sábado, 30 de novembro de 2019

Cresce tentação autoritária entre governos da América do Sul

O ministro brasileiro da Economia, Paulo Guedes, não é conhecido por ser especialmente cauteloso. No entanto, em sua fala em Washington, no fim de novembro, surpreendeu com uma estratégia de recuo, ao suspender temporariamente – devido aos protestos nos vizinhos sul-americanos – o abrangente pacote de reformas do aparato estatal e do sistema tributário, anunciado há apenas três semanas.

"Não queremos dar nenhum pretexto para as pessoas irem às ruas", disse, contrito, segundo o jornal Estado de S. Paulo: "Vamos ver o que está acontecendo primeiro. Vamos entender o que está acontecendo."

Assim, o Brasil é o último governo latino-americano a sustar um pacote de reformas abrangentes. Antes, o Equador e o Chile haviam recuado em seus planos. Na Colômbia, o povo também está protestando, em parte contra a reforma da aposentadoria.


As reformas não foram o estopim direto para os protestos em nível nacional, mas sim aumentos de preços dos transportes públicos ou combustíveis, ou possíveis manipulações eleitorais. Ainda assim, os projetos nacionais de reforma intensificaram as manifestações.

Em geral, os pacotes visam reduzir os altos déficits orçamentários, responsáveis por inflação e alto endividamento – nesse sentido, os esforços dos governos para reduzir gradativamente as aposentadorias. Por outro lado, sua meta é tornar a economia mais produtiva e reduzir o aparato estatal.

Em termos de produtividade, as economias sul-americanas vão mancando atrás tanto das dos países industriais quanto das do Extremo Oriente, que crescem rapidamente. As empresas e empregados da região são pouco competitivos no mercado mundial. Os Estados, por sua vez, oferecem serviços de baixa qualidade; a oferta estatal em educação, saúde, infraestrutura e segurança é catastrófica.

Nesse sentido, as reformas não só fazem sentido, como são urgentemente necessárias para que a América do Sul não fique mais uma vez para trás na economia mundial. Em 2019, ela é o continente que menos crescerá, e os protestos frearão ainda mais o crescimento.

O problema das reformas, contudo, é que os governos conservadores do Brasil, Chile e Colômbia pretendem distribuir os custos dos cortes orçamentários pelo maior número possível de cidadãos, mas hesitam em confrontar os privilegiados com desvantagens. Além disso, querem impor sobretudo medidas que favoreçam as empresas.

Uma das promessas eleitorais principais do presidente Sebastián Piñera – ele próprio um dos empresários chilenos mais ricos – foi reverter, em parte, a reforma das leis sobre empresas de sua antecessora, Michelle Bachelet. Para muitos chilenos, o gabinete de Piñera parecia uma comunidade de interesses da elite empresarial do país.

Também no Brasil, o governo de fato flexibilizou as totalmente antiquadas leis trabalhistas e elevou a idade mínima de aposentadoria, mas os privilégios dos militares permaneceram intocados; e ele dificilmente decretará cortes para os funcionários alto-assalariados. Em suas reformas, os governos conservadores sul-americanos são cegos do olho social e não ousam tocar nas sinecuras dos altamente privilegiados – dos quais eles também fazem parte. Isso reduz ainda mais a credibilidade dos processos reformistas.

Agora ameaça o perigo de os Estados caírem na tentação de impor de forma autoritária as reformas fracassadas ou suspensas. Na América do Sul existe a franca tradição de mobilizar os militares para "garantir a ordem pública", o que muitas vezes é sinônimo de "garantir os interesses das elites".

Em Washington, visivelmente exasperado, o ministro Guedes esbravejou que, diante dos protestos, "não se assustem se alguém pedir o AI-5" em breve – uma dissonante lembrança dos atos institucionais impostos cerca de 50 anos atrás pela ditadura militar.

Deutsche Welle

O presidente da República contra a imprensa

O presidente Jair Bolsonaro falou ontem, referindo-se à administração pública, que tem dificuldades seríssimas em muitas áreas. Nós sabemos.

Aliás, nesta ocasião, referiu-se ao Tribunal de Contas da União como se parte de sua mesma equipe; como se não fosse o TCU um órgão de controle externo, que opera com autonomia. Não se trata de novidade. Já estendera essa visão privatizadora (para si) do Estado, por exemplo, à Polícia Federal – que enxerga (ou deseja) como uma instituição subordinada a seu governo, e não como um organismo de Estado com autonomia funcional. É assim mesmo. Bolsonaro ainda não entendeu – nunca entenderá – a ideia de República.

Por isso, claro, tem também dificuldades seríssimas em compreender o papel da imprensa e a impessoalidade republicana. Muitos dos atos de flagrante inconstitucionalidade perpetrados pelo presidente derivam de seu inconformismo em não haver sido eleito para imperar, com mandato para moldar o Estado de acordo com suas vontades, afetos e desafetos.

É comum que governantes não gostem de jornalistas e reclamem da atividade jornalística. Em Jair Bolsonaro, no entanto, esta hostilidade escalou. Integra um discurso. Constitui-se mesmo num dos pilares do projeto de poder autoritário bolsonarista. Como a lógica sectária que fundamenta o fenômeno personalista do bolsonarismo exige adesão incondicional, toda e qualquer instituição que exerça algum grau de independência será uma ameaça a ser emparedada.

O bolsonarismo não aceita – não admite – autonomia que não a sua.

Isto serve para o Parlamento, para o Supremo; e também para a imprensa. Que deve ser desqualificada, ter a credibilidade artificialmente esvaziada, sufocada – para que o governante, líder populista, faça prosperar a farsa de que o filtro intermediário jornalístico é prescindível, descartável, e que ele pode falar ao povo diretamente ou por meio dos canais a seu serviço. Afinal, como sabemos, o presidente – um governante – não mente...

A cruzada personalista de Jair Bolsonaro contra a Folha de S. Paulo – e usando o aparelho de Estado para tanto – não é contra o jornal; mas contra o jornalismo e, portanto, contra a liberdade de imprensa. Não se pode calar diante disto.

Não se pode calar ante um presidente que constrange empresários com alertas sobre anunciar em certos jornais e emissoras. Isto é crime de responsabilidade.

Ao cumprir uma promessa de imperador eleito e excluir a Folha – sem qualquer base técnica, a partir de inaceitável questão pessoal – de um processo de licitação para fornecimento de acesso digital ao noticiário da imprensa, o presidente não atentou somente, e gravemente, contra a impessoalidade republicana, mas turbinou, valendo-se novamente da máquina estatal, sua campanha autocrática contra a atividade jornalística e, por consequência, contra o Estado Democrático de Direito.

Não interessa que Jair Bolsonaro se sinta perseguido pela imprensa; vítima do jornalismo. Ele é o presidente. Fala como presidente. Age como presidente. Não existe Jair Bolsonaro, o homem e seus desafetos, quando se expressa via (musculatura da) máquina federal.

Já passou da hora de uma medida cautelar – pedagógica – sustar esse processo licitatório e colocar o presidente e suas vontades imperiais no cercadinho dos limites da República.

Estamos ainda ao 11º mês do primeiro ano do governo Bolsonaro. Nunca, desde a redemocratização, tal volume de ataques à imprensa – por um governante, o próprio presidente – foi disparado. Difícil supor que não vá piorar.

Matemática da matança

Existem mais negros morrendo porque há mais negros incorrendo em crimes. É um fato matemático 
Daniel Silveira. deputado federal  (PSL-RJ)

Cincuum

Não entendo nada de futebol apesar de ser flamenguista. Portanto, este não é um artigo sobre o Flamengo, o Mengão campeão, viva o Flamengo! Mas há algo de novo no Flamengo que toca outros temas, em particular a falta do novo na condução econômica e no debate nacional sobre os rumos do país. O novo no Flamengo é, evidentemente, a abertura para ideias diferentes representada pela escolha do técnico, tão criticado no início da trajetória para os dois títulos conquistados no último fim de semana. Arejar as ideias é fundamental em qualquer área, do futebol à economia.

Na economia, estamos bem mal. Não é exagero, ainda que alguns possam querer insistir em relatar melhorias pontuais, a aprovação da reforma da Previdência e outros feitos. Não os desmereço, que fique claro. O problema é outro. Nesta semana esteve no Peterson Institute for International Economics (PIIE) o ministro Paulo Guedes.

Não, não foi aqui que ele deu a declaração sobre o AI-5, mas nem por isso sua fala foi menos espantosa. O PIIE é um dos mais prestigiados institutos de pesquisa do mundo, vencedor há 4 anos seguidos do prêmio Prospect de Melhor Think Tank de Economia. A plateia que participa dos eventos públicos e privados que organizamos é altamente qualificada: embora ela seja composta majoritariamente por economistas, sempre há cientistas políticos, advogados, além de diversos acadêmicos de outras áreas e gestores de políticas públicas. Esperava-se que o ministro fizesse uma apresentação técnica sobre os avanços conquistados e os riscos do ambiente de turbulência política ao redor do país e dentro dele próprio para a economia brasileira.



