quinta-feira, 8 de outubro de 2020
Público, privado e corrupção
A corrupção não aceita limites. Como água, penetra cada fresta em seu caminho. Aliada ao poder, ganha mais força. No mensalão, desmoralizou a política e até mesmo o PT, partido fundado em princípios. Na Lava-Jato, levou de roldão algumas das maiores empresas do país. Na pandemia, conseguiu a incrível façanha de enlamear as operações de saúde, comprometendo vidas aos milhares. Os casos citados têm em comum o uso perverso das relações entre o público e o privado.
O governo, que fala pelo bem comum, grande contratante que é, alia-se a empresas particulares oportunistas para, juntos, gerarem vantagens ilícitas a cada oportunidade. Como estancar esta patologia que nos sufoca e que leva o país a um dos seus piores momentos?
Na saúde, cresce a opinião contra as OS, como se nelas estivesse a falha do sistema. Diversas vozes, do governo e da sociedade, levantam acusações contra as OS e reclamam a volta à administração direta dos serviços de saúde. Falsa solução, pois em todo o país, onde houve denúncias as secretarias de Saúde foram destaque entre as agências corruptoras, com o respaldo de outros órgãos estratégicos do Estado. Note-se inclusive que governos e municípios estimularam o surgimento de OS venais, portadoras de CNPJ descartáveis, sem história e sem valor próprio, criadas justamente para a rodagem das transações ilícitas. Note-se ainda que a maior parte das compras escandalosas propiciadas pela crise global da Covid-19 foram feitas diretamente pelos governos com empresas oportunistas de variada procedência, nacionais e estrangeiras.
O retorno dos serviços de saúde à administração direta não parece razoável, sequer factível, mas não é este o objeto da discussão proposta neste texto. Propõe-se aqui uma pergunta anterior, para que se reconsidere o relacionamento entre governo e instituições privadas, sejam elas com ou sem fins lucrativos. Como proteger os contratos, as compras de bens e serviços, das artimanhas da política e da corrupção? A experiência recente mostra relações tão próximas e intrincadas entre contratantes e contratadas que não há como distinguir entre as partes. Relações de interesse atravessam os espaços e determinam as transações. A política contamina a gestão. A continuidade dos serviços sofre com as intrigas palacianas e de suas secretarias. O compromisso com a eficiência é comprometido.
Urge romper a proximidade promíscua entre o dia a dia da política e o gerenciamento dos bens comuns. Consolidar instâncias intermediárias com qualidade técnica e mandato próprio de média duração, protegidas das interferências diárias de terceiros, políticos e empresários. Formar instâncias independentes que tenham por missão zelar pela qualidade dos procedimentos. A contratação e o acompanhamento de empresas terceirizadas, sejam elas com ou sem fins lucrativos, carecem desta proteção. Os processos de seleção de novos gestores devem ocorrer em ambiente autônomo, pois é lá, nas negociações iniciais, que as primeiras chances de tramoia acontecem.
A definição de objetivos e metas deve primar pela técnica, pois a defasagem entre os objetivos contratuais e a prática da execução é fonte recorrente de passivos que se tornam matéria a negociar por trás dos panos, os chamados “restos a pagar”. O controle dos resultados carece de independência, pois a fiscalização e as glosas são fonte repetitiva de impasses e microabsurdos que propiciam soluções indevidas. O ajuste entre as grandes políticas e o planejamento efetivo é objeto a ser tratado em câmara própria, que escape ao voluntarismo fácil das pretensões eleitoreiras.
A prática atual — em que o secretário é ao mesmo tempo contratante, financiador, fiscalizador e provável candidato nas próximas eleições — forma uma barafunda de interesses que é solo fértil para o manuseio criminoso dos nossos bens maiores, como a saúde e a educação. Estados e municípios possuem fundações especializadas, como da Saúde, por exemplo. Ao invés de voltarem a serem administradoras diretas, confundindo de vez técnica, política e gestão, as fundações poderiam ser repensadas de modo a se posicionarem como instâncias intermediárias entre o governo e o mercado, com a missão precípua de zelar pela correção das relações entre o público e o privado.
O governo, que fala pelo bem comum, grande contratante que é, alia-se a empresas particulares oportunistas para, juntos, gerarem vantagens ilícitas a cada oportunidade. Como estancar esta patologia que nos sufoca e que leva o país a um dos seus piores momentos?
Na saúde, cresce a opinião contra as OS, como se nelas estivesse a falha do sistema. Diversas vozes, do governo e da sociedade, levantam acusações contra as OS e reclamam a volta à administração direta dos serviços de saúde. Falsa solução, pois em todo o país, onde houve denúncias as secretarias de Saúde foram destaque entre as agências corruptoras, com o respaldo de outros órgãos estratégicos do Estado. Note-se inclusive que governos e municípios estimularam o surgimento de OS venais, portadoras de CNPJ descartáveis, sem história e sem valor próprio, criadas justamente para a rodagem das transações ilícitas. Note-se ainda que a maior parte das compras escandalosas propiciadas pela crise global da Covid-19 foram feitas diretamente pelos governos com empresas oportunistas de variada procedência, nacionais e estrangeiras.
O retorno dos serviços de saúde à administração direta não parece razoável, sequer factível, mas não é este o objeto da discussão proposta neste texto. Propõe-se aqui uma pergunta anterior, para que se reconsidere o relacionamento entre governo e instituições privadas, sejam elas com ou sem fins lucrativos. Como proteger os contratos, as compras de bens e serviços, das artimanhas da política e da corrupção? A experiência recente mostra relações tão próximas e intrincadas entre contratantes e contratadas que não há como distinguir entre as partes. Relações de interesse atravessam os espaços e determinam as transações. A política contamina a gestão. A continuidade dos serviços sofre com as intrigas palacianas e de suas secretarias. O compromisso com a eficiência é comprometido.
