Quem finge que não vê o que acontece também é culpado"Mississippi em chamas" (1988) dirigido por Alan Parker com Willem Dafoe e Gene Hackman, relata a investigação sobre o desaparecimento de três ativistas dos direitos civis no estado do Mississippi
quarta-feira, 1 de abril de 2020
Não se culpe apenas o vírus
Covid19: Como será o “mundo novo”?
"De Volta para o Futuro 2" é um filme americano de ficção científica de 1989 dirigido por Robert Zemeckis, sendo a continuação do filme de 1985 "De Volta para o Futuro" e a segunda parte da trilogia homônima e estrelada por Michael J. Fox. O filme segue "Marty McFly" (Fox) e seu amigo Dr. Emmett Brown que viajam de 1985 a 2015 para evitar que o filho de Marty estrague o futuro da família McFly. O filme marcou uma geração mundial que cresceu entusiasmada com as viagens no tempo de Marty McFly. Nas próximas linhas convido o leitor a começar a imaginar o que o Marty McFly de 2030 diria para nós no meio do “inferno” de 2020?
Quando olhamos somente para o presente, os dados de opinião pública já traduzem a gravidade da situação. No Brasil, uma pesquisa telefônica, com amostra nacional de 1.555 entrevistas do IDEIA Big Data entre os dias 24 e 25 de março, apontou que aproximadamente 70% dos entrevistados tem medo de serem infectados. O mesmo levantamento mostrou 63% responderam estar muito preocupados e 19% preocupados com a epidemia, somando 81% – em levantamento semelhante concluído na semana anterior, esse índice era de 65% (16 pontos porcentuais a menos em um intervalo de dez dias). A pesquisa também mostra que 50% tem medo de perder o emprego e aproximadamente 69% acreditam que a economia vai piorar. Nos Estados Unidos, uma pesquisa do Washington Post/ABC News apontou também que 69% estão preocupados/muito preocupados com a pandemia. Em resumo, o mundo atual vive em estado de choque pela vida e medo do futuro.
O futuro, ou mundo novo, que Marty Mcfly nos traz de 2030 é diferente. E aqui arrisco algumas tendências que como pesquisador de Universidade George Washington temos nos dedicado a antever. Nesse mundo novo, por exemplo, haverá uma reocupação de espaço mais distribuída. As grandes cidades como Nova York, Madrid, Tóquio, Roma, São Paulo e Xangai vão perder moradores. Muitos questionamentos surgirão sobre o valor de pagar caro por morar em grandes concentrações de pessoas. Vai ficar a sensação: e se acontecer novamente? Com isso novos mapas eleitorais aparecerão e a uma nova dinâmica de poder local ganhará peso.
Em 2030, muitas atividades (estimamos pelos menos 40%) que viraram “home office” durante 2020 continuaram como home office. Isso introduzirá ganhos de produtividade e qualidade de vida pouco mensurados antes da crise. Inclusive na própria gestão pública. Diversos parlamentos e assembleias ao redor do planeta seguiram (em 2020) seu funcionamento on-line com voto e discussões remotas. Estruturas caras e pesadas de cidades como Washington-DC, Brasília, Berlin, Roma, Cidade do México e Nova Delhi foram amplamente questionadas depois da crise. O próprio voto do cidadão passou a ser muito mais remoto que presencial. Estruturas de voto on-line e pelo correio se tornaram comuns.
A discussão sobre saúde pública, desde 2020, ganhou um novo patamar no debate político. A saúde sempre foi prioridade para opinião pública mas equacionar seus problemas e desafios foi constantemente tratado como caro e complexo pelos governantes. O mundo pós Corona se viu obrigado a investir mais e melhor na ciência e na saúde. Aprendeu-se a distinção econômica entre despesa e investimento nesse setor. Diante desse novo contexto, muitos profissionais de saúde pública e ciência (agora tratados como verdadeiros heróis) foram eleitos ao redor do mundo e passaram ao epicentro das decisões políticas.
E essas foram somente algumas mudanças. A humanidade, em 2030, ainda não se recuperou das perdas de milhares de vidas. Todavia, McFly nos diz que a vida em 2030 é mais humana, mais sustentável e mais saudável. Ficará a dúvida, se fosse possível viajar no tempo, se valeria a pena ter mandado alguém do futuro para a feira de Wuhan, na China aonde começou o coronavírus, com a missão de mudar o curso da história. Parece que o presente de 2020 nos levará de volta para o futuro.
Maurício Moura, CEO e fundador do DEIA Big Data
Quando olhamos somente para o presente, os dados de opinião pública já traduzem a gravidade da situação. No Brasil, uma pesquisa telefônica, com amostra nacional de 1.555 entrevistas do IDEIA Big Data entre os dias 24 e 25 de março, apontou que aproximadamente 70% dos entrevistados tem medo de serem infectados. O mesmo levantamento mostrou 63% responderam estar muito preocupados e 19% preocupados com a epidemia, somando 81% – em levantamento semelhante concluído na semana anterior, esse índice era de 65% (16 pontos porcentuais a menos em um intervalo de dez dias). A pesquisa também mostra que 50% tem medo de perder o emprego e aproximadamente 69% acreditam que a economia vai piorar. Nos Estados Unidos, uma pesquisa do Washington Post/ABC News apontou também que 69% estão preocupados/muito preocupados com a pandemia. Em resumo, o mundo atual vive em estado de choque pela vida e medo do futuro.
O futuro, ou mundo novo, que Marty Mcfly nos traz de 2030 é diferente. E aqui arrisco algumas tendências que como pesquisador de Universidade George Washington temos nos dedicado a antever. Nesse mundo novo, por exemplo, haverá uma reocupação de espaço mais distribuída. As grandes cidades como Nova York, Madrid, Tóquio, Roma, São Paulo e Xangai vão perder moradores. Muitos questionamentos surgirão sobre o valor de pagar caro por morar em grandes concentrações de pessoas. Vai ficar a sensação: e se acontecer novamente? Com isso novos mapas eleitorais aparecerão e a uma nova dinâmica de poder local ganhará peso.
