sexta-feira, 12 de maio de 2023

Levar a sério a diversidade

Era um debate no colégio, no Canadá. O tema girava em torno de questões de gênero. A coisa foi bem até Josh Alexander dar sua opinião. “Na minha visão, há apenas dois gêneros, homens e mulheres”. Terminou preso. Primeiro foi obrigado a cancelar disciplinas, depois insistiu em assistir às aulas, e foi em cana. O caso ganhou alguma repercussão e Josh, um estudante conservador, teve seus momentos de celebridade.

Já participei de muitos debates em escolas. Em geral, a ideia é que seja um espaço de liberdade para cada um dizer o que pensa. Já presenciei broncas e discussões bastante duras. Mas um estudante sair preso confesso que nunca havia visto.

Na verdade, é um sintoma. Não é uma história sobre a “barbárie”, como li, mas sobre nossa civilização. O Canadá surge como um laboratório. Quem sabe a “primeira nação woke do mundo”, na definição de Eric Kaufmann. Não por acaso o Canadá, por muito tempo visto como o país da diversidade. É este o ponto: sobre como lidar com a diferença, sem destruir a própria diferença.

Não há uma resposta simples a essas coisas. Do outro lado do continente, na Flórida, o governador republicano Ron DeSantis faz o exato oposto. “É preciso combater o woke em nossas escolas, em nossos negócios. Não nos renderemos jamais à ideologia woke”, bradou ele, numa paródia churchilliana de gosto duvidoso.

Sua “Stop Woke Act” tenta disciplinar a pregação identitária nas escolas, e foi barrada pela Justiça a partir da ação de organizações como a FIRE, que defende a livre expressão. Mas a confusão está armada. Talvez este seja o principal sintoma do mal-estar contemporâneo.

DeSantis parece claramente equivocado, tentando resolver o problema via ação coercitiva do Estado, e mais ainda as autoridades canadenses, mandando prender um adolescente por dizer o que pensa, em um debate escolar.

A intuição que parece animar a cultura woke e certo ultraconservadorismo é antiga: a ideia de que nosso mundo está contaminado pelas ideias erradas. Pelo preconceito ou pela decadência moral, e que por isso precisa ser devidamente higienizado.

Leio que os livros de Agatha Christie estão sendo revisados, e expressões como “povo núbio” ou “populações nativas” são meticulosamente retiradas. Se virar moda, me diz uma professora, a cada geração teremos de reescrever a literatura universal, vivendo em um eterno presente estético. Além de uma birutice, será uma tremenda perda cultural, pois “deixaremos de observar como gerações passadas se expressavam”.

Leio agora que mesmo a icônica estátua de Adam Smith, no Royal Mile, em Edimburgo, anda ameaçada. Não basta que Adam Smith tenha sido um duríssimo crítico da escravidão. Um comitê criado pela cidade vasculhou sua obra até achar uma passagem “comprometedora”, e seria preciso limpar o centro de Edimburgo de sua ofensiva memória.

Há uma estranha semelhança entre a intolerância atual e o fanatismo da era das guerras de religião nos inícios da modernidade. O desgosto do jovem Lutero com a Roma pervertida, e a indignação da ativista, ainda agora, com os excessos de Jennifer Lopez e Shakira na “exposição do corpo feminino” em um show no Super Bowl.

Seria preciso limpar toda a sujeira espalhada nas redes, na linguagem, na cultura. No século XVI, a maneira de fazer isso era a disciplina religiosa. Na Genebra de Calvino, eram dois cultos diários, os banhos frios e a estrita vigilância sobre os costumes. Hoje somos mais civilizados. Criamos comitês, listamos palavras proibidas, cancelamos e derrubamos estátuas. Evoluímos, Steven Pinker tem razão.

Mas algumas coisas parecem se repetir. A primeira é a aversão à divergência. Dias atrás, todos assistimos a um grupo de estudantes de uma universidade paulista impedindo a realização de uma feira universitária israelense. Em Stanford, causou alguma indignação o banimento de Stuart Duncan, um juiz “conservador”, de uma palestra na universidade.

