sexta-feira, 24 de maio de 2019

Brasil do Bozo


Bolsonaro cria conflito no país e promete criar também R$ 1 tri com novo plano infalível

A pressão das redes insociáveis e a ameaça das ruas fazem efeito e intimidam o miolão do Câmara, o centrão e sua vizinhança, como se vê nesta semana: parece um gol dos bolsonaristas.

O governo recua de medidas ineptas ou repugnantes, por pressão de técnicos ou da sociedade: parece um gol de gente avessa ao governo.

A resultante não presta, a não ser para extremistas que pretendem emparedar instituições. Aumenta os passivos do governo no Congresso e cristaliza o conflito odiento na sociedade. A balbúrdia cria incerteza, medo do futuro, tanto no cidadão que corta ainda mais seus gastos no supermercado como no empresário que investiria um tico mais.

Nesta quarta-feira, os deputados desistiam de fazer vários implantes, transplantes e amputações na medida provisória que organizou ministérios ao gosto de Jair Bolsonaro, a dita MP da reforma administrativa.

Caíam até alterações combinadas com o governo, como a recriação do Ministério das Cidades.

É uma vitória do bolsonarismo raiz, liderado pelo próprio Bolsonaro. É uma vitória um tanto inútil, na prática, porque essa arrumação de gavetas ministeriais não resolve nada nem enche barriga. Mas a campanha de vitupérios nas redes e nas ruas contribui para dizimar algum resto de boa vontade do Congresso com o governo.


Quanto ao essencial, Bolsonaro não tem controle do que se passa no Parlamento, não apenas na reforma da Previdência. O Congresso faz tramitar sua reforma tributária e ignora o governo. O pacote anticrime de Sergio Moro pega poeira. O acirramento de ânimos pode levar deputados e senadores a limitar poderes presidenciais, por ora apenas ameaça, mas indício de que se enche o arsenal para o conflito.

O conflito parece ser a meta. Bolsonaro quer alargar os poderes presidenciais, segundo ele limitado por forças terríveis das corporações e, segundo seus seguidores, pelo Legislativo e Judiciário.
Incapaz de administrar, entrega-se a desvarios sobre as possibilidades de seu governo, como se soube também nesta quarta-feira, o que cria mais descrédito ou é contraproducente. Em encontro com governadores do Nordeste, prometeu maná.

Não quero adiantar aqui, brevemente estará sendo apresentado aos senhores antes, em especial aos presidentes da Câmara e líderes, um projeto que, com todo respeito ao Paulo Guedes, a previsão de nós termos dinheiro em caixa é maior do que a reforma da Previdência em dez anos e ninguém vai reclamar desse projeto, com toda certeza, será aprovado aqui por unanimidade nas duas Casas, se Deus quiser, discursou.

Primeiro, a reforma da Previdência não leva dinheiro algum ao caixa. Apenas impede desgraça maior nas contas públicas.

Segundo, não existe medida capaz de criar mais de R$ 1 trilhão a não ser que se faça um governo de rara excelência, em acordo azeitado com o Congresso, o que com alguma sorte aceleraria o crescimento e a arrecadação. Temos visto o contrário. Além dessa hipótese improvável, trata-se de mentira ou maluquice.

De onde sai R$ 1 trilhão?

Bolsonaro repetiu aos governadores que não vai aumentar impostos. Vai então haver em breve peixe grande nas concessões e nas privatizações, como disse Paulo Guedes? Em geral, isso não precisa de Congresso nem vai render tanto.

Parece ridículo discutir esse delírio, mas, considerem, é o que diz um presidente da República com mais de três anos e meio de governo pela frente.
Vinicius Torres Freire

A semana em que virei sueca

Imagine uma cidade feita para humanos. Cordiais. Onde não há sobressaltos a cada minuto e tudo funciona, sem animosidade, numa semana ensolarada de maio. Não se escuta uma única buzina. Carros e bicicletas param bem antes das faixas de pedestres, para não assustar quem caminha. Motoristas e ciclistas sorriem.

Ruas, ônibus e metrôs são imaculadamente limpos. Áreas de piquenique e jardins de tulipas estão lotados para aproveitar a luz, pois anoitece só após as 21h. Nenhum papel ou lata no chão. Só cigarros, poucos. Os ônibus baixam a suspensão para facilitar o ingresso dos passageiros. Nas ladeiras, há corrimão. Nas escadarias, há estreitas passarelas para rolar os carrinhos de criança ou de compras.

Não existe banheiro separado para homem e mulher, menino e menina. Isso diz muito de uma sociedade. Sinal de mais respeito. Mais igualdade. A moda cultua a simplicidade, como o design sueco de interiores. Cores são discretas e acompanham os tons pastéis das casas, ocre, óxido de ferro, bege. Prédios não têm garagem nem porteiros. Não há taxas de condomínio. Moradores dividem gastos com manutenção. Não há empregadas domésticas.


Nunca vi tantos homens empurrando, sozinhos, carrinhos de bebê durante a semana. E sem babá na praça. Isso também diz muito de uma sociedade. A licença parental — que inclui pais e mães e, claro, homossexuais, porque não há diferença perante a lei — é de 480 dias. São 90 dias de licença para a mãe e 90 dias para o pai. Os restantes 300 dias, o casal divide como preferir. Licença simultânea, só 30 dias.

Mitos cercam a Suécia. Primeiro, foi o amor livre, quase promíscuo. Depois, uma propensão ao suicídio nunca confirmada. O país tem o nono maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O custo de vida é alto mas os salários também são. O imposto é salgado, mas o retorno compensa.

Há o medo do avanço da extrema-direita, os Democratas da Suécia, partido xenófobo. A Suécia tem 10 milhões de habitantes, dos quais 1,7 milhão imigrantes. Nos últimos anos, recebeu 163 mil refugiados. A tradicional solidariedade com os povos está ameaçada pelo nacionalismo anti-imigração. Críticos citam o uso inédito e isolado de granadas por gangues em “zonas vulneráveis”.

A Suécia é um dos países mais seguros do mundo: 1,1 homicídio por 100 mil habitantes. O maior crime é o pickpocket (furto). A edição dominical do Svenska Dagbladet tinha 30 páginas de Política, 44 páginas de Cultura, 24 páginas de Turismo e Gastronomia. Os jornais espelham a sociedade.

Só a Suécia, com sua consciência ambiental, produziria uma Greta Thunberg. Aos 15 anos, ela fez uma greve escolar pelo clima. Num país que obriga a estudar, matou aula contra o aquecimento global. Suas tranças e articulação são agora famosas em conferências mundiais.

