sexta-feira, 16 de abril de 2021

Biden ameaça sujar as mãos com Bolsonaro

O apoio decisivo dos Estados Unidos às ditaduras da América Latina na segunda metade do século 20 é conhecido e bem documentado. O que não se esperava é que, justamente neste momento da história, em que os Estados Unidos acabaram de enfrentar o maior e mais traumático ataque à sua própria democracia, Joe Biden possa decidir fortalecer o autoritário Jair Bolsonaro. Os governos de Bolsonaro e de Biden conversam a portas fechadas sobre um bilionário investimento na Amazônia que poderá ser anunciado na Cúpula de Líderes sobre o Clima promovida na próxima semana, em 22 e 23 de abril, pelos Estados Unidos.

Amplos setores da sociedade brasileira veem na negociação um movimento inaceitável para legitimar Bolsonaro no momento em que ele é tratado pelo mundo democrático como “ameaça global” e amarga uma queda na sua popularidade devido à media de mais de 3 mil mortes diárias por covid-19. Quem conhece Bolsonaro também tem certeza de que, se Biden botar dólares na conta do Governo brasileiro, o presidente e sua quadrilha encontrarão um jeito de abastecer os bolsos dos depredadores da Amazônia, uma importante base eleitoral para catapultar as chances de uma reeleição em 2022.

O impasse não é confortável para o Governo do democrata Joe Biden. Em seu discurso de posse, ele anunciou o combate à emergência climática como uma de suas maiores prioridades. Ainda na campanha eleitoral, já havia anunciado a intenção de investir 20 bilhões de dólares na proteção da Amazônia. Não há possibilidade de controlar o superaquecimento global, bandeira cara à ala mais progressista do Partido Democrata, sem a maior floresta tropical do mundo. Por outro lado, a deliberada inação do Congresso brasileiro, sentado sobre mais de 100 pedidos de impeachment de Bolsonaro, torna difícil qualquer ação por parte do líder americano: por um lado, a proteção da Amazônia já se tornou emergencial, dada a crescente savanização da floresta; por outro, a premência obriga o Governo americano a negociar com o principal responsável pela aceleração da destruição.


O que fazer, então? Certamente não negociar a portas fechadas com um Governo que, apenas entre agosto de 2019 e julho de 2020, desmatou mais de 11 mil quilômetros quadrados, o equivalente a riscar do mapa uma área de floresta do tamanho do município de São Paulo. Os índices de desmatamento de março de 2021, o último mês fechado, já são os maiores dos últimos seis anos, com a extinção de 367 quilômetros quadrados de mata. E, também, não negociar com um extremista de direita denunciado por povos indígenas e outros setores da sociedade brasileira e internacional como “genocida”, em comunicações ao Tribunal Penal Internacional. E, ainda, não negociar com um governante apontado por pesquisas internacionais como o pior gestor da pandemia, cujas ações para disseminar o novo coronavírus com o objetivo de atingir imunidade por contágio ameaçam hoje o controle global da covid-19, ao converter o Brasil num criadouro de novas variantes.

O primeiro a propagandear a surpreendente amizade com o Governo de Biden foi justamente o ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, um fraudador ambiental condenado. Salles, que anunciou com orgulho num programa de TV que assumiu a pasta sem nunca ter visitado a Amazônia nem saber quem era Chico Mendes, tem entre suas credenciais uma condenação por fraudar documentos e mapas para beneficiar mineradoras quando era secretário do meio ambiente do Estado de São Paulo. Quando a covid-19 atingiu o Brasil, defendeu numa reunião do governo que deveriam aproveitar que a imprensa estava distraída com a pandemia “para passar a boiada”, o que significava afrouxar ainda mais a legislação ambiental sem se arriscar à reação da sociedade. Em sua gestão, o marco legal de proteção, assim como os órgãos de fiscalização, foram enfraquecidos.

Chamado no Brasil e em parte do mundo de antiministro do meio ambiente ou ministro contra o meio ambiente, Salles estava tão afoito para divulgar as negociações com os americanos que deu uma entrevista à jornalista Giovana Girardi, repórter do jornal O Estado de S. Paulo, na casa da sua mãe. Fez questão de alardear que estava pedindo aos americanos 1 bilhão de dólares a cada 12 meses para reduzir o desmatamento da Amazônia em 40%. A trucagem de Salles não agradou aos negociadores americanos, que foram propositalmente expostos, e moveu uma forte reação contrária de amplos setores da sociedade brasileira.