Urge romper a proximidade promíscua entre o dia a dia da política e o gerenciamento dos bens comuns. Consolidar instâncias intermediárias com qualidade técnica e mandato próprio de média duração, protegidas das interferências diárias de terceiros, políticos e empresários. Formar instâncias independentes que tenham por missão zelar pela qualidade dos procedimentos. A contratação e o acompanhamento de empresas terceirizadas, sejam elas com ou sem fins lucrativos, carecem desta proteção. Os processos de seleção de novos gestores devem ocorrer em ambiente autônomo, pois é lá, nas negociações iniciais, que as primeiras chances de tramoia acontecem.
A definição de objetivos e metas deve primar pela técnica, pois a defasagem entre os objetivos contratuais e a prática da execução é fonte recorrente de passivos que se tornam matéria a negociar por trás dos panos, os chamados “restos a pagar”. O controle dos resultados carece de independência, pois a fiscalização e as glosas são fonte repetitiva de impasses e microabsurdos que propiciam soluções indevidas. O ajuste entre as grandes políticas e o planejamento efetivo é objeto a ser tratado em câmara própria, que escape ao voluntarismo fácil das pretensões eleitoreiras.
A prática atual — em que o secretário é ao mesmo tempo contratante, financiador, fiscalizador e provável candidato nas próximas eleições — forma uma barafunda de interesses que é solo fértil para o manuseio criminoso dos nossos bens maiores, como a saúde e a educação. Estados e municípios possuem fundações especializadas, como da Saúde, por exemplo. Ao invés de voltarem a serem administradoras diretas, confundindo de vez técnica, política e gestão, as fundações poderiam ser repensadas de modo a se posicionarem como instâncias intermediárias entre o governo e o mercado, com a missão precípua de zelar pela correção das relações entre o público e o privado.
Bolsonaro detona a Lava Jato e Fux sai em socorro dela
E agora que Jair Bolsonaro decretou o fim da Lava Jato, o que dirão os que votaram nele por acreditar que em seu governo a Lava Jato seguiria em frente, para o alto, e cada vez mais forte?
Opinião é direito de todo mundo, mas fato é fato. Bolsonaro se elegeu pegando carona na Lava Jato (fato). Fez de Sérgio Moro, o líder da Lava Jato, seu ministro da Justiça (fato).
Até desentender-se com ele por tentar intervir na Polícia Federal, sempre falou bem da Lava Jato (fato). Para ontem, finalmente, anunciar que acabou com a Lava Jato (fato).
Por que Bolsonaro virou um inimigo da Lava Jato? Porque virou um inimigo de Moro (fato) e teme que ele possa atrapalhar sua reeleição (fato). Mas não só por isso. Tem mais.
Bolsonaro nasceu para a política dentro do Centrão, cresceu dentro do Centrão, trocou oito vezes de partidos, todos eles do Centrão, e chamou o Centrão para ajudá-lo a governar. São fatos.
Trump não teve o descaramento de proclamar nas últimas horas que contraiu o Covid-19 de tanto se expor a ele em defesa da saúde dos norte-americanos? Charlatanice pura!
Bolsonaro copia Trump. Mente sem receio. Falsifica fatos. Nega o impossível, porque aposta que sempre haverá uma parcela de público disposta a lhe dar crédito. E haverá, sim.
Opinião é direito de todo mundo, mas fato é fato. Bolsonaro se elegeu pegando carona na Lava Jato (fato). Fez de Sérgio Moro, o líder da Lava Jato, seu ministro da Justiça (fato).
Até desentender-se com ele por tentar intervir na Polícia Federal, sempre falou bem da Lava Jato (fato). Para ontem, finalmente, anunciar que acabou com a Lava Jato (fato).
Não lhe cabe acabar com a Lava Jato. Quem pode fazê-lo é a Procuradoria-Geral da República (fato). Assim, o anúncio trai sua intenção de ver a Lava Jato no buraco, mas não passa disso.
A Procuradoria virou um puxadinho do Planalto (opinião, embora compartilhada por grande parte dos procuradores). Augusto Aras, seu chefe, quer extinguir a Lava Jato (fato).
Por que Bolsonaro virou um inimigo da Lava Jato? Porque virou um inimigo de Moro (fato) e teme que ele possa atrapalhar sua reeleição (fato). Mas não só por isso. Tem mais.
Bolsonaro nasceu para a política dentro do Centrão, cresceu dentro do Centrão, trocou oito vezes de partidos, todos eles do Centrão, e chamou o Centrão para ajudá-lo a governar. São fatos.
É fato: o Centrão está repleto de deputados e senadores denunciados pela Lava Jato. Os que não foram, a detestam. Bolsonaro agrada o Centrão em troca de votos.
Quanto ao que afirmou, que não precisa da Lava Jato porque o seu é um governo sem corrupção, não é fato. É fake – no caso, para ver se diminui a insatisfação dos bolsonaristas órfãos de Moro.
Trump não teve o descaramento de proclamar nas últimas horas que contraiu o Covid-19 de tanto se expor a ele em defesa da saúde dos norte-americanos? Charlatanice pura!
Bolsonaro copia Trump. Mente sem receio. Falsifica fatos. Nega o impossível, porque aposta que sempre haverá uma parcela de público disposta a lhe dar crédito. E haverá, sim.
Tutti buona gente
(Carlos Alberto Brilhante Ustra) foi meu comandante no final dos anos 70 do século passado, e era um homem de honra e um homem que respeitava os direitos humanos de seus subordinados
Hamilton Mourão, vice-presidente e um dos comandados de Ustra
Os cinco fatores de nossa miséria
Todos temos um pouco de raízes nas visões de Celso Furtado. Além das leituras, tive a oportunidade de cobrir pelo Jornal do Comércio de Recife uma reunião da Sudene, em 1963, em que Celso Furtado pedia aos governadores que resolvessem na própria reunião o andamento de alguns projetos. Frente à resposta de um dos governadores de que seria preciso dar um prazo para “as devidas considerações”, Celso respondeu secamente que também poderia tomar tempo para as “devidas considerações” quando recebe pedidos dos governadores. Faceta de um realizador frente aos marasmos políticos.
