Agora, quem morre não vai ser bonito no mundo dos mortos. O parente pode passar o resto da vida no outro mundo com vergonhaTakumã Kuikuro, indígena da aldeia Ipatse, uma das 109 que acomodam pelo menos 16 etnias no Xingu
segunda-feira, 13 de julho de 2020
A vergonha no outro mundo
Sobre as ofensas de uma classe abastada
Com dignidade sociológica, acrescentou: “Ofensas de uma classe abastada, que a gente acha que tem respeito e educação”.
A ocasião: a reação iracunda de frequentadores de um bar, na Barra da Tijuca — núcleo impávido do bolsonarismo de raiz —, à ação da Vigilância, no zelo das regras mínimas de proteção diante da pandemia. Gente que bem sabe como “se ofende uma mulher”.
Na mesma noite, Flavio Graça, superintendente da mesma Vigilância e no mesmo bairro, viu-se diante de dois exemplares do horror pátrio e pétreo a qualquer fumaça de igualdade: um casal indignado com tratamento dispensado, que envolveu o emprego da palavra “cidadão”.
O apego atávico a marcas de distinção faz do termo uma imposição de rebaixamento. Cada um, afinal, deve ser chamado pelo que o distingue: daí o aceitável uso do termo “elemento” para os tidos por inferiores.
O casal colérico exibiu sua distinção, mas, no dia seguinte, perdeu os empregos. Ao que parece, há lapsos de vigília no sono dos deuses.
A frase de Jane Loureiro dá o que pensar. Em um de seus mais importantes poemas — "A flor e a náusea", de 1945 — Carlos Drummond de Andrade inscreveu o seguinte verso: “Sob a pele das palavras há cifras e códigos”.
Sob a epiderme da frase de Jane não há somente cifras e códigos, mas a exibição do abismo civilizatório no qual nos precipitamos sob o consulado inominável da extrema-direita.
Por certo, a vociferação de impropérios misóginos está inscrita na geologia dos nossos hábitos nacionais. Da mesma forma, lá estão a pequena e medíocre arrogância, a alucinação de superioridade e o direito autoconcedido de tomar satisfação dos discrepantes e inferiores.
O que agora se acrescenta, é que todos possuem um Chefe e um exemplo, algo que lhes dá unidade e direção. Tornam-se, assim, operadores da obra de desconstrução dos filamentos civilizatórios mínimos que, mal ou bem, vínhamos acumulando.
Fascismo? Necropolítica? Autoritarismo? Outro nome? Qual? Dar um nome é supor que há uma forma. E o bolsonarismo não tem forma alguma; não faz sistema; é pura obra de destruição; sequer merece um nome para chamar de seu.
É constituído por práticas díspares, potências de degradação dos ambientes nos quais são engendradas. Obra que exige tanto iniciativas pelo alto quanto ações e comportamentos na base: negar água potável aos indígenas e humilhar fiscais sanitários; ofender uma mulher.
Cada um faz a sua parte: o Chefe e seus alegres acólitos, protagonistas de uma liberdade, enfim conquistada, de causar danos aos demais. E daí?Renato Lessa
A descoberta da escrita
Tentava escrever e eles surgiam, levando todo o material. Confiscavam e sumiam. Sem satisfações, mas também sem recriminações. Não diziam nada, olhavam e recolhiam o que estava sobre a mesa.