Em vez disso, Guedes se ateve ao modo associação livre de falar, que é sua característica. A associação livre, quando bem feita, pode dar boas letras de música, boa prosa ou poesia, um monólogo divertido, até. Contudo, não suscitou interesse na plateia habituada a pensamentos bem estruturados e expostos com clareza.

Guedes foi errático, pulou de um tema para outro, divagou e falou bobagens. Ao descrever a agenda futura de reformas, foi repetitivo. Forneceu uma lista de desejos ordenada item por item, em que a alardeada reforma tributária constou como o item de número “cincuum”. Sem explicitar o termo de comparação, repetiu várias vezes que a democracia brasileira é a mais vibrante e que a segurança está melhorando com a queda na taxa de homicídios, colhendo os frutos de ações estaduais e de administrações anteriores. Claro que não houve menção às mortes associadas às ações policiais nas comunidades pobres.

Quase disse que o Brasil é o país mais preocupado com o meio ambiente no mundo — não disse isso exatamente, mas o tom esfuziante ficou evidente. Falou, falou, falou. Quando viu que a hora passava e que ele deveria dar a palavra para a plateia, falou mais um pouco. Foram poucas as perguntas e ele não respondeu a nenhuma, empenhado que estava em seu fluxo de consciência desconexo. Não restou qualquer dúvida de que o ministro gosta muito de ouvir a própria voz.

De tudo isso, o que ficou claro para a plateia?

Em uma brevíssima menção à pobreza, disse que o ideal era dar alguma condição ao pobre e deixá-lo a serviço do mercado, remontando à velhíssima premissa de que pobre é pobre porque não sabe correr atrás do que precisa para ser bem-sucedido. A pobreza para ele não é estrutural nem resultado de um intricado sistema que impede a mobilidade social pois é gerador de desigualdades de oportunidades no ponto de partida. Guedes não entende que o crescimento econômico não é uma panaceia, que não é condição suficiente para nada e talvez não seja sequer condição necessária.

Tenho escrito, com base em uma releitura de Albert O. Hirschman, que o crescimento pode ser fonte de instabilidade política a depender da maneira como afeta a dinâmica social e a mobilidade de segmentos da população. O pensamento econômico moderno abandonou as teses de Guedes sobre pobreza e crescimento há tempos. Também abandonou a ideia de Estado mínimo por ele apregoada. Guedes é inequivocamente vítima de um problema que assola o Brasil em várias esferas: o enrijecimento intelectual e a incapacidade de interagir com o que é novo e diferente. Como tantas profissões, é adepto do clubismo na troca de ideias. Fala para si e para os que querem ouvi-lo, sem capturar aqueles que operam em frequências distintas. Trata-se de um retrato da poeira que assola o Brasil atual.

Cincuum. Vai Flamengo! Levanta a taça do Brasileirão com toda a mescla de criatividade e de cores das bandeiras do Brasil e de Portugal. Aproveita para assoprar um pouquinho da poeira. O Brasil precisa.
Monica de Bolle

Pensamento do Dia


Pobreza extrema cresce pelo quinto ano consecutivo na América Latina

As coisas se inverteram em 2015. Depois de uma forte diminuição da pobreza na América Latina e no Caribe na primeira parte da década atual, o avanço deu lugar ao retrocesso. Longe de ser interrompida, essa dinâmica continua: a carência extrema voltará a crescer neste ano e completará um período de cinco anos enfileirando retrocessos em um dos principais indicadores para entender a redução do bem-estar das camadas com menos recursos da população latino-americana, para as quais a mobilidade social é muito limitada. A região fechará 2019 com um aumento de sete décimos no índice geral de pobreza – que passou de 30,1% da população para 30,8%, segundo dados publicados na quinta-feira pela Cepal, braço das Nações Unidas para o desenvolvimento no subcontinente – e de oito décimos em sua variável extrema –a mais urgente, que subiu de 10,7% para 11,5%.

“É muito preocupante e acende fortes sinais de alerta, especialmente em um contexto regional marcado por baixo crescimento, emergência climática, aumento e maior complexidade da migração e profundas transformações na demografia e no mercado de trabalho, destaca o órgão sediado em Santiago. A estatística, que vem a luz em plena onda de protestos em vários países latino-americanos – entre eles o próprio Chile – para exigir medidas sociais e um combate frontal à desigualdade, se traduz em números ainda mais chocantes quando se passa para o terreno dos números absolutos: seis milhões de pessoas engrossarão as fileiras da extrema pobreza neste ano, um grupo que crescerá até os 72 milhões. A pobreza geral aumenta na mesma quantidade: 191 milhões, em comparação com os 185 milhões do ano passado. A gravidade dos dados cresce se o período de cálculo for aumentado: se as estimativas forem cumpridas, a região fechará 2019 com 27 milhões de pessoas pobres a mais do que em 2014. Quase todas elas – 26 milhões –, em situação de carência extrema.


A mudança de tendência na evolução da pobreza e da pobreza extrema foi atribuída, em muitas áreas e quase exclusivamente, ao fim do boom das matérias-primas, no início da década que agora termina. Uma verdade apenas parcial, como enfatizam os técnicos do órgão sediado em Santiago, que introduzem uma narrativa complementar. “O fim do auge das exportações de matérias-primas e a consequente desaceleração [econômica] mudaram a tendência a partir de 2015. [Mas] o processo foi agravado pela diminuição do espaço fiscal e pelas políticas de ajuste que afetaram a cobertura e a continuidade das políticas de combate à pobreza e de inclusão social e trabalhista”, afirmam em seu último Panorama Social da América Latina. Os “importantes” avanços do início da década aconteceram, além de em um contexto econômico mais favorável, em um ambiente político “no qual a erradicação da pobreza, a redução da desigualdade, a inclusão e a extensão da proteção social ganharam um espaço inédito na agenda pública” da região.

A situação varia notavelmente entre os países. Uma parte importante do aumento da pobreza extrema nos últimos cinco anos é atribuída a dois países: o Brasil, de longe o maior da região, com uma população que já ultrapassa 210 milhões de pessoas; e a Venezuela, uma nação mergulhada em uma profunda crise política e econômica que – segundo os números do próprio regime de Nicolás Maduro – perdeu ao menos metade do seu PIB. A tendência no resto do subcontinente foi na direção de uma diminuição muito leve na porcentagem da população com renda insuficiente para cobrir as necessidades básicas, “embora [a redução] tenha acontecido em um ritmo mais lento do que entre 2008 e 2014”.

Em uma dinâmica um pouco melhor do que a traçada pelos índices de pobreza, o de Gini – o mais comum para medir a desigualdade no mundo – continuou em uma linha claramente de baixa, embora a uma taxa visivelmente menor do que na primeira parte da presente década: se entre 2002 e 2014 o fosso entre os estratos de menor e maior renda diminuiu a uma taxa anual de 1%, desde 2014 o fez a uma taxa de 0,6%. Em resumo, a desigualdade continua a se espalhar livremente na América Latina, de longe a região mais desigual do mundo e na qual o desenvolvimento do Estado de bem-estar social não está, de modo algum, entre as principais prioridades da maioria dos governos.

A Cepal recupera um de seus lemas clássicos – “crescer para igualar e igualar para crescer” – para lembrar, nas palavras de sua secretária-executiva, Alicia Bárcena, que “a superação da pobreza não exige apenas crescimento econômico: este deve ser acompanhado de políticas redistributivas e políticas fiscais ativas”. As maiores melhorias na desigualdade – medida pelo índice de Gini – aconteceram na Bolívia, El Salvador e Paraguai e, em menor medida, na Colômbia. No lado contrário, o Brasil vê como a dispersão da renda aumenta significativamente, com a pior distribuição de renda entre o 1% mais rico – que obtém quase um terço da riqueza gerada em um ano – e os 99 % restantes.

A melhor notícia do relatório, um dos que traz as piores notícias dos já publicados pela Cepal, é o progressivo fortalecimento dos estratos de renda média: se em 2002 menos de 27% dos latino-americanos foram enquadrados nesse grupo e seis anos depois eram pouco mais de 36%, em 2017 – o último ano para o qual existem dados disponíveis – esse número cresceu para 41%. Paralelamente, nesses 15 anos, os estratos mais baixos da escala passaram de 71% para 56% e os altos – com renda superior a 10 linhas de pobreza – aumentaram de 2,2% para 3% .

“Passar a fazer parte da classe média”, alerta o órgão, não implica “automaticamente” na superação do limite da pobreza monetária de cada um dos países da região. “É fundamental reconhecer que existe um segmento da população na região que, apesar de ter superado esse limiar, está em uma situação de alta vulnerabilidade e risco de voltar a essa situação”. Principalmente, conclui o relatório, se cair no desemprego, uma ameaça que cresce em tempos econômicos sombrios, como os vividos hoje pela América Latina e o Caribe.
Ignacio Fariza

Sob o coturno do capitão

Paranoia, incompetência e autoritarismo se combinam e se reforçam no recente surto de barbaridades oriundas da gestão Jair Bolsonaro
Ineptos e autoritários  -  A Folha de S. Paulo

Um espanto!

Um negro que nega o racismo, uma índia contrária aos movimentos indígenas, um diretor da Funai aliado aos ruralistas, a estrutura de Meio Ambiente descolada do Meio Ambiente, um secretário de Cultura que xinga Fernanda Montenegro, uma secretária de Audiovisual distante do cinema e da televisão. Sem falar em ministros.