Em 2030, muitas atividades (estimamos pelos menos 40%) que viraram “home office” durante 2020 continuaram como home office. Isso introduzirá ganhos de produtividade e qualidade de vida pouco mensurados antes da crise. Inclusive na própria gestão pública. Diversos parlamentos e assembleias ao redor do planeta seguiram (em 2020) seu funcionamento on-line com voto e discussões remotas. Estruturas caras e pesadas de cidades como Washington-DC, Brasília, Berlin, Roma, Cidade do México e Nova Delhi foram amplamente questionadas depois da crise. O próprio voto do cidadão passou a ser muito mais remoto que presencial. Estruturas de voto on-line e pelo correio se tornaram comuns.
A discussão sobre saúde pública, desde 2020, ganhou um novo patamar no debate político. A saúde sempre foi prioridade para opinião pública mas equacionar seus problemas e desafios foi constantemente tratado como caro e complexo pelos governantes. O mundo pós Corona se viu obrigado a investir mais e melhor na ciência e na saúde. Aprendeu-se a distinção econômica entre despesa e investimento nesse setor. Diante desse novo contexto, muitos profissionais de saúde pública e ciência (agora tratados como verdadeiros heróis) foram eleitos ao redor do mundo e passaram ao epicentro das decisões políticas.
E essas foram somente algumas mudanças. A humanidade, em 2030, ainda não se recuperou das perdas de milhares de vidas. Todavia, McFly nos diz que a vida em 2030 é mais humana, mais sustentável e mais saudável. Ficará a dúvida, se fosse possível viajar no tempo, se valeria a pena ter mandado alguém do futuro para a feira de Wuhan, na China aonde começou o coronavírus, com a missão de mudar o curso da história. Parece que o presente de 2020 nos levará de volta para o futuro.
Maurício Moura, CEO e fundador do DEIA Big Data
Esse Deus não é o meu!
Essa gente vive fora de tempo, como se estivesse ainda no Antigo Testamento, no tempo em que, na percepção dos hebreus, a justiça divina tinha um carácter tipicamente retributivo. Uma das coisas que se pode apreender no conjunto dos textos do cânon bíblico é que a revelação divina é progressiva.
De acordo com a perspectiva bíblica vivia-se então a idade infantil da revelação divina, isto é, o tempo em que aquele povo era tratado como uma criança a quem o pai impõe regras muito claras. Se obedecesse seria premiado, mas em caso de desobediência poderia esperar castigo. Quando a vida corria mal e começaram a sofrer derrotas e exílios, a justificação da desgraça sofrida apresentada pelos líderes e mais tarde pelos profetas hebreus, era sempre de que o Deus de Israel os tinha castigado duramente.
Só com a vinda do Messias Deus se revela de forma completamente diferente. No início do seu ministério público Jesus Cristo profere o célebre Sermão do Monte (Mateus, caps. 5-7), um discurso altamente subversivo, do ponto de vista social, cultural e religioso, uma vez que propunha valores diferentes e até opostos à prática religiosa judaica vigente, o que deixou a audiência desconcertada. Mas sobretudo Jesus de Nazaré vem a revelar o Pai como um Deus de proximidade e de intimidade, assim como o seu carácter e a sua essência fundamental, de que João Evangelista testifica: “Deus é amor” (I João 4:16).
Dizer que a presente pandemia é um castigo de Deus é uma enormidade sem nome. Afinal qual é o conceito de Deus que esta gente tem? Por que razão Deus castigaria tantos inocentes? Que raio de sentimento vingativo seria esse? Como diz Domingos Faria “o vírus é completamente insensível ao carácter moral das pessoas”. O Deus revelado em Jesus Cristo não é mesquinho nem reactivo, nem se deixa insultar por qualquer patetice humana. Os cristãos que difundem a imagem dum Deus mesquinho, afinal, não estarão a fazer mais do que os gregos e os romanos que inventaram deuses à sua própria imagem e semelhança, portadores dos vícios e fraquezas dos homens.
No fundo estão ainda na mesma posição infantil dos discípulos, que tentaram que o Mestre enviasse fogo do céu para castigar uns quantos, só porque tinham o orgulho ferido, por terem sido rejeitados pelos samaritanos: “E os seus discípulos, Tiago e João, vendo isto, disseram: Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como Elias também fez?” (Lucas 9:54). Mas o Mestre repreendeu-os de imediato: “Voltando-se, porém, repreendeu-os, e disse: Vós não sabeis de que espírito sois. Porque o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las” (Lucas 9:55,56).
Como diz Jorge Pinheiro “Deus não castiga – Deus corrige, ensina e disciplina. E que ninguém veja nesta afirmação um jogo semântico. Porque os actos de Deus – como pessoa que é – revelam a Sua natureza. E a natureza de Deus é sempre pedagógica. E a pedagogia não se realiza por castigos mas por correcção, ensino e disciplina.” Haja alguém que diga a essa gente o mesmo que o Mestre Jesus.
Deus não precisa de pandemias para se fazer ouvir, nem de defensores (como pode a formiga defender o elefante?), que são tão pecadores como aqueles a quem apontam o dedo. A natureza do pecado é que será diferente. Precisam de se ver ao espelho, definitivamente.
A alegoria de Camus
Albert Camus nasceu em 7 de novembro de 1913 na Argélia, à época uma colônia francesa, cenário de seu romance, que conta a história de uma epidemia na cidade de Oran, no norte daquele país. Em 1940, um médico encontrou um rato morto ao deixar seu consultório. Comunicou o fato ao responsável pela limpeza do prédio. No dia seguinte, outro rato foi encontrado morto no mesmo lugar. A esposa do médico tinha tuberculose e foi levada para um sanatório. A quantidade de ratos aumentou exponencialmente. Em um único dia, oito mil ratos foram coletados e encaminhados para cremação.
Em pânico, a cidade declarou estado de calamidade, as pessoas tinham febre e morriam em massa. Os muros foram fechados, em quarentena, ninguém entrava ou saía; os doentes foram isolados, as famílias, separadas. Enquanto o padre apregoava que tudo aquilo era um castigo divino, prisioneiros eram mobilizados para enterrar os cadáveres, que empilhavam nas ruas: velhos, mulheres e crianças morriam. O livro é uma alegoria da condição de vida regulada pela morte, fez muito sucesso porque era uma crítica ao fascismo e relatava as diferenças de comportamento diante de situações-limite. Fora escrito durante a ocupação militar alemã. Camus foi editor do jornal clandestino Combat, porta-voz dos partisans.