Celso Furtado nos permitia focar problemas estruturais da sociedade. Queria na presente nota trazer o problema da subutilização de fatores de produção no Brasil, tema que envolve tanto a economia como a política, e tem tudo a ver com a dimensão estrutural dos nossos dramas.
A realidade é chocante: neste país de 212 milhões de habitantes, o emprego formal privado se resume a 33 milhões de pessoas. Somando 11 milhões de funcionários públicos, são 44 milhões, apenas 42% da força de trabalho de 105 milhões. A subutilização da força de trabalho constitui uma dimensão particularmente gritante da nossa fragilidade econômica, pois se trata, para além do drama social, de uma enorme insensatez econômica. A Síntese de Indicadores Sociais 2019 do IBGE traz uma seção sobre essa questão.
Como ordem de grandeza, temos 40 milhões de pessoas no setor informal. Segundo o IBGE, a renda desses trabalhadores é a metade da renda que o trabalhador formal aufere. São pessoas que no essencial “se viram”. Ser empreendedor individual sem dúvida frequentemente assegura uma aparência mais digna à subutilização, mas vemos na própria uberização e terceirizações irresponsáveis o que isso pode significar. E temos 13 milhões de pessoas formalmente desempregadas. Somando os 40 milhões do setor informal e os 13 milhões de desempregados, são 53 milhões, a metade da força de trabalho. A esse contingente precisamos acrescentar o imenso desalento, pessoas que estão em idade de trabalho, mas desistiram de procurar, e ainda as pessoas classificadas como empregadas, mas que trabalham apenas algumas horas.
No conjunto, a subutilização da força de trabalho, num país onde há tantas coisas por fazer, é absolutamente chocante. Em cada um dos 5.570 municípios do país, temos por exemplo pessoas desempregadas e terra parada. Não é complicado pensar que se possa organizar um cinturão verde hortifrutigranjeiro em torno de cada um, simplesmente articulando os fatores de produção parados. Em Santos, no tempo de David Capistrano, acompanhei o projeto em que os desempregados da cidade foram cadastrados e organizados na Operação Praia Limpa, que permitiu realizar as obras de saneamento, tirando os esgotos dos canais pluviais, o que recuperou a balneabilidade das praias, e em consequência o turismo, a atividade hoteleira e semelhantes, transformando uma operação temporária em empregos permanentes. Exemplos não faltam, planejamento econômico e social consiste em boa parte em articular fatores subutilizados.
Um argumento ideológico sempre buscou justificar a desigualdade com a falta de iniciativa dos pobres: o pobre não precisa que lhe ensinem disposição para trabalhar, precisa de oportunidades. Isso envolve planejamento e iniciativas públicas, em vez de discursos ideológicos.
O censo agropecuário de 2017 nos dá outra dimensão da subutilização dos fatores. O Brasil é imenso. Os 8,5 milhões de quilômetros quadrados correspondem a 850 milhões de hectares. Segundo o censo, 353 milhões de hectares constituem estabelecimentos agrícolas. Nesses, 225 milhões de hectares constituem solo agricultável, portanto disponível para atividades produtivas, tanto pela qualidade do solo como pela disponibilidade de água. O que choca, é que somando a agricultura permanente e temporária, o uso produtivo no sentido pleno ocupa 63 milhões de hectares. Arredondando, temos 160 milhões de hectares de solo agrícola parado ou subutilizado. Essa área representa 5 vezes o território da Itália. Precisamos desmatar a Amazônia?
Grande parte dessa terra parada ou subutilizada é ocupada pela pecuária extensiva. O limite entre terra produtiva e improdutiva gerou um amplo debate devido à pressão secular pela reforma agrária no país. Usar imensas regiões com quase um hectare por cabeça de gado gera sem dúvida fortunas para os conglomerados agroexportadores de carne, mas para quem conhece formas modernas de criação de gado semi-confinado, com as unidades de pecuária plantando forragem, o desperdício torna-se evidente. Numa imensa parte do Brasil, o solo constitui apenas a base para um rentismo improdutivo. A pecuária extensiva gera pouquíssimo emprego, poucos impostos, e está articulada com os grandes traders de commodities agropecuárias.
Um resgate do ITR, Imposto Territorial Rural, que no Brasil constitui uma ficção, permitiria sem dúvida estimular a produtividade: como na Europa e em outras regiões, o fato de pagarem impostos sobre terra parada estimula os proprietários a utilizá-la de maneira mais produtiva, ou vendê-la para quem produza. Em particular, é preciso tributar o rentismo, em que se valorizam terras com a simples expansão de infraestruturas e da urbanização. Em Imperatriz do Maranhão, mais de 80% dos produtos nas gôndolas dos supermercados vêm de São Paulo, enquanto em volta da cidade dormem imensas extensões de terra parada, que se valoriza passivamente com a expansão urbana. Estamos esperando que “os mercados” resolvam?
Tão gritante como a subutilização da força de trabalho e da terra no Brasil, é a subutilização do capital, que se transforma em patrimônio familiar e aplicações financeiras em vez de investimentos produtivos. Isso trava o desenvolvimento de infraestruturas, a produção de bens e serviços e o emprego. No Brasil raros que fazem a distinção tão essencial entre aplicação financeira e investimento produtivo. Em francês, placements financiers e investissements é bastante clara. O Economist, por falta de conceito de aplicação financeira, distingue speculative investments e productive investments. Mariana Mazzucato utiliza financial investments para caracterizar a diferença. O fato é que no Brasil o que os bancos chamam de investimento constitui uma imensa esterilização dos nossos recursos.
