquilino provasse ser capaz de encarar o ofício de presidente. O diabo é que Bolsonaro passou a impressão de que, quando não estava na cama, estava fabricando crises nas redes ou distribuindo caneladas em aliados.

A boa notícia é que 59% dos entrevistados do Datafolha ainda cultivam a esperança de que Bolsonaro consiga fazer um governo ótimo ou bom. Tempo não lhe falta. O que o presidente não tem é discernimento. Não pode ter solução um presidente que não consegue enxergar nem o problema. Ou Bolsonaro fecha a fábrica de crises e começa a trabalhar ou seu governo tomará o rumo do pântano da ineficiência.

Viva o povo brasileiro

(Em memória de João Ubaldo Ribeiro)

Sob cerrada pancadaria o governo Bolsonaro se lança com as velas pandas em alto-mar em busca do Santo Graal, antes perseguido sem êxito por alguns, sempre na crença de que deslocar o leito da nossa História do seu curso de 500 anos é matéria afeta apenas a uma acendrada vontade política que não recue diante de circunstâncias adversas. Trata-se, sob o governo de Bolsonaro, de um plano de guerra sem quartel com a intenção de remover obstáculos à sua imposição, sejam políticos, econômicos ou culturais. Tais obstáculos estariam dispostos em camadas, acumulados ao longo de gerações, e se antes funcionais como a ação indutora da economia pela política, estariam agora travando o desenvolvimento do capitalismo, cujas forças de mercado estariam a exigir plena liberdade de movimentação. A declaração do ministro da Economia, sr. Paulo Guedes, nesse encontro de Washington, ao identificar no condestável do regime, Olavo de Carvalho, o chefe de uma revolução que estaria em curso não poderia ser mais esclarecedora.


Para o condestável do governo Bolsonaro, as bêtes noires a serem removidas para o sucesso da revolução em marcha seriam as vetustas corporações que conformaram o corpo e a alma da História do País, a saber, os militares, os juízes, o corpo diplomático do Itamaraty e a instituição da Igreja Católica; cada qual teria repassado em boa medida seus valores a um fundo que teria como que constituído o cerne da nacionalidade, em comum a todos eles, embora com pesos variados, a distância dos valores capitalistas. O diagnóstico não é original, pois vem rondando a tópica do pensamento social brasileiro, ao menos, talvez, de Tavares Bastos, um americanista e feroz anti-ibérico de notável talento, que defendia, entre outros temas, a erradicação do catolicismo em favor da doutrinação protestante, segundo ele, mais propícia a uma cultura de liberdades e de um regime de livre-iniciativa. Notar que Tavares Bastos, cultor da obra de Tocqueville, era como ele um cultor da liberdade e jamais, em sua curta e prolífica vida, se associou a projetos autoritários em defesa de suas posições doutrinárias.

Como se sabe, o seu grande antagonista na publicística brasileira foi Oliveira Vianna, um cultor da obra do visconde de Uruguai, discípulo do estadista Guizot, especialista em Direito Administrativo e ministro de Estado sob o regime da Restauração na França, das primeiras décadas do século 19. Nas pegadas de Guizot e do visconde de Uruguai, Oliveira Vianna mobilizou sua crítica ao regime da Primeira República em torno de dois grandes eixos: a crítica da descentralização – tema maior de Tavares Bastos, que lhe dedicou seu importante ensaio A Província – e do idealismo constitucional na forma em que foi arquitetada a primeira Constituição republicana, em 1891, sob a inspiração de Ruy Barbosa.

A Revolução de 30 atestaria o fracasso da experiência constitucional anterior, com o retorno às políticas de centralização administrativa, herdadas do Império, e a partir dela o Estado passa a exercer de modelagem da sociedade civil por meio não só da legislação, como de práticas administrativas. A modernização do País torna-se o eixo orientador das ações estatais; os militares fornecem quadros qualificados e de suas lideranças são selecionados muitos dirigentes das empresas estatais que então são criadas para o esforço da industrialização, são recrutados do seu meio; não se pode falar da Petrobrás, talvez a mais estratégica das estatais, sem o papel decisivo da corporação militar na sua criação. No desbravamento do hinterland, com que se começou a incorporação do oeste ao processo de modernização capitalista, somente concluído no recente regime militar com as estradas que abriram os sertões à ocupação do que viria a se tornar o agronegócio e a pecuária de hoje, essas foram obras que contaram com sua participação, inclusive na política de colonização levada a efeito naquela região, conforme registra a bibliografia especializada.

Tal história de construção do capitalismo brasileiro, que conheceu momentos épicos, como, entre outros, as jornadas do marechal Rondon sertão adentro e a construção de Brasília, não conheceu Henry Ford e Nelson Rockefeller, que aqui não encontrariam território fácil para prosperarem. Nossos heróis empreendedores não vieram do mercado, salvo honrosas exceções, mas de agentes do Estado, como sanitaristas, engenheiros e militares, não se podendo omitir os cientistas e técnicos que criaram a Embraer e a Embrapa. Nesse sentido, é quase assustador que nosso ministro da Economia, que jamais produziu um prego, ouça sem protestar declarações inóspitas à rica História do País de um ideólogo capaz de subir nas tamancas e chamar de idiota um general do Exército Brasileiro, aliás, atual vice-presidente da República.