Em 1951, Camus lançou o livro O homem revoltado, no qual condenava a pena de morte e criticava duramente o comunismo e o marxismo, o que provocou uma ruptura com seu amigo e filósofo Jean-Paul Sartre, que liderou seu linchamento moral por parte da intelectualidade francesa. Mesmo depois do Prêmio Nobel de Literatura, em 1957, continuou sendo um renegado para a esquerda. Seu discurso na premiação foi profético. Permanece atual nestes tempos de epidemia de coronavírus.
“Cada geração se sente, sem dúvida, condenada a reformar o mundo. No entanto, a minha sabe que não o reformará. Mas a sua tarefa é talvez ainda maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma história corrupta onde se mesclam revoluções decaídas, tecnologias enlouquecidas, deuses mortos e ideologias esgotadas, onde poderes medíocres podem hoje a tudo destruir, mas não sabem mais convencer, onde a inteligência se rebaixou para servir ao ódio e à opressão, esta geração tem o débito, com ela mesma e com as gerações próximas, de restabelecer, a partir de suas próprias negações, um pouco daquilo que faz a dignidade de viver e de morrer”, disse Camus.
Em comemoração aos 60 anos de sua morte, divulgou-se na França um de seus textos da época da resistência, cujo original foi encontrado nos arquivos do general De Gaulle, o presidente francês que liderara a Resistência do exílio. O documento era destinado às forças que combatiam o marechal Pétain e trata de dois sentimentos presentes no contexto da ocupação: ansiedade e incerteza. A ansiedade “em uma luta contra o relógio” para reconstruir o país; a incerteza, em razão do fato de que, “se a guerra mata homens, também pode matar suas ideias”.
A alegoria de A Peste também serve de advertência diante de certas manifestações de apoio ao regime militar implantado após o golpe de 1964, cujo aniversário foi comemorado ontem. Em 1974, o Brasil enfrentou a pior epidemia contra a meningite de sua história. Para evitar o contágio, o governo decretou a suspensão das aulas e cancelou os Jogos Pan-Americanos de 1975, que foram transferidos de São Paulo para o México. A epidemia começou em 1971, no distrito de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo. Com dor de cabeça, febre alta e rigidez na nuca, muitos morreram sem diagnóstico ou tratamento.
Em setembro de 1974, a epidemia atingiu seu ápice. A proporção era de 200 casos por 100 mil habitantes, como no “Cinturão Africano da Meningite”, que hoje compreende 26 países e se estende do Senegal até a Etiópia. O Instituto de Infectologia Emílio Ribas, com apenas 300 leitos disponíveis, chegou a internar 1,2 mil pacientes. Na época, eu era um jovem repórter do jornal O Fluminense, de Niterói (RJ). Com a cumplicidade de um acadêmico de medicina, conseguimos fotografar pela janela uma enfermaria lotada de crianças com meningite, no Hospital Universitário Antônio Pedro (UFF). A foto foi publicada com a matéria, mas gerou a maior crise política para a direção do jornal, porque a meningite era um assunto censurado pelos militares. A epidemia só acabou no ano seguinte, após a vacinação de 80 milhões de pessoas, que seria impossível com a manutenção da censura sobre a meningite pelo governo do general Ernesto Geisel.
Novo tom de Bolsonaro parece pegadinha de 1º de Abril
É sempre arriscado apostar na moderação de Jair Bolsonaro.
Bolsonaro também pediu a "união de todos num grande pacto pela preservação da vida e dos empregos: Parlamento, Judiciário, governadores, prefeitos e sociedade".
Ao que tudo indica, o novo tom de Bolsonaro na TV foi uma pegadinha antecipada de Primeiro de Abril, o Dia da Mentira.
No pronunciamento de ontem, o presidente ensaiou uma mudança de tom sobre o coronavírus. Depois de chamar a epidemia de "gripezinha" e "resfriadinho", disse que o combate a ela será o "maior desafio da nossa geração".
Bolsonaro também pediu a "união de todos num grande pacto pela preservação da vida e dos empregos: Parlamento, Judiciário, governadores, prefeitos e sociedade".
Essa bandeira branca durou poucas horas. Hoje cedo, o presidente postou nas redes sociais um vídeo em que um homem diz que os governadores "querem ganhar nome e projeção política à custa do sofrimento da população".
No vídeo, o homem exalta Bolsonaro relata uma situação de desabastecimento na Ceasa de Belo Horizonte. Agora há pouco, o repórter da CBN Pedro Bohnenberger esteve lá e mostrou que não há desabastecimento. Pelo contrário: os feirantes disseram que as vendas aumentaram durante a pandemia. Ou seja, o presidente voltou a divulgar "fake news" para fazer luta política.
Ao que tudo indica, o novo tom de Bolsonaro na TV foi uma pegadinha antecipada de Primeiro de Abril, o Dia da Mentira.
Duas faces dos EUA de Trump
"Distanciamento social" do povo das ruas em Las Vegas |
Para que uma economia funcione bem temos de proteger nossa população. Como podemos pensar numa economia que avance se nossa população está em risco? Como podemos colocar a economia acima da saúde se sem saúde não há economia?
Kathryn Sikkink, professora do departamento de Políticas de Direitos Humanos da Harvard Kennedy School
31 de março/1º de abril
Eis por que o País passou o dia prendendo o fôlego já curto, imaginando se o pronunciamento de rádio e TV de Jair Bolsonaro seria para espalhar fake news sobre a pandemia e mandar as pessoas saírem às ruas ou para louvar a ditadura. Ou ambas as coisas.
Mas o que se viu e ouviu foi um presidente assustado recuar de todas as bravatas recentes e fazer apenas menção à ajuda das Forças Armadas no combate à pandemia, sem revisionismo histórico.
Bolsonaro pela primeira vez colocou a defesa da vida à frente da dos empregos. Procurou mostrar empatia sincera enquanto lia um teleprompter com expressão e olhos contraídos.