Tentou mudar de casa, não adiantou. Eles chegavam apenas a caneta tocava o papel. Como se aquele toque tivesse a capacidade de emitir um sinal, perceptível somente por eles, como o infra-som para um cachorro. Levaram todos os papéis. E quando ele tentou comprar, as papelarias não venderam sem a requisição oficial. Nenhum tipo de papel, nada. Caderno, cada criança tinha direito a cotas estabelecidas. Desvio de cadernos era punido com degredo perpétuo. Rondou as padarias e descobriu que o pão era embrulhado em plásticos finos, transparentes. E quando quis comprar um jornal, viu que as margens não eram brancas, vazias. Agora, havia nelas um chapado preto, para impedir que se escrevesse ali. Uma noite, altas horas, escreveu nas paredes. E pela manhã descobriu que eles tinham vindo e caiado sobre o escrito. Escreveu novamente. Caiaram, outra vez. Na terceira, derrubaram as paredes. Ele procurava caixas, aproveitar as áreas internas. Eles tinham pensado nisso, antes. As partes internas eram cheias de desenhos, ou com tintas escuras sobre as quais era impossível gravar alguma coisa. Experimentou panos brancos, algodão cru, cores leves como o amarelo, o azul claro. Eles também tinham pensado. As tintas manchavam o pano, borravam, as letras se confundiam.
Eles não proibiam, prendiam ou censuravam. Pacientemente, vigiavam. Controlavam. Dia a dia, minuto, segundos. Impediam que ele escrevesse. Sem dizer nada, simplesmente tomando: objetos, lápis, canetas, cotos de carvão, pincéis, estiletes de madeira, o que ele inventasse.
Dois, cinco, doze anos se passaram. Ele experimentou fabricar papel, clandestinamente, em porões e barracos escondidos no campo. Eles descobriram, arrebentavam as máquinas, destruíam as matérias-primas.
Ele tentou tudo: vidros, madeira, borracha, metais. Percebia, com o passar do tempo, que eles não eram os mesmos. Iam mudando, se revezando. Constantes, sempre incansáveis, silenciosos.
Deixou o tempo correr. Fez que tinha desistido. Só pensava, escrevia dentro da própria cabeça tudo o que tinha. Esperou dois anos, cinco, doze. Quando achou que tinha sido esquecido, colocou o material num carro.
Tomou estradas para o norte, regiões menos povoadas. Cruzou pantanais, sertões, desertos, montanhas. Calor, frio, umidade. Encontrou uma planície imensa, a perder de vista. Onde só havia pedras. Ficou ali. Com martelo e cinzel, começou a escrever. Gravando bem fundo nas pedras imensas os sinais. Ali podia trabalhar, sem parar.
E o cinzel formava, lentamente, as, bês, cês, dês, pês. Traços. Palavras, desenhos.
Eles não proibiam, prendiam ou censuravam. Pacientemente, vigiavam. Controlavam. Dia a dia, minuto, segundos. Impediam que ele escrevesse. Sem dizer nada, simplesmente tomando: objetos, lápis, canetas, cotos de carvão, pincéis, estiletes de madeira, o que ele inventasse.
Dois, cinco, doze anos se passaram. Ele experimentou fabricar papel, clandestinamente, em porões e barracos escondidos no campo. Eles descobriram, arrebentavam as máquinas, destruíam as matérias-primas.
Ele tentou tudo: vidros, madeira, borracha, metais. Percebia, com o passar do tempo, que eles não eram os mesmos. Iam mudando, se revezando. Constantes, sempre incansáveis, silenciosos.
Deixou o tempo correr. Fez que tinha desistido. Só pensava, escrevia dentro da própria cabeça tudo o que tinha. Esperou dois anos, cinco, doze. Quando achou que tinha sido esquecido, colocou o material num carro.
Tomou estradas para o norte, regiões menos povoadas. Cruzou pantanais, sertões, desertos, montanhas. Calor, frio, umidade. Encontrou uma planície imensa, a perder de vista. Onde só havia pedras. Ficou ali. Com martelo e cinzel, começou a escrever. Gravando bem fundo nas pedras imensas os sinais. Ali podia trabalhar, sem parar.
E o cinzel formava, lentamente, as, bês, cês, dês, pês. Traços. Palavras, desenhos.
Ignácio de Loyola Brandão, "O Homem do Furo na Mão e outras histórias"
Um presidente limitado pelo egocentrismo
A pergunta central não foi feita por eles: como assim ele próprio anuncia isso, distante apenas alguns palmos dos jornalistas, com os microfones embaixo do seu nariz?