Os 206 bilionários brasileiros apresentados na edição especial da Fortune são essencialmente donos de holdings, acionistas, controladores de fundos de investimentos, donos de cotas acionárias, e naturalmente banqueiros ou acionistas de bancos. A intermediação financeira transformou-se entre nós em autêntica extorsão. Um dos principais mecanismos são as taxas usurárias de juros, representando como ordem de grandeza ao mês o que no resto do mundo se cobra ao ano. Exemplos de custo efetivo total de crédito apresentados pela ANEFAC (Associação Nacional de Executivos de Finanças, Administração e Contábeis) incluem, para pessoa física em junho de 2020, 74% em média no crediário comercial, 256% no cartão de crédito, 129% no cheque especial, 46% no empréstimo pessoal nos bancos. A título de comparação os juros sobre cartão de crédito no Canadá eram 22% ao ano, reduzidos por ordem do governo para 11% com a pandemia.
Para pessoa jurídica a média apresentada é de 43%. Todas essas taxas estão no mesmo nível desde 2013, apesar da forte redução da taxa Selic.1 O resultado é que duas forças essenciais de propulsão da economia, a demanda das famílias e o investimento das empresas, se vêm drasticamente reduzidas, ainda antes da pandemia. Lembrando que o último ano de crescimento significativo da economia brasileira foi 2013, de 3,0%. Com a ofensiva contra a fase desenvolvimentista e distributiva em 2013 e 2014, a guerra da Lavajato e o caos pré- e pós-eleitoral, a economia brasileira está no sétimo ano de paralisia. O primeiro trimestre de 2020, sem impacto econômico significativo ainda da pandemia, apresentou uma queda do PIB de 1,5% relativamente ao trimestre anterior. O dreno dos recursos pelos grupos financeiros desarticulou a economia e a mantém parada.
Em termos de teoria econômica, o conceito de financeirização se tornou essencial. Os trabalhos de Thomas Piketty, de Joseph Stiglitz, de Marjorie Kelly, de Ann Pettifor e de tantos outros permitiram uma reviravolta depois de 40 anos de dominância do discurso neoliberal. A base é simples: a produção de bens e serviços, o PIB no mundo, aumenta em cerca de 2% a 2,5% ao ano. Os rendimentos de aplicações financeiras em volumes elevados rendem entre 7% e 9%. Entre juros e dividendos, ganhar dinheiro, o grande dinheiro, se divorciou em grande parte dos processos produtivos. O capital vai para onde rende mais. O mecanismo básico de apropriação do excedente social se deslocou: para explorar um assalariado, o empresário precisa pelo menos gerar um posto de trabalho. Hoje o endividamento das famílias é generalizado, as tarifas absurdas nos cartões atingem a todos. E os dividendos elevados nas empresas produtivas tornam a expansão produtiva pouco viável.
O empresário efetivamente produtivo não precisa de “confiança” ou de discurso ideológico, precisa de famílias com capacidade de compra, para ter para quem vender, e de juros baratos para poder financiar a produção. No Brasil, ele não tem nem uma coisa nem outra. Após tantos anos de Ponte para o Futuro em diversos formatos, as empresas no Brasil estão trabalhando com 30% de capacidade ociosa. Harvey tem razão, o que era capital, portanto dinheiro inserido no processo de acumulação produtiva do capital, hoje é essencialmente patrimônio. Entre 2018 e 2019, em 12 meses, os 206 bilionários brasileiros aumentaram os seus patrimônios em 230 bilhões, um aumento de 23% numa economia parada. E já na pandemia, nos 4 meses entre março e julho de 2020, o grupo mais restrito de 42 bilionários em dólares aumentou as suas fortunas em 180 bilhões de reais: é o equivalente a 6 anos de bolsa-família, para 42 pessoas, em 4 meses, em plena pandemia.2 Lembrando ainda que desde 1995 esse tipo de ganhos é isento de impostos.
A dinâmica econômica da China, ou na Coreia do Sul, por exemplo, não constitui um milagre, tratou-se simplesmente de assegurar a orientação dos recursos financeiros para atividades produtivas. Um relatório da ONU resume a questão: ”A prosperidade para todos não pode ser assegurada por políticos com visão de austeridade, corporações centradas no rentismo e banqueiros especulativos. O que necessitamos urgentemente agora é um novo pacto global.”
Hoje o principal fator de produção é o conhecimento. O que está se formando é muito mais do que de uma ‘indústria 4.0’. A mudança é sísmica. Adotamos aqui a mesma visão expressa no New Scientist: “A tecnologia tem um potencial tão grande que a expectativa geral é que o seu impacto seja tão profundo quanto o da revolução industrial. ” 4 Não é só o dinheiro que se tornou em simples sinais magnéticos registrados em computadores, é o conjunto da economia que desloca as suas formas de organização para o que André Gorz chamou de “o imaterial”. Não é mais a General Motors e semelhantes que dominam o jogo, são os sistemas de controle das finanças e das tecnologias, o GAFAM nos Estados Unidos, o BAT na China, os SIFIs (Systemically Important Financial Institutions). No centro da economia, não está mais a fábrica, estão as plataformas, os gestores de fortunas, os controladores da comunicação.5
É impressionante o recuo do Brasil com a submissão aos Estados Unidos no caso da tecnologia do G5, a desestruturação das capacidades de pesquisa da Petrobrás, o fechamento do programa de formação de cientistas no exterior, o travamento das bolsas de pesquisa e de pós-graduação, a venda mal abortada da Embraer, a transformação do país em mero comprador de patentes: o recuo nesta área terá impactos avassaladores sobre o futuro do país. Temos mais de um terço da população sem acesso à internet, numa era em que ficar fora do sistema digital significa isolamento social. Ainda temos universidades em que os alunos tiram xerox de capítulos acumulados nas pastas de professores.
Ainda travamos acesso aos textos científicos quando o MIT os disponibiliza na plataforma OCW (Open Course Ware), a China no sistema CORE (China Open Resources for Education). O Japão há décadas possui sistemas online de apoio tecnológico para pequenos produtores, inclusive de agricultura familiar. A Finlândia há 50 anos lançou o programa de generalização de elevação científico-tecnológica do país, com programas educacionais públicos, gratuitos e universais. No Brasil ainda se discute a privatização e distribuição de vouchers, proposta dos tempos de Ronald Reagan nos Estados Unidos. A subutilização da imensa capacidade criativa da população, ao se travar as oportunidades para a imensa maioria, constitui um crime contra as próximas gerações, e demonstra uma profunda ignorância do que Jessé Souza chamou adequadamente de A elite do atraso.