O suspense que antecedeu o pronunciamento era extensivo a ministros, que não sabiam qual seria o tom da fala. Não por acaso. O presidente começou o aniversário do golpe na toada do confronto e da mentira: reuniu sua claque de blogueiros e youtubers fanáticos para interromper e hostilizar os jornalistas na frente do Palácio da Alvorada. Desta vez, no entanto, a imprensa virou as costas e foi embora. Deixou o presidente nu: solitário e cercado de acólitos, o que tem sido a marca de seu governo em 2020.
A OMS também teve de parar tudo que está fazendo para desmentir a versão, depois remendada por Bolsonaro no pronunciamento, de que tinha reconhecido a necessidade de as pessoas trabalharem para “ganhar o pão”.
O recuo repentino de Bolsonaro mostra que ele está ciente de que vem minguando em todas as pesquisas realizadas, inclusive as medições de sua influência nas redes sociais.
Estudo diário feito pela consultora de imagem Olga Curado com base nas redes mostra que há “dois governos” na percepção da população: um “prudente”, simbolizado pelo ministro Luiz Mandetta (Saúde), e outro visto como “irresponsável" e “autoritário”, representado por Bolsonaro.
A incapacidade de lidar com essa diluição da própria imagem e a tendência a ouvir um grupo liderado pelos filhos para tomar decisões vinham ditando a aposta no confronto. “Não há estratégia. Ele age instintivamente, orientado por pessoas rasas, que pensam em consonância com ele. É tática de orelha de livro”, disse Olga Curado, que assessorou presidentes da República e candidatos à Presidência nos últimos 20 anos, à coluna.
O pronunciamento de ontem foi uma tentativa de inflexão nos vários “dias da mentira” e de se aproximar do governo de Mandetta e Paulo Guedes e se afastar dos conselhos dos três filhos, sobretudo de Carlos, o czar da comunicação, e Eduardo, o tradutor que não sabe inglês e cunhou o apelido definitivo do clã: “Família Buraco”.
Bolsonaro reconheceu que não há remédio de eficácia comprovada contra a covid-19, disse que o vírus é uma “realidade” (e não “gripezinha”) e lamentou a perda de vidas, sem o “paciência, acontece” que despejou em entrevista na última sexta.
O barulho ensurdecedor das panelas nas janelas do Brasil durante a fala, no entanto, mostra que a confiança numa mudança sincera de propósito vai depender de ações nos próximos dias.
A missão do governo é fazer a renda de R$ 600 aos mais necessitados, já aprovada no Congresso, chegar às pessoas, algo para que ainda não há data nem formato. É coordenar esforços com governadores e prefeitos e conduzir o País numa única direção para atravessar uma crise que não é possível determinar que duração terá, mas que não pode ser enfrentada com o autoritarismo dos idos de março nem narrativa de Primeiro de Abril.
Por ora, sãos, Francisco
Cristo em Copacabana |
Fazei-vos instrumento de vossa saúde.
Onde houver toque, que lave com sabão;
Onde houver tosse, que não leve a mão;
Onde houver discórdia, que louve a informação;
Onde houver dúvida, que leve o gel;
Onde houver asma, que livre a aragem;
Onde houver diabetes, que louve a distância;
Onde houver espirros, que seja alergia;
Onde houver contágio, que leve ao SUS.
Ó Médicos,
Fazei com que se procure mais
Isolar, que ser infectado;
obedecer, que ser contaminado;
alarmar, que ser descuidado.
Pois é pegando que se tem febre,
E propagando, não se é perdoado,
e só vencendo o Covid torna a vida terna.
Rubem Penz
Bolsonaro Jones
Em novembro de 1978, um americano, James Warren Jones, 47 anos, "reverendo" da seita Templo do Povo, fundada por ele mesmo, induziu seus 909 seguidores numa comunidade agrícola chamada Jonestown, na Guiana, a cometer suicídio em massa, tomando suco de frutas (sabor uva) misturado com cianeto. Os primeiros a morrer foram as 276 crianças do local, envenenadas pelos pais. Em seguida, estes se deitaram e tomaram a beberagem fatal. Ato contínuo, Jim Jones, como passou à história, se matou com uma bala na cabeça.
Seu argumento para convencer os fiéis a morrer foi uma ameaça de invasão da comunidade por um suposto inimigo, nunca devidamente definido, que os escravizaria e submeteria a lavagem cerebral. O conteúdo das pregações de Jones era confuso e envolvia marxismo, budismo e metodismo, tudo embrulhado em roupagem messiânica ao estilo de Stalin ou Hitler. Não por acaso, sua mãe, quando ele nasceu, em 1931, na rural e atrasada Indiana, dizia ter dado à luz um "messias". Jones também devia se ver assim, porque parecia acreditar no que dizia. O fato é que nenhum outro líder carismático levou tantos seguidores —quase mil, de uma só vez e a uma simples ordem— tão cegamente à morte. Até agora.
Jair (já de batismo Messias) Bolsonaro pode bater o recorde de Jim Jones. Sua audácia em contrariar a ciência, a OMS, as medidas mundiais e o bom senso, insistindo em levar seus apoiadores a expor-se ao coronavírus, não é muito diferente de propor um suicídio coletivo.
É verdade que ele é o primeiro a seguir o próprio conselho. Sai à rua, deixa-se tocar e circula entre possíveis infectados como se fosse à prova de contágio. Ao desfilar sua autoproclamada invulnerabilidade, parece querer provocar um holocausto particular, como o de Jim Jones.
Jones, pelo menos, foi até o fim. Bolsonaro, para ser coerente, também terá de ir. E não será por falta de bala.Ruy Castro
Seu argumento para convencer os fiéis a morrer foi uma ameaça de invasão da comunidade por um suposto inimigo, nunca devidamente definido, que os escravizaria e submeteria a lavagem cerebral. O conteúdo das pregações de Jones era confuso e envolvia marxismo, budismo e metodismo, tudo embrulhado em roupagem messiânica ao estilo de Stalin ou Hitler. Não por acaso, sua mãe, quando ele nasceu, em 1931, na rural e atrasada Indiana, dizia ter dado à luz um "messias". Jones também devia se ver assim, porque parecia acreditar no que dizia. O fato é que nenhum outro líder carismático levou tantos seguidores —quase mil, de uma só vez e a uma simples ordem— tão cegamente à morte. Até agora.