Bolsonaro, como "atleta", pode até não se sentir doente, mas ele, contaminado, é um risco para a saúde de outras pessoas. Mas nem os jornalistas nem Bolsonaro deram importância para isso, o que diz muito sobre o estágio de normalidade da doença no Brasil. E assim Bolsonaro transformou o anúncio de que está com covid-19 num show.
Ainda mais assustador: o presidente disse acreditar que já esteve contaminado bem antes, sem tê-lo percebido. Aqui a pergunta salta aos olhos: se é assim, por que desde o início da pandemia ele se encontra com pessoas nas ruas e em manifestações? Por que ele se reuniu com membros do governo e ministros? Por que foi festejar na embaixada dos EUA? E sempre sem máscara?
A resposta a essas perguntas só pode ser que o Brasil é governado por um homem cuja irresponsabilidade tem traços criminosos. A vida dos outros não lhe interessa, pois Bolsonaro só pensa em Bolsonaro. E não vai ser a contaminação pelo novo coronavírus que vai mudar isso – o que, em outras pessoas, teria despertado algo como empatia pelo sofrimento de outros doentes. Mas, para Bolsonaro, enquanto ele estiver se sentindo bem, isso é a prova de que a covid-19 não é perigosa e de que tudo está bem.
É verdade que a covid-19 não é o fim do mundo. Mas a doença teve e têm graves consequências para muitas pessoas e suas famílias. É fatal que o presidente esteja de novo passando a impressão de que se trata apenas de uma gripezinha, que pode ser curada rapidamente e sem efeitos colaterais, simplesmente tomando hidroxicloroquina (o que é desaconselhado por agências de saúde no mundo inteiro).
Pois o comportamento de Bolsonaro é imitado. Assim como, a partir dele, uma agressividade monstruosa penetrou no debate público brasileiro – palavrões e ameaças viraram algo normal –, é possível acompanhar como os apoiadores de Bolsonaro imitam seu "mito" no cotidiano e ignoram as recomendações das autoridades de saúde ou até mesmo as descumprem com um orgulho idiota. Se apenas a saúde deles estivesse em jogo, tanto faz. Mas se trata também da vida dos outros.
Há regras sociais que todos respeitam. Por exemplo parar no sinal vermelho. Quem não faz isso corre o risco de ser multado. O mesmo deveria valer para as regras durante uma pandemia, por exemplo, que todos acatem o comprovadamente sensato uso de máscaras. Mas não é assim que funciona no Brasil, pois cada cidadão cria suas próprias regras e faz o que acha que é certo. E assim age também o presidente, que nem infectado consegue entender a gravidade da situação.
Bolsonaro é um cidadão, mas é também o chefe de Estado, então é necessário avaliá-lo por outras medidas. Portanto, é errado apenas compadecer-se dele e lhe desejar boa recuperação. A extrema direita brasileira está explodindo de raiva e indignação por causa de um texto de Hélio Schwartsman na Folha de S. Paulo, no qual ele deseja a morte de Bolsonaro para salvar a vida de mais brasileiros.
Mas foi o bolsonarismo que tornou essa retórica normal no Brasil. Na Alemanha há um ditado muito apropriado: So wie man in den Wald hineinruft, so schallt es wieder hinaus ("O grito que se lança na floresta ecoa de novo para fora", com o sentido de "O que se deseja aos outros retorna para nós mesmos").
Por isso, é hora de relembrar algumas frases de Bolsonaro. Em 2015, por exemplo, sobre Dilma Rousseff: "Espero que o mandato dela acabe hoje, infartada ou com câncer, ou de qualquer maneira."
Ou desejando uma guerra civil com as palavras "matando uns 30 mil, começando com o FHC, não deixar para fora não, matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente."
Na campanha de 2018, Bolsonaro gritou histericamente: "Vamos fuzilar a petralhada."