O que que é isso, minha gente? O presidente Jair Bolsonaro vive criticando os antecessores pelo “excesso de ideologia” e rejeita indicações de políticos eleitos tão democraticamente quanto ele próprio, mas não faz outra coisa senão nomear pessoas que simplesmente se classificam “de direita”, mesmo que não tenham nada a ver com os cargos. Boa governança?


O que dizer de Sérgio Camargo, que foi nomeado para a Fundação Palmares, apesar de negar o racismo, atacar a “negrada militante” e reduzir a injustiça e as humilhações contra os negros a um “racismo nutella?” Até o próprio irmão desse senhor, o músico e produtor cultural Oswaldo Camargo Júnior, abriu um abaixo-assinado contra a nomeação. Para Oswaldo, Sérgio é um “capitão do mato”. Um capitão do mato na Fundação Palmares…

Assim como pinçou um negro para desqualificar os movimentos negros, Bolsonaro levou para a abertura da Assembleia-Geral da ONU, em Nova York, a youtuber índia Ysani Kalapalo, que vive entre São Paulo e sua aldeia no Xingu (MT). Isso tem nome: “Lugar de fala”. Brancos não podem atacar os movimentos, mas um negro contra negros e uma índia contra índios faz toda a diferença.

Tratada como troféu, a jovem se diz “80% de direita”, considera as queimadas “um acidente” e ataca os líderes como “índios esquerdistas que fazem baderna em Brasília”. Exultante, Bolsonaro decretou o fim do “monopólio do sr. Raoni”. Referia-se a um ícone, indicado para o Prêmio Nobel da Paz.

Famoso por chamar Fernanda Montenegro de “sórdida e mentirosa”, o diretor de teatro Roberto Alvim foi nomeado secretário de Cultura e não apenas define a política cultural como nomeia direitistas por serem direitistas. Exemplo: Katiane Gouveia, da Cúpula Conservadora das Américas, manda na estratégica área de audiovisual.

No prestigiado ICMBio, o PM Homero de Giorge Cerqueira. Na resistente Funai, o delegado da PF Marcelo Augusto Xavier, com apoio da bancada ruralista – amiga de Bolsonaro, inimiga das comunidades indígenas. Ele substituiu o general Franklimberg Freitas, que é indígena.

O embaixador júnior Ernesto Araújo virou chanceler depois de sabatinado pelo filho do presidente e jurar que é a favor de Deus, da família e de Trump e contra o “globalismo” e a China (que, segundo ele, quer destruir os valores cristãos do Ocidente).

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi escolhido por conhecer pouco o setor, não saber nada de Amazônia e se comprometer a entupir o ministério de militares da reserva, escanteando ambientalistas atuando há décadas em mares, rios, florestas e reservas. Ruralistas e parte do empresariado estão felizes. Não se pode dizer o mesmo de especialistas e da comunidade internacional.

Damares Alves deu um salto de uma obscura assessoria do Congresso para um ministério que reúne Direitos Humanos, família, mulher e sei lá mais o quê. Assim, roda o mundo com visões muito peculiares, não raro estranhas, sobre família, gênero, educação infantil.

Todos eles têm a mesma credencial poderosa: são “de direita”. Na era Lula e PT, “nós contra eles”, “cumpanheirismo”, ideologia e aparelhamento do Estado, que deu no que deu: desmandos, incompetência, corrupção. Saiu o aparelhamento de esquerda, entrou o de direita. A esquerda pela esquerda, a direita pela direita. Pobre Brasil.

Constatação desalentadora

À medida que se aproxima o fim do primeiro ano do governo Bolsonaro, cresce a apreensão com a desproporção entre a enormidade do desafio de repor o país na rota da prosperidade e a estreiteza do projeto político que vem sendo acalentado pelo Planalto.

Ao decidir abandonar o PSL e fundar novo partido em que seus correligionários mais fiéis possam estar congregados e claramente apartados, o presidente deflagrou um rearranjo do quadro político-partidário brasileiro que, em tese, poderia até deixá-lo um pouco menos caótico.

Se Bolsonaro conseguisse, de fato, criar o Aliança pelo Brasil (APB) e, aos poucos, nele congregar bolsonaristas incontestes hoje abrigados em várias outras agremiações — do PSL ao DEM, do PP ao Novo —, a distribuição de forças políticas entre partidos de maior relevância do país ficaria bem mais clara.

Tal separação ajudaria inclusive a dirimir as infindáveis controvérsias acerca das reais proporções do que vem sendo rotulado de bolsonarismo de raiz. E da importância que poderá vir a ter na evolução do quadro político brasileiro. Sobretudo quando se leva em conta que as linhas divisórias que distinguem a nova agremiação não deixam margem a dúvidas sobre a sua caracterização.


O que é preocupante é a estreiteza dessa caracterização, que parece extraída das piores páginas do personalismo político latino-americano. Basta ter em mente a sem-cerimônia com que a cúpula do novo partido foi ocupada por membros da família Bolsonaro. E, também, os termos inequívocos em que está vazado o pífio manifesto de criação do APB: “Muito mais que um partido, é o sonho e a inspiração de pessoas leais ao presidente Jair Bolsonaro”. Salta aos olhos que a aliança que se antevê não é propriamente pelo Brasil, mas por Bolsonaro. E sua prole, claro.

Tanto no manifesto como na declaração de princípios do partido, dada a público na primeira convenção nacional do Aliança pelo Brasil, realizada na semana passada, em Brasília, não há qualquer menção à complexa agenda de reformas que o país terá de enfrentar nos próximos anos.

Tudo indica que não será nada fácil conseguir que o novo partido obtenha registro ainda a tempo de disputar as eleições municipais de outubro. As exigências burocráticas impostas pela legislação em vigor requerem o apoio formal de mais de 490 mil eleitores, distribuídos por pelo menos nove estados, com assinaturas submetidas, uma a uma, ao crivo de cartórios eleitorais. Estima-se que o APB terá que conseguir finalizar seu processo de registro em pouco mais de 120 dias, para estar apto a disputar as eleições municipais.

Entre as várias possibilidades de abreviação do processo, já foram aventadas a mobilização das igrejas evangélicas na coleta de assinaturas, o uso de assinaturas eletrônicas, afinal descartado, por excessivamente dispendioso, e o recurso a técnicas de reconhecimento facial, ainda pendente de autorização pela Justiça Eleitoral, que, de resto, não tem escondido sua resistência à criação de novos partidos.

Há quem diga que o presidente já está mais do que convencido de que será inviável conseguir que o novo partido seja registrado em prazo tão exíguo. E que pretende fazer bom uso dessa inviabilidade, para se manter formalmente ao largo das eleições municipais de 2020 e evitar que o desfecho do pleito venha a ser visto como avaliação do seu governo.

Pode até ser. Mas, para efeito do argumento que aqui se desenvolve, pouco importa se o presidente conseguirá ou não registrar sua nova agremiação política ainda a tempo de disputar as eleições municipais do ano que vem. Ou o que fará se, afinal, o registro não for obtido a tempo. O que interessa é a estreiteza de visão e o personalismo tacanho que claramente permeiam o projeto político explicitado pelo Planalto.

Como poderá um presidente com um projeto tão estreito incutir na opinião pública e no Congresso o senso de urgência requerido para fazer avançar o ambicioso e crucial programa de reformas que o país tem pela frente?
Rogério Furquim Werneck

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

'Racismo ganha terreno no Brasil'

“Reconhecemos que a escravidão e o tráfico escravo, incluindo o tráfico de escravos transatlântico, foram tragédias terríveis na história da humanidade, não apenas por sua barbárie abominável, mas também em termos de sua magnitude, natureza de organização e, especialmente, pela negação da essência das vítimas; ainda reconhecemos que a escravidão e o tráfico escravo são crimes contra a humanidade e assim devem sempre ser considerados, especialmente o tráfico de escravos transatlântico, estando entre as maiores manifestações e fontes de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata; e que os Africanos e afrodescendentes, Asiáticos e povos de origem asiática, bem como os povos indígenas foram e continuam a ser vítimas destes atos e de suas consequências”.

Inspirados na Declaração de Durban, transcrita acima, e adotada como marco referencial no mundo na luta contra o racismo, tendo sido publicada quando da realização da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em 2001, na África do Sul, nós que tivemos a honra de presidir a Fundação Cultural Palmares, em períodos os mais distintos, consideramos que a continuidade da luta pela promoção da igualdade racial no Brasil é um imperativo de toda e qualquer pessoa ou instituição que acredite na democracia, nos direitos humanos, na cidadania e na liberdade.


A Fundação Cultural Palmares foi criada, em 1988, ano do Centenário da Abolição da Escravatura com este propósito: “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”, visto que as sequelas oriundas do período escravocrata em nosso país, deixou um legado de racismo, exclusão e discriminações que persistem até os dias atuais, vitimando milhões de pessoas, em particular a juventude negra que tem sido alvo de um verdadeiro genocídio, reconhecido até mesmo pela Nações Unidas. 