Celso Furtado tinha a ideia clara da importância do Estado e do planejamento. No nosso caso, em nome de ideologias ultrapassadas, está se paralisando o país, mas também comprometendo o seu futuro. A ideia do ‘Estado mínimo’ é simplesmente burra. Há coisas que a empresa privada faz melhor, como produzir tomate, bicicleta ou automóvel. Entregar para grupos privados serviços básicos como saúde, educação, cultura, segurança e outras políticas sociais leva a perdas radicais de eficiência. O maior setor econômico dos Estados Unidos é hoje a saúde, cerca de 20% do PIB. O custo dos serviços americanos de saúde, em grande parte privatizados, é de 10.400 dólares por pessoa por ano. No Canadá, onde os serviços de saúde são públicos, gratuitos e de acesso universal, o custo é de 4.400 dólares. O Canadá está entre os primeiros em termos de qualidade da saúde da população, no conjunto dos países da OCDE, enquanto os Estados Unidos entre os últimos.
Mariana Mazzucato, no seu O Estado Empreendedor, e no mais recente The Value of Everything, traz com força a importância do papel do Estado na promoção de políticas. Não se trata do tamanho do Estado, e sim dos efeitos multiplicadores, em termos de produtividade sistêmica do país, que pode trazer um Estado forte e orientado pelos interesses da nação. No nosso caso, com a apropriação de funções-chave do Estado por grupos privados, e a liquidação da regulação financeira, é o conjunto das atividades do país que é prejudicado, e inclusive tantas empresas produtivas que apoiaram os retrocessos políticos. Entramos na era da pandemia com 6 anos acumulados de marasmo econômico e social. Resgatar o papel do Estado como indutor de desenvolvimento, resgatar a função do planejamento na articulação dos recursos subutilizados, e em particular resgatar a regulação do sistema financeiro, para que financie o que é necessário ao país, são apenas pontos de partida. É impressionante ler no editorial do Financial Times de 4 de abril de 2020, em plena pandemia, de que “os governos terão que aceitar um papel mais ativo na economia, e devem ver os serviços públicos como investimentos, não como obrigações. ” Aqui economistas pré-históricos falam em Estado-mínimo e qualificam os serviços públicos como “gastos”. Que saudades de Celso Furtado.
Ladislau Dowbor
1 Ver ANEFAC, pesquisa mensal de juros – https://3783fb27-40b2-47fa-ab2d-4ffef8b3c87b.filesusr.com/ugd/21624f_3fc44b88833a444da1332c23eeec1c85.pdf
2 Dados da Forbes: https://dowbor.org/2020/02/18676.html/ Dados da Oxfam: https://dowbor.org/2020/07/bilionarios-da-america-latina-e-do-caribe-aumentaram-fortuna-em-us-482-bi-durante-pandemia-oxfam-brasil-2020-3p.html/
3 UNCTAD – Trade and Development Report 2017: Beyond Austerity, Towards a Global New Deal – Unctad, Geneva, 2017, p. ii
4 “The technology has such potential that its impact on society is widely expected to be as profound as the industrial revolution.” – New Scientist, April 23, 2018
5 Detalhamos essas transformações, e a gestação de um novo modo de produção informacional, em O Capitalismo se Desloca: novas arquiteturas sociais, SESC, São Paulo, 2020 – https://dowbor.org/wp-content/uploads/2020/05/Dowbor-O-capitalismo-se-desloca-Edicoes-SescSP-2020.pdf
Celso Furtado nos permitia focar problemas estruturais da sociedade. Queria na presente nota trazer o problema da subutilização de fatores de produção no Brasil, tema que envolve tanto a economia como a política, e tem tudo a ver com a dimensão estrutural dos nossos dramas.
A realidade é chocante: neste país de 212 milhões de habitantes, o emprego formal privado se resume a 33 milhões de pessoas. Somando 11 milhões de funcionários públicos, são 44 milhões, apenas 42% da força de trabalho de 105 milhões. A subutilização da força de trabalho constitui uma dimensão particularmente gritante da nossa fragilidade econômica, pois se trata, para além do drama social, de uma enorme insensatez econômica. A Síntese de Indicadores Sociais 2019 do IBGE traz uma seção sobre essa questão.
Como ordem de grandeza, temos 40 milhões de pessoas no setor informal. Segundo o IBGE, a renda desses trabalhadores é a metade da renda que o trabalhador formal aufere. São pessoas que no essencial “se viram”. Ser empreendedor individual sem dúvida frequentemente assegura uma aparência mais digna à subutilização, mas vemos na própria uberização e terceirizações irresponsáveis o que isso pode significar. E temos 13 milhões de pessoas formalmente desempregadas. Somando os 40 milhões do setor informal e os 13 milhões de desempregados, são 53 milhões, a metade da força de trabalho. A esse contingente precisamos acrescentar o imenso desalento, pessoas que estão em idade de trabalho, mas desistiram de procurar, e ainda as pessoas classificadas como empregadas, mas que trabalham apenas algumas horas.
Um argumento ideológico sempre buscou justificar a desigualdade com a falta de iniciativa dos pobres: o pobre não precisa que lhe ensinem disposição para trabalhar, precisa de oportunidades. Isso envolve planejamento e iniciativas públicas, em vez de discursos ideológicos.
O censo agropecuário de 2017 nos dá outra dimensão da subutilização dos fatores. O Brasil é imenso. Os 8,5 milhões de quilômetros quadrados correspondem a 850 milhões de hectares. Segundo o censo, 353 milhões de hectares constituem estabelecimentos agrícolas. Nesses, 225 milhões de hectares constituem solo agricultável, portanto disponível para atividades produtivas, tanto pela qualidade do solo como pela disponibilidade de água. O que choca, é que somando a agricultura permanente e temporária, o uso produtivo no sentido pleno ocupa 63 milhões de hectares. Arredondando, temos 160 milhões de hectares de solo agrícola parado ou subutilizado. Essa área representa 5 vezes o território da Itália. Precisamos desmatar a Amazônia?