Não existem paraísos, em nenhuma latitude. Seria o cúmulo da ingenuidade comparar Suécia e Brasil. Ou Estocolmo ao Rio. Mas podemos fazer tudo para reduzir a falta de escolaridade, a violência armada e a miséria. Vamos barrar delírios indefensáveis e tornar nossas cidades espaços civilizados, que valorizem a vida e o convívio social. É preciso.

De boné na mão

Se só eu quero a reforma, vou embora para casa. Se eu sentir que o presidente não quer a reforma, a mídia está a fim só de bagunçar, a oposição quer tumultuar, explodir e correr o risco de ter um confronto sério… pego o avião e vou morar lá fora
Paulo Guedes, ministro da Economia

Adeus às ilusões

Previdência e previdência. De fato, uma condição extremamente necessária, mas não suficiente para retomada de crescimento sustentável. Se a reforma passa, abre-se um caminho, expectativas melhoram e o ambiente pode desanuviar. Mas se não passa, não há plano B possível.

Tremenda aposta arriscada dada a inabilidade e a falta de apetite do presidente em negociar com o Congresso, o fraquíssimo ministro da Casa Civil e a ausência de base governista. Bolsonaro foi eleito com legitimidade para mudar muito mais que as regras da aposentadoria. Na campanha, vendeu a imagem de um presidente que iria impor um programa liberal na economia e delegou a tarefa ao seu Posto Ipiranga. Acreditou quem quis.

O presidente só tem sido fiel à agenda conservadora, usando seu poder até para editar decretos inconstitucionais, como o de porte de armas. Se estivesse de fato convencido da importância de reformas liberais, teria mostrado o mesmo empenho com que vem impondo o retrocesso nos costumes. Mas, como previsto, ele não deixou para trás sua vocação intervencionista e nacionalista.

A fixação na Previdência não é apenas uma estratégia política equivocada, é também um erro na condução da política econômica que ficou nesse samba de uma nota só.


O ministro Guedes tenta passar a ideia de que tem um plano, mas o anúncio de números irrealistas acaba tirando sua credibilidade. É um governo obcecado pelo trilhão. Venda de estatais, venda de imóveis da União, reforma da Previdência, a nova taxa imobiliária, tudo vai dar trilhão. Até o assessor para assuntos internacionais diz que a patética visita de Bolsonaro a Dallas vai gerar trilhões e trilhões de investimentos no Brasil.

Se negociar com Congresso está fora de questão, há medidas importantes que só dependem do Executivo. Privatização e abertura comercial, por exemplo. Mesmo que não tenham impacto de curto prazo, seria um conjunto de propostas na direção de menos Estado e mais competição, aumentando eficiência e produtividade na economia.

Há uma agenda que parece contar com apoio do presidente: a desburocratização. Recentemente, o governo editou a MP da Liberdade Econômica e foi muito aplaudido. O título parece inspirado em projeto de lei que vinha sendo defendido por acadêmicos, mas a medida provisória é bem diferente e não atende aos objetivos propostos. Parece um texto feito sem convicção liberal, porque cria ressalvas ao exercício da liberdade e delega poderes de intervenção a autoridades indefinidas. Seu art. 3.º traz alguns desses problemas de forma clara. O inciso IV estabelece tratamento isonômico na obtenção de licenças, o que não é nada de novo, pois o princípio da igualdade já existe. Uma declaração formal retórica, que não acrescenta nada, mas gera insegurança jurídica ao submeter a isonomia a um regulamento administrativo, a ser definido. A igualdade não pode ser definida por regulamento. Um atalho indevido e perigoso.

Quando trata da liberdade de preços, em seu inciso III, a indefinição de conceitos pode causar maior intervenção, gerando resultado oposto do pretendido. Permite à “autoridade competente” a fixação de preços em “situação de emergência e calamidade pública”.

Hoje há algumas leis federais que definem preço, a do tabelamento do frete é uma delas. O ideal é que fossem reduzidas ao mínimo, se não puderem ser eliminadas por completo. A MP vai na direção contrária. Abre espaço para muitas intervenções. A ressalva no inciso dispensa a necessidade de lei federal, basta uma declaração de autoridade competente. Como geralmente calamidade pública é declarada por Estados e municípios, qualquer prefeito poderá definir preços locais. Crivella, por exemplo, está com poder dado pela MP para estabelecer quaisquer preços no Rio. Em casos de “emergências”, agências reguladoras poderiam modificar preços de contratos, criando mais insegurança regulatória.

Mas o mais grave mesmo está no § 1.º que excepciona toda a liberdade econômica em “hipóteses que envolverem segurança nacional, segurança pública ou sanitária ou saúde pública”. E ainda afasta o princípio de motivação prévia dos atos administrativos. Um verdadeiro estado de sítio na economia

Se a intervenção de Bolsonaro nos preços da Petrobrás mostrou seu lado populista, a excepcionalidade criada pelo § 1.º da MP, dando amplos poderes para intervenção no domínio econômico, mostra seu lado autoritário. Tanta pressa e empenho do presidente na edição da MP já dava para desconfiar do seu teor liberal.

Imagem do Dia


#BolsoJânio, ou a história de Jânio e Jair

Um espectro ronda o governo de Jair Bolsonaro: o de Jânio Quadros. Os paralelos com o ex-presidente, famoso pela renúncia e pelas construções gramaticais peculiares, se disseminaram por corredores de Brasília e pela internet com ainda mais força nos últimos dias, quando Bolsonaro compartilhou um texto que julgava o Brasil ingovernável.

O bom senso quer refutar a possibilidade: é claro que Bolsonaro não é Jânio. De fato. Alguém consegue imaginar um presidente incapaz de ler um TelePrompTer construindo uma frase similar à célebre “se sólido fosse, comê-lo-ia”?

Mas as semelhanças se impõem. Alguns chamaram a atenção para o fato de que, quando Jânio se viu encurralado pelo que chamou de “forças terríveis” e renunciou, seu vice, João Goulart, estava na China — o que teria se repetido hoje, com Mourão no Extremo Oriente enquanto por aqui a tensão se eleva. Mau presságio para o Planalto?

Embora curioso, parece o típico caso de coincidência que fala mais sobre nossa percepção coletiva do que sobre a situação concreta (se é que em política se pode separar as duas coisas com precisão). Em meio a uma crise econômica duradoura e uma crise política e institucional profunda, somos levados a um estado de superinterpretação, de hiperexcitação semiótica: ao sinal de qualquer fiapo de sentido, é melhor já ir tirando as conclusões. Trata-se de uma forma, entre outras, de reagir a um cenário de instabilidade e imprevisibilidade, procurando no passado algo que nos ajude a enfrentar o futuro.