O momento atual que estamos vivendo é preocupante e requer coragem, ousadia e determinação na defesa do processo civilizatório, tanto no Brasil como em grande parte do mundo. Por isto mesmo, devemos recusar com toda a veemência quaisquer ideias ou propostas que ponham em risco conquistas duramente alcançadas nos últimos anos no campo da promoção da igualdade e dos direitos humanos, em particular no que diz respeito à Educação (cotas no ensino superior), à terra (reconhecimento dos quilombos), à cultura (reconhecimento das manifestações culturais de origem negra enquanto patrimônio cultural brasileiro e mundial) e o direito à liberdade religiosa. 

A Fundação Palmares é uma instituição do Estado brasileiro e não um biombo para servir a interesses contrários aos objetivos para os quais ela foi criada. Neste sentido, expressamos nossa preocupação com o fato de que, além do racismo estar ganhando terreno no Brasil, as formas e manifestações contemporâneas do racismo, da intolerância e do fascismo, estão se empenhando para recuperar o reconhecimento político, moral e, até mesmo, legal das mais variadas maneiras, inclusive, por meio de plataformas de partidos políticos e organizações que tem disseminado o ódio, a violência e a negação dos direitos mais elementares do nosso povo.

Por fim, ao tempo em que nos manifestamos de forma contundente contra a tentativa de criminalização dos movimentos sociais, dentre eles o movimento negro brasileiro, a destruição das instituições tão duramente conquistadas como a Fundação Cultural Palmares e as Políticas Públicas de Cultura decorrentes de suas iniciativas, reafirmamos o nosso compromisso com a democracia e conclamamos a todos os democratas, progressistas, anti-racistas e a comunidade negra brasileira a se unirem na defesa do nosso bem maior que o é o Estado Democrático de Direito e claro, a defesa da Promoção da Igualdade Racial em nosso país.

Brasília, 28 de novembro de 2019
Carlos Moura, Dulce Maria Pereira, Zulu Araújo, Eloi Ferreira, Hilton Cobra, Erivaldo da Silva, ex-presidentes da Fundação Palmares

Paraguai ensina uma lição ao expulsar senador extremista

Quando senadores paraguaios abriram o primeiro processo contra Payo Cubas, em abril, um parlamentar fez um alerta. Ele disse que o colega tinha as características do fascismo, do autoritarismo e da intolerância. Acrescentou que, se nenhuma medida fosse tomada, aquele “monstrinho” cresceria.

Cubas foi suspenso do Senado por dois meses. Ele recebeu a punição por ter xingado outros legisladores e por ter atirado copos d’água no chefe da Polícia Nacional e no ministro do Interior durante uma reunião.


Depois das férias forçadas, sem receber salário, a criatura voltou ainda mais abominável. Nesta quinta, ele foi cassado por ter defendido o assassinato de “pelo menos 100 mil brasileiros” que vivem no país e por ter dado um tapa num policial.

Os paraguaios ensinam uma lição. Cubas é o típico agitador que explora o marketing do ódio como ferramenta política. Os senadores preferiram expulsá-lo do Parlamento a permitir que abusasse do cargo para chafurdar nos próprios desatinos.

No Brasil, políticos boquirrotos fazem fama até chegar ao topo do poder. Deputados com discursos racistas ficam protegidos pelo recurso à imunidade parlamentar.

O caso mostra que não se deve aplicar leniência a agentes públicos que, a distância, podem parecer meros polemistas. O senador já havia tentado chamar a atenção quando ameaçou jogar uma banana num colega ou quando atirou água de uma garrafa noutro. Agora lançou uma propaganda nitidamente extremista.

Cubas é membro do Movimento Cruzada Nacional. O repórter Fábio Zanini, que contou a história da cassação, destaca que uma das bandeiras do partido é o combate à presença estrangeira no Paraguai. Nessa onda, Cubas disse que brasileiros deveriam ser mandados ao “paredão”.

O senador cassado ainda tentou surfar no episódio. Escreveu que deixava o “Parlamento sombrio” rumo ao “país que todos merecemos”. Alguns paraguaios lhe deram apoio. Caberá aos eleitores evitar o crescimento de outros monstrinhos.

Flerte de morte

O que gera mais preocupação pra mim é o descaso do Governo com as questões sociais. Não tem nenhuma preocupação com o povo desempregado, com o povo que está morando nas ruas, com o desmatamento da Amazônia. Não tem nenhuma preocupação com o meio ambiente ou com o petróleo que está chegando nas praias do Nordeste. Pra ele, não existe isso. Ele é um cidadão vocacionado a não gostar das coisas que a humanidade gosta. Por exemplo, a humanidade gosta de paz. Ele quer guerra. A sociedade brasileira precisa de livros e de carteira de trabalho, ele quer dar arma para o povo. O Brasil é um país que não tem contencioso com nenhum país do mundo. Ele quer fazer contencioso e apenas se submetendo da forma mais vergonhosa possível aos americanos, coisa que o Brasil jamais fez. Eu acho que ele não se preparou para exercer o cargo de presidente
Lula

A penúltima de Jair Bolsonaro: um negro racista

Sob Jair Bolsonaro, há um adorador da ditadura na Presidência, um antiambientalista no Ministério do Meio Ambiente, um antidiplomata no Itamaraty, um deseducado na pasta da Educação e um inimigo dos artistas na Secretaria de Cultura. Quando se imaginava que o governo já havia atingido o ápice do contrassenso, sobreveio o escárnio: um negro racista no comando de uma entidade criada para zelar pelos interesses da comunidade afrodescendente.

Chama-se Sérgio Camargo. Jornalista, foi acomodado na presidência da Fundação Palmares, que tem entre os seus objetivos: promover e apoiar a integração cultural, social, econômica e política dos afrodescendentes. Os pensamentos vadios do personagem estão disponíveis na vitrine das redes sociais.

Sérgio Camargo avalia que "não há salvação para o movimento negro. Precisa ser extinto! Fortalecê-lo é fortalecer a esquerda". Espanto! Para ele, "a escravidão foi terrível, mas benéfica para os descendentes". Pasmo! Sustenta que "os negros do Brasil vivem melhor que os negros da África". Estupefação!



Uma das metas do novo presidente da Fundação Palmares é abolir o Dia da Consciência Negra, que "celebra a escravização de mentes negras pela esquerda". Procurado, absteve-se de esmiuçar sua antiplataforma numa entrevista. Mas a Secretaria da Cultura, que abriga em seu organograma a Fundação Palmares, parece dar-lhe carta branca.

Em nota, a secretaria esclareceu que Sérgio Camargo defende que o negro não precisa ser vítima. Tampouco precisa ser de esquerda. Trabalha para alcançar a libertação da mentalidade que escraviza ideologicamente os negros. Uma de suas prioridades é desaparelhar a Fundação Palmares.

O Hino à República, aquele que pede à liberdade que "abra as asas sobre nós", diz a certa altura: "Nós nem cremos que escravos outrora / Tenha havido em tão nobre país..." Alguns versos adiante, proclama: "Somos todos iguais". O hino foi escrito pelo poeta pernambucano Medeiros e Albuquerque em 1890.

Dois anos antes, ainda havia escravos no Brasil. Decorridos 129 anos, eles continuam existindo. Sergio Camargo, por exemplo, está acorrentado à mesma mentalidade que faz do governo Bolsonaro não um fenômeno conservador, mas um flagelo arcaico. Instado a comentar a nomeação de Sérgio Camargo, o presidente da República economizou palavras: "Não conheço pessoalmente".

É uma pena que Jair Bolsonaro não conheça Sérgio Camargo. Vivo, o grego Sócrates, de passagem por estas anacrônicas ágoras tropicais, repetiria para o capitão um de seus célebres ensinamentos: "Conhece-te a ti mesmo". Um encontro de Bolsonaro com o presidente da Fundação Palmares será como uma espiada no espelho.

Se prezasse seu ofício de jornalista, Sérgio Camargo talvez percebesse que o melhor engajamento político é o de retratar a estupidez humana, usando a habilidade verbal para produzir um testemunho contra. Mas ele parece ter optado por denunciar a estupidez praticando-a.

Pensamento do Dia


Quando renunciará Guedes?

Caros brasileiros,

Quando um político tem que entregar o seu cargo? Quando cometeu um delito e foi condenado? Quando faltou decoro para o cargo? Quando se envolveu num escândalo? Ou simplesmente quando perdeu o apoio político?

No Japão, por exemplo, o ministro encarregado dos Jogos Olímpicos de 2020 em Tóquio, Yoshitaka Sakurada, teve que sair por falta de tato e decoro. Em fevereiro, ele havia dito que “estava muito decepcionado” com o diagnóstico de leucemia da nadadora Rikako Ikee. A ausência da potencial vencedora de uma medalha de ouro, disse ele, reduziria a euforia pelos Jogos.

Alguns meses depois, Sakurada pisou outra vez na bola e ofendeu a população de Fukushima. A região, que foi devastada por um terremoto e a catástrofe nuclear em 2011, continua abandonada. Mesmo assim, Sakurada afirmou que "a política é mais importante que a recuperação da região".