Há ainda a fixação nos detalhes. A ideia de que “tudo sempre é muito grave e ofensivo”, desde a interrupção de um apresentador em um programa até a piada em um programa humorístico. E daí a ideia de que cabe, sim, ao Estado meter a colher na conduta das pessoas, novamente aproximando o mundo conservador, da Flórida, ao universo woke, no Canadá.

Já algo nisso que vem da nova dinâmica da arena pública: dispondo de uma tribuna dada pela tecnologia, subitamente passamos a agir como pequenos políticos. A sinalizar a própria virtude, exercitar o bom-mocismo, onde se puder. Questão de cálculo. O ambiente digital é perigoso. O mais seguro é sempre dizer alguma coisa que não desagrade a nenhuma minoria barulhenta. Isso vale particularmente para as empresas, que não podem arriscar sua marca.

Além do bom-mocismo, há a retórica de combate. Pesquisa recente mostrou que uma postagem agressiva contra o “outro grupo” tem 67% mais chances de ser replicada nas redes. A linguagem reflexiva, atenta à complexidade das coisas, tem menos poder de engajamento.

O jogo incentiva a posição do “righ­teous”, de Jonathan Haidt. O moralista, o combatente das boas causas, o “não me venha com essa de entender as razões do outro ou deixar dizer o que quiser”, porque, como li em um grupo de Whats­App, no final “as vítimas somos nós”.

O desafio é separar o joio do trigo. A demanda por não discriminação e o desejo obsessivo de regular os outros. O direito de afirmar minha maneira de viver, mas não o de banir quem deseja viver de modo distinto.

Vai aí o traço curioso da cultura woke: como uma forma cultural cuja razão de ser, em algum momento, foi a aceitação da diferença, vai se convertendo em um tipo de monismo moral que gradativamente não aceita diferença nenhuma.

Se alguém quiser lidar com diversidade, vale, em primeiro lugar, levar a sério o próprio conceito. Critérios raciais e de gênero são cruciais, tanto quanto muitos outros traços constitutivos de nossas identidades. Pertencemos a gerações diferentes, há temas ligados ao etarismo, aos diferentes ângulos da neurodiversidade, mas o tema vai além.

Ele diz respeito a visões de mundo, crenças religiosas, origens regionais ou orientações políticas. Vai aí um segundo ponto: a preservação da liberdade de expressão, essencial para que o argumento da diversidade não seja capturado por essa ou aquela ideologia e se torne um exercício de padronização da cultura. Por fim, o foco em atitudes reais de inclusão.

Fazer retórica é fácil. Mais difícil é criar oportunidades de verdade, capacitar pessoas, apoiar sua autonomia com ações no mundo real, em vez de apostar na guerra permanente para suprimir palavras, banir livros e derrubar estátuas.

A diversidade é um traço definidor da modernidade. Quem leu os Ensaios de Montaigne deve se lembrar de seu memorável relato sobre os índios tupinambás, vindos do Brasil. Montaigne foi um liberal avant la lettre. Dizia que era preciso prestar atenção aos próprios pecados e que, em geral, “cada um chama de barbárie o que não é seu costume”.

Nestes tempos difíceis, talvez valesse a pena voltar a suas lições, que falam do melhor da modernidade: a curiosidade diante do mundo imenso e desconhecido, o apreço pela diferença e sua prima irmã, a tolerância. Valores dos quais não deveríamos descuidar, mas que parecemos ir deixando escapar por entre os dedos, lentamente.

Fernando Schüler 

Soneto zangado

Há muita gente que não tem um tecto.
Há muito mais gente que não tem pão.
Há quem sobreviva de modo infecto.
Mas há aqueles para quem um milhão

não passa de um troco desprezível.
O quase-tudo está nas mãos de poucos,
que ambicionam o inadmissível,
sem receio de parecerem loucos!

Há uns poucos que espezinham o resto,
o qual é, para eles, invisível.
Ao resto, resta-lhe fraco protesto,

mas só, até onde isso for possível:
a raiva que demais se estrangula
é dinamite que se acumula!