Salta aos olhos a quantas pessoas ele desejou a morte ao longo da sua carreira política. Foi ele quem tornou normal esse linguajar no Brasil. O famigerado "e daí?!" quando lhe perguntaram sobre os milhares de brasileiros mortos por covid-19 é uma consequência disso.
Ao mesmo tempo, Bolsonaro é hipersensível. Quando fala do atentado a faca, lágrimas lhe vêm aos olhos. Elas são a expressão de um egocentrismo implacável.
Agora ele faz propaganda descarada da hidroxicloroquina, que supostamente teria lhe ajudado, apesar de não haver nenhuma prova de que ela realmente funciona. Sabe-se, porém, que esse medicamento pode provocar arritmia cardíaca. Se os brasileiros começarem a imitá-lo, poderia se chamar isso de um atentado à população.
A doença de Bolsonaro e a sua reação frívola, quase alegre, mostram como a morte se tornou normal no Brasil – nas estradas, por violência, por doenças.
O presidente não levou a covid-19 a sério desde o início. Agora ele tenta usar o próprio exemplo para mostrar que sempre teve razão. O egocentrismo desse homem violento tomou uma nação inteira como refém.
Philipp Lichterbeck
Pois o comportamento de Bolsonaro é imitado. Assim como, a partir dele, uma agressividade monstruosa penetrou no debate público brasileiro – palavrões e ameaças viraram algo normal –, é possível acompanhar como os apoiadores de Bolsonaro imitam seu "mito" no cotidiano e ignoram as recomendações das autoridades de saúde ou até mesmo as descumprem com um orgulho idiota. Se apenas a saúde deles estivesse em jogo, tanto faz. Mas se trata também da vida dos outros.
Há regras sociais que todos respeitam. Por exemplo parar no sinal vermelho. Quem não faz isso corre o risco de ser multado. O mesmo deveria valer para as regras durante uma pandemia, por exemplo, que todos acatem o comprovadamente sensato uso de máscaras. Mas não é assim que funciona no Brasil, pois cada cidadão cria suas próprias regras e faz o que acha que é certo. E assim age também o presidente, que nem infectado consegue entender a gravidade da situação.
Bolsonaro é um cidadão, mas é também o chefe de Estado, então é necessário avaliá-lo por outras medidas. Portanto, é errado apenas compadecer-se dele e lhe desejar boa recuperação. A extrema direita brasileira está explodindo de raiva e indignação por causa de um texto de Hélio Schwartsman na Folha de S. Paulo, no qual ele deseja a morte de Bolsonaro para salvar a vida de mais brasileiros.
Mas foi o bolsonarismo que tornou essa retórica normal no Brasil. Na Alemanha há um ditado muito apropriado: So wie man in den Wald hineinruft, so schallt es wieder hinaus ("O grito que se lança na floresta ecoa de novo para fora", com o sentido de "O que se deseja aos outros retorna para nós mesmos").
Por isso, é hora de relembrar algumas frases de Bolsonaro. Em 2015, por exemplo, sobre Dilma Rousseff: "Espero que o mandato dela acabe hoje, infartada ou com câncer, ou de qualquer maneira."
Ou desejando uma guerra civil com as palavras "matando uns 30 mil, começando com o FHC, não deixar para fora não, matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente."
Na campanha de 2018, Bolsonaro gritou histericamente: "Vamos fuzilar a petralhada."
Salta aos olhos a quantas pessoas ele desejou a morte ao longo da sua carreira política. Foi ele quem tornou normal esse linguajar no Brasil. O famigerado "e daí?!" quando lhe perguntaram sobre os milhares de brasileiros mortos por covid-19 é uma consequência disso.
Ao mesmo tempo, Bolsonaro é hipersensível. Quando fala do atentado a faca, lágrimas lhe vêm aos olhos. Elas são a expressão de um egocentrismo implacável.