Na Inglaterra, quem renunciou este ano foi a primeira-ministra Theresa May, que não conseguiu o apoio necessário no Parlamento para seu acordo costurado com Bruxelas sobre o Brexit. Na Franca, o ministro do Meio Ambiente François de Rugy teve que renunciar em julho, acusado de desperdício de dinheiro público.

Na Alemanha, durante o governo da chanceler federal Angela Merkel, dois ministros tiveram que deixar os seus cargos, pois foi descoberto que parte das suas respectivas teses de doutorado eram plagiadas. Primeiro foi o ministro da Defesa, Karl-Theodor zu Guttenberg, em 2011, e depois a ministra de Educação e Ciência, Annette Schavan, em 2013.


E no Brasil? Em poucos meses do governo Bolsonaro, vários ministros já entraram na dança das cadeiras. Uma das saídas mais destacadas foi a do general Santos Cruz, da Secretaria de Governo. A baixa ocorreu após críticas do filósofo Olavo de Carvalho à ala militar do governo.

Saíram também Joaquim Levy, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e Ricardo Vélez, ministro da Educação a quem o próprio Bolsonaro atestou "falta de expertise".

O próximo na fila deveria ser o ministro da Economia Paulo Guedes. Um membro do gabinete que publicamente desmerece instituições democráticas, a meu ver, não poderia mais fazer parte do governo da quinta maior democracia do mundo.

Até agora, as críticas a respeito da declaração de Guedes sobre uma possível edição de um novo AI-5 no país foram contundentes. Mas, apesar do repúdio das instituições democráticas no Brasil, o ministro de Economia não parece estar ciente da gravidade política de suas palavras.

Não dá para relativizar: a meu ver, o que Paulo Guedes fez foi ameaçar com a volta de uma ditadura militar. Com isso, ameaçou acabar com a liberdade de expressão, a volta da tortura, e desmereceu instituições democráticas como o Congresso Nacional e uma Justiça independente. Como se não bastasse, ele ainda fez isso sem nenhuma razão concreta, simplesmente por uma raiva irracional de uma esquerda política supostamente agitada.

É como se um ministro alemão ameaçasse com a volta dos nacional-socialistas caso houvesse manifestações de grupos de esquerda ou de ativistas que alertam para a mudança climática. Provavelmente, nem o partido de extrema direita AfD (Alternativa para a Alemanha) teria coragem de reivindicar isso publicamente.

A declaração de Paulo Guedes sobre o AI-5 é absurda e intolerável. As palavras mostram falta de consciência democrática e de respeito para com os próprios cidadãos brasileiros. Elas espantam até os próprios adeptos da agenda neoliberal perseguida pelo ministro.

Paulo Guedes tem que renunciar. Na Alemanha, um ministro que deseja a volta da ditadura nazista teria que sair da mesa do gabinete no mesmo instante. As fantasias ditatoriais desse ministro tem que ser banidas pelo governo. Tomara que a "possível radicalização dos protestos de rua no Brasil", que ele tanto teme, acelere a renúncia dele.
Astrid Prange de Oliveira

A opressão de hoje

Antigamente o que oprimia o homem era a palavra calvário; hoje é salário
Carolina Maria de Jesus

Incêndios na Amazônia derretem geleiras andinas

Os incêndios que destroem a floresta e a savana amazônicas têm outro efeito bem longe dali: o derretimento das geleiras andinas. Essa é a conclusão de um estudo que mostra como a fuligem das queimadas viaja pelo ar até a cordilheira e, ao se depositar sobre o gelo, aumenta a radiação solar que retém ― acelerando sua fusão. O foco do trabalho foi um pequeno glaciar, mas seus resultados poderiam ser reproduzidos nas centenas de geleiras dos Andes, já castigadas pela mudança climática.

Em 23 de agosto de 2010, houve 148.946 incêndios na região amazônica. Aquele inverno foi o pior do século em relação aos fogos. Inclusive pior que o deste ano. A fumaça, repleta de fuligem e carvão preto da combustão, nublou os Andes, como mostra o arquivo de imagens de satélite da NASA. Dias depois da onda de fogos daquele ano, houve um pico de descarga de água procedente de várias geleiras. Agora, cientistas brasileiros e franceses ligaram os pontos.

Num trabalho publicado na revista Scientific Reports, os pesquisadores reuniram os dados existentes sobre os incêndios registrados neste século na região amazônica. A imensa maioria ocorreu entre agosto e outubro, quando acontece a transição entre as estações seca a chuvosa. Nesses meses, a escassez de precipitações impede que a água arraste a fuligem das queimadas. Estima-se que a queima da terra na América do Sul produza cerca de 800.000 toneladas de fuligem por ano.
A fumaça dos incêndios do inverno de 2010 cobria
boa parte da encosta oriental dos Andes.MODIS/NASA
Para complicar as coisas, nos meses da temporada de incêndios os ventos dominantes a região, até então do oeste, deslocam-se para leste/noroeste em direção aos cumes andinos. Para saber aonde a coluna de fumaça se dirige, os cientistas também analisaram mais de 2.000 trajetórias de fumaça nesses meses entre 2000 e 2016. Com os dados, criaram um modelo de deposição de partículas de carbono preto sobre o gelo que indicou como essas impurezas reduziam seu efeito albedo, ou seja, sua capacidade de refletir a radiação solar.

Os pesquisadores aplicaram o modelo a Zongo, uma pequena geleira da cordilheira Real, porção boliviana dos Andes. Ali, os glaciologistas franceses (alguns deles coautores do estudo) têm uma base da qual saíram os dados sobre as partículas de fuligem acumuladas no gelo e a descarga anual em forma de água perdida pela geleira. Para cada metro quadrado de gelo em 2010, indica a pesquisa, havia em sua camada mais superficial 1,17 miligrama de carbono preto. Em termos de concentração, em setembro daquele ano havia 73,4 partes de fuligem por um bilhão de partes de matéria (ppb). A cifra caiu para 29,2 ppb em outubro.

Os pesquisadores aplicaram o modelo a Zongo, uma pequena geleira da cordilheira Real, porção boliviana dos Andes. Ali, os glaciologistas franceses (alguns deles coautores do estudo) têm uma base da qual saíram os dados sobre as partículas de fuligem acumuladas no gelo e a descarga anual em forma de água perdida pela geleira. Para cada metro quadrado de gelo em 2010, indica a pesquisa, havia em sua camada mais superficial 1,17 miligrama de carbono preto. Em termos de concentração, em setembro daquele ano havia 73,4 partes de fuligem por um bilhão de partes de matéria (ppb). A cifra caiu para 29,2 ppb em outubro.

Com essas cifras, os autores do estudo estimam que, sozinha, a fuligem pode ter reduzido o efeito albedo em até 7,2%. Se a isso for somada a poluição procedente de outras fontes, incluindo pó e poluição urbana, a porcentagem de redução poderia chegar a 20,2%. A consequência é um maior degelo: “Estimamos que entre 3% e 4% da fusão da geleira se deva aos incêndios”, afirma por e-mail o pesquisador Newton de Magalhães Neto, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Embora o resultado só possa ser aplicado a essa geleira, os autores acreditam que os incêndios também agravariam o degelo de outros glaciares andinos.

“A neve pode refletir até 85% da radiação solar, ao passo que o efeito albedo do gelo é menor: entre 30% e 40% da radiação”, recorda Francisco Navarro, físico da Universidade Politécnica de Madri e presidente da Sociedade Glaciológica Internacional. Entre os elementos que mais podem reduzir o albedo, estão a poluição oriunda das atividades humanas e o pó dos desertos. “Mas a redução máxima é gerada pelas erupções vulcânicas, em especial se o vulcão tem uma geleira associada. Então o albedo pode diminuir em até 50%”, afirma Navarro.

Navarro diz que a maioria das geleiras andinas, como Zongo, é pequena e de montanhas muito altas. “Portanto, o efeito será local [afetando as reservas de água para as comunidades localizadas ao pé da encosta], mas não global”, afirma. Além disso, como acontece com as erupções, os incêndios são mais ou menos pontuais. “Para as geleiras, o global é o aquecimento da atmosfera com a mudança climática, e o pontual são os vulcões e os incêndios”, completa.
Miguel Ángel Criado

Livros, gatos, capivaras

Como já contei aqui, faço há alguns meses um podcast com a Isabella Saes, que conheci nos meus tempos de rádio (OK, foram apenas as quintas-feiras de pouco menos de um ano, mas dá gosto dizer isso, “meus tempos de rádio”); eu era convidada semanal num programa que a Isabella apresentava diariamente, e gostamos tanto do papo que, quando ela precisou se afastar da emissora, decidimos continuar a conversa por conta própria.

Aos poucos, o “Aquelas duas” começa a tomar corpo. Anteontem, por exemplo, fomos conversar com professores da rede pública de ensino no Encontro do Educador, uma espécie de extensão da Ler— Salão Carioca do Livro que, na semana passada, levou 185 mil pessoas à Biblioteca Parque e ao Campo de Santana.

O espaço da Biblioteca Parque não podia ser mais bonito. É ao mesmo tempo amplo e acolhedor, e foi uma alegria vê-lo funcionando tão bem. Havia menos gente do que imaginávamos —muitos professores que viriam do interior do estado ficaram retidos por causa de chuvas torrenciais —, mas ainda assim tivemos uma ótima plateia, atenta e interessada.