Jair (já de batismo Messias) Bolsonaro pode bater o recorde de Jim Jones. Sua audácia em contrariar a ciência, a OMS, as medidas mundiais e o bom senso, insistindo em levar seus apoiadores a expor-se ao coronavírus, não é muito diferente de propor um suicídio coletivo.
É verdade que ele é o primeiro a seguir o próprio conselho. Sai à rua, deixa-se tocar e circula entre possíveis infectados como se fosse à prova de contágio. Ao desfilar sua autoproclamada invulnerabilidade, parece querer provocar um holocausto particular, como o de Jim Jones.
Jones, pelo menos, foi até o fim. Bolsonaro, para ser coerente, também terá de ir. E não será por falta de bala.Ruy Castro
A pedra no caminho
Assim, Bolsonaro, graças a seu comportamento irresponsável, começa a conquistar um lugar jamais ocupado por um presidente brasileiro – o de vilão internacional. Nem mesmo o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, idolatrado por Bolsonaro, persistiu em sua costumeira arrogância diante do avanço dramático da epidemia, rendendo-se à necessidade de prorrogar o isolamento social, mesmo ante o colossal custo econômico dessa medida.
Aparentemente, contudo, Bolsonaro não se importa de ser visto como pária. Ao contrário: decerto feliz com a notoriedade global subitamente adquirida, na presunção de que isso lhe trará votos, insiste em desafiar abertamente as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), adotadas pelo Ministério da Saúde e por governadores e prefeitos de quase todo o Brasil. No domingo passado, o presidente passeou por Brasília, visitando zonas comerciais, pedindo que a vida volte ao normal e cumprimentando simpatizantes que se aglomeravam em torno dele – escarnecendo, assim, de reiteradas recomendações de seu próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.
Como se isso não bastasse, Bolsonaro ainda postou em sua conta oficial no Twitter vídeos e imagens que atestavam sua descarada irresponsabilidade. Ao fazê-lo, conseguiu outra proeza: tornou-se o primeiro presidente brasileiro a ter postagens suspensas pelo Twitter, por negar ou distorcer orientações das autoridades sanitárias na luta contra uma epidemia. O Twitter, aparentemente disposto a conter o vírus da desinformação, já havia feito o mesmo em relação a postagens do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, e do chanceler Ernesto Araújo.
O temerário passeio de Bolsonaro por Brasília – apenas um dia depois de o ministro Mandetta ter enfatizado a necessidade do rígido isolamento social, pois, do contrário, “vai faltar atendimento para rico e para pobre” – demarcou definitivamente a fronteira que separa o presidente do resto do mundo civilizado. Bolsonaro hoje só governa o território habitado por seus fanáticos devotos.
Nesse país de valentões, em que a ciência e a razão são tratadas como inimigas, o presidente diz que “é preciso enfrentar o vírus como homem, pô, e não como moleque” – e, no léxico bolsonarista, “moleque” é quem defende quarentena contra a epidemia, para salvar vidas e evitar o colapso do sistema de saúde. Já “homem” é ele, o presidente, que repta o bom senso e escancara sua demagogia ao cogitar de acabar com o isolamento social por decreto: “Estou com vontade, eu tenho como fazer, estou com vontade: baixar um decreto amanhã” para permitir a volta ao trabalho de quem precisa “levar o leite dos seus filhos, arroz e feijão para casa” – ou seja, todo mundo. Se milhares de pessoas morrerem por falta de atendimento médico em decorrência dessa irresponsabilidade, “paciência”, disse o presidente, pois, afinal, “um dia todos vamos morrer”.
Não à toa, o governador de São Paulo, João Doria, pediu aos paulistas que ignorem Bolsonaro: “Não sigam as orientações do presidente, ele não orienta corretamente a população e, lamentavelmente, não lidera o Brasil no combate ao coronavírus e na preservação da vida”. Já o ministro Mandetta, desautorizado tão escandalosamente pelo presidente da República, pediu paciência à sua humilhada equipe e, conforme apurou a jornalista Eliane Cantanhêde, do Estado, citou para seus comandados o poema No Meio do Caminho, de Drummond – aquele do verso “No meio do caminho tinha uma pedra”.
Cobrança dos EUA
É realmente importante que os governos tenham a responsabilidade de mitigar a perda de vidas e apoiar a saúde pública. É importante que eles levem isso a sério.
A coisa mais importante agora é evitar uma situação em que o número de doentes ultrapasse a capacidade de atendimentos dos hospitais. Isso é o mais perigoso, porque é quando começamos a perder vidas desnecessariamente.Devemos evitar uma situação em que não possamos prestar assistência médica às pessoas que dela necessitamLuciana Borio, que ainda trabalhava como assessora da Casa Branca em maio de 2018, quando alertou, durante um simpósio, que uma pandemia de gripe seria a principal ameaça à segurança sanitária nos Estados Unidos. A brasileira era responsável pela unidade de segurança global de saúde do Conselho de Segurança Nacional, órgão ligado à Presidência dos EUA, fechado por Donald Trump
Todos no mesmo barco
Confinados ou não, nos sobra pouco tempo para qualquer coisa que não seja relacionada ao coronavírus — o qual, por sinal, dispensa o qualificativo de “novo” por já ter nome e sobrenome de doença (Covid-19). Em compensação o adjetivo é mais atual do que nunca no conceito de “novo-pobre” delineado pelo economista Ricardo Paes de Barros, que há dias prega políticas sociais imediatas, coerentes e sustentadas para as periferias urbanas. Na nave chamada Brasília a urgência é outra.
Enfiados em nossos casulos de ocasião, a fartura de tempo é ilusória. É preciso digerir os prós e contras do medicamento hidroxicloroquina, ora anunciada como medicamento redentor, ora noticiada como tendo provocado mortes na Nigéria. Também precisamos nos atualizar sobre o significado de anosmia (perda de olfato) e ageusia (perda de paladar), citados como eventuais sintomas paralelos do coronavírus. O noticiário global se mescla ao nacional e ao local, com todos ameaçados pelo mesmo vírus. A doença não distingue entre o pulmão do príncipe herdeiro do Reino Unido e os 1,3 bilhão de pulmões de indianos quarentenados por ordem do governo. A morte tampouco faz distinção entre bípedes — ela é o maior equalizador social que conhecemos, talvez o único. É em vida que sociedades fazem suas escolhas de convívio ou exclusão, que os governantes por ela escolhidos tomam decisões de seleção das espécies.