Vejamos com mais calma. No geral, parece que o cenário “BolsoJânio” encontra respaldo, sim. Senão nos detalhes pontuais, como a localização do vice, ao menos no processo como um todo. Basta lembrar, por exemplo, que durante a eleição se falava no ânimo populista da campanha de Bolsonaro, muito similar ao de Collor em 1989 e ao de Jânio em 1960, todos eles turbinados por um discurso anticorrupção. (Nessa leitura, as diferenças são tão eloquentes quanto as semelhanças: o símbolo eleitoral de Jânio eram as vassourinhas; o de Bolsonaro, pistolas. Os últimos 60 anos do Brasil estão aí condensados.)

O início do mandato de Bolsonaro só fortaleceu a comparação com Jânio. Um governo errático, com decisões de apelo a uma base moralista alternadas com medidas estapafúrdias, num cenário de instabilidade econômica, desavenças explícitas com o vice-presidente e, principalmente, choque constante com o Congresso — tudo isso levando a uma deterioração política em questão de meses. Soa familiar? Em sua coluna na Folha , Celso Rocha de Barros levou o paralelo a suas últimas consequências, destacando o lado obscuro da comparação: mais que apelo ao povo brasileiro, “a renúncia de Jânio foi uma tentativa de golpe”. O sociólogo alertou que é mais grave o caso de Bolsonaro, cuja base fala em fechar o Congresso e o STF — um flerte claríssimo com um golpe de Estado e com o autoritarismo.

Até o momento, portanto, a comparação segue válida. Resta nos preparar para o que vem por aí. Talvez ajude lembrarmos um episódio narrado por Fernando Sabino em sua autobiografia literária, O tabuleiro de damas . Está no capítulo 22, “Terra de cego”.

Quadros voltara havia pouco da Europa, para onde fora depois da renúncia. Foi o segundo encontro com Jânio a que Sabino compareceu. No primeiro, em Belo Horizonte, o ex-presidente tinha insistido em perguntar aos jornalistas e escritores que o receberam se o Brasil vivia uma situação pré-revolucionária. Havia então muita expectativa para o pronunciamento de Jânio ao povo, mas foi em vão: ele “fez um discursinho chocho”, escreve Sabino, “até a luz faltou no meio do programa.”

No segundo encontro, em São Paulo, numa reunião que incluía Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Paulo Emílio Salles Gomes, Jânio se viu encurralado por Darwin Brandão. Foi-lhe cobrada, duramente, uma explicação sobre sua renúncia; a verdade, sem conversa fiada. Não houve resposta satisfatória, e Jânio, depois de Brandão ter ido embora, deixou escapar:

– Os que se açulam contra mim são os mesmos que viviam me lambendo os calcanhares! Ninguém falava comigo nesse tom. Eu era um reizinho!

Cercado pela corte de seus filhos, tendo consigo sua casta de superministros, escorado numa eminência parda e tabagista na Virgínia, Bolsonaro talvez esteja se sentindo um reizinho neste momento. O texto estranho que compartilhou tem todos os sinais de um chilique, quando Bolsonaro se deu conta de que não é intocável, que está muito longe de qualquer nobreza: seu filho Flávio está sendo investigado pela ligação com o motorista Fabrício Queiroz; o Congresso não aprova bovinamente as medidas da Presidência; os protestos pela Educação mostram que o descontentamento com o governo não é exclusividade da esquerda.

Imagino uma cena meio shakespeariana, com o espectro de Jânio Quadros visitando Bolsonaro, tentando fazê-lo entender que os reizinhos, mais cedo ou mais tarde, sempre caem. Nos livros de história, eles acabam como um subtítulo, uma passagem, um detalhe; tornam-se notas de rodapé que mal explicam sua época, em muito ultrapassados por ela.

Mas não é de Hamlet nem de Macbeth que se trata aqui; Shakespeare não combina com o tom da nossa política farsesca. Isto é Brasil, terra do Chacrinha e da pornochanchada. O diálogo entre Jânio Quadros e Jair Bolsonaro não se daria em solilóquios. No máximo, teria frases como:

– Jânio & Jair não parece nome de dupla sertaneja?

Com faca e sem queijo

Numa coisa Jair Bolsonaro está coberto de razão: não tem os atributos necessários para exercer o cargo para o qual foi eleito. Não nasceu para ser presidente da República. Se, como diz, nasceu para ser militar, perdeu a chance de sair-se bem na vocação de origem quando foi afastado da carreira por indisciplina ainda na patente de capitão, mas essa é outra história que não nos interessa diretamente, embora também tenha a ver com inépcia.

É diante da inaptidão que estamos agora. Por causa dela já se pode detectar de modo algo dissimulado, mas nítido aos olhos mais treinados da República, um processo de transferência do poder de fato do Executivo para o Legislativo. Quanto mais tolices são cometidas a partir do Palácio do Planalto e adjacências, mais o Congresso vai assumindo as rédeas da coisa pública, aqui entendida como aquilo que afeta a vida do público.


O presidente, é óbvio, detém o poder de direito, e é prerrogativa exclusiva dele o acesso àqueles instrumentos chamados metaforicamente de “a caneta”. Mas, como os maneja mal, erode sua confiabilidade para o exercício do cargo, criando um vácuo que, como se sabe, na política é espaço que não fica vago. Donde o Parlamento vai se ocupando dele. No momento, de maneira mais acentuada, a Câmara e logo adiante com protagonismo a ser compartilhado com o Senado.

Nessa transferência (involuntária, diga-se) reside um paradoxo: Bolsonaro reforça justamente o Congresso, cuja desmoralização buscou aprofundar com a disseminação da ideia de que estava todo ele comprometido com a “velha política”, a qual traduzia para o eleitorado na campanha e, depois, para os governados como sinônimo de prática sistêmica de corrupção.

Aos menos afeitos aos meandros brasilienses tal conclusão pode soar precipitada. Será? Vejamos: as reformas fundamentais para o avanço estão nas mãos do Congresso. Os presidentes da Câmara e do Senado se mostram muito mais engajados na proposta que o presidente, tomando para si a responsabilidade da aprovação e avisando que ela se dará nos termos dos parlamentares.