O salão da Ler é uma espécie de pequena Bienal, uma miniFlip em que autores e leitores se reúnem festejando livros, ideias e a arte de contar histórias. Por isso o nosso podcast estava lá: porque é disso que ele é feito, afinal. Uma palavra que puxa a outra, uma conversa, muitos ouvidos numa roda em que cada ponto está num lugar diferente.

No primeiro andar da Biblioteca Parque há sofás vermelhos para acolher leitores. Num deles, um siamês dono da casa lambia caprichosamente as partes. Lindo, bem cuidado, pelo visto aceito tanto por funcionários quanto por frequentadores. Não há nada mais civilizado do que um gato numa biblioteca, e fiquei encantada ao vê-lo lá: uma cidade em que gatos e livros se misturam ainda tem salvação.

Uma das professoras me perguntou o que estou lendo e o que recomendaria para os seus alunos.

Estou lendo “The buried”, de Peter Hessler, que escolheu morar no Cairo pouco antes da Primavera Árabe, e que conta como é a vida num lugar em geral caótico num momento de caos excepcional. Hessler, que eu já conhecia de “River Town”, memórias do tempo em que era professor de inglês numa pequena cidade chinesa, descobre personagens fascinantes, encontra paralelos entre a história contemporânea e o tempo dos faraós, e traça o retrato de um país inábil que, por vezes, lembra desconfortavelmente o Brasil.

Para os alunos da professora, supondo que já seriam jovens, recomendei “Enfim, capivaras”, de Luisa Geisler. Comecei a leitura atraída pelo título e pela linda capa de Deco Farkas, mas a história me ganhou: cinco adolescentes passam a noite movidos a refrigerantes, álcool e comida malsã à caça de uma capivara que pode ou não ser real, numa cidade do interior que pouco tem a lhes oferecer. É uma delícia.

Há duas semanas, o livro foi censurado numa feira de literatura numa cidade do interior gaúcho por “linguajar inadequado”. Não sei como fala a garotada de Nova Hartz, mas as personagens de “Enfim, capivaras” falam exatamente como adolescentes.

Pobres desses meninos e meninas criados num ambiente tão obscurantista.

Pobres de nós.
Cora Rónai

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Pensamento do Dia


O AI-5 já se instala na Amazônia (e nas periferias urbanas)

O bolsonarismo é competente ao usar a estratégia de controlar o noticiário e manter a sociedade e a imprensa só na reprodução e na reação. Quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, evoca o AI-5, e antes dele o zerotrês Eduardo Bolsonaro (PSL), estão latindo num lugar enquanto a matilha já está mordendo em outro. É na Amazônia e nas periferias urbanas que o autoritarismo já se instalou. Como denominar um país em que a polícia do estado do Rio de Janeiro já matou até outubro de 2019 mais do que em qualquer ano das últimas duas décadas? Se fosse enfileirar as 1.546 vítimas da polícia haveria mais de 2 quilômetros de cadáveres. Esta violência que mata os negros e pobres e faz com que as crianças, também elas pobres e negras, temam o som dos helicópteros porque seis delas já tombaram por bala “perdida” somente neste ano no Rio está conectada com a violência que faz vítimas na floresta amazônica. Os amazônicos e os periféricos não se conhecem, mas têm o mesmo rosto de quem morre no Brasil: negros e indígenas. É contra estes povos, estes rostos, que a violência está recrudescendo. As Organizações Não Governamentais (ONGs), foco da ofensiva do bolsonarismo, estão sendo atacadas porque defendem estes povos, estes rostos.


Desde o início de novembro há sinais de que o projeto autoritário está aumentando de velocidade e de intensidade. O mês abriu com a morte de um dos guardiões da floresta, Paulo Paulino Guajajara. E está terminando com criminalização de uma das organizações mais respeitadas, premiadas e amadas da Amazônia, o Saúde e Alegria, que atua na bacia do Tapajós há décadas. Na terça-feira, 26 de novembro, a ONG teve seus documentos e computadores apreendidos pela polícia civil, em Santarém. No mesmo dia, quatro brigadistas voluntários da Brigada de Alter do Chão, criada para combater os focos de incêndio na floresta em parceria com o Corpo de Bombeiros, foram presos pela suspeita de que teriam ateado o fogo que queimou uma área equivalente a 1.600 campos de futebol em setembro, na região de Santarém. Ser preso, mesmo que a prisão se mostre abusiva, já cumpre o objetivo de quem quer desmoralizar os agentes que combatem a destruição da floresta. O estrago já está feito, especialmente sobre uma população assustada e desinformada.

Em Washington, Guedes evoca o AI-5, autoridades e sociedade reagem, redes sociais se enfogueiram. É preciso avisar que, na linha de frente, o AI-5 já está e os mais frágeis estão resistindo quase sozinhos. E perdendo. O principal projeto do bolsonarismo é a abertura da Amazônia. A disputa desigual está sendo travada na floresta e nas cidades que beiram a floresta. Quem vive e atua na Amazônia já entendeu que pode ser preso sem motivo porque o Estado é arbitrário e as provas são forjadas. É isso o que os acontecimentos em Santarém estão mostrando. AS ONGs são alvo porque, em um país precário como o Brasil, onde o Governo decidiu não cumprir a lei e as instituições fraquejam, são elas que estão fazendo uma barreira contra a destruição da floresta e dos corpos dos povos da floresta. Ambientalistas brancos começaram a ser presos. Os mortos continuam tendo o mesmo rosto: negros e indígenas.

Enquanto tenta mudar a Constituição para abrir as áreas protegidas da floresta amazônica, o bolsonarismo executa o projeto na prática ao desproteger as áreas protegidas, enfraquecendo os órgãos de fiscalização e fortalecendo os destruidores da floresta. Na Amazônia basta deixar de fazer o pouco que se fazia e avisar aos amigos que podem ficar à vontade porque não responderão pelo seus atos. É o que faz o bolsonarismo enquanto a PM de alguns estados está sendo preparada para virar uma milícia que toma suas próprias decisões.

O resultado é tanto a explosão do desmatamento, que aumentou 30% entre agosto de 2018 e julho de 2019, quanto a ameaça e/ou assassinato dos pequenos agricultores familiares e defensores da floresta: indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Quem vive na Amazônia percebe claramente que a ofensiva aumentou desde novembro. As ONGs estão entre os principais alvos a serem eliminados. Em várias regiões do Pará, quem está clamando pela “CPI das ONGs” são justamente notórios grileiros e madeireiros e seus representantes. Enrolam-se em bandeiras do Brasil e evocam o nacionalismo, mas o que querem é fincar um papel com o seu nome ― ou no nome de um de seus laranjas ― num pedaço da floresta amazônica roubada da União ou dos estados.

No Pará, estado que lidera o desmatamento no Brasil, vale a pena observar uma sequência de acontecimentos ocorridos no espaço de uma semana. De 17 a 19 de novembro, os movimentos sociais da região do Médio Xingu organizaram em Altamira um encontro chamado Amazônia Centro do Mundo. A cena da mesa de abertura do encontro, na Universidade Federal do Pará, é uma alegoria do que acontece no cotidiano da floresta. Um grupo de grileiros e fazendeiros se posicionou propositalmente no lado direito da plateia ― “sentamos à direita, como nos convém”. Há dias eles vinham sendo incitados por um homem que se apresenta como antropólogo e trabalha para a banda podre do agronegócio. Desde o início, o grupo gritava a cada vez que um dos convidados a compor a mesa falava, na tentativa de impedir que o evento se realizasse. Era uma provocação. Se alguém reagisse, o articulador manipularia os acontecimentos e diria que ele tinha sigo o agredido. Ele já usou esse truque em outros momentos na região amazônica. O maior alvo deste grupo era Raoni, o Kayapó que se tornou a principal liderança indígena do Brasil, com grande repercussão no exterior, indicado para o Nobel da Paz.

Os guerreiros Kayapó que acompanhavam Raoni entraram em sua bela formação ritual, como costumam fazer. Os Kayapó são orgulhosos e impressionantes em suas aparições públicas. Criaram uma barreira humana para permitir que os organizadores do encontro pudessem falar. E então foi possível ouvir as vozes dos intelectuais da floresta, dos intelectuais da academia, das lideranças dos movimentos sociais. Durante a maior parte da manhã, o pequeno grupo de fazendeiros e grileiros (há que se diferenciar uns dos outros) tentou impedir a voz dos povos da floresta e dos movimentos sociais. Sempre provocando, tentando abafar a voz dos convidados da mesa de abertura. Um pequeno mas revelador sinal de que limites estão sendo superados se revelou justamente no fato de que nem o bispo do Xingu, Dom João Muniz, conseguiu falar sem ser interrompido por provocações. Os organizadores já tinham registrado as tentativas de intimidação ao longo dos dias anteriores, feitas por redes sociais e por email. Presenças internacionais importantes, como a princesa da Bélgica Maria Esmeralda, ativista e embaixadora da WWF, deixaram de comparecer ao evento por temer a violência.