Na semana passada, 199 organizações, de indígenas a cientistas, de ambientalistas a jornalistas, assinaram uma carta na qual afirmam: “O presidente americano precisa escolher entre cumprir seu discurso de posse e dar recursos e prestígio político a Bolsonaro. Impossível ter ambos”. Entre as várias surpresas da negociação entre os governos Biden e Bolsonaro está o fato de que nenhum dos protagonistas da sociedade civil, os que vêm lutando e morrendo pela Amazônia há décadas, foram chamados para participar.

Na segunda-feira, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançou um vídeo em inglês direcionado ao presidente estadunidense: “Caro Joe, nós sabemos que a Casa Branca está fazendo um acordo climático secreto com Bolsonaro. Nós, brasileiros, precisamos te alertar: não confie em Bolsonaro. Não deixe esse homem negociar o futuro da Amazônia. Ele declarou guerra contra nós. Contra os povos indígenas. Contra a democracia. Ele está espalhando covid-19, mentiras e ódio”. E finaliza: “É a Amazônia ou Bolsonaro. Não dá para conciliar os dois. De que lado você está?”.

Diante da reação crítica, o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, o texano Todd Chapman, se apressou a tentar virar a maré de constrangimento, afirmando à imprensa que o Governo Bolsonaro vai precisar “mostrar preocupação ambiental para recuperar a confiança dos americanos e ampliar as relações com a Casa Branca”. Segundo a Folha de S. Paulo, o embaixador estadunidense classificou a cúpula do clima como “uma oportunidade” para o Brasil virar o jogo e resgatar a preocupação ambiental diante dos olhos do mundo. E aí vem a parte mais interessante. O embaixador afirmou que o país vai “se tornar herói” se fizer uma “declaração contundente”, retomando seu papel de protagonista no debate sobre o meio ambiente.

Como o Brasil hoje é governado e representado por Jair Bolsonaro, Chapman, uma escolha de Donald Trump para a embaixada brasileira, está acenando com um Bolsonaro herói da Amazônia. O problema é que nem na cabeça dos roteiristas mais imaginativos da HBO ou da Amazon essa transmutação soaria remotamente verossímil. O que está se desenhando, ao contrário, é mais um enredo no estilo de Al Capone. Bolsonaro e seu fiel lobista Salles desmontam a legislação ambiental e enfraquecem os órgãos de proteção, estimulam grileiros, madeireiros e garimpeiros a invadir as áreas públicas da floresta, deixam a covid-19 se alastrar pelos territórios indígenas e, quando a pressão internacional aperta, fazem um show pirotécnico com Exército e/ou Força Nacional, escanteando mais uma vez os fiscais do Ibama.

Os resultados estão aí para qualquer americano ver. Com a decisiva colaboração de Bolsonaro e de Salles, as pesquisas mais recentes mostram que áreas da floresta amazônica já começam a emitir mais carbono do que absorvem. Se a destruição da floresta que ainda está em pé continuar e se a floresta degradada não for recuperada, isso significa que em breve a Amazônia vai se tornar parte do problema e não mais parte da solução.

Bolsonaro e Salles destroem a Amazônia e atacam os povos da floresta em proporções só vistas na ditadura civil-militar (1964-1965) e depois pedem dinheiro para parar. Há ainda mais uma malandragem na proposta do também chamado “sinistro do meio ambiente”: apenas um terço dos recursos iriam diretamente para a proteção da floresta. Os outros dois terços seriam investidos em “desenvolvimento econômico” da região. Alguém já viu esse modus operandi em algum lugar? Pois é. Não para por aí o comportamento de gângster. Para alguns negociadores experientes, os Estados Unidos podem estar pagando também para que Bolsonaro não destrua qualquer possibilidade de acordo nas próximas cúpulas do clima.

Ricardo Salles, como alfineta um ambientalista, não levanta da cama pela manhã se não for para botar a mão em dinheiro que possa controlar. Esse foi justamente o problema dele com o Fundo Amazônia, que garantia ao Brasil um volume de recursos na casa dos bilhões da Noruega e também da Alemanha e que acabou sendo congelado porque Salles tentava desvirtuá-lo. Salles queria o que ele mesmo definiu como “uma mudança no modelo de gestão de recursos”. Os europeus desviaram da casca de banana.