Eugénio Lisboa

Flórida veta dezenas de livros escolares e exige mudanças em temas sociais

A Flórida rejeitou dezenas de livros didáticos de estudos sociais e trabalhou com editoras para editar dezenas de outros, anunciou o departamento de educação do estado nesta terça-feira, no último esforço do governador Ron DeSantis para retiras dos materiais escolares tópicos contestados, especialmente em torno de questões contemporâneas de raça e justiça social.

Funcionários do estado originalmente rejeitaram 82 dos 101 livros enviados por causa do que consideraram “material impreciso, erros e outras informações que não estavam alinhadas com a lei da Flórida”, disse o Departamento de Educação em um comunicado à imprensa.

Mas, como parte de um amplo esforço para revisar os materiais, a Flórida trabalhou com os editores para fazer alterações, aprovando 66 dos 101 livros didáticos. Ainda assim, 35 foram rejeitados mesmo após esse processo.

DeSantis fez campanha contra o que descreveu como “doutrinação acordada” e uma agenda esquerdista na sala de aula. No ano passado, o estado rejeitou dezenas de livros didáticos de matemática, dizendo que os livros abordavam tópicos proibidos, incluindo a teoria racial crítica e o aprendizado socioemocional, que se tornaram alvos da direita.

Esperava-se que a revisão estadual dos livros didáticos de estudos sociais, que é realizada a cada poucos anos, levantasse objeções semelhantes.

O departamento de educação do estado divulgou um documento descrevendo várias revisões que, segundo ele, os editores fizeram a seu pedido. Mas o documento não listava os títulos ou editoras dos livros revisados, dificultando a verificação independente das alegações.

As revisões delineadas pelo estado incluíram:

*Um livro didático do ensino fundamental não inclui mais orientações de “apoio domiciliar” sobre como falar sobre o hino nacional, que incluía conselhos de que os pais poderiam “usar isso como uma oportunidade para falar sobre por que alguns cidadãos estão escolhendo 'se ajoelhar' para protestar contra a brutalidade policial e o racismo.'” Funcionários da Flórida disseram que o conteúdo não era apropriado para a idade.

*Um texto sobre diferentes tipos de economias foi editado para retirar uma descrição do socialismo como mantendo as coisas “boas e equilibradas” e potencialmente promovendo maior igualdade. A descrição foi sinalizada como imprecisa e a menção ao termo “socialismo” foi totalmente removida.

*Um livro didático do ensino médio não inclui mais uma passagem sobre o movimento Black Lives Matter, o assassinato de George Floyd e seu impacto na sociedade. A passagem removida descrevia os protestos, observando que “muitos americanos simpatizavam com o movimento Black Lives Matter”, enquanto outras pessoas criticavam saques e violência e viam o movimento como anti-polícia. O estado disse que a passagem continha “tópicos não solicitados”.
Manny Diaz, Jr., o comissário de educação da Flórida, disse em um comunicado que os livros didáticos devem “focar em fatos históricos” e ser “livres de imprecisões ou retórica ideológica”.

Ensinar sobre raça tornou-se um para-raios nacionalmente, mas especialmente na Flórida, onde DeSantis, que é amplamente esperado para anunciar uma candidatura presidencial em 2024, fez disso uma questão política própria.

No entanto, o tom do anúncio deste ano pelo estado foi suavizado, em comparação com o ano passado.

Quando o estado rejeitou os livros didáticos de matemática em 2022, o anúncio foi feito em um comunicado de imprensa chamativo enfatizando as rejeições: “Florida Rejects Publishers’ Attempts to Doutrinate Students” (Flórida rejeita tentativas das editoras de doutrinar estudantes).

Este ano, por outro lado, as autoridades estaduais enfatizaram a porcentagem de livros didáticos que foram aprovados e como o estado trabalhou com as editoras para aumentar o número de aprovações.

Em uma coletiva de imprensa em uma escola na manhã de terça-feira, DeSantis assinou um pacote de legislação educacional e enfatizou outros tópicos, incluindo US$ 1 bilhão em financiamento para aumentar os salários dos professores.

O governador colocou pouco foco nos livros didáticos de estudos sociais, embora a certa altura parecesse aludir a uma reportagem do The New York Times, que descobriu que uma editora, a Studies Weekly, havia retrocedido nas discussões sobre raça em suas apresentações na Flórida, incluindo na história de Rosa Parks.