Submerso no noticiário produzido por Brasília, este que gravita em torno das declarações de Bolsonaro e de Lula, parte do Brasil não percebeu a grandeza do que ocorreu em Altamira neste encontro. “Amazônia Centro do Mundo” reuniu lideranças da floresta, pensadores e cientistas da academia, representantes de movimentos sociais e jovens ativistas climáticos do Brasil e da Europa, dos movimentos Engajamundo, Extinction Rebellion e Fridays For Future, este último inspirado pela adolescente sueca Greta Thunberg.

Uma parcela dos participantes vinha de outra jornada, com o mesmo nome, ocorrida uma semana antes na Terra do Meio, do qual fui uma das organizadoras. Do encontro no coração da floresta haviam participado o grande xamã yanomami, Davi Kopenawa, que hoje testemunha o território do seu povo ser mais uma vez tomado por garimpeiros, e a ativista russa Nadya Tolokonnikova, do movimento Pussy Riot, que ficou presa na Sibéria por quase dois anos depois de enfrentar o déspota Vladimir Putin. Estavam ali para se conhecerem e criarem uma aliança pela floresta. Era uma reunião de gente que não quer roubar terra pública para especular ou tirar minério. Só quer que a floresta fique em pé para que ela siga transpirando e salvando o planeta.

Em Altamira, o encontro foi organizado por dezenas de movimentos da cidade e da floresta. Depois de rachar na construção de Belo Monte, as organizações sociais se uniram novamente para lutar contra a destruição da Amazônia. Desta vez, mais preparados para identificar os truques daqueles que buscam desuni-los para poder consolidar seus projetos de destruição. Belo Monte e seu conjunto de violações foram uma pós-graduação completa sobre como agem os “gerenciadores de crise” para neutralizar a resistência, manipular as informações e infiltrar a discórdia. Este ainda é um aprendizado em curso, já que há sempre os que demoram mais a aprender. E há também os que nunca aprendem.

O encontro mostrou algo que parecia muito difícil, senão impossível, no Brasil atual: a organização de uma resistência ao autoritarismo em curso. Não apenas como uma reação aos ataques, mas como criação de futuro, como proposta de uma relação diferente com a floresta e com o próprio modo de viver para muito além da floresta. Movimentos sociais urbanos, agricultores familiares e cientistas ficaram lado a lado com indígenas, ribeirinhos e quilombolas, uma aliança que seria difícil no passado recente pela própria história de cada um destes povos. O espaço não poderia ser mais adequado, já que a universidade pública tem sido um dos principais alvos do bolsonarismo. A aliança entre os saberes da academia e da floresta foi consumada também na concretude do local escolhido.

Um dos momentos mais emocionantes aconteceu quando um agricultor da Volta Grande do Xingu, ecossistema que está sendo secado e destruído pela usina de Belo Monte e ameaçado também pela instalação da mineradora canadense Belo Sun, pediu, aos prantos, perdão aos indígenas por um dia ter ocupado terras que lhes pertenciam. Ao terminar seu discurso, um Kayapó colocou sua mão sobre a dele e, imediatamente, várias pessoas foram somando mãos. A cena tornou-se uma performance artística, não planejada, da aliança que ali estava sendo consumada.

Antes de os fazendeiros e grileiros se retirarem, vencidos em sua tentativa de criar tumulto e silenciar as vozes, ocorreu o momento mais tenso do encontro. Surgiu também ali uma liderança que a sociedade brasileira ― a que defende a vida, a democracia e a justiça ― precisa se organizar para amparar. Seu nome, para recordar e proteger: Juma Xipaya.

Estudante de medicina da Universidade Federal do Pará, em Altamira, Juma pertence a um povo que chegou a ser considerado extinto e precisou provar que tinha sobrevivido à tentativa de extermínio. Ela fez um discurso contundente contra os que tentavam impedir a realização do evento. Um dos notórios grileiros presentes se descontrolou e colocou o dedo no seu peito. Perto dele, duas missionárias que foram companheiras de Dorothy Stang, assassinada em 2005 por um grupo que ficou conhecido como “consórcio da morte”, rezavam. A jovem indígena não se intimidou:
“Meu nome é Juma Xipaya. Eu fico pensando o que vocês pensam quando muitas vezes se contrapõem aos nossos discursos, às nossas lutas. Parece que somos inimigos de vocês. Só quero lembrar vocês que, em momento algum, nós falamos que vocês são nossos inimigos ou que nós somos inimigos de vocês. Nós defendemos a vida, nós defendemos a floresta. E se vocês dizem que a Amazônia é do Brasil, por que vocês não estão lutando para defender a Amazônia?
Toda essa produção e esse desenvolvimento que vocês pensam são para os brasileiros ou é para o estrangeiro? Então que discurso é este que vocês pregam que a Amazônia é do Brasil, sendo que vocês não sabem a importância do que a Amazônia significa pra nós, vocês não sabem o valor da Amazônia? Vocês não são dignos para dizer isso. Sabem por quê? Vocês não sabem o que é perder um filho, vocês não sabem o que é ter as casas invadidas, vocês não sabem o que é ser expulso de terras. Respeite, respeite, respeite. Respeite a minha fala.
Vocês devem nos ouvir. Vocês invadem as nossas terras, vocês entregam o nosso minério, vocês acabam com a nossa vida, e não querem ouvir a nossa voz. Respeitem. Respeitem a Amazônia, respeitem os nosso povos que morrem todos os dias, que têm mulheres todos os dias violentadas, que têm indígenas com mãos decepadas por defenderem as suas terras. Nós defendemos o Brasil. Nós defendemos a Amazônia com nossa própria vida há séculos!
O dever de defender a Amazônia não é só porque nós, indígenas, moramos nas nossas terras. O mundo tem o dever, tem a obrigação de defender a Amazônia, porque é daqui que tiram todas as nossas riquezas e deixam somente as mazelas, as doenças, as tristezas, os conflitos.
Qual é o filho que luta para desmatar e para matar a sua mãe?
Desrespeito é vocês virem aqui gritar, interromper a nossa fala. Se estão aqui para dialogar, então respeitem cada um. Não agridam, não cometam violência, porque eu não estou aqui agredindo vocês. Eu estou defendendo nossos direitos, o direito de existência, o direito de indígenas. Nós também somos donos, até muito mais do que vocês. O Xingu, a Amazônia, todos os seres que vocês não conseguem ver nem respeitar, sabem por quê? Porque vocês não são ligados à terra, vocês não sabem como é a conexão com a mãe natureza. Porque qual é o filho que luta para desmatar e para matar a sua mãe?
Que filhos são vocês? Que brasileiros são vocês? Eu tenho dó. Não de vocês. Eu tenho dó das futuras gerações. Dos filhos e netos de vocês. Vocês não têm o direito de acabar com a nossa futura geração. A Amazônia e o Brasil não são só de vocês. São também nossos. No mínimo, vocês têm que ter respeito e aprender a conviver”.

Raoni pediria mais tarde a todos aqueles que defendem a Amazônia que ajudassem a proteger Juma Xipaya. O pedido precisa ser ouvido para muito além da floresta. Com um AI-5 não oficial já se instalando na região, a sociedade civil precisa se organizar para criar uma rede de proteção aos defensores da floresta e impedir o processo de criminalização das ONGs que protegem estes defensores ― seja cuidando do seu bem-estar, como faz o Saúde e Alegria há mais de 30 anos, seja ajudando a implementar a economia da floresta, aquela que produz renda sem desmatar, como faz o Instituto Socioambiental nas reservas extrativistas da Terra do Meio, seja combatendo diretamente o desmatamento, como fazem outras organizações. A disputa do futuro está sendo travada exatamente agora.

Apesar das ilusões que todo povo alimenta sobre as grandezas do seu país, o Brasil tem hoje importância no cenário global principalmente por causa da Amazônia. É a maior floresta tropical do mundo que empresta relevância estratégica ao Brasil. É abrigar 60% de um bioma estratégico para o controle do superaquecimento global que faz o Brasil um país necessário. O problema é que o bolsonarismo, assim como uma parcela da elite econômica e uma parcela dos militares, continua acreditando que a riqueza da Amazônia é o minério embaixo da terra e a quantidade de terra para especulação. Parte acredita nisso porque é burra e desinformada, parte porque só se interessa por lucros privados e imediatos, colocando seus interesses acima inclusive do futuro dos próprios filhos.

Leia mais o artigo de Eliane Brum

Hora do anagrama

Preocupado com a situação nacional, dei tratos à bola para descobrir uma sugestão que esteja ao meu alcance e ajude a afastar a ameaça do caos. Sem sair do meu ramo, que é o da palavra escrita, concluí que a solução é anagramática. Já-já me explico. Anagrama vem do grego e quer dizer transposição de letras. Serve para criar pseudônimos, como Soares Guiamar, do Guimarães Rosa. Também se usa na cabala, entre iniciados. Mas isto é ocultismo.


É sobretudo um divertimento que consiste em formar outra palavra com as mesmas letras. Convém que a nova palavra traga chispa de espírito. Há tempos falei aqui de palíndromo, que pode ser lido de trás para diante. O mais conhecido é "Roma me tem amor". Foi uma surpresa o interesse dos leitores, que me mandaram várias contribuições. O Antonio Carlos de Oliveira me enviou de São Paulo um texto em francês com mais de cinco mil palíndromos!