Agora ele faz propaganda descarada da hidroxicloroquina, que supostamente teria lhe ajudado, apesar de não haver nenhuma prova de que ela realmente funciona. Sabe-se, porém, que esse medicamento pode provocar arritmia cardíaca. Se os brasileiros começarem a imitá-lo, poderia se chamar isso de um atentado à população.
A doença de Bolsonaro e a sua reação frívola, quase alegre, mostram como a morte se tornou normal no Brasil – nas estradas, por violência, por doenças.
O presidente não levou a covid-19 a sério desde o início. Agora ele tenta usar o próprio exemplo para mostrar que sempre teve razão. O egocentrismo desse homem violento tomou uma nação inteira como refém.
Philipp Lichterbeck
Cólera e algoritmo
O Facebook jogou Bolsonaro no mar com sua rede de 88 contas.
A verdade, além de ser em certos momentos tediosa, propaga-se muito lentamente. Mark Twain disse: “Uma mentira pode dar a volta ao mundo enquanto a verdade leva o mesmo tempo para calçar os sapatos.” Esta citação está no livro “Os engenheiros do caos”, de Giuliano da Empoli. Ele disseca as eleições influenciadas por algoritmos, medo, fake news e teorias da conspiração.
Mas o tempo e o espaço são curtos para descrever a gênese. O importante é saber como nos desfazemos dele. A proposta de uma frente democrática é apenas um verniz institucional. Funciona para acalmar as forças tradicionais, relevando o passado e olhando para a frente.
O autor de “Os engenheiros do caos” afirma que vivemos uma política quântica em que a realidade objetiva não existe. Cada coisa se define provisoriamente em relação a outra coisa, cada observador determina sua própria realidade.
Ele é o primeiro presidente gestado no mundo virtual. Isso explica muito sua ascensão. Mas explica também as redes sociais.
O Facebook foi pressionado pelos anunciantes. A rede pode se desfazer dos discursos de ódio mais grosseiros. É difícil manter as pessoas presas na coleira eletrônica só para consultar os “likes”, numa incessante busca de reconhecimento.
A verdade, além de ser em certos momentos tediosa, propaga-se muito lentamente. Mark Twain disse: “Uma mentira pode dar a volta ao mundo enquanto a verdade leva o mesmo tempo para calçar os sapatos.” Esta citação está no livro “Os engenheiros do caos”, de Giuliano da Empoli. Ele disseca as eleições influenciadas por algoritmos, medo, fake news e teorias da conspiração.
Bolsonaro está na lista. Embora o autor não o compare com os outros, é possível dizer que é menos sofisticado do que o Movimento 5 Estrelas, na Itália, que é controlado diretamente por uma empresa digital, que detém inclusive as senhas dos candidatos eleitos.
Da mesma forma, Bolsonaro não teve os recursos do grupo que conduziu a campanha do Brexit e mergulhou num oceano de informações, produzindo com elas milhões de mensagens pessoais, de acordo com as tendências do destinatário. O Brexit protege a caça para o caçador, defende os animais para o ecologista.
Bolsonaro é apenas um avatar dessa arquitetura caótica. Como os outros, aspira a uma democracia direta, investe contra um sistema, mergulha em todos os temas que possam gerar barulho e rancor, mente e desmente com facilidade e orgulha-se de suas gafes que o identificam com o homem comum.
Poderia escrever muito sobre como se elegeu e como era quase impossível para a política tradicional neutralizá-lo. Ele transitava num universo especial que muitos ignorávamos, ou simplesmente rejeitávamos.
Mas o tempo e o espaço são curtos para descrever a gênese. O importante é saber como nos desfazemos dele. A proposta de uma frente democrática é apenas um verniz institucional. Funciona para acalmar as forças tradicionais, relevando o passado e olhando para a frente.
Mas a verdadeira batalha para combater Bolsonaro tem de ser travada no universo em que ele venceu, com atores e a lógica do mundo digital. Isso significa usar fake news, teorias conspiratórias ou disseminar o ódio? Certamente não. Mas não será fazendo tediosos comícios eletrônicos que vamos romper a barreira. Será necessário usar a criatividade, a irreverência e a alegria, novas formas mais compatíveis com esse mundo revolucionado pela internet.