Grande parte dessa terra parada ou subutilizada é ocupada pela pecuária extensiva. O limite entre terra produtiva e improdutiva gerou um amplo debate devido à pressão secular pela reforma agrária no país. Usar imensas regiões com quase um hectare por cabeça de gado gera sem dúvida fortunas para os conglomerados agroexportadores de carne, mas para quem conhece formas modernas de criação de gado semi-confinado, com as unidades de pecuária plantando forragem, o desperdício torna-se evidente. Numa imensa parte do Brasil, o solo constitui apenas a base para um rentismo improdutivo. A pecuária extensiva gera pouquíssimo emprego, poucos impostos, e está articulada com os grandes traders de commodities agropecuárias.
Um resgate do ITR, Imposto Territorial Rural, que no Brasil constitui uma ficção, permitiria sem dúvida estimular a produtividade: como na Europa e em outras regiões, o fato de pagarem impostos sobre terra parada estimula os proprietários a utilizá-la de maneira mais produtiva, ou vendê-la para quem produza. Em particular, é preciso tributar o rentismo, em que se valorizam terras com a simples expansão de infraestruturas e da urbanização. Em Imperatriz do Maranhão, mais de 80% dos produtos nas gôndolas dos supermercados vêm de São Paulo, enquanto em volta da cidade dormem imensas extensões de terra parada, que se valoriza passivamente com a expansão urbana. Estamos esperando que “os mercados” resolvam?
Tão gritante como a subutilização da força de trabalho e da terra no Brasil, é a subutilização do capital, que se transforma em patrimônio familiar e aplicações financeiras em vez de investimentos produtivos. Isso trava o desenvolvimento de infraestruturas, a produção de bens e serviços e o emprego. No Brasil raros que fazem a distinção tão essencial entre aplicação financeira e investimento produtivo. Em francês, placements financiers e investissements é bastante clara. O Economist, por falta de conceito de aplicação financeira, distingue speculative investments e productive investments. Mariana Mazzucato utiliza financial investments para caracterizar a diferença. O fato é que no Brasil o que os bancos chamam de investimento constitui uma imensa esterilização dos nossos recursos.
Os 206 bilionários brasileiros apresentados na edição especial da Fortune são essencialmente donos de holdings, acionistas, controladores de fundos de investimentos, donos de cotas acionárias, e naturalmente banqueiros ou acionistas de bancos. A intermediação financeira transformou-se entre nós em autêntica extorsão. Um dos principais mecanismos são as taxas usurárias de juros, representando como ordem de grandeza ao mês o que no resto do mundo se cobra ao ano. Exemplos de custo efetivo total de crédito apresentados pela ANEFAC (Associação Nacional de Executivos de Finanças, Administração e Contábeis) incluem, para pessoa física em junho de 2020, 74% em média no crediário comercial, 256% no cartão de crédito, 129% no cheque especial, 46% no empréstimo pessoal nos bancos. A título de comparação os juros sobre cartão de crédito no Canadá eram 22% ao ano, reduzidos por ordem do governo para 11% com a pandemia.
Para pessoa jurídica a média apresentada é de 43%. Todas essas taxas estão no mesmo nível desde 2013, apesar da forte redução da taxa Selic.1 O resultado é que duas forças essenciais de propulsão da economia, a demanda das famílias e o investimento das empresas, se vêm drasticamente reduzidas, ainda antes da pandemia. Lembrando que o último ano de crescimento significativo da economia brasileira foi 2013, de 3,0%. Com a ofensiva contra a fase desenvolvimentista e distributiva em 2013 e 2014, a guerra da Lavajato e o caos pré- e pós-eleitoral, a economia brasileira está no sétimo ano de paralisia. O primeiro trimestre de 2020, sem impacto econômico significativo ainda da pandemia, apresentou uma queda do PIB de 1,5% relativamente ao trimestre anterior. O dreno dos recursos pelos grupos financeiros desarticulou a economia e a mantém parada.
Em termos de teoria econômica, o conceito de financeirização se tornou essencial. Os trabalhos de Thomas Piketty, de Joseph Stiglitz, de Marjorie Kelly, de Ann Pettifor e de tantos outros permitiram uma reviravolta depois de 40 anos de dominância do discurso neoliberal. A base é simples: a produção de bens e serviços, o PIB no mundo, aumenta em cerca de 2% a 2,5% ao ano. Os rendimentos de aplicações financeiras em volumes elevados rendem entre 7% e 9%. Entre juros e dividendos, ganhar dinheiro, o grande dinheiro, se divorciou em grande parte dos processos produtivos. O capital vai para onde rende mais. O mecanismo básico de apropriação do excedente social se deslocou: para explorar um assalariado, o empresário precisa pelo menos gerar um posto de trabalho. Hoje o endividamento das famílias é generalizado, as tarifas absurdas nos cartões atingem a todos. E os dividendos elevados nas empresas produtivas tornam a expansão produtiva pouco viável.
O empresário efetivamente produtivo não precisa de “confiança” ou de discurso ideológico, precisa de famílias com capacidade de compra, para ter para quem vender, e de juros baratos para poder financiar a produção. No Brasil, ele não tem nem uma coisa nem outra. Após tantos anos de Ponte para o Futuro em diversos formatos, as empresas no Brasil estão trabalhando com 30% de capacidade ociosa. Harvey tem razão, o que era capital, portanto dinheiro inserido no processo de acumulação produtiva do capital, hoje é essencialmente patrimônio. Entre 2018 e 2019, em 12 meses, os 206 bilionários brasileiros aumentaram os seus patrimônios em 230 bilhões, um aumento de 23% numa economia parada. E já na pandemia, nos 4 meses entre março e julho de 2020, o grupo mais restrito de 42 bilionários em dólares aumentou as suas fortunas em 180 bilhões de reais: é o equivalente a 6 anos de bolsa-família, para 42 pessoas, em 4 meses, em plena pandemia.2 Lembrando ainda que desde 1995 esse tipo de ganhos é isento de impostos.