— Se você está tentando criar narrativas de que algo como um livro de Rosa Parks não é permitido, isso é mentira — disse DeSantis na terça-feira.

A Studies Weekly disse que estava tentando “decifrar” como cumprir uma nova lei da Flórida, conhecida como Stop WOKE Act. Assinada por DeSantis no ano passado, a lei proíbe instrução que obrigue os alunos a sentir responsabilidade, culpa ou angústia pelo que outros membros de sua raça fizeram no passado. A lei às vezes criou confusão, e a Studies Weekly mais tarde se desculpou pelo que descreveu como uma reação exagerada de sua equipe de currículo — posteriormente o as obras submetidas não foram aprovadas para uso na Flórida.

A lista de livros didáticos de estudos sociais aprovada pelo estado terá um impacto significativo em como a história é ensinada a quase 3 milhões de alunos de escolas públicas da Flórida, em tópicos que vão desde a escravidão até o Holocausto.

As aprovações de livros didáticos da Flórida também podem influenciar o que os alunos aprendem em outros estados. Menos da metade dos estados aprova livros didáticos em todo o estado, mas os que o fazem incluem Flórida, Texas e Califórnia, os três maiores mercados. Os editores geralmente atendem a esses estados, usando-os como modelo para os materiais que oferecem em mercados menores.

A Flórida rejeitou alguns livros didáticos de grandes editoras nacionais, como McGraw Hill e Savvas Learning.

“Estamos revisando a situação”, disse McGraw Hill em um comunicado. “Neste ponto, não sabemos por que esses títulos não foram recomendados.” Savvas não respondeu aos pedidos de entrevista na terça-feira.

Outra grande editora, a Houghton Mifflin Harcourt, nem mesmo fez uma oferta no mercado de estudos sociais da Flórida este ano.

Sarah Mervosh / Dana Goldstein

Por que Alexandre de Moraes soltou Anderson Torres

Macaco velho não pula em galho seco. Sem currículo à altura do cargo, Anderson Torres, delegado de polícia, pulou ao aceitar ser ministro da Justiça de Bolsonaro, e caiu do galho tão rapidamente quanto o escalou. Aqui se faz, aqui se paga.

Se ontem, cento e poucos dias depois de preso por envolvimento nos atos golpistas de 8 de janeiro, foi solto e mandado para casa com a perna algemada a uma tornozeleira eletrônica, não quer dizer que o pior já passou para ele. O pior ainda está por vir.

O homem é senhor do que pensa, escravo do que diz. O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, está forrado de provas e de evidências da culpa de Torres nos crimes que lhe atribuem. Por ora, não precisava mais mantê-lo preso.


Há conversas de Torres tramando contra o tribunal. (Pela boca morre o peixe.) Entre os assuntos tratados por ele está a prisão de um magistrado que deveria ser “deixado em local incerto e não sabido” após o golpe. O magistrado era o próprio Moraes.

Não se cutuca onça com vara curta, mas Torres estava tão certo de que Bolsonaro iria se reeleger com sua ajuda que cutucou Moraes. Vingança é um prato que se come frio, mas às vezes Moraes prefere comê-lo ainda quente ou morno.

Saciado, libertou Torres para que ele seja um dos primeiros a depor na CPI mista do golpe que poderá ser instalada na próxima semana. Os bolsonaristas estão profundamente arrependidos de tê-la bancado. Esqueceram que as consequências vêm depois.

A cobra vai fumar para Torres, o tenente-coronel Mauro Cid, o coronel Élcio Franco, o ex-major e golpista confesso Ailton Barros, “segundo irmão” de Bolsonaro, e ao fim e ao cabo para o ex-capitão que jura por todos os santos ser inocente.

Mentira tem perna curta, só mentirosos compulsivos não sabem disso, além dos que se acham inimputáveis. A tentativa fracassada e amadora de golpe a céu aberto, com data anunciada nas redes sociais, equivaleu a um suicídio coletivo.

De nada, agora, vale chorar sobre o leito derramado. O que não tem remédio, remediado está.