O livro de Da Empoli conclui sua análise com um trecho do discurso de John Maynard Keynes, após a Primeira Guerra, endereçado a jovens liberais na sua summer school: “Quase toda a sabedoria dos nossos homens de Estado foi erigida sobre pressupostos que eram verdadeiros numa época, ou parcialmente verdadeiros, e que o são cada dia menos. Nós devemos inventar uma sabedoria para uma nova época. E, ao mesmo tempo, se queremos reconstruir algo de bom, vamos precisar parecer heréticos, inoportunos e desobedientes aos olhos dos que nos precederam.”
O autor de “Os engenheiros do caos” afirma que vivemos uma política quântica em que a realidade objetiva não existe. Cada coisa se define provisoriamente em relação a outra coisa, cada observador determina sua própria realidade.
Discordo parcialmente. O exemplo que ele usa como típico da época não me é estranho. É uma frase de Zuckerberg: se nos interessamos pelo esquilo agarrado na árvore mais do que pela fome na África, o algoritmo dará um jeito de nos bombardear com a história de roedores do bairro e eliminar o que se passa do outro lado do mundo.
Aos 18 anos, foi a minha primeira lição de jornalismo no livro de Fraser Bond: “Se morre um cão na nossa rua, isso é mais importante que um terremoto na China.”
Pois bem: comeram um morcego por lá no final de 2019, e o mundo está virado. Ainda há necessidade de conectar o discurso coletivo com o maior número de bolhas.
Segundo Da Empoli, na política quântica não tem mais valor essa frase de Daniel Patrick Moynihan: “Cada um tem direito às próprias opiniões, mas não aos seus próprios fatos.”
Pelo menos alguns fatos deveriam ser propriedade coletiva, para tornar possível a sobrevivência no caos.
O Brasil começa a colocar Bolsonaro de joelhos?
Cálculo? Medo? Cansado de ser encurralado dentro e fora do país? Não importa. A verdade é que os presságios que se adensavam sobre a morte da democracia parecem ter se dissipado por um momento. Bolsonaro, pela primeira vez, fala de diálogo, de reconciliação e defende, assustem-se, a democracia.
Ainda não sabemos se essa aparente conversão de Bolsonaro será apenas um parêntese para recuperar forças e voltar à carga com suas armas de morte. Uma coisa é certa. Bolsonaro, neste momento, se viu de repente posto duplamente de joelhos. Pelos militares que parecem ter conseguido refrear seus ímpetos golpistas ameaçando sair do Governo e deixá-lo sozinho, e pela importante pesquisa do Datafolha, segundo a qual 75% dos brasileiros apostam hoje na democracia, enquanto esmagadores 91% consideram a política das fake news, tão queridas, usadas e abusadas pelas hostes de Bolsonaro, como contrárias e ofensivas à democracia.
Revelam também o desejo de derrotar o autoritarismo do presidente os diferentes e importantes movimentos a favor da democracia que, na linha das Diretas Já, estão aparecendo entre pessoas de todas as categorias culturais e sociais. E a isso se une ainda o medo de Bolsonaro dos fantasmas que assombram e ameaçam toda a sua família, desde o assassinato de Marielle até a recente prisão de Queiroz, aquele que guarda tantos segredos que devem estar tirando o seu sono.
Ao que parece, Bolsonaro teria confidenciado recentemente a alguns amigos que estava começando a se cansar de tantas brigas. Não sabemos se se trata de cansaço ou de medo. Dá na mesma. Não acredito realmente em uma conversão de um presidente incapaz de arrependimentos, pois seus delírios de autoritarismo e suas nostalgias de velhas ditaduras e práticas abomináveis de tortura ainda estão vivos nele. O importante é que parece que os astros estão se unindo para deter o braço suicida de suas loucuras de rupturas democráticas e que está pedindo diálogo até mesmo a seu inimigo mortal, o Supremo Tribunal Federal.