Pode ser um tanto inusitado negociar com tal personagem. A repórter Marina Dias, da Folha de S. Paulo, conta que num dos slides apresentados por Salles em uma reunião com integrantes da equipe de John Kerry, Enviado Especial para o Clima do Governo Biden, havia a imagem do que os brasileiros chamam popularmente de “TV de Cachorro”: um vira-lata esfomeado olhando os frangos assando e girando numa máquina. As aves de Salles tinham cifrões estampados no corpo. Acima, estava escrito: “Payment Expectation” (expectativa de pagamento). É fácil imaginar quem é o cachorro e quem é o franguinho.

Poderia se cogitar que Biden e sua equipe não tenham aprendido o suficiente sobre como funciona a corja de populistas de extrema direita que corroem a democracia mundial, da qual Bolsonaro, depois da derrota sofrida por Trump, é o exemplo mais vistoso. Mas ninguém é ingênuo o suficiente para acreditar na ingenuidade de negociadores americanos. Nessa mesa há ainda muitas cartas nebulosas: entre elas, o temor da China avançando várias casinhas sobre a Amazônia brasileira e outras partes do planeta, o que já está acontecendo, os impasses em torno da tecnologia 5G e também a pressão das grandes corporações de ultraprocessados, que querem seguir lucrando sem sofrer boicotes por usar matérias-primas originadas no desmatamento. Nesse jogo, o mais lento voa.

É compreensível, necessário e desejável que Biden queira investir na proteção da Amazônia também pelas mais corretas e louváveis razões. É, porém, inacreditável, inaceitável e abjeto que Biden faça isso dando dinheiro ao maior inimigo da Amazônia e de seus povos. Em sua defesa, negociadores americanos têm dito que Bolsonaro foi eleito democraticamente e que é urgente proteger a Amazônia.

Sim, como Donald Trump, Jair Bolsonaro foi eleito democraticamente. Bolsonaro, porém, assim como Trump, não é um democrata, em nenhum sentido que esse termo possa ter. Bolsonaro e sua quadrilha só permanecem no Governo depois de todas as atrocidades que cometeram porque o Congresso é dominado por um grupo de parlamentares de aluguel chamado de “Centrão”. Também porque a massa de pessoas que clama pelo impeachment não pode ir às ruas porque o país está tomado pela covid-19 e, graças à diligência de Bolsonaro, sem garantia de vacinas em número suficiente.

Os olhinhos ávidos de Bolsonaro sempre brilharam diante de Donald Trump. Junto com o ditador norte-coreano Kim Jong-un, o brasileiro foi um dos governantes do mundo que mais demorou para reconhecer a vitória de Joe Biden sobre seu ídolo do topete laranja. Também justificou a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro, sustentando a mentira trumpista de “fraude” na eleição. Trump, porém, sempre afagou a cabeça do seu garoto, mas jamais cogitou dar o que os americanos chamam de “serious money” ―uma quantia decisiva de dinheiro―ao seu Governo. O investimento na Amazônia pretendido por Biden, nos moldes em que está sendo negociado, poderá significar um apoio ao governo Bolsonaro que nem o próprio sonhou.

Se a urgência de proteger a Amazônia não pode esperar o fim do governo predatório de Bolsonaro, é necessário garantir a participação nas negociações de quem realmente protege a floresta ―contra as agressões de Bolsonaro. Como as lideranças indígenas e as organizações socioambientais, essas que Bolsonaro chama de “câncer”. É também obrigatório condicionar a liberação do dinheiro a ações reais e resultados concretos. Fundamentalmente, nos campos da ética, da decência e dos direitos humanos, pouco populares em negociações internacionais, o desafio de Biden é dar uma resposta coerente à pergunta para lá de espinhosa: é possível negociar com um extremista de direita chamado de “genocida” por grande parte do seu povo, responsável por milhares de mortes evitáveis e pela aceleração do desmatamento da Amazônia?

Se as negociações seguirem na toada atual, Biden poderá sujar as mãos logo na arrancada de sua pretensão a liderar o mundo democrático no enfrentamento da crise climática. E, com a justificativa de proteger a Amazônia, realizar a mais decisiva interferência no destino do Brasil por um governo americano desde a ditadura. A Amazônia, cada vez mais perto do ponto de não retorno, precisa ser protegida pela sociedade global com urgência. Mas não se fará isso dando bilhões de dólares para seu maior predador e sua quadrilha de destruidores ambientais.

Josué de Castro, a fome e a política

A pesquisa “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, realizada pelo grupo Alimento Para Justiça, da Universidade Livre de Berlim, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade de Brasília, apontou para o fato de que até o final do ano passado 59,4% dos brasileiros enfrentavam algum grau de insegurança alimentar.