A reforma tributária será tocada a partir de proposição apresentada no Legislativo, que vem se interessando por uma reformulação administrativa do governo mais profunda que a parca extinção e/ou fusão de ministérios proposta na Medida Provisória 870. Fala-se no Parlamento da necessidade de renovar o pacto entre as unidades da federação, e vai se tornar inescapável uma discussão sobre reforma política. O Executivo não deu palavra a respeito, mas o assunto surgirá, ainda que no debate torto sobre o fim ou não da reeleição.

Tudo isso no âmbito do Congresso, onde o mais bobo não foi eleito e em cujo ambiente foram interditados os espaços para a discussão da tal pauta de costumes. Uma agenda ferrabrás não identificada com a média da população e, por isso, fadada ao fracasso. A despeito da vontade presidencial, que vai contando cada vez menos no âmbito geral das coisas públicas.

Só mudou de mão

Dá a sensação de que nós trocamos uma quadrilha vermelha por uma seita direitista, interessada em atacar o globalismo e em fazer uma Revolução Cultural ao contrário, para combater o que havia antes
Xico Graziano

Será tragédia? Ou será chanchada?

“O inimigo avança.” Na tradução de Millôr Fernandes, essa é a frase final de Antígona, a tragédia que Sófocles escreveu há 25 séculos para nos alertar, em vão, sobre os riscos da tirania. A toda hora o rei Creonte usa a ameaça do exército rival para justificar seus abusos contra sua própria gente. É um usurpador. Chantageia os habitantes de Tebas dizendo que se ele, Creonte, não estiver no trono, a cidade cairá nas mãos dos tenebrosos invasores estrangeiros. Se os tebanos não o seguirem e não lhe obedecerem, farão o jogo das tropas que, do lado de fora dos muros da cidade, esperam a melhor oportunidade para destruí-la. Com esse tipo de paranoia conspiratória, domina seu povo pelo medo, até que, ao final, tudo desmorona – enquanto “o inimigo avança”.


Antígona nos ensina que a personagem essencial de toda tirania não é o tirano propriamente, mas o inimigo, o tal que “avança”. É bem verdade que, no caso de Tebas, esse inimigo era real e iminente, embora não fosse tão apavorante como Creonte o descrevia. Em tiranias mais presentes, o inimigo não tem existência factual; é apenas uma construção retórica para emprestar uma legitimidade fraudulenta ao regime arbitrário. No nazismo, os judeus foram postos nesse lugar de inimigo retórico; no stalinismo, o mesmo papel coube aos trotskistas. A propaganda oficial transformava pessoas indefesas – judeus e trotskistas – em oponentes de poderes incomensuráveis, capazes das atrocidades mais indizíveis. A partir daí, a perfídia do totalitarismo consistiu em dizimar seres humanos frágeis como se fossem a encarnação das piores entidades do inferno. Hitler e Stalin aterrorizavam a população e ainda posavam de vítimas, de mártires abnegados dispostos a se sacrificar e morrer pela pátria. Os dois sabiam que jamais se estabeleceriam se não tivessem inimigos retóricos para justificar a si próprios. Sabiam que precisavam inventar a personagem central de toda tirania: o inimigo.

A lição de Sófocles deveria ser relembrada todos os dias. Se você quiser se indagar com o risco de tiranias, não se preocupe em identificar o aspirante ao cargo de tirano. Antes comece procurando pelo inimigo retórico que uns e outros estão construindo com seus discursos histéricos. Por esse critério (infalível), você verá que no mundo de hoje não faltam caudilhos mais ou menos consolidados que, com suas cruzadas contra opositores mais ou menos fictícios, acarretam tragédias maiores ou menores. Quanto ao Brasil, ao menos por enquanto, não temos um tirano instalado, temos um arremedo de algo desse naipe: um presidente que não desiste de ser candidato a ditador. E então? O que representa essa figura? Para onde aponta o destino do nosso país?

O que sabemos até agora é que para alcançar seu objetivo o candidato a ditador tenta a toda hora bestializar a figura daqueles que elegeu como seus inimigos retóricos preferenciais: os políticos, os professores, os gays, os artistas, os jornalistas e um ou outro ministro do Supremo Tribunal Federal. Ele sabe que precisa de um bloco de inimigos. Presentemente, deu de reclamar que lhe faltam instrumentos de mando. Queixa-se da ingovernabilidade nacional. Pleiteia, sem dizer que pleiteia, poderes para combater essa gente inútil: os políticos, que, segundo ele, só praticam a corrupção; os professores, que fazem lavagem cerebral na cabeça da juventude para desencaminhá-la com doutrinas comunistas; os gays, que conspurcam as bases da família tradicional; os artistas, que – onde já se viu? – querem liberdade; os jornalistas, que apuram os fatos; e, por fim, certos magistrados que ficam aí resistindo e se recusam a mandar prender todos os anteriores de uma vez por todas.

Olhando as coisas por esse ângulo, o risco da tirania ronda também esta terra em que se plantando tudo dá. O presidente candidato a ditador ostenta traços de bonapartismo explícito: nele transparecem o desejo incontido de atropelar os outros Poderes e a obsessão de forjar um laço direto com as massas, passando por cima das mediações institucionais (basta ver as manifestações de rua que ele mandou convocar para o próximo domingo, cuja pauta beira a inconstitucionalidade). O sujeito também carrega traços fascistas: sua pregação desmesuradamente fálica acerca de pistolas e virilidades, além de obscena, é mussoliniana, assim como são mussolinianos os elogios que se tecem no seu entorno a agrupamentos armados fora do comando do Estado. Diante de tais evidências, só se pode concluir que a democracia está sitiada e a tragédia se avizinha.

Acontece que há também um forte componente paródico no personagem em pauta. Com o devido respeito, a estampa de Jair Bolsonaro tem um quê de burlesco. Falta-lhe o carisma, que requer dons pessoais extraordinários. No fundo – cada vez mais gente pressente –, ele está mais para Oscarito ou Mazzaropi do que para Creonte ou Mussolini. Seus apoiadores começam a debandar, menos por divergência ideológica e mais por se envergonharem das doses incomensuráveis de pastiche-pastelão. Muitos de seus eleitores já se furtam a comparecer às passeatas de domingo, não porque tenham desistido das convicções autoritárias, mas porque ainda lhes resta um pingo de senso de ridículo.

Visto por aí, o cenário não é de tragédia, mas de chanchada da Atlântida. Por esse ângulo, o problema de Bolsonaro não é seu liberalismo fajuto, não são os modos ferozes, não é a bancarrota da economia, não é o despreparo pedestre ou a incapacidade para depreender o significado da palavra nova-iorquino. O seu problema é mais embaixo – e mais baixo. Ele parece estar à frente de um mandato que, por não ter tido condições de se fazer levar a sério, talvez não logre se levar a cabo. Se for isso mesmo, a Nação terá perdido tempo e saúde não com um populista de direita, mas com uma piada asquerosa, regurgitada, sobre a qual o inimigo (real ou retórico) não avança porque se dobra de rir.