Por fatalidade, para guiá-lo na travessia dessa peste moderna de proporções ainda incertas, o Brasil tem no comando um fio desencapado. Irresponsável nos atos, celerado nas palavras e perigoso no que pensa. Desacredita nos números de mortos da pandemia em São Paulo e nos Estados Unidos por não lhe convirem politicamente, enquanto manifesta a crença de que “brasileiro não pega nada... o cara sai pulando em esgoto, mergulha, e não acontece nada...” Ou seja, esse brasileirinho safo já nasce com vacina própria: por sobreviver sendo preto ou pardo, pobre e favelado, tem os anticorpos necessários contra uma mera Covid-19. Assunto resolvido.
A semana se encerra com o número de infectados globais embicando para além dos 600 mil. Mesmo assim, em meio à torrente de gráficos, dados e estatísticas ininterruptamente atualizados, nos apegamos a histórias individuais, notícias de algum caso específico que nos toca. Felizmente, somos uma espécie social em comunicação voraz mas ainda capaz de sentir a dor e a alegria do outro.
De certa forma, neste início de 2020, nosso planetinha se parece um pouco com a sina do cruzeiro Zaandam, que zarpou de Buenos Aires no início do mês, e aguarda permissão para atravessar o Canal do Panamá e seguir rumo a algum porto disposto a abrigá-lo. Seus 1.243 passageiros foram informados pelo comandante que há quatro mortos a bordo, vítimas da pandemia. Imagine-se as incertezas da viagem até o navio atracar em seu ponto final. No mundo em terra firme não é diferente. Em ambos confiança e coesão coletiva dependem, em boa parte, da capacidade de seus comandantes.
Diante da orfandade nacional neste quesito, cabe a cada um escolher seus conselheiros. Gera conforto ver emergir uma figura serena, clara e objetiva, que tem falado de forma incansável para um Brasil adulto: Margareth Dalcomo, pneumologista e pesquisadora da Fiocruz, sem agenda política para defender. Defende a ciência, o saber, a informação.
De resto, se sobrar tempo, vale mergulhar no recém-lançado “Por que o tempo voa”, de Alan Burdick (Todavia). Ou então resignar-se à constatação formulada por John Updike em suas “Memórias”: “A cada novo dia acordamos ligeiramente alterados, e a pessoa que éramos ontem já não é mais. Portanto, por que ter medo da morte quando ela ocorre o tempo todo?”
Vírus poderosos, líderes opacos
Em 1963, tempo da Guerra no Vietnã, ele nos perguntou quantas mortes haveriam de ocorrer, até que o homem se desse conta de que muita gente tinha acabado de morrer. Em 2020, tempo de vírus poderosos e líderes opacos, Bob Dylan sopra no vento uma longa homenagem a John Kennedy e a uma época de experimentação e esperança.
“Ele foi morto como um cachorro à luz do dia”, canta Dylan ao abrir a canção. “Era uma questão de tempo, e o tempo estava correto. Você tem dívidas a pagar, e nós viemos cobrar. Vamos matar você com ódio e nenhum respeito”.
Era o tempo da luta pelos direitos civis. Dos direitos dos negros, das mulheres. Da música como ímã para juntar gente interessada em mudar o mundo. Tudo isso está em Murder most foul, que o poeta incansável lançou inesperadamente nas redes sociais. Bem no momento em que o mundo procura achar forças para combater uma grande pandemia.
A liderança chinesa acredita haver feito o dever de casa. Conseguiu conter a expansão do coronavírus por meio de uma dura política de isolamento social e testagem em massa da população. Pode ter conquistado apoio interno com a vitória, ainda que parcial. Mas não inspira, nem pretende inspirar, o resto do mundo.
As ruas de Milão e Roma estão desertas. E foi dali, na deserta praça de São Pedro, no Vaticano, que surgiu a mais candente resposta, até o momento, aos temores da humanidade nesse momento de incerteza. Sozinho, diante daquele enorme espaço público vazio, o Papa Francisco dirigiu ao mundo a benção Urbi et Orbi.
Ele falou para 1,3 bilhão de católicos. Mas, de certa forma, parecia estar se dirigindo ao mundo inteiro. Lembrou que a humanidade se calou diante de guerras e injustiças. Criticou a opção preferencial pelo lucro. “Não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo”, disse Francisco.
A mais notável exceção parece ter sido a da chanceler Angela Merkel, da Alemanha. Em rara emissão em rede nacional de televisão, ela explicou à população de seu país como o governo alemão reage ao que ela chamou de maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial.
Merkel ressaltou a necessidade de atuação conjunta de governo e cidadãos na luta contra a pandemia. Elogiou os profissionais de saúde e lembrou à população que era necessário deter a velocidade de expansão do vírus, para não sobrecarregar os hospitais. E aqui ela se apresentou aos alemães mais humana do que nunca se havia apresentado.
“A Alemanha tem um excelente sistema de saúde, talvez um dos melhores do mundo, mas nossos hospitais ficariam sobrecarregados se tantos pacientes com infecções severas causadas pelo coronavírus fossem admitidos em tempo tão curto”, observou Merkel.
O discurso de Merkel, uma líder geralmente descrita como fria e distante, espalhou-se rapidamente pelas redes sociais em todo o mundo. Como um exemplo de transparência, sobriedade e empatia. Como exemplo de alguém em quem se poderia confiar.
As últimas semanas têm mostrado que não adiantou muito a tentativa de apresentar a pandemia como algo distante ou como manipulação da mídia internacional. O vírus cruzou fronteiras e desafiou governantes que duvidavam do alcance da pandemia.
A mudança chegou também à Casa Branca. No domingo, o presidente Donald Trump pediu aos americanos que fiquem em casa pelo menos até o fim de abril, para reduzir o ritmo de expansão da pandemia. Ele foi convencido por seus assessores de que até dois milhões de americanos poderiam morrer se mantivesse os planos iniciais de romper a política de isolamento social nos próximos dias.