Isso significa dizer que a pandemia do coronavírus mergulhou o país em uma catástrofe humanitária em que aproximadamente 125,6 milhões de brasileiros não têm o que comer, não comem adequadamente ou convivem diariamente com o medo de não conseguir fazer a próxima refeição.


A fome não é um problema inédito no Brasil. Tanto é assim que foi questão central de importantes obras da cultura brasileira. Lembremos de Fabiano e seus filhos vagando pelo sertão em “Vidas Secas”. Ou das andanças de Chico Bento em “O Quinze”, de Rachel de Queiroz. Na mesma trilha, a pintura “Os Retirantes”, de Cândido Portinari, retrata a tentativa de fuga da seca, da fome e da miséria. “Ilha das Flores”, documentário de Jorge Furtado, nos apresenta a profunda sombra de indignidade que a fome projeta sobre os seres humanos.

Para além de seu valor estético, as obras acima nos fazem sentir que a fome não é um acaso e tampouco resulta de determinações biológicas ou geográficas; a fome é o resultado de escolhas políticas. No fim das contas são as decisões sobre a organização da sociedade que definem quem terá ou não um prato de comida.

Os regimes de propriedade privada, as formas de organização do trabalho, o sistema de produção e distribuição de alimentos e suas conexões com a lógica de reprodução do capitalismo em níveis global e local são determinantes para a compreensão da fome como um fenômeno sociopolítico.

Todavia, uma análise científica da fome só pode se pretender completa com a menção à obra de Josué de Castro. Médico, geógrafo, nutrólogo, professor, cientista social, diplomata e político, foi o maior estudioso do tema da fome que o mundo conheceu.

É mérito deste brasileiro, nascido no Recife, o tratamento da fome “como um complexo de manifestações simultaneamente biológicas, econômicas e sociais”. Jean Ziegler, relator para a ONU sobre o direito à alimentação entre 2000 e 2008, afirmou que Josué de Castro deveria “ter um monumento em cada cidade do país, porque é um dos maiores pensadores do século 20”.

Dos vários escritos de Josué de Castro, destacam-se “Geografia da Fome” e “Geopolítica da Fome”. Nestes livros, a fome é tratada como um problema decorrente das contradições da organização econômica capitalista em seus diferentes estágios de desenvolvimento e formações histórico-espaciais.

No caso específico do Brasil, a monocultura —que gera a deficiência alimentar— e o latifúndio —que produz a fome— são centrais na criação das condições que levam as populações à tragédia da fome. Para Josué de Castro o enfrentamento da fome é, antes de tudo, a luta contra o subdesenvolvimento. Na sua visão, seria preciso libertar a agricultura dos freios do colonialismo e, assim, “libertar o povo das marcas infamantes da fome”.

Considerando-se o Brasil atual, o pagamento de um valor decente de auxílio emergencial, a implementação de políticas de apoio a micro, pequenos e médios empresários, assim como a adoção de medidas de controle da pandemia seriam cruciais para o enfrentamento da fome. Mas não é só isso: seria preciso uma mudança significativa nas estruturas econômica e política do país.

Tais mudanças incluem o fortalecimento da soberania nacional, a realização da reforma agrária, a priorização do povo brasileiro nas políticas alimentares, o investimento em ciência e tecnologia, a implementação de medidas de preservação ambiental e a insubmissão da produção de alimentos à lógica da mercadoria.

Em “Geografia da Fome”, Josué de Castro afirma que o Brasil seria capaz de superar suas históricas mazelas se pudesse livrar-se “da servidão às forças econômicas externas que durante anos procuraram entorpecer o nosso progresso social e da servidão interna à fome e à miséria que entravaram sempre o crescimento de nossa riqueza”.

Brasil do dia a dia

 


A educação básica nos rincões do Sul do Brasil

Quando se pensa na região Sul do país, imagina-se um paraíso na terra, um lugar em que todos têm acesso a educação de qualidade. Mas existe uma realidade oculta para muitos, realidade essa que vivi na pele.

Aos dois anos de idade meus pais fizeram parte do Movimento sem Terra. Fomos alocados em uma área rural distante de tudo e todos. Iniciei a escola aos seis anos, e para chegar até ela éramos transportados em ônibus sucateados, com uma viagem estimada em duas horas de ida e duas horas de volta. Às vezes, o ônibus estragava no meio do caminho, e ficávamos horas esperando alguém nos socorrer. Já cheguei em casa perto do anoitecer e vi motoristas atravessando pontes alagadas sem conseguir enxergar direito. Mas não tinha o que fazer, esse era o único caminho para casa.