Os movimentos de resistência à barbárie e a união de todas as forças democráticas contra obscurantismos políticos, culturais e sociais foram muitas vezes vitoriosos na conturbada história da humanidade. E com todos os horrores e ameaças de hoje à democracia, o mundo está melhor do que ontem. É mentira o dito de que “os tempos passados eram melhores”. Pelo contrário, sempre foram piores do que hoje, embora nos custe admitir isso. Se não, digam o que eram os direitos das mulheres apenas 100 anos atrás. O que era a defesa dos direitos humanos, as guerras que assolavam a Europa, a miséria da maior parte do mundo, a pobreza da medicina e as mortes por fome e desnutrição.
Se o mundo de hoje ainda nos horroriza, é porque perdemos a memória do que foi a história. Isso não justifica a pobreza, a violência nem as violações dos direitos humanos ainda vivos em tantos lugares do mundo. Mas, na sua totalidade, o mundo é hoje, como nos lembram cientistas e sociólogos, mil vezes mais habitável do que no passado.
É verdade que a humanidade sempre caminhou aos tropeções entre luzes e trevas, mas nunca houve uma consciência maior do que hoje em favor das liberdades e dos direitos humanos. Não estamos no céu, mas também não estamos no inferno que um dia foi a Humanidade.
Tomara que o novo pesadelo que vive o Brasil, de ser governado por um presidente com nostalgia de um passado de horrores que queremos esquecer, acabe logo, e que este país possa retomar o caminho de paz que havia conquistado e que era aplaudido pelos países mais avançados. Tomara que os jovens brasileiros que não conheceram a barbárie das ditaduras, que no Brasil são milhões e que hoje apostam na democracia, sejam o novo fermento de esperança contra o obscurantismo em que o país tinha começado a entrar.
Demasiado otimista? Talvez, mas minha idade me permite sonhar para que meus netos possam desfrutar do Brasil que merecem e que ninguém tem o direito de lhes roubar. Deixem-me sonhar uma vez com as estrelas. Vivi quando criança uma terrível guerra civil e depois uma cruel ditadura de 40 anos. Deixem-me sonhar para as crianças e jovens brasileiros o que a vida me negou.
O valor da presidência
Como chefe de Estado e de governo, o presidente da República é o eixo central do sistema político brasileiro. Além das atribuições formais das quais está incumbido por força das leis e da Constituição, a ele compete definir os grandes rumos que o País vai tomar durante sua gestão e, com muita habilidade política, coordenar a execução das políticas públicas por seus ministros e dialogar com as diversas forças vivas da Nação – todas, não só as que o elegeram. Sempre, claro, em harmonia com os Poderes Legislativo e Judiciário.
Ainda mais importância tem a figura presidencial durante graves crises como a que ora o País atravessa, a confluência de crises econômica, política e social com a maior emergência sanitária deste século, o que eviscerou mazelas há muito intratadas. Nesta hora grave, aos aspectos formais da liderança se soma o valor intangível do reconhecimento dos cidadãos na plena capacidade de seu presidente para uni-los e liderá-los durante um momento tão difícil.
Desde o início do mandato, o presidente Jair Bolsonaro tem se mostrado muito distante dessas duas dimensões da Presidência da República. Até aqui, parece alheio à sua responsabilidade de governar o País, voltado que está para questões menores que dizem respeito aos grupos setoriais que lhe dão apoio e à família. Um interino segue à frente do Ministério da Saúde há mais de 50 dias, a despeito do fato de o Brasil ser um dos países mais duramente atingidos pela pandemia de covid-19. Nada mais distante de um esboço de governo do que este fato.
Como essas, a esmagadora maioria das medidas de combate à pandemia no Brasil é fruto da iniciativa do Congresso, não do Palácio do Planalto. O governo federal só conseguiu aprovar um projeto de lei de sua iniciativa, o que autorizou medidas de isolamento e dispensa de licitações públicas durante a vigência do estado de calamidade pública. O levantamento foi feito pelo Estado.