Não me foi difícil transformar o caos em caso, saco, asco, ocas. E soca – sabe o que é? Levar uma soca, ir na soca. Resolvi partir então para um palíndromo, juntando ao caos algumas palavras em evidência. E uns poucos nomes próprios da atual cena política. Nisso, abro a revista Domingo do Jornal do Brasil e dou com o Luís Fernando Veríssimo. Um craque, que além de escrever, desenha. Estava lá a cara do Brasil e o caos decomposto assim: "Cá só/ asco,/ caos.../ saco!". Desisti do meu palíndromo e passo à sugestão adiante.

Quem gosta de palavras cruzadas, charadas e enigmas pode se divertir com o anagramatismo. Já foi verdadeira mania na Inglaterra, na França, na Alemanha. O latim e o grego se prestam muito a esse jogo e ostentam exemplos antológicos. No castelhano, um doido chegou a escrever uma novela capicua, que pode ser lida de trás para diante da primeira à última palavra. Convém não exagerar. Comece por desmanchar palavras como crise e catástrofe, sozinhas ou acompanhadas.

Repito que não basta trocar as letras de lugar até que se forme outra palavra. O toque de humor é fundamental. Assim como o caos vira saco, certos nomes de figurões, feito o anagrama, desvendam o seu segredo e até o seu ridículo. Quem quiser tente também o verso anacíclico, de maior sabor lúdico. Deixo aqui a sugestão. Pode não resolver a crise, mas não vai agravá-la. Um simples anagrama transforma o Brasil em libras. Não é fantástico? Um pequeno esforço e você encontra dólares, ouro e tudo mais.

Otto Lara Resende, Folha SP, 6/10/1991

Qual o mais valioso dos recursos escassos?

Parece que está tudo desmoronando e que nada mais pode ser feito para evitar um futuro sombrio. No entanto, uma coisa ainda disponível é o tempo, um recurso escasso, mas extremamente valioso. Alguns dizem que a emergência climática ainda pode ser revertida se forem tomadas medidas ao longo dos próximos 12 anos. E este é um recurso que podemos explorar ao máximo. Não há tempo a perder
Irene Baños Ruíz

Os riscos do fim da moratória da soja

Um acordo envolvendo grandes exportadores de soja e sociedade civil, em vigor desde 2006 e que reduziu em cerca de 80% o desmatamento de áreas na Amazônia para plantar o grão, está sob pressão de produtores agrícolas para ser revogado, com o apoio de integrantes do governo Jair Bolsonaro.

Reconhecida por grandes empresas brasileiras e europeias como uma iniciativa voluntária de sucesso para reduzir o desmatamento, a chamada moratória da soja foi estabelecida para atender a uma pressão de consumidores críticos a produtos que pudessem estimular a derrubada de floresta na região amazônica.

Para evitar danos de reputação e assegurar a entrada da soja em mercados exigentes, especialmente o europeu, as empresas que compram o grão dos produtores brasileiros e o processam e exportam, como Amaggi, Cargill e Bunge, se juntaram a entidades da sociedade civil. Com o objetivo de estabelecer um mecanismo de monitoramento, as empresas se comprometeram a não comprar soja de áreas da Amazônia desmatadas após julho de 2008, data limite para anistia de desmatamentos ilegais estabelecida pelo Código Florestal.

Agora, parte dos produtores de soja contrários à moratória articulam uma forma de derrubá-la, com o aval de membros do alto escalão do governo Bolsonaro. Eles são representados pela Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil).

No início do mês, o presidente da entidade, Bartolomeu Braz Pereira, anunciou em entrevista ao jornal Valor Econômico que sua entidade apresentaria uma reclamação ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão de defesa da concorrência, alegando que a moratória era um mecanismo de reserva de mercado e que deveria ser revogada.

O Código Florestal autoriza proprietários de áreas na Amazônia legal a desmatarem até 20% de suas propriedades. Os produtores argumentam que a moratória impede que aqueles que plantam soja em áreas desmatadas legalmente a coloquem no mercado.

Braz se reuniu em 11 de setembro com o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e no mês seguinte o secretário-especial de relacionamento externo da pasta, Abelardo Lupion, declarou, em entrevista ao site Notícias Agrícolas, que as grandes exportadoras de soja que patrocinam a moratória "cometem um crime quando fazem distinção entre produtores rurais" e que o governo iria "jogar muito pesado" para reverter o instrumento.

A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, informou em nota à DW Brasil que a moratória da soja é uma questão entre entes privados, mas que pessoalmente, a considera um "absurdo".

"O produtor brasileiro cumpre o Código Florestal, que, no caso da Amazônia, determina a proteção de 80% da área da propriedade", afirmou. Até o momento, porém, o governo ainda discute o tema e não anunciou medida concreta a respeito.


Uma das dificuldades de atender à demanda da Aprosoja é que, hoje, não há instrumentos para exportadores e compradores avaliarem se um determinado produtor agrícola está em terras da região amazônica desmatadas regularmente.

O outro empecilho é que há uma demanda consolidada, especialmente em países europeus, por soja que não seja ligada a qualquer tipo de desmatamento na Amazônia, mesmo que autorizado pela lei.

"Não há como comprovar nem demonstrar para nossos compradores se houve desmatamento seguindo ou não o rito legal", afirmou à DW Brasil André Nassar, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), uma das signatárias da moratória da soja. Mesmo que um instrumento desse tipo seja estabelecido, a Abiove diz que seguiria com o monitoramento da moratória para atender aos consumidores que desejam a soja livre de desmatamento.

Segundo Paulo Adário, estrategista sênior de florestas do Greenpeace, o critério temporal, que autoriza a compra de soja de áreas desmatadas antes de julho de 2008, é benéfico para muitos produtores. "Há uma barafunda legal. Se a moratória fosse discutir legalidade, muitos produtores que não conseguem comprovar que estão em áreas legais ou em dia com suas obrigações de reflorestamento ficariam de fora", afirma.

De 2006 a 2018, a área de soja plantada na região da Amazônia subiu de 1,4 milhão de hectares para 5 milhões de hectares, mas apenas 2% dessa área foi desmatada com esse fim após julho de 2008. "A moratória foi um sucesso, a área plantada aumentou, a produção aumentou, e o desmatamento caiu", diz Adário.

Compradores internacionais têm a preocupação de verificar se a soja foi plantada em área desmatada na Amazônia porque o desmatamento é um vetor do aquecimento global, por meio da queima ou decomposição de material vegetal, no alvo do Acordo de Paris.

Nassar, da Abiove, afirma que, caso o Cade aceite abrir uma investigação sobre a moratória, haverá "preocupação enorme" no setor. "Quem importa e não quer comprar soja de área desmatada vai atribuir maior risco de isso ocorrer com a soja brasileira, e vai aumentar a exigência de garantias", diz, apontando que a derrubada da moratória traria prejuízo não apenas aos que hoje plantam na Amazônia, mas aos produtores de todo o país.

Segundo ele, 50% do farelo de soja exportado pelo Brasil vai para a Europa. Somadas, as exportações de farelo e do grão cru representam 12,5% da produção de soja brasileira. Caso o Brasil perca esse mercado, Nassar aponta que haveria um aumento dos estoques de soja no país e uma queda do preço.

"Essa iniciativa dos produtores conspira contra os interesses do próprio agronegócio. A moratória é uma guardiã de um mercado para soja. Esses produtores não conseguem entender a máxima de que o consumidor tem sempre razão", diz Adário, do Greenpeace.

A soja na Amazônia representa 13% da soja plantada no país. A maior parte da produção do grão ocorre hoje no Cerrado, que não é abrangido pela moratória. Organizações ambientalistas estão pressionando os grandes exportadores a aplicarem a mesma regra a esse bioma, mas não há consenso no setor. Segundo Adário, a iniciativa da Aprosoja seria também uma estratégia preventiva para se opor à aplicação da moratória no Cerrado.

Nathalie Lecocq, diretora geral da Fediol, que representa a indústria europeia de óleos vegetais e de proteína animal, afirmou à DW Brasil que a entidade recebeu com preocupação a proposta de acabar com a moratória da soja, "atualmente o único instrumento que oferece garantias de que não há desmatamento no bioma amazônico".

Segundo ela, empresas europeias importam e processam soja do Brasil no valor de 4,2 bilhões de euros por ano (cerca de 20 bilhões de reais), que seriam "colocados em risco' com o fim da moratória.

"As exigências ambientais se tornaram mais importantes para as companhias, e o consumidor europeu espera que a União Europeia aja para enfrentar o desmatamento no fornecimento [de matérias-primas]", diz Lecocq.

Ela aponta que os últimos dados sobre o aumento do desmatamento na Amazônia, associados ao debate sobre o fim da moratória, podem levar consumidores europeus a aumentarem sua rejeição a produtos que possam conter desmatamento e forçar legisladores e governos a adotarem medidas para evitar que esses produtos entrem no mercado europeu.

A DW Brasil tentou ouvir um representante da Aprosoja Brasil desde o dia 19 de novembro, sem sucesso.
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