Definitivamente não é fácil viver à margem da sociedade. Não é legal receber a informação depois de todos, isso se tiver a sorte de realmente receber





Na área rural, a vida é mais complicada em todos os aspectos. Minha escola era de turno integral e, por não ter salas suficientes para todos os alunos, a instituição precisava fazer um rodízio das classes. Alguns dias eram destinados ao fundamental 1 e outros, ao 2. Quando eu ficava em casa, precisava ajudar minha família em todas as atividades, como tirar leite, alimentar os animais, etc.
Escola rural versus urbana

Fui morar em Bento Gonçalves aos 11 anos, fascinada pela ideia do que era uma cidade. Entretanto, tivemos muitos problemas na adaptação. A escola me desmoronou. Logo que entrei, percebi que eles tinham inglês desde o primeiro ano, enquanto eu nunca tinha tido contato com a língua, e usavam uniformes caros. Me senti completamente deslocada. Falavam muito sobre "estudar, pois segurar um lápis era mais fácil que segurar uma enxada", mas segurar uma enxada nunca tinha sido problema para mim.

Desde muito nova, queria ser advogada, porque sempre acreditei que esses profissionais poderiam fazer diferença no mundo, só que era apenas um sonho infantil sem muito fundamento. Motivada pelas ilegalidades e golpes dentro do Movimento Sem Terra e com um grande anseio por mudança, me apaixonei pelo Direito. Meu único exemplo de vida e uma grande inspiração foi meu irmão mais velho, a primeira pessoa do meu meio a ingressar na faculdade pelo Prouni. Quando foi aprovado, eu senti que mesmo pessoas como nós (ignorantes, aos olhos de muitos) são capazes de alcançar um lugar dominado pela elite.

No entanto, muitas coisas não estavam ao meu alcance. Como eu passaria? Não sabia inglês básico, não tinha dinheiro para cursinhos, e meu conhecimento de mundo era limitado a 32 hectares que sequer eram nossos. Desanimei, não sabia como competir com todos ao meu redor.
Apoio da família para estudar

Aos 15 anos comecei a trabalhar como menor aprendiz e, com o dinheiro que recebia, paguei alguns cursinhos profissionalizantes. Aos 17, quando meu contrato acabou, tive uma conversa com o meu pai que fez com que eu decidisse me dedicar intensivamente a estudar durante meu último ano inteiro. Minha família me apoiou intensamente nesse processo, me deu suporte para ficar em casa apenas estudando. Mesmo não podendo me ajudar financeiramente, meus familiares me apoiaram emocionalmente e fizeram todo o esforço possível para que eu não trabalhasse, então me dediquei integralmente aos estudos. Nesse momento, o projeto Salvaguarda apareceu para mim, me deu absolutamente toda a assistência de que eu precisava.

Mas, então, veio a pandemia. Se já era difícil com a escola, imagine sem. Precisei me dividir entre fazer inúmeras tarefas escolares e estudar à tarde para o Enem. Durante o processo, tive muitas crises de ansiedade e pensei em desistir. Mas, apesar das dificuldades, sei que meu propósito é superior a todos os medos e angústias, então estudei arduamente durante todo 2020. Independentemente da nota, tenho muito orgulho da minha trajetória.

Definitivamente não é fácil viver à margem da sociedade. Não é legal receber a informação depois de todos, isso se tiver a sorte de realmente receber. Porém, eu tenho certeza de que propósitos movem o mundo e garanto que nunca desistirei de lutar pelo meu sonho.
Mariely da Silva Lima (18 anos) integra o Salvaguarda (@salvaguarda1), programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade

Falhas na resposta à Covid-19 levam Brasil a catástrofe humanitária

Mais de um ano desde o início da epidemia de COVID-19 no Brasil, ainda não foi colocada em prática por parte do poder público uma resposta efetiva, centralizada e coordenada à doença. A falta de vontade política de reagir de maneira adequada à emergência sanitária está causando a morte de milhares de brasileiros.

Médicos Sem Fronteiras (MSF) faz um apelo urgente às autoridades brasileiras para que reconheçam a gravidade da crise e coloquem em marcha uma resposta centralizada e coordenada para impedir que continuem ocorrendo mortes que podem ser evitadas.