A dinâmica econômica da China, ou na Coreia do Sul, por exemplo, não constitui um milagre, tratou-se simplesmente de assegurar a orientação dos recursos financeiros para atividades produtivas. Um relatório da ONU resume a questão: ”A prosperidade para todos não pode ser assegurada por políticos com visão de austeridade, corporações centradas no rentismo e banqueiros especulativos. O que necessitamos urgentemente agora é um novo pacto global.”
Hoje o principal fator de produção é o conhecimento. O que está se formando é muito mais do que de uma ‘indústria 4.0’. A mudança é sísmica. Adotamos aqui a mesma visão expressa no New Scientist: “A tecnologia tem um potencial tão grande que a expectativa geral é que o seu impacto seja tão profundo quanto o da revolução industrial. ” 4 Não é só o dinheiro que se tornou em simples sinais magnéticos registrados em computadores, é o conjunto da economia que desloca as suas formas de organização para o que André Gorz chamou de “o imaterial”. Não é mais a General Motors e semelhantes que dominam o jogo, são os sistemas de controle das finanças e das tecnologias, o GAFAM nos Estados Unidos, o BAT na China, os SIFIs (Systemically Important Financial Institutions). No centro da economia, não está mais a fábrica, estão as plataformas, os gestores de fortunas, os controladores da comunicação.5
É impressionante o recuo do Brasil com a submissão aos Estados Unidos no caso da tecnologia do G5, a desestruturação das capacidades de pesquisa da Petrobrás, o fechamento do programa de formação de cientistas no exterior, o travamento das bolsas de pesquisa e de pós-graduação, a venda mal abortada da Embraer, a transformação do país em mero comprador de patentes: o recuo nesta área terá impactos avassaladores sobre o futuro do país. Temos mais de um terço da população sem acesso à internet, numa era em que ficar fora do sistema digital significa isolamento social. Ainda temos universidades em que os alunos tiram xerox de capítulos acumulados nas pastas de professores.
Ainda travamos acesso aos textos científicos quando o MIT os disponibiliza na plataforma OCW (Open Course Ware), a China no sistema CORE (China Open Resources for Education). O Japão há décadas possui sistemas online de apoio tecnológico para pequenos produtores, inclusive de agricultura familiar. A Finlândia há 50 anos lançou o programa de generalização de elevação científico-tecnológica do país, com programas educacionais públicos, gratuitos e universais. No Brasil ainda se discute a privatização e distribuição de vouchers, proposta dos tempos de Ronald Reagan nos Estados Unidos. A subutilização da imensa capacidade criativa da população, ao se travar as oportunidades para a imensa maioria, constitui um crime contra as próximas gerações, e demonstra uma profunda ignorância do que Jessé Souza chamou adequadamente de A elite do atraso.
Celso Furtado tinha a ideia clara da importância do Estado e do planejamento. No nosso caso, em nome de ideologias ultrapassadas, está se paralisando o país, mas também comprometendo o seu futuro. A ideia do ‘Estado mínimo’ é simplesmente burra. Há coisas que a empresa privada faz melhor, como produzir tomate, bicicleta ou automóvel. Entregar para grupos privados serviços básicos como saúde, educação, cultura, segurança e outras políticas sociais leva a perdas radicais de eficiência. O maior setor econômico dos Estados Unidos é hoje a saúde, cerca de 20% do PIB. O custo dos serviços americanos de saúde, em grande parte privatizados, é de 10.400 dólares por pessoa por ano. No Canadá, onde os serviços de saúde são públicos, gratuitos e de acesso universal, o custo é de 4.400 dólares. O Canadá está entre os primeiros em termos de qualidade da saúde da população, no conjunto dos países da OCDE, enquanto os Estados Unidos entre os últimos.
Mariana Mazzucato, no seu O Estado Empreendedor, e no mais recente The Value of Everything, traz com força a importância do papel do Estado na promoção de políticas. Não se trata do tamanho do Estado, e sim dos efeitos multiplicadores, em termos de produtividade sistêmica do país, que pode trazer um Estado forte e orientado pelos interesses da nação. No nosso caso, com a apropriação de funções-chave do Estado por grupos privados, e a liquidação da regulação financeira, é o conjunto das atividades do país que é prejudicado, e inclusive tantas empresas produtivas que apoiaram os retrocessos políticos. Entramos na era da pandemia com 6 anos acumulados de marasmo econômico e social. Resgatar o papel do Estado como indutor de desenvolvimento, resgatar a função do planejamento na articulação dos recursos subutilizados, e em particular resgatar a regulação do sistema financeiro, para que financie o que é necessário ao país, são apenas pontos de partida. É impressionante ler no editorial do Financial Times de 4 de abril de 2020, em plena pandemia, de que “os governos terão que aceitar um papel mais ativo na economia, e devem ver os serviços públicos como investimentos, não como obrigações. ” Aqui economistas pré-históricos falam em Estado-mínimo e qualificam os serviços públicos como “gastos”. Que saudades de Celso Furtado.