Ou será mesmo tragédia?

Gente fora do mapa


Bolsonaro pode ser tudo, menos mito

"Coisa ou pessoa que não existe, mas que se supõe real. Coisa só possível por hipótese. Ficção” é a definição de “mito” do Aurélio.

“Um fato considerado inexplicável ou inconcebível, enigma. Uma crença geralmente desprovida de valor moral ou social, desenvolvida por membros de um grupo, que funciona como suporte para suas ideias ou posições. Ex. o mito da supremacia da raça branca.”, segundo o Michaelis.


E também “Afirmações fantasiosas, inverídicas, disseminadas com fins de dominação, difamatórias, propagandísticas, como guerra psicológica ou ideológica. Ex. O mito do comunista que come criancinhas.”

“Valor social ou moral questionável, porém decisivo para o comportamento dos grupos humanos em determinada época. Ex. O mito do negro de alma branca”, diz o Houaiss.

Ou eles não sabiam o que diziam quando inventaram um mito messiânico vitorioso ou Bolsonaro está se revelando a mais completa tradução do que dizem os dicionários. Pior para nós.

Nenhum mito resiste ao confronto com a realidade. Mitos não reclamam que o país é ingovernável por causa das corporações e dos partidos que só querem mamar. Mitos não fazem mimimi. Nem perdem 15 pontos de aprovação em três meses. Nem são derrotados em votações por seu próprio partido.

Sem ofensa, Bolsonaro pode ser tudo, até um bom presidente, tudo menos um mito. É imperativo linguístico e semântico, de significado. Foi uma ignorância que deu certo, ao menos nas eleições. Cansados de salvadores da pátria populistas e corruptos, os eleitores preferiram algo que não existia, um mito.

Mas o destino dos mitos é serem corroídos e desmitificados pelo tempo e a realidade. Grandes líderes não são mitos, são história e exemplo.

Para piorar, nosso Mito diz que dorme muito mal, quatro horas por noite, acorda várias vezes, tem um revólver na mesa de cabeceira. Como qualquer ser humano de 60 anos, deve se levantar exausto, de péssimo humor e sem cabeça e energia para enfrentar um país desabando.

O mito tem que dormir para o presidente acordar.

Pensar cansa

Não penseis, ó pessoas, não penseis, lembrai-vos de não pensar, pensar cansa, é inútil, começastes a pensar para produzirdes um utensílio de sílex e depois um recipiente de cerâmica e a colher de pereiro e o penico e o zyklon B e a bomba atômica, bonito serviço pensar, estais cansados de pensar, pensai só em mim e eu pensarei em vós, sereis assim pensados, eu sou o blablablá e protejo-vos do vosso próprio pensamento... 
Antonio Tabuchi, "Tristano morre"

Retrato do saneamento

Os dados sobre saneamento básico, constantes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua 2018, reafirmam a gravidade da situação desse setor e reforçam a necessidade urgente de mudar a legislação que o regula. As novas regras em discussão no Congresso – com destaque para as que facilitam os investimentos de empresas privadas em saneamento, somando esforços com as companhias estaduais já estabelecidas, carentes de recursos – são essenciais para a solução do problema.

O serviço de água está em melhor situação do que o de esgoto. Em 2018, 85,8% dos 69,3 milhões de domicílios do País com água canalizada eram abastecidos pela rede geral de distribuição. É preciso levar em conta, porém, as disparidades regionais. No Nordeste, por exemplo, aquele porcentual é de apenas 69,1%. E ali 12 milhões de pessoas não têm disponibilidade diária de água. Outro dado a considerar é o lento avanço em direção ao pleno abastecimento. Em algumas regiões há mesmo retrocesso. No Centro-Oeste, em 2018 o fornecimento de água ficou abaixo do de 2016.

O problema do esgoto é bem mais grave. Em 2018, só 66,3% do total de domicílios tinham acesso à rede geral ou fossas ligadas à rede para o escoamento do esgoto. As diferenças regionais são também significativas: de 88,6% no Sudeste para 44,6% no Nordeste e 21,8% no Norte. Em números absolutos, o problema se apresenta de forma mais chocante: 72,4 milhões de brasileiros residiam em domicílios sem acesso à rede geral coletora de esgotos. Uma situação vergonhosa para um país que é a oitava economia do mundo.


Diante desses dados, não há como deixar de dar razão ao senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), responsável pelo substitutivo à Medida Provisória (MP) 868/18, que muda o marco regulatório do saneamento básico, aprovado por Comissão Mista do Congresso, num passo importante para a solução do problema. Segundo ele, com relação ao saneamento “ainda vivemos na Idade Média”, embora estejamos no século 21.

Quanto ao lixo, em 2018, 83% dos domicílios tinham acesso à coleta direta, 8,1% faziam coleta via caçamba de serviço de limpeza e 8,9% queimavam o lixo ou lhe davam outro destino. Mais uma vez, são os números absolutos que retratam com mais crueza a realidade: 20,1 milhões de brasileiros não dispõem de coleta de lixo, e o Nordeste sozinho responde por mais da metade desse número, exatamente 10,5 milhões.

Esse quadro de um serviço essencial para a população fica ainda mais sombrio quando completado por dados do Instituto Trata Brasil. A perda de água potável, por exemplo, é muito elevada, o que agrava o problema – a média nacional é de 38,29%. Ela chega a 55,4% no Norte e a 46,25% no Nordeste, mas mesmo nas regiões mais ricas é alta – 36,54% no Sul e 34, 35% no Sudeste. A situação é semelhante no que se refere ao tratamento de esgoto. A média nacional é baixa, de apenas 45,1%, sendo pior no Norte (22,58%) e no Nordeste (34,73%).

O custo para resolver o problema, universalizando o acesso aos serviços de água e esgotos, é outro dado fundamental. Embora seja alto, o cálculo do Instituto Trata Brasil – de R$ 303 bilhões, em 20 anos – é importante. Ele chama a atenção para o tamanho do desafio com que o País está às voltas e para a necessidade de encontrar novos caminhos, porque os trilhados até agora, como demonstra a experiência, não representam uma solução.