Na semana passada, 11% do total de novos casos e 26,2% das mortes ocorridas no período em todo o mundo aconteceram no Brasil. No dia 8 de abril, foram registradas em um único período de 24 horas 4.249 mortes e 86.652 casos de COVID-19. Estas cifras estarrecedoras são um indicativo claro da falta de habilidade das autoridades em lidar com a crise humanitária e de saúde que atinge o país e do seu fracasso em proteger os brasileiros, especialmente os mais vulneráveis, do vírus.

“Medidas de saúde pública se transformaram em tema de disputa política no Brasil”, afirma o Dr. Christos Christou, presidente internacional de MSF. “A consequência disso é que ações de política pública com fundamento científico são vinculadas a posicionamentos políticos, em vez de estarem associadas à necessidade de proteger indivíduos e suas comunidades da COVID-19.”

“O governo federal praticamente se recusou a adotar diretrizes de saúde pública de alcance amplo e com base em evidências científicas, deixando às dedicadas equipes médicas a tarefa de cuidar dos mais doentes em unidades de terapia intensiva, tendo que improvisar soluções na falta de disponibilidade de leitos”, continua o Dr. Christou. “Isto colocou o Brasil em um estado de luto permanente e o sistema de saúde do país à beira do colapso.”

“A resposta à COVID-19 no Brasil tem de começar na comunidade, não na UTI”, disse Meinie Nicolai, diretora-geral de MSF. “Não apenas suprimentos médicos, como oxigênio, sedativos e equipamentos de proteção, têm de chegar onde são necessários, mas o uso de máscaras, o distanciamento físico, medidas de higiene e restrições a atividades não essenciais e à movimentação devem ser promovidas e implementadas no nível da comunidade, de acordo com a situação epidemiológica de cada região.”

“As orientações para o tratamento da COVID-19 têm de ser atualizadas para que reflitam as pesquisas médicas mais recentes. Testes rápidos de antígeno devem estar amplamente disponíveis para facilitar tanto a assistência aos pacientes como o controle da epidemia”, afirma Nicolai.

Na semana passada, unidades de terapia intensiva (UTIs) estavam com ocupação acima de 90% em 19 das 27 capitais brasileiras.¹ Em hospitais de várias regiões há escassez tanto de oxigênio, necessário no tratamento de pacientes em estado grave e crítico, quanto de sedativos, essenciais para intubação de doentes em estado crítico.

Como resultado desta situação, nossas equipes viram pacientes que teriam tido chance de sobrevivência ficarem sem acesso a cuidados adequados de saúde.

“A devastação que as equipes de MSF testemunharam pela primeira vez no Amazonas se tornou a realidade na maioria do território brasileiro”, diz Pierre Van Heddegem, coordenador de emergência de MSF no Brasil. “A falta de planejamento e coordenação entre as autoridades federais de saúde e suas contrapartes nos estados e municípios está tendo consequências de vida ou morte.”

“Não apenas pacientes estão morrendo sem acesso a cuidados de saúde, mas o pessoal médico está exausto e sofrendo graves traumas psicológicos e emocionais devido às condições de trabalho”, afirmou Van Heddegem.

Uma limitação adicional é a pouca oferta local de profissionais de saúde. Apesar disso, médicos estrangeiros e brasileiros formados no exterior não podem trabalhar com atendimento a pacientes no Brasil.

Alimentando o ciclo de doença e morte no Brasil está o grande volume de desinformação que circula pelas comunidades do país. Uso de máscaras, distanciamento físico e restrição de movimentos e de atividades não essenciais são rejeitados e politizados. Além disso, medicamentos como a hidroxicloroquina (usada geralmente contra malária) e ivermectina (um vermífugo) são apregoados por políticos como panaceia e receitados por alguns médicos tanto como profilaxia quanto como tratamento para a COVID-19.

Outro problema do Brasil é o ritmo da vacinação, aquém do que seria desejável. Em 2009, o país conseguiu vacinar 92 milhões de pessoas contra a gripe H1N1 em apenas três meses, enquanto que a velocidade atual é menor. Até agora, cerca de 11% da população recebeu ao menos uma dose da vacina e menos de 4% tomaram a segunda dose. Isto significa que milhões de vidas no Brasil, e também além de suas fronteiras, estão em risco devido às mais de 90 variantes do vírus que estão atualmente em circulação no país, assim como novas variantes que podem surgir.

