segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Respeito mútuo


Nós, como israelitas, não podemos ter segurança se os palestinos não tiverem liberdade
Yuval Abraham, jornalista israelense fundador junto com o jornalista palestino Ahmed Alnaouq a página “Across the Wall”

Os tratores do medo

A tradição dos oprimidos nos ensina, diz Giorgio Agamben, que o “estado de exceção em que vivemos” (no cenário mundial) “é a regra”. E segue, na esteira de Walter Benjamin: “devemos chegar a um conceito de história que se corresponda com este fato […] porque o poder não tem hoje outra forma de legitimação do que a situação de perigo grave a que apela em todas as partes de forma permanente e que, ao mesmo tempo, se esforça e o produz secretamente”.[1]

A guerra é a maior tormenta que faz o mundo como ele é. A guerra varre todas as demais tempestades, suprime moralidades, oprime consciências e corpos; altera classes, costumes, revela os passados que estavam mortos e reabre ao mundo novas e piores possibilidades; assim como os homens fazem as guerras ou permitem que as façam, elas – as guerras – também moldam o futuro. Os heróis das guerras não fazem o futuro porque eles foram obrigados a saber matar e quem mata suprime sempre algo de si mesmo, por mais generosa que seja a recompensa da vitória. As guerras deixam poucos verdadeiros heróis na superfície da história.

Bombardeios passaram a ser denominados “explosões”, ação militar de revide contra um atentado terrorista passou a ser qualificado de “guerra contra o Hamas”; as ações humanitárias para salvar crianças e populações civis passaram a ser “ataques à existência de Israel”; e as bombas incendiárias contra hospitais passaram a ser – primeiro – “levemente” justificadas como erros técnicos, depois – pesadamente – como efeitos colaterais de uma guerra contra o terror. A única saída para a guerra, como hoje ela revela, está em voltar a negociar em torno do cumprimento dos acordos de Oslo que, se não for possível, vai implodir o resto do Século XXI.



No 11 de setembro de 2001, o ataque terrorista ao World Trade Center fez 2.996 mortes, comoveu o mundo e reforçou a disposição do Império para a Guerra com a fabricação de armas e com os negócios de reconstrução dos países que seriam destruídos. O século iniciava prometendo barbárie, porém mais de 10 mil mortos por bombas de fósforo jogadas contra hospitais, escolas e contra a população civil na Faixa de Gaza, ainda são leves para dar sentido à consciência do Ocidente democrático e cristão.

Estamos entrando num período em que a novilíngua colonial-imperial, que tudo encobre, desliza suavemente para oficializar a inevitabilidade do genocídio que o Governo de extrema direita de Benjamin Netanyahu pensa ter o direito divino de fazer. Diz ele que Israel é o “bem” absoluto, que cumpre uma missão divina abrigado num Estado teológico e o povo palestino é o mal diabólico, que pode e deve ser varrido da terra, o que torna justificável transformar todo um povo num povo maldito, sem respeitar a vida de mães, crianças, jovens, civis de todos os tipos e espécies.

É para a justificação desta vontade divina – ou sua aceitação “naturalizadora” – que a maior parte da mídia vem transitando, depois que algumas coberturas equilibradas mostraram uma certa pluralidade perante os horrores de uma nova carnificina no Oriente Médio.

Benjamin Netanyahu diz que cumpre uma missão civilizatória e defende que ali todos os valores do “ocidente” estão em jogo, como ocorreu com o Império no Vietnam, como ocorreu com a busca de armas químicas no Iraque, como se fez verdade absoluta – durante três décadas na América Latina – aquela missão civilizadora dos EUA, com seus instrutores de tortura ensinando interrogatórios para as ditaduras da América Latina.

A fala de Benjamin Netanyahu ao povo judeu – confrontando o “bem” contra o “mal” – a partir de valores religiosos lidos de uma forma sectária e contrangedoramente medieval, não é apenas uma falácia, mas é uma estratégia de poder e de alianças fundadas no medo com todos os fundamentalismos do mundo, inclusive com aqueles governos e países que eventualmente ainda apoiam um Estado palestino.

O que parece ser só uma falácia religiosamente correta, na verdade suprime as categorias políticas da modernidade e assim abre o Estado sagrado para qualquer aliança pragmática, em favor das suas verdades religiosas que não podem ser glosadas pela história.

O resto do Século XXI transita para uma situação de perigos indeterminados, nos quais o Governo de Israel, ao deslegitimar todos os esforços feitos pela ONU, apoiada pelos países vencedores da 2a Guerra Mundial – inclusive pela Rússia soviética – podem ser jogados no lixo. O complexo industrial militar dos EUA, os Bancos Centrais do mundo inteiro, os especuladores das guerras, os agiotas legais e ilegais do sistema financeiro global, podem ser levados para um ou para outro lado, segundos seus interesses imediatos de dominação e sobrevivência. Só não tem capacidade de interferir decisivamente para terminar a guerra aquela parte da humanidade – a maioria dos humanos – que não concorreu para sua eclosão.