É notório que as companhias estaduais – que hoje são amplamente dominantes no setor e na prática podem impedir a entrada de concorrentes nesse mercado – não têm recursos suficientes para enfrentar o problema. O caminho apontado pelo substitutivo à MP 868/18 é o mais adequado: o de um esforço conjunto do Estado com o capital privado, abrindo-se o setor à concorrência. Só assim será possível ampliar as redes de abastecimento de água e de coleta de esgotos; instalar estações de tratamento; e adotar medidas para reduzir a perda de água.

Convocada por Carlos Bolsonaro, a manifestação coloca o governo numa tremenda fria

Jamais existiu um governo tão esquisito como este início de gestão de Jair Bolsonaro. O presidente está animado com os atos públicos convocados para todo o país e afirma que se trata de “uma manifestação espontânea da população”. Mas na verdade não foi bem assim que essa estranha iniciativa surgiu.

O mais curioso é que até agora ninguém tenha procurado saber quem foi o autor dessa “convocação cívica”, digamos assim. Se fosse na Escolinha do Professor Raimundo, o personagem Aldemar Vigário perguntaria: “Quem? Quem?”. E a classe inteira responderia, em uníssono: “Raimundo Nonato!!!”.

Como se sabe, atendendo a insistentes pedidos da ala militar, reforçados pessoalmente pelos comandantes das Forças Armadas no último dia 7, o presidente da República enfim deu ordem aos filhos e a Olavo de Carvalho para que não mais criticassem os ministros, especialmente os militares, nem demonstrassem que têm influência no governo.

O guru virginiano e os três Zeros acataram a ordem, porque afinal entenderem que tinham levado o presidente ao limite e os próprios apoiadores de Bolsonaro já não aguentavam mais as intromissões e a desfaçatez dos três mosqueteiros que eram quatro.

Mas a saída de cena foi apenas uma retirada estratégica, porque a trupe disfarçadamente continuou no palco, agindo nos bastidores, com os personagens agora ocultos atrás das cortinas.


E foi o filho Zero Dois, Carlos Bolsonaro (ele, sempre ele…) que se encarregou de mobilizar as redes sociais para convocar o ato deste domingo 26, em resposta às manifestações estudantis do último dia 15.

O presidente adorou a ideia, sem perceber que havia motivos demais – repúdio à Câmara e ao Senado, com fotos de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre em cartazes da convocação; condenação ao Supremo, pedindo impeachment de Gilmar Mendes e Dias Toffoli; além de apoio ao combate à corrupção, ao pacote anticrime do ministro Sérgio Moro e à Lava Jato, numa salada mista que colocava o governo Bolsonaro contra todos os inimigos possíveis e imagináveis, incluindo no rolo alguns importantes aliados.

A convocação para um linchamento generalizado realmente pode atrair multidões, mas será que isso interessa ao governo Bolsonaro e será positivo para ele? Ou na segunda-feira o presidente e o núcleo duro do Planalto terão de se dedicar a apagar focos de incêndio causados por fogo amigo?

É por isso que personagens importantes no esquema do governo se posicionaram contra a manifestação, como o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), que criticou o presidente por pretender demonizar a política; a deputada Janaina Paschoal, do PSL, que pediu a Bolsonaro que parasse de “fazer drama” e se dedicasse ao governo; o deputado Luciano Bivar, presidente do PSL, que comandou o movimento para que o partido não apoiasse oficialmente a manifestação; e a deputada Carla Zambelli (PSL-SP), que vai participar, mas criticou a tentativa de partidarizar ato público.

O fato concreto é que, ao convocar a manifestação usando seu esquema nas redes sociais, o filho Carlos Bolsonaro errou mais uma vez e colocou o pai novamente em situação muito delicada, pois ao governo não interessa confronto com o Congresso nem com o Supremo.

Aliás, não foi por mera coincidência que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, criticou nesta sexta-feira “as posturas antidemocráticas” de figuras do ”entorno” do chefe do governo, alertando que “o setor privado não investe em ditaduras”.

Em tradução simultânea, enquanto não se livrar mesmo da influência dos três Zeros e do guru virginiano, o governo de Bolsonaro vai viver em permanente crise. E nem precisa ter oposição, porque os maiores inimigos desfrutam da intimidade do presidente e julgam terem sido eleitos para governar junto com ele, na condição de príncipes-regentes.

Paisagem brasileira


Com quantos golpes se faz uma republiqueta

Antes de baixar a bola no tom da confrontação, o presidente Jair Bolsonaro foi informado de que havia muitos filhos de generais da ativa entre os "idiotas úteis" da manifestação contra os cortes na educação. Se os militares orgulham-se de traduzir os valores da classe média, seus filhos não poderiam estar em outro lugar.

O freio de arrumação passou ainda pela indicação da professora mais votada na lista tríplice da Universidade Federal do Rio. Primeira mulher assumir a reitoria, Denise Pires de Carvalho já se posicionou contrariamente tanto à cobrança dos cursos nas universidades públicos quanto a favor de fazer caber a UFRJ dentro do seu orçamento.

O presidente ainda marcou sua nova fase, de duração ainda indefinida, pelo recuo em muitos dos pontos mais sensíveis do decreto que liberou posse de armas no país, como a liberação do porte de armas para a prática de tiros de menores, agora submetida à autorização de ambos os genitores, além do porte de fuzis por civis.

A desistência de ir aos protestos do domingo, face mais exposta da moderação bolsonarista não se deu exatamente pelo receio de fiasco, mas pelo contrário. Analistas que monitoram redes sociais convocatórias, como o professor da USP, Pablo Ortellado, identificaram que o interesse no protesto cresce à medida que aliados de primeira hora do bolsonarismo, como o MBL de Kim Kataguiri ou a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL), críticos da manifestação, passaram a ser os principais alvos de bombardeio.

Ao confirmar ausência dos protestos, a despeito de ter incentivado a espontaneidade, Bolsonaro dá dois recados. Tem tropa para por na rua, mas seu papel é contê-la. Ao cultivar a moderação, Bolsonaro também busca esvaziar a viabilidade política de todos os polos, dentro e fora do seu governo, que se legitimam para ocupar o centro político, do vice-presidente Hamilton Mourão, ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Resumiu-o com o inacreditável "o que eu quero mesmo é conversar", com o qual iniciou a semana.

Tanto Olavo de Carvalho quanto o mercurial Carlos Bolsonaro parecem submetidos ao toque de recolher da fase moderada, e de duração ainda incerta, do presidente da República. O guru fez uma pausa no Twitter e no Facebook, voltou, mas num tom abaixo do habitual. Já o 02, cuja instabilidade emocional preocupa o pai, isolou-se.