“As autoridades brasileiras têm acompanhado o avanço sem freios da COVID-19 durante todo o último ano”, diz o Dr Christou. “A recusa em colocar em prática medidas de saúde pública baseadas em evidências científicas resultou na morte prematura de muitas pessoas. A resposta à pandemia precisa urgentemente de um recomeço, baseado em conhecimentos científicos e bem coordenado, para evitar mais mortes desnecessárias e a destruição de um sistema de saúde conceituado e prestigiado.”

Livro não é luxo

Jorge Amado, um dos maiores escritores da literatura brasileira, estaria atônito com a intenção do Governo Federal de incluir na reforma tributária a taxação de 12% no preço dos livros.

Em 1945, Amado foi o deputado federal mais votado do estado de São Paulo e tornou-se membro da Assembleia Nacional Constituinte. Deve-se ao autor de “Gabriela, Cravo e Canela” e “Capitães de Areia” a emenda que instituiu na Constituição de 1946 a imunidade fiscal do papel destinado a impressão de livros, jornais e revistas. O então deputado tinha como objetivo estimular a leitura no país, tornando-a acessível aos mais pobres.

Os constituintes de 1988 tiveram o mesmo propósito de Jorge Amado ao consolidar a isenção, vedando à União, estados e municípios criar qualquer tipo de imposto sobre livros.

Há uma lógica cristalina na isenção. Quanto mais barato o preço do livro, mais pessoas de menor poder aquisitivo ingressam no mundo da leitura. O inverso também é verdadeiro. Quanto mais caro, mais o mercado editorial se elitizará.


Mural de Kobra em Sorocaba

Não se sabe de que cartola foi tirada a ideia de que ler livro é coisa de gente rica. Ela é defendida pelo governo na defesa do PL 3887 que institui a Contribuição Social Sobre Operações com Bens e Serviços (CBS). A desmenti-la existe uma série de dados. Olhando o mercado como um todo, os livros mais vendidos no Brasil são a Bíblia, os didáticos e paradidáticos. Não consta que a maioria dos religiosos e dos estudantes brasileiros sejam das classes mais altas. Ao fazer um recorte para os livros não-didáticos, a Pesquisa de Orçamentos Familiares (IBGE) mostra que o consumo está dividido em 50% entre as famílias com renda acima de dez salários mínimos e abaixo desse valor.

Outros dados relevantes estão na pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 2019-2020, realizada pelo Instituto Pró-Livro em parceria com o Itaú Cultural. O estudo comprova que hoje existe um contingente de 27 milhões de brasileiros das classes C, D e E que são consumidores de livros. Isso significa que uma eventual aplicação da CBS, ao aumentar o preço dos livros, vai prejudicar o acesso justamente da população mais vulnerável.

Quem compartilha da tese de que “quem lê livro é rico”, visão elitista e ultrapassada do consumo de livros, age no sentido inverso da inclusão e melhoria da educação no país. Os defensores da taxação não devem ter visitado as Bienais do Livro que ocorrem na maioria dos estados brasileiros, capitaneadas pelas edições de São Paulo e do Rio de Janeiro. Bastaria passar os olhos nesses encontros para constatar que a frase não se sustenta em pé. Grande parte do público era de jovens da classe C, fenômeno que tem se repetido em sucessivas feiras de livros.

Também conviria aos defensores da tributação conhecer a Festa Literária das Periferias (Flup), indicada ao Prêmio Jabuti de 2020 na categoria “Fomento à Leitura” por acreditar no papel transformador que um livro pode ter na vida de quem tem poucos recursos. Nas edições da Flup, 97% do público se declararam leitores frequentes.

O livro é ferramenta básica de educação, conhecimento, cidadania e de mobilidade social. Existe uma comprovada correlação entre crescimento econômico, melhoria da escolaridade e aumento da acessibilidade ao livro. É preciso enfatizar que onerar e encarecer os livros será um desinvestimento no crescimento futuro do Brasil, sem falar em desestímulo no combate contra a desigualdade. Além disso, a proposta de taxar o livro vai na contramão da Lei 10.753/2003, que instituiu a Política Nacional do Livro e que tem como objetivo garantir o acesso e uso do livro a todos os cidadãos.

Se a medida prosperar, o setor calcula que o preço de uma obra literária terá um aumento médio de 20%. A consequência será uma profunda desorganização do mercado editorial, com impacto no emprego e quebra de editoras e livrarias. Mais grave: desestímulo à leitura, aí sim, transformando-a em um bem acessível apenas às elites.

Onde o governo foi buscar tamanha inspiração?

Na América Latina, apenas Chile e Guatemala tributam os livros. O Reino Unido, por exemplo, acelerou os planos para zerar a alíquota sobre os livros.