Outra peça forte de sustentação da tradição brasileira é a sua magistratura, cuja história está bem descrita pelo historiador José Murilo de Carvalho em A Construção da Ordem. A Regência, com sua política de descentralização, tinha exposto o País a rebeliões que ameaçavam a unidade territorial, objetivo estratégico do Estado imperial, que tinha braços curtos, na caracterização do visconde de Uruguai, sem ter meios de alcançar os longínquos rincões, confiados aos poderosos locais, que ignoravam as políticas e as leis do poder central, favorecendo a emergência do caudilhismo como na América hispânica, perigo maior a ser evitado. O remédio heroico para esses males foi a criação de uma magistratura de Estado, desvinculada dos poderes locais, que agora passariam a conhecer o braço longo do Estado.

O enraizamento do Judiciário aprofundou-se na vida social com a modernização que nos trouxeram, depois da Revolução de 30, a Justiça do Trabalho e a Justiça Eleitoral, ambas hoje inerradicáveis, pelas nossas circunstâncias, do nosso tecido institucional.

Por fim a Igreja Católica, mas essa tem 2 mil anos, é uma pedra que não se remove. E não cabe no bico do ideólogo.

Saudade da tirania em ursos e humanos

É difícil associar Donald Trump a Miguel de Cervantes, e mais difícil ainda associar qualquer expressão verbal do presidente americano ao estilo de “Dom Quixote”. Ainda assim, esta semana, o ocupante da Casa Branca falou de moinhos de vento com um grau de desvio da realidade só comparável à do cavaleiro fictício assombrado pelas gigantescas pás rodantes encontradas no caminho.

Foi num discurso para o Partido Republicano que Trump nomeou as turbinas de energia eólica — os moinhos de vento dos dias de hoje — como o mais novo inimigo da propriedade privada, da saúde humana e da vida animal. Numa sucessão de enunciados fáceis de serem repetidos e tomados como verdades por ouvidos crédulos, ele afirmou: “Se você mora perto de um moinho destes, a sua casa passa a perder 75% do valor”, “Os moinhos geram verdadeiros cemitérios de aves”, “Alguém também me disse que o ruído dos moinhos provoca câncer”.

Havia um emaranhado de interesses por trás dessa nova trincheira, sustentada na determinação de nada ceder a políticas ambientais de energia não fóssil. Havia também rancor pessoal: quatro anos atrás Trump fora condenado a aceitar a instalação de várias dessas odiadas turbinas eólicas nas proximidades do seu campo de golfe de Aberdeen, na costa da Escócia.

Mas o que inquieta, no caso, é a sedutora simplificação verbal de questões complexas como a dos muitos impactos de geradores eólicos, alvos de estudos e levantamentos permanentes mundo afora. Condenar o seu uso, assim como o de vacinas, é treva. Simplificações e reducionismos têm alto potencial multiplicador em tempos de medo.

Pelo menos neste quesito, o presidente Jair Bolsonaro ainda é um discípulo pouco promissor de Trump. Mesmo para seguidores convictos, torna-se difícil alinhar o passo quando o Mito brasileiro embaralha palavras e gestos, como na recente viagem a Israel “...Não interessa quem está na frente ou atrás, se é maior ou menor, se é magrinho ou gordinho, o importante é que quem está atrás confia em quem está na frente. E eu, que estou na frente ou no meio, confio em quem está na frente. Isso desperta a confiança entre nós...”, discursou para uma plateia de atônitos empresários. Já em território nacional, mais à vontade, Bolsonaro esclareceu não ter nascido para ser presidente, apenas para ser militar. Poderia ter avisado antes.

Vive-se tempos em que o ministro da Educação anuncia para 209 milhões de brasileiros a necessidade de mudanças no conteúdo de livros didáticos para deletar a existência do golpe militar de 1964. Tempos em que o americano Steve Bannon, guru do nacionalismo ideológico de Trump e Bolsonaro, proclama que o vice-presidente deste mesmo Brasil deveria renunciar. Tempos em que a sociedade como um todo parece tatear para encontrar alguma verdade.

Momento oportuno para ler a obra do repórter polonês Witold Szablowski intitulada “Dancing Bears: True Stories of People Nostalgic for Life Under Tyranny” , sobre povos e pessoas nostálgicas de regimes tirânicos. Aterrador e original, o livro é dividido em duas partes. Na primeira, o jornalista descreve a trajetória de ursos mantidos em cativeiro para uso pessoal e circense na Bulgária, até a posterior alforria e difícil adequação à “liberdade” em reservas animais. A segunda parte descreve o cotidiano de vários países da antiga órbita soviética em sua transição do comunismo à democracia.

É fascinante a história dos ursos dançantes revisitada pelo autor. Por tradição secular só interrompida com a implosão do comunismo, famílias de ciganos assentadas na Bulgária domesticavam filhotes de ursos e ensinavam-nos a dançar em condições cruéis. Com as duas patas traseiras pisando em chapas de metal quente, o resto do corpo permanecia erguido. Eram puxados pelas ruas das aldeias por uma corrente que lhes atravessava as narinas, parte mais sensível do animal, e exibidos em feiras, farras e labutas. Aprenderam a viver em condições humanas, comendo pão e bebendo álcool, e eram submetidos a trabalhos contínuos, roubando-lhes a inclinação natural à hibernação no inverno. Desaprenderam a ser ursos. Foi extremamente difícil ensinar liberdade a animais que jamais foram livres. Alguns desses ursos chegavam a erguer o corpanzil para equilibrar-se em duas patas quando se deparavam com humanos. Tornaram-se nostálgicos da tirania, assim como os personagens da segunda parte do livro.

Alegoria ou parábola, uma edição brasileira da narrativa de Szablowski seria bem-vinda.