O ministro da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz, que chegou a ter ascendência sobre os filhos do presidente, prevaleceu na guerra de braço com Carlos. O principal elo entre o presidente e o filho hoje um ex-funcionário do gabinete de Bolsonaro na Câmara dos Deputados, Waldir Ferraz, um dos poucos a passar o réveillon na Granja do Torto com o eleito. Carlos continua no Twitter mas se mostra temporariamente mais dedicado aos temas de seu mandato de vereador no Rio.

O endosso presidencial a um texto que remetia às forças ocultas com as quais Jânio Quadros tentou permanecer no cargo com superpoderes antes de apelar à renúncia, jogou, pelo confronto histórico, água no moinho da moderação. O renunciante de 1961 apostava no veto militar ao seu vice, João Goulart, situação que não se repete com Mourão, ainda que o general não seja uma unanimidade e só venha a estar, indiscutivelmente, na linha sucessória a partir da segunda metade do governo.

O tom agressivo com os quais os manifestantes de domingo se anunciam já foi capaz de impor alguma racionalidade àqueles que anunciavam o voluntarismo do bolsonarismo como a redenção do país. Eleito deputado federal, Kim Kataguiri descobriu que a política não pode ser demonizada e as mudanças devem ser mediadas pelas instituições. Pomba-gira do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, Janaina Paschoal, foi às redes sociais dizer que não faz sentido o presidente da República convocar o caos.

As manifestações de domingo, que ameaçam ir para cima do Congresso, ao ungir o presidente a fazer mudanças sob a inspiração divina com a qual foi eleito, também surtiram efeito sobre o Congresso, que freou a disputa irrefreada pela recriação de ministérios e aceitou a nomeação de dois técnicos para o Cade, pedágio por excelência do Centrão.

Está claro que não é um céu de brigadeiro que se abre para um país com 13 milhões sem emprego e outros 4,9 milhões que já desistiram de procurá-lo e abrem o fosso de sete anos consecutivos de aumento da desigualdade. Mas o desmanche da polarização estabelecida com a eleição presidencial pode ser o início da depuração das pautas que estão em jogo e que não vão desaparecer, num passe de mágica, com a troca de um presidente da República.

É nisso que uma parte dos articulistas críticos ao governo e parlamentares da bancada que chegou ao Congresso pelos ventos da renovação parecem acreditar ao bradarem que o momento não tem alternativas que não sejam a renúncia ou o impeachment. Arriscam-se a ficar falando sozinhos com os palanqueiros da radicalização de domingo.

Tão importante quanto a grande massa bolsonarista divisar as pautas que os unem é a oposição parar de falar "não avisei?". A catarse bolsonarista mostrou as seus apoiadores que, num governo, política se faz pela arregimentação, embate e convencimento. Evitar uma nova aventura de governo abreviado depende desse amadurecimento.

O Brasil já derrubou uma presidente por inépcia e paralisia administrativa sem que um crime de responsabilidade tenha convencido toda a nação. Impeachment não é pena para maus administradores. Esta é a função dos eleitores, os principais juízes de uma democracia.

Tirar um presidente do cargo é garantia última de uma Constituição que aí está para lembrar aos cidadãos que há compromissos históricos assumidos pelo concerto de interesses que um dia tiveram um projeto de nação. Se estes já não cabem no Brasil, cabe refazê-los, mediá-los e distribuir perdas para poucos e fortes e ganhos para muitos que, por fracos, dela estão à margem. Isso se constrói em casa, nas ruas e nas instituições. O resto é golpe e republiqueta.

Cara de um, focinho de outro

Viktor Orbán (primeiro-ministro da Hungria) se dirige à etnia húngara e, dentro dela, exclusivamente a seus seguidores. Não considera os membros da oposição como húngaros. Em sua opinião, os liberais, os socialistas e os demais membros da oposição traem o país, por exemplo, ao votarem contra a Hungria (ou seja, o Fidesz) no Parlamento Europeu.

A essência da ideologia dominante poderia ser resumida da seguinte forma: os húngaros são os melhores, os mais inteligentes, os mais trabalhadores, os mais democratas, e sempre são mal interpretados pelos abomináveis liberais e comunistas. Mas não há razão para se preocupar. O Fidesz, isto é, Orbán, te protege, sempre terá em mente os interesses do povo, defenderá o glorioso passado, a cultura tradicional. Se você apoia Orbán, você apoia a Hungria
Agnes Heller

Se ganhar, Bolsonaro perde. Se perder, pior para ele!

A essa altura, não importa mais se as manifestações de rua convocadas para o próximo domingo pelos devotos do presidente Jair Bolsonaro atrairão muita ou pouca gente.

Para ele que, primeiro, as endossou, depois fingiu recuar e, por fim, mandou que os filhos as apoiassem, o resultado será o mesmo: um perfeito desastre.

Se pouca gente comparecer depois das multidões que foram às ruas protestar contra o corte de dinheiro para a Educação, se dirá, e com razão, que o governo está fraco.

Se mais de dois milhões de pessoas se manifestarem em todas as capitais e em cerca de mais 200 cidades, Bolsonaro terá colhido uma falsa vitória e arranjado um baita de problema para resolver.

As manifestações têm como objetivo principal emparedar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, tratados pela ala mais radical do bolsonarismo como inimigos do capitão e do seu governo.

O capitão as estimulou para jogar fumaça sobre os problemas mais graves que enfrenta: a investigação dos negócios de sua família e o fracasso do seu governo até aqui.

Ele não se preparou para governar. Ele não imaginou que governaria. Ele não tem um plano de governo. Ele não tem vocação nem gosto pelo que faz desde que tomou posse no cargo.

Em queda nas pesquisas que avaliam seu desempenho, ameaçado de não concluir o mandato a continuar assim, ele aposta na única coisa que aprendeu durante 28 anos como deputado: provocar conflitos.

No momento em que mais precisa do apoio do Congresso e da colaboração da justiça para que possa tocar um barco que já faz água, ele parte para o confronto com os dois.

Como reagirão os políticos e os togados se as manifestações de domingo forem uma afronta a eles como se desenham? E ainda por cima um sucesso de público? E Bolsonaro, o que fará em seguida?

Nem o Congresso e nem a Justiça dão sinais de que se acovardarão. Os militares empregados no governo carecem de tropas e de vontade para alimentar os instintos golpistas do capitão.

De resto, ex-militar empregado na administração pública quer mais é ficar quieto no seu canto para que não exponham o quanto ganha em aposentadoria e em cargo em comissão.