Os custos humanos da guerra, até agora aceitos pela grande mídia, que mostram a batalha de Israel contra o Hamas sendo transformada numa guerra contra todo o povo palestino, indica que eles não se importam e não perdoarão ninguém que se atreva a enfrentar o seu sistema de dominação: os tratores mortais deste século acostumarão a humanidade sobrevivente a aceitar que aqueles arados que ceifam crianças, sejam necessários também para alimentar o mercado da morte: a fabricação de bombas, armas, carros de combate, munições, foguetes, mísseis e gases que asfixiam, formam a essência do keinesianismo colonial-imperial, que gera muitos novos ricos, empregos seletivos e mortes coletivas no horizonte do século.

A guerra contra as crianças

Não quero comover, emocionar, levar às lágrimas. Apenas perguntar: Que mundo é este em que 420 crianças são mortas por dia, sem que nada possamos fazer? Que mundo é este em que, entre 20 mil feridos, 7 mil são crianças? Que mundo é este em que crianças não podem dormir com o barulho das bombas, não podem brincar entre ruínas pontilhadas de corpos despedaçados?

Difícil aceitar um mundo em que não se trocam imediatamente crianças sequestradas pelo Hamas e crianças presas em Israel. Uma troca pura e simples, sem considerações aritméticas, do tipo um por um. Todas deveriam voltar para suas casas, no caso de ainda terem uma.

Alguns diriam que é ingenuidade supor que as guerras não sejam destrutivas. Sempre mataram, mutilaram e separaram entes queridos. Mas, ao longo do tempo, evoluímos. Criamos leis internacionais. A Convenção de Genebra tem quatro versões, precisamente porque não só definia crimes de guerra, como também expressava essa evolução civilizatória.


Depois dela, tivemos o Estatuto de Roma e um Tribunal Penal Internacional que alguns países como os Estados Unidos não reconhecem. Pelas leis internacionais, Putin deveria estar preso por deportar à força para a Rússia 16 mil crianças. O único tribunal permanente deveria funcionar. O presidente Lula questionou sua existência, mas não se lembra de que o Brasil assinou o tratado em 2002 e o integrou à Constituição em 2004.

Outro argumento que se usa para justificar guerras sangrentas é a defesa do Estado. Grande parte da humanidade apoia a fórmula de dois Estados independentes e pacíficos no Oriente Médio: Israel e Palestina. Mas vale a pena defender ou criar um Estado a partir do massacre de crianças? Os estrategistas não contam com a morte e mutilação infantil. Mas deveriam avaliar os traumas da guerra e da perda da infância, que definirão a personalidade dos que sobrevivem até a idade adulta. Isso significa que a guerra não está apenas produzindo violência, mas semeando violência por muitas gerações.

Algumas organizações defendem a libertação de todas as crianças e a criação de um espaço e tempo para que possam brincar em segurança. Se eu ainda ocupasse cargo público, tentaria apoiar essa possibilidade articulando contatos internacionais em parlamentos de todo o mundo. “Let the Children Play” seria o tema de uma campanha, que teria até a música de Santana como forma de divulgação.

Claro que isso não é o mesmo que um cessar-fogo. Mas de que adianta aprovar um cessar-fogo que Israel só aceitará quando quiser?

Uma campanha pelas crianças teria mais chance de abrir um pequeno espaço civilizatório numa guerra tão próxima da barbárie. E poderia também abrir uma brecha na polarização que domina o debate. Afinal, apesar do que pensam os mais radicais, nem as crianças palestinas nem as de Israel são responsáveis pelas decisões políticas.

Cada vez que ouço um porta-voz da guerra dizer que não há inocentes do outro lado, a primeira imagem que me vem à lembrança é a de milhões de crianças que não escolheram a tragédia, apenas nasceram dentro dela.

Crianças precisam de oxigênio nos hospitais de Gaza, e as máquinas dependem de geradores, que, por sua vez, dependem de combustível. Por que não deixar entrar o combustível? Apenas porque o Hamas pode roubá-lo? Que peso teriam na guerra alguns litros que poderiam salvar tantas vidas que acabam de vir ao mundo?

Ou o mundo reconquista um mínimo de sanidade ou será muito difícil sobreviver nele, sabendo que quase 20 crianças morrem a cada hora de guerra. Levar em conta essa realidade significa colocar pelo menos um tijolo no improvável edifício da paz.

Neste momento, algumas qualidades infantis, como a fantasia e a ingenuidade, talvez possam abrir um pequeno espaço nessa espessa couraça da guerra que a diplomacia e a articulação internacional não conseguem penetrar.