O vácuo de ação do governo federal é corolário do descaso do presidente Bolsonaro pela gravidade da doença desde a primeira hora. Some-se a isto a sua inapetência para governar, o que se pôde observar já nos primeiros meses de mandato. “Na pandemia, (o desgoverno) ficou mais evidente, mas já não era diferente antes”, disse ao Estado o relator do projeto de ajuda financeira aos entes federativos, deputado Pedro Paulo (DEM-RJ).
Ainda mais importância tem a figura presidencial durante graves crises como a que ora o País atravessa, a confluência de crises econômica, política e social com a maior emergência sanitária deste século, o que eviscerou mazelas há muito intratadas. Nesta hora grave, aos aspectos formais da liderança se soma o valor intangível do reconhecimento dos cidadãos na plena capacidade de seu presidente para uni-los e liderá-los durante um momento tão difícil.
Desde o início do mandato, o presidente Jair Bolsonaro tem se mostrado muito distante dessas duas dimensões da Presidência da República. Até aqui, parece alheio à sua responsabilidade de governar o País, voltado que está para questões menores que dizem respeito aos grupos setoriais que lhe dão apoio e à família. Um interino segue à frente do Ministério da Saúde há mais de 50 dias, a despeito do fato de o Brasil ser um dos países mais duramente atingidos pela pandemia de covid-19. Nada mais distante de um esboço de governo do que este fato.
Para o bem dos brasileiros, o Congresso não tem faltado ao País. Nove em cada dez medidas para enfrentamento da pandemia foram de iniciativa do Poder Legislativo, uma das principais delas a aprovação do pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 aos milhões de trabalhadores informais que de uma hora para outra viram sua renda sumir. Pela proposta do Poder Executivo, convém lembrar, o auxílio seria de apenas R$ 200, um terço do valor aprovado pelos parlamentares. Também foram do Congresso as iniciativas de autorizar a prática da telemedicina como mais uma medida para facilitar o isolamento social e frear a disseminação do novo coronavírus e a destinação de uma ajuda financeira aos Estados e municípios no valor de R$ 60 bilhões.
Como essas, a esmagadora maioria das medidas de combate à pandemia no Brasil é fruto da iniciativa do Congresso, não do Palácio do Planalto. O governo federal só conseguiu aprovar um projeto de lei de sua iniciativa, o que autorizou medidas de isolamento e dispensa de licitações públicas durante a vigência do estado de calamidade pública. O levantamento foi feito pelo Estado.
O presidente Jair Bolsonaro editou 49 medidas provisórias (MPs) no período da pandemia, mas apenas 3 foram avalizadas pelos parlamentares: a MP 931, que concedeu mais prazo para as empresas realizarem suas assembleias ordinárias; a MP 932, que cortou pela metade a contribuição empresarial para manutenção do Sistema S; e a MP 936, que permitiu redução de jornada e salários no setor privado no curso da pandemia – medida que foi prorrogada.
O vácuo de ação do governo federal é corolário do descaso do presidente Bolsonaro pela gravidade da doença desde a primeira hora. Some-se a isto a sua inapetência para governar, o que se pôde observar já nos primeiros meses de mandato. “Na pandemia, (o desgoverno) ficou mais evidente, mas já não era diferente antes”, disse ao Estado o relator do projeto de ajuda financeira aos entes federativos, deputado Pedro Paulo (DEM-RJ).
O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), lembrou que até agora o Planalto não enviou à Casa propostas para o Brasil do pós-pandemia, período que será ainda mais desafiador do que a atual fase. Jair Bolsonaro parece fazer uma clara opção por se abster da responsabilidade de governar o Brasil de todos e de lançar as bases do que virá a ser o Brasil do futuro. Ao agir assim, não faz outra coisa a não ser degradar o valor da Presidência.
Assinar:
Postagens (Atom)