Os militares da ativa que comandam tropas não parecem atraídos por nenhum tipo de aventura que implique em rasgar a Constituição. Em resumo: de nada servirá a Bolsonaro o que ele colher domingo.
Ricardo Noblat 

O eterno vale a pena ver de novo das remoções no Rio de Janeiro

Se a história recente do Rio de Janeiro fosse uma novela, o costumeiro resumo dos capítulos anteriores teria que incluir uma narrativa sobre os megaeventos esportivos acolhidos pela cidade — Jogos Pan-americanos 2017, Jogos Mundiais Militares 2011, Copa das Confederações 2013, Copa do Mundo 2014, Jogos Olímpicos e Paralímpicos 2016. Apareceriam meios de comunicação de massa, grandes empreiteiras, políticos de todos os partidos, experts contratados a peso de ouro, governantes aprovando favores fiscais, os presidentes da CBF e do Comitê Olímpico Brasileiro, todos entusiasmados, em uníssono, repetindo promessas mirabolantes: graças ao empreendedorismo dos governos — federal, estadual e municipal — e da coalizão dos grupos econômicos interessados, o Rio de Janeiro finalmente ingressaria no clube seleto das “global cities”, competitivo, (pós)moderno, distribuindo emprego e renda de maneira sustentável até o fim dos tempos.

Mas, é bem sabido, boas novelas não têm apenas o núcleo de comédias. Há aquele consagrado a dramas, cuja contribuição seriam flashes do desabamento de ciclovia, os fracassos de parcerias público-privadas no Maracanã e Área Portuária (Porto Maravilha?), remoções forçadas de cerca de 80 mil pessoas para dar lugar a elefantes brancos hoje abandonados e degradados, estações de BRT transformadas em abrigos para alguns dentre as centenas de milhares de desempregados, promessas de paralisação do bondinho do centro da cidade, a explosão das violências urbanas, da criminalidade organizada e da letalidade da ação policial,

Finalmente, quem não teria falta de assunto seria o núcleo de crimes e investigações, também obrigatório nas boas séries e novelas nos dias que correm: cenas em delegacias, tribunais e prisões seriam tantas que a maior dificuldade estaria em escolher as personagens merecedoras de aparecer na sinopse: políticos? empresários? FIFA, CBF, COB? Experts e meios de comunicação de massa que promoveram uma verdadeira cortina de fumaça em torno ao comprometimento de recursos públicos em benefício de interesses privados? Talvez um flash back relembre junho e julho de 2013, quando milhões de pessoas foram às ruas protestar contra a farra do dinheiro público e exigir, entre outras coisas, com inegável bom humor, “escolas e hospitais no padrão FIFA”. Talvez ainda sobre espaço para uma inserção com o ex-Secretário Geral da FIFA, Jérome Valcke, declarando que “menos democracia, às vezes, é melhor para organizar uma Copa”.


No momento em que a cidade ainda está longe de superar as emoções, sofrimentos e, sobretudo, de pagar as dívidas pela aventura insensata e corrupta dos megaeventos esportivos, eis que os cariocas são convidados a ver de novo a mesma novela. Novos atores, representando os mesmos papeis, proclamam: agora é diferente, não é Olimpíada nem Copa, é Fórmula 1, é autódromo.

O presidente, o governador e o prefeito se unem, como há dez anos atrás seus antecessores, para anunciar que um grande evento esportivo trará emprego e desenvolvimento econômico e social. A mesma cantilena: parceria público-privada, garantia de que serão investidos apenas recursos privados, que temos apenas a ganhar. Mas é total o silêncio sobre os custos dos acessos, da infraestrutura urbana, dos serviços urbanos que serão prestados ao novo equipamento... enquanto nossos bairros padecem de total abandono.

O Ministério Público Federal, em cena também já conhecida, entra com ação para impedir a licitação, pois, como de hábito, não há qualquer estudo dos impactos ambientais, fato tanto mais grave que se pretende construir o novo autódromo no local conhecido como Floresta de Camboatá, em Deodoro, Zona Oeste da cidade, “único ponto remanescente de grande porte de Mata Atlântica em área plana na cidade”, segundo o MPF. Aliás, informa a imprensa, esta questão já havia levado a Justiça a proibir a licitação, mas, arguindo espertamente que o município não era parte da ação, a Prefeitura decidiu promover o certame sem qualquer menção à questão ambiental.

Os capítulos em exibição não poderiam ser mais parecidos com os capítulos anteriores: assim como na licitação do chamado “Porto Maravilha” e do Parque Olímpico, apenas um consórcio empresarial se apresentou: o Rio Motorsports. Paradoxo notável: a competição parece ser a alma do esporte, olímpico ou não, mas nada mais raro que a concorrência no mercado de licitações associadas a grandes eventos esportivos.

O Ministério Público Federal tem a obrigação de manter sua cobrança e os cariocas têm o direito de exigir um amplo e democrático debate público acerca da nova empreitada. E nesse contexto, vale a pena lembrar o que foi o “conto do legado” olímpico e a história do que aconteceu com o antigo Autódromo Nelson Piquet, de Jacarepaguá/Barra da Tijuca.

Nesta quinta-feira, às 18 horas, foi lançado, no Museu da República, na rua do Catete, o livro Viva a Vila Autódromo: o Plano Popular e a luta contra a remoção, de autoria de uma equipe de pesquisadores da UFRJ e da UFF. O livro fala das licitações, das negociações da Associação de Moradores com a prefeitura, da repercussão internacional das violências cometidas, das imagens e cobertura da mídia acerca do embate. Seus vários capítulos narram a história das 500 famílias de uma vibrante, diversa e pacífica comunidade que lutou contra a remoção forçada e levou a cabo inovadora experiência de elaboração de um plano alternativo à remoção, primeiro colocado em concurso de projetos urbanísticos inovadores promovido pela London School of Economics e pelo Deutsche Bank. O prefeito não apenas ignorou o Plano como se recusou a participar da cerimônia de premiação, como é tradicional neste concurso.

Além dos autores, estiveram presentes alguns dos moradores que protagonizaram essa experiência. Conhecer essa gente criativa, esperançosa, combativa, cheia de dignidade, assim como a leitura do livro talvez nos ajudem a nos indagarmos sobre algumas verdades que se impõem pela repetição: cabe mais uma parceria público-privada, para transferir escassos recursos públicos a um empreendimento privado? Cabe silenciar sobre o caráter suspeito de licitações em que concorre um único consórcio? Os cariocas vão cair uma vez mais no surrado “conto do legado”? Vale a pena ver de novo?

Carlos Vainer