Perto de nós, o Uruguai nos faz passar vergonha. Quando veio a pandemia, seu governo incluiu livros na cesta básica distribuída para pessoas em situação de vulnerabilidade social. Entre as obras distribuídas, clássicos de Hermann Hesse, Aldous Huxley, Alberto Camus, Júlio Verne e George Orwell. A literatura uruguaia foi contemplada com escritores canônicos, como Horácio Quiroga e Juan José Morosoli, e contemporâneos como Fabian Severo. Não pensem que o governo do país vizinho é de esquerda. É de centro-direita, profundamente democrático e amante da liberdade.

A democratização do saber e da cultura só foi possível graças a Gutemberg, o inventor da imprensa. Antes dele, os livros eram escritos em pergaminhos e de circulação restrita a mosteiros, conventos e algumas pouquíssimas universidades. A invenção de Gutemberg possibilitou que milhões e milhões de pessoas saíssem da escuridão, se alfabetizassem e tivessem acesso a um bem que antes era privilégio da elite eclesiástica e da nobreza.

A proposta do governo quer voltar a esses tempos.
Vitor Tavares, Diego Drumond, Hubert Alquéres e Luciano Monteiro, respectivamente, presidente e vice-presidentes da Câmara Brasileira do Livro

O mundo chora e ri por nós

Como uma hiena, Bolsonaro gargalhou ao saber que o relator sorteado no processo de impeachment de seu arqui-inimigo Alexandre Moraes no STF era o seu “100% alinhado” ministro Kássio “Conká”. Desmoralizou de uma vez só o “novato”, pela certeza de sua submissão e decisão automática a seu favor, o tribunal a que pertence, os senadores que o aprovaram e a ele mesmo, que vê o STF como o supremo inimigo, e o que mais teme.

Muito pior foi no Parlamento francês: quando o premiê Jean Castex discursava e disse que o governo do Brasil recomendava cloroquina para combater a Covid-19 e que foi o país que mais a prescreveu, o plenário explodiu numa gargalhada coletiva e ultrajante.


Houve um tempo em que os brasileiros que viajavam tinham vergonha de seu atraso, suas roupas e sua ditadura e se espantavam com o progresso material e civilizacional da Europa e dos Estados Unidos. Também vivemos um tempo de redenção, a partir do governo FHC, com o real emparelhado com o dólar, em plena democracia, com grande crescimento da economia e do agronegócio. Já não tínhamos mais vergonha, mas orgulho do país lindo e poderoso que crescia tanto que, em 2009, no governo Lula II, foi representado pelo Cristo Redentor como um foguete alçando voo na capa da revista The Economist. Pensei, como em outras vezes: desta vez vai. Não foi. O foguete Dilma II deu chabu.

Se antes sentiam pena ou desprezo por nós, depois passaram a ter respeito, admiração e até inveja, e agora riem de nós. De nosso presidente, de nossos mortos e nossas desgraças. Viramos párias internacionais, não podemos entrar em nenhum lugar, ninguém quer vir aqui, o país está em luto permanente. E quebrado.

Será que algum ministro ou assessor que entenda inglês tem coragem de contar a Bolsonaro o que dizem dele os jornais e sites da imprensa internacional ? Os deboches, piadas e chacotas, as charges dele como jumento, jacaré ou a Morte ? Ou, por sabujice e covardia, para não aborrecer o chefe, ninguém conta nada ? Como o cara é um troglodita monoglota e não lê jornais brasileiros, só os seus sites de confiança, e as informações dos filhos, é totalmente desinformado sobre o mundo real. Talvez, às vezes, ele leia escondido O GLOBO ou a Folha de S. Paulo só para ficar furioso e estraçalhar os jornais com os dentes.

Como todo paranoico, ele é obcecado por “informação” e “inteligência”, mas sobre seus inimigos reais e imaginários, não sobre corrupção ou como o Brasil é visto no exterior. Apesar de vivermos a era de ouro das comunicações, com as informações ao acesso de todos, o Jair ainda é analógico, pré-digital, e nunca um presidente foi tão mal informado sobre como o mundo civilizado vê o Brasil e seu governo. E não advertido sobre suas possíveis consequências.

Assim como tem a Agencia Brasileira de Inteligência, a Abin, Bolsonaro também tem a ABB, Agência Brasileira de Burrice, que funciona informalmente, mas a todo vapor, no Palácio do Planalto, e é tão secreta que os seus integrantes não sabem que fazem parte dela.
Nelson Motta