“Nada seria pior do que declarar vitória antes de conseguir a vitória”, disse Trump, em raro momento de modéstia e conciliação.
As idas e vindas do presidente americano são típicas de uma época de inquietude e incerteza. A pandemia surpreendeu o mundo em um momento de pouca cooperação e muito confronto geopolítico. Um momento onde a importância demasiada ao nacional tem desviado para o caminho do provincianismo, onde florescem governantes de curta visão.
Poucos líderes de hoje se arriscariam, como fez Kennedy com seus erros e acertos há meio século, a apresentar ideias ao mundo. Dylan escolheu o tempo certo para lembrar o seu exemplo.
Marcos Magalhães
“Ele foi morto como um cachorro à luz do dia”, canta Dylan ao abrir a canção. “Era uma questão de tempo, e o tempo estava correto. Você tem dívidas a pagar, e nós viemos cobrar. Vamos matar você com ódio e nenhum respeito”.
O assassinato de Kennedy, em novembro de 1963, marcou toda uma geração. Era como o fim precipitado de alguma coisa que nem bem havia começado. Um momento, descreve Dylan, em que o espírito de uma nação foi rasgado. Espírito que entrou em “longa decadência”.
Era o tempo da luta pelos direitos civis. Dos direitos dos negros, das mulheres. Da música como ímã para juntar gente interessada em mudar o mundo. Tudo isso está em Murder most foul, que o poeta incansável lançou inesperadamente nas redes sociais. Bem no momento em que o mundo procura achar forças para combater uma grande pandemia.
Kennedy ia além do America First. Ele foi uma espécie de símbolo de um tempo que estaria para nascer. Apesar do Vietnã, apesar da invasão da Baía dos Porcos. Mas tinha o charme de uma liderança cosmopolita. Alguém capaz de encantar o mundo.
O mesmo mundo que hoje assiste, quase impotente, à expansão de uma doença capaz de levar centenas de milhares de vidas em poucos meses. Tempo em que sobram preocupações e faltam lideranças capazes, ao menos, de inspirar ondas de confiança no planeta sobressaltado.
A liderança chinesa acredita haver feito o dever de casa. Conseguiu conter a expansão do coronavírus por meio de uma dura política de isolamento social e testagem em massa da população. Pode ter conquistado apoio interno com a vitória, ainda que parcial. Mas não inspira, nem pretende inspirar, o resto do mundo.
A Itália, país que até hoje sofreu as maiores perdas depois da chegada do vírus, pecou pela falta de rápida resposta. Da Prefeitura de Milão ao governo nacional, ninguém acreditou que a doença chegaria aonde chegou. O exemplo, ali, vem de baixo. De uma população isolada que canta nas janelas e celebra os seus médicos e enfermeiros.
As ruas de Milão e Roma estão desertas. E foi dali, na deserta praça de São Pedro, no Vaticano, que surgiu a mais candente resposta, até o momento, aos temores da humanidade nesse momento de incerteza. Sozinho, diante daquele enorme espaço público vazio, o Papa Francisco dirigiu ao mundo a benção Urbi et Orbi.
Ele falou para 1,3 bilhão de católicos. Mas, de certa forma, parecia estar se dirigindo ao mundo inteiro. Lembrou que a humanidade se calou diante de guerras e injustiças. Criticou a opção preferencial pelo lucro. “Não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo”, disse Francisco.
O grave tom do pronunciamento de Francisco contrastou com a linguagem quase negacionista de líderes nacionais na Europa e em outras partes do mundo. Uma linguagem politicamente calculada, mas que tinha pouco de empatia e de conforto.
A mais notável exceção parece ter sido a da chanceler Angela Merkel, da Alemanha. Em rara emissão em rede nacional de televisão, ela explicou à população de seu país como o governo alemão reage ao que ela chamou de maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial.
Merkel ressaltou a necessidade de atuação conjunta de governo e cidadãos na luta contra a pandemia. Elogiou os profissionais de saúde e lembrou à população que era necessário deter a velocidade de expansão do vírus, para não sobrecarregar os hospitais. E aqui ela se apresentou aos alemães mais humana do que nunca se havia apresentado.
“A Alemanha tem um excelente sistema de saúde, talvez um dos melhores do mundo, mas nossos hospitais ficariam sobrecarregados se tantos pacientes com infecções severas causadas pelo coronavírus fossem admitidos em tempo tão curto”, observou Merkel.
“Eles não são apenas números abstratos em uma estatística, mas sim um pai ou um avô, uma mãe ou uma avó, um companheiro. São Pessoas. E nós somos uma comunidade em que cada vida e cada pessoa importa”, completou.
O discurso de Merkel, uma líder geralmente descrita como fria e distante, espalhou-se rapidamente pelas redes sociais em todo o mundo. Como um exemplo de transparência, sobriedade e empatia. Como exemplo de alguém em quem se poderia confiar.
As últimas semanas têm mostrado que não adiantou muito a tentativa de apresentar a pandemia como algo distante ou como manipulação da mídia internacional. O vírus cruzou fronteiras e desafiou governantes que duvidavam do alcance da pandemia.
O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, que se alinhava na turma dos céticos, foi pessoalmente atingido pelo coronavírus. E seu governo adotou nova postura diante da pandemia. Johnson foi à televisão para dizer que os britânicos deveriam permanecer em casa e sair apenas para compras essenciais ou necessidades médicas.
A mudança chegou também à Casa Branca. No domingo, o presidente Donald Trump pediu aos americanos que fiquem em casa pelo menos até o fim de abril, para reduzir o ritmo de expansão da pandemia. Ele foi convencido por seus assessores de que até dois milhões de americanos poderiam morrer se mantivesse os planos iniciais de romper a política de isolamento social nos próximos dias.
“Nada seria pior do que declarar vitória antes de conseguir a vitória”, disse Trump, em raro momento de modéstia e conciliação.
As idas e vindas do presidente americano são típicas de uma época de inquietude e incerteza. A pandemia surpreendeu o mundo em um momento de pouca cooperação e muito confronto geopolítico. Um momento onde a importância demasiada ao nacional tem desviado para o caminho do provincianismo, onde florescem governantes de curta visão.
Poucos líderes de hoje se arriscariam, como fez Kennedy com seus erros e acertos há meio século, a apresentar ideias ao mundo. Dylan escolheu o tempo certo para lembrar o seu exemplo.
Marcos Magalhães
Lento e sem testes, Brasil escolhe a roleta russa do coronavírus
As críticas e os panelaços não tardaram. Infelizmente, a polêmica em relação a postura do presidente tira o foco de um problema muito maior: a falta de estratégias e de decisões cruciais para enfrentar a crise é uma receita segura para uma catástrofe de dimensões incalculáveis. Enquanto o fla-flu nas redes sociais corre solto, o país continua tendo na prática e não somente no discurso uma das mais fracas e lentas reações à pandemia de todo planeta. Se trata de uma política de Estado que freou e continua freando ações essenciais na fase inicial do combate ao contágio com o coronavírus e que poderá resultar no colapso simultâneo do SUS, da atividade econômica e da coesão social.
Enquanto debatemos se é mais importante focarmos nos aspectos de saúde pública ou na crise econômica, uma discussão outrora completamente irracional, já que nunca haverá como salvar a economia de um país com milhares de cadáveres espalhados pelas ruas, outros países vêm adotando medidas enérgicas para limitar a extensão geográfica do contágio e conter o crescimento do número de casos em três linhas essenciais de atuação: o controle do fluxo de movimento das pessoas, o rastreio e o estrito isolamento dos casos potenciais, e a testagem maciça das comunidades mais afetadas. China, Cingapura, Coreia do Sul e Hong Kong demonstraram que uma estratégia de prevenção amparada nesses 3 eixos pode conter a epidemia em menos de três meses. Infelizmente, o Brasil não prestou suficiente atenção.
Enquanto países vizinhos muito menos afetados pela pandemia como Argentina, Peru e Colômbia seguem o exemplo asiático e tomam medidas drásticas para impor toque de recolher, fechar fronteiras e paralisar os transportes, milhares de passageiros oriundos de zonas de alto risco transitam diariamente pelos aeroportos brasileiros sem qualquer tipo de fiscalização. Parece surreal, mas estados como Ceará, Maranhão e Bahia, que tentaram pelo menos medir a temperatura dos passageiros no ponto de chegada, foram acionados na Justiça pela ANVISA, que conseguiu barrar os procedimentos. No Brasil, a agência cuja missão é liderar os esforços de contenção do contágio está se valendo das suas prerrogativas para fazer exatamente o oposto. Mesmo com mais de 100.000 casos confirmados nos EUA, o maior número do mundo, passageiros de Nova York estão pousando hoje em aeroportos pelo Brasil inteiro. Em quase qualquer outro país do mundo, esses passageiros ou já estariam barrados de viajar, ou estariam obrigados a permanecer por 14 dias em centros de quarentena do Estado, ou no mínimo seriam obrigados a permanecer em isolamento domiciliar durante esse período e multados caso desrespeitarem esse compromisso. No Brasil, eles estão sendo incentivados a saírem pelas ruas para movimentar o comércio. Como surpreender-nos então que o vírus se espalhou por todo o território nacional, já chegando até em aldeias indígenas?
Ao contrário das melhores práticas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde e pelos especialistas dos sistemas de saúde que melhor lidaram com a crise até agora, o Ministério da Saúde não adotou medidas eficazes para assegurar ou pelo menos incentivar o rastreamento de pessoas que chegaram em contato com casos confirmados da Covid-19 (“contact tracing”). Mais que isso, por conta de escassez, o ministério vem recomendando a aplicação de testes somente em casos sintomáticos graves. Na prática, a falta do rastreamento de contato junto com a impossibilidade de testar portadores assintomáticos acelera a transmissão comunitária do vírus. Enquanto na Ásia aplicativos disponibilizados pelas autoridades de saúde pública permitem às pessoas descobrir em tempo real a identidade e a localização de pacientes confirmados que estiveram na sua proximidade, o Brasil não pode citar nenhum avanço nessa direção.
Outro aspecto muito problemático da gestão brasileira da Covid-19 até o momento é a questão dos testes. O Ministério da Saúde vem divulgando gráficos comparativos com a evolução da pandemia em países europeus e argumentando que a evolução do contágio vem sendo muito mais devagar que na Itália ou na Espanha. Mas como é possível acreditar em tal comparação sem qualquer tipo de transparência em relação ao número de testes que já foram realizados ou serão realizados no futuro? Desde o início da crise é notório que hospitais pelo país inteiro não conseguem testar todos os pacientes suspeitos de infecção, mesmo alguns em estado grave, por conta da falta de testes suficientes. Enquanto isso, a previsão de entrega de testes da Fiocruz feita pelo Ministério da Saúde contradiz os dados da própria Fiocruz. É absolutamente imperativo que a situação dos testes seja resolvida com celeridade para reduzir a subnotificação de casos. Ao contrário, as medidas de saúde pública adotada pelas autoridades podem estar norteadas por dados distorcidos.
Hoje, o debate público no Brasil deveria estar focado nessas questões. Também deveria estar focado na busca de uma estratégia para lidar com a queda abrupta da atividade econômica enquanto há um aumento galopante do número de casos. O isolamento de bairros, cidades, ou regiões do país onde a situação continua muito grave ou o isolamento vertical das pessoas mais sensíveis ao vírus poderão ser a nossa última opção caso o número de infecções continue aumentando depois de 3 ou 4 meses de isolamento horizontal. O cenário dramático enfrentado pela Itália, Espanha e os Estados Unidos deixa claro que o país precisa começar a se preparar para esse cenário sombrio e cheio de riscos, para evitar com que o fim do confinamento traga uma completa rendição frente ao poder destruidor da pandemia. Relaxar as medidas de quarentena sem um planejamento extremamente cauteloso, certamente incluindo os três eixos descritos acima, significaria uma abdicação do nosso dever moral de protegermos as vidas dos mais vulneráveis.
Igual ao resto do planeta, o Brasil está se arriscando num jogo perverso de roleta russa. A bala que já está no revólver é o vírus. Não podemos permitir que ele também seja carregado com as balas do despreparo, da ignorância, da desunião, da falta de foco. Seria uma morte segura.
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