Ladislau Dowbor
1 Ver ANEFAC, pesquisa mensal de juros – https://3783fb27-40b2-47fa-ab2d-4ffef8b3c87b.filesusr.com/ugd/21624f_3fc44b88833a444da1332c23eeec1c85.pdf
2 Dados da Forbes: https://dowbor.org/2020/02/18676.html/ Dados da Oxfam: https://dowbor.org/2020/07/bilionarios-da-america-latina-e-do-caribe-aumentaram-fortuna-em-us-482-bi-durante-pandemia-oxfam-brasil-2020-3p.html/
3 UNCTAD – Trade and Development Report 2017: Beyond Austerity, Towards a Global New Deal – Unctad, Geneva, 2017, p. ii
4 “The technology has such potential that its impact on society is widely expected to be as profound as the industrial revolution.” – New Scientist, April 23, 2018
5 Detalhamos essas transformações, e a gestação de um novo modo de produção informacional, em O Capitalismo se Desloca: novas arquiteturas sociais, SESC, São Paulo, 2020 – https://dowbor.org/wp-content/uploads/2020/05/Dowbor-O-capitalismo-se-desloca-Edicoes-SescSP-2020.pdf
O tratado da mentira ou como Pinóquio foi superado
Nós sabemos que a política, pela voz de seus agentes, não é o melhor veículo da verdade. A fidelidade à realidade não se apresenta como sua característica mais marcante. Assim é, sempre foi e será.
No entanto, existem limites claros e bem definidos. Há uma ética também no campo da mentira. Aquele que em seu nome infringe regras comezinhas da ética geral e da própria política não pode usar a política como escudo de proteção.
É mais ou menos como a isenção penal dada pela lei ao advogado que pratica os crimes de injúria ou de difamação, na discussão da causa; ao crítico literário que ofende numa crítica literária ou científica; ou ao funcionário público que fornece uma informação ou apreciação ofensiva no cumprimento de um dever de ofício.
Há nesses casos, também, fronteiras que, se ultrapassadas, obrigam ou permitem a punição pelo cometimento de crimes contra a honra. As ofensas do advogado devem estar em sintonia com a causa e com a necessidade para a sua discussão. A crítica literária não fica isenta de censura penal se extrapola o seu campo natural e denota intenção meramente ofensiva. Quanto ao agente público, o mesmo se dá, pois se as apreciações mostrarem o escopo de ofender, e não só de informar, ele deverá responder pelos excessos.
Assim é em relação à atividade política. O homem público perde a sua imunidade se comete exageros e usa expressões infamantes. Nessas hipóteses, sim, ele perde a sua imunidade.
Pois bem, quanto à mentira, aceita-se mais a do cidadão comum do que a do político. É plenamente aceitável a mentira folclórica, como a do pescador; aquela proferida na mesa de um bar para o mentiroso se vangloriar de algum feito; a mentira caridosa, com o objetivo de amenizar o sofrimento alheio. E não nos devemos esquecer do chamado mitomaníaco, que mente para narrar fatos e histórias imaginárias.
Dizia que para o político mentir é mais grave do que para o homem comum. A ética para alguém que ocupa cargo público, atua no Parlamento ou mesmo apenas exerce a política é muito mais rigorosa. Ele representa, pelo menos em teoria, uma linha de pensamento ideológico que agrega adeptos. Representa também, por meio do voto, aqueles que nele confiaram. É gestor e depositário da coisa e dos interesses públicos. Ainda no plano da teoria e do ideal, é portador da vontade de toda a sociedade.
Políticos podem mentir, talvez possam utilizar-se de mentirinhas veniais, sem consequências. Mas jamais lhes é permitido mentir para engodar, para ludibriar, para iludir todo um povo e outros povos.
A mentira com tais objetivos é inconciliável com os graves e superiores encargos que lhes são atribuídos pela Constituição da República, como representantes do povo. Como a mentira se compatibiliza com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com o desenvolvimento nacional, com a erradicação da pobreza e com a promoção do bem de todos (artigo 3.º da Carta Magna)?
O atual presidente da República tem nos brindado, neste um ano e tanto de mandato, com a descrição de um país imaginário, sonhado, mas não existente, um país criado pela sua imaginação. Uma descrição que agride a verdade e a nossa inteligência e, eu diria com toda a ênfase, a nossa tolerância. Pergunto: até quando?
Espanta-me verificar não haver um seu assessor, militar ou civil, direto ou indireto, que lhe diga: presidente, mentindo tanto, quando e se o senhor falar a verdade, ninguém acreditará.
Não, não deve haver ninguém que lhe diga o que ele deveria ouvir em prol do seu governo e do Brasil. Se houvesse, não o deixariam colocar-nos como um país perseguido pelos demais; negar a existência dos incêndios e do desflorestamento; tecer loas à política econômica; glorificar a luta contra a pandemia; indicar como responsáveis pela tragédia amazônica os índios e os povos ribeirinhos. Essas e outras preciosidades, que formam um assustador rol de acintes ao que vemos, ouvimos e sabemos, não seriam repetidas se ao seu lado houvesse patriotas.
O boneco Pinóquio, criado por seu dono, Gepeto, tinha um nariz que crescia à medida que mentia. No nosso Pinóquio caboclo nada cresce, além da justa revolta que provoca nos brasileiros dignos. E nem sequer temos um Gepeto para reclamar. Ele surgiu assim e foi, para governar, fruto da escolha de milhões de patrícios, que hoje devem estar amargando um doloroso arrependimento.
Em seu pronunciamento para o mundo, ele ultrapassou todos os limites de uma aceitação racional e de boa vontade. Não vou repetir as falácias. Não acredito que haja algum seu adepto que nelas tenha acreditado. Podem também mentir dizendo o contrário. Mas não é possível que tenham acreditado. Continuarão a apoiá-lo se quiserem, e continuarão a ter todo o nosso desprezo. Estarão apoiando a involução, o retrocesso, a marcha à ré de um país amado, mas desencantado com os seus filhos. Bem, apenas com alguns deles.
No entanto, existem limites claros e bem definidos. Há uma ética também no campo da mentira. Aquele que em seu nome infringe regras comezinhas da ética geral e da própria política não pode usar a política como escudo de proteção.
É mais ou menos como a isenção penal dada pela lei ao advogado que pratica os crimes de injúria ou de difamação, na discussão da causa; ao crítico literário que ofende numa crítica literária ou científica; ou ao funcionário público que fornece uma informação ou apreciação ofensiva no cumprimento de um dever de ofício.
Há nesses casos, também, fronteiras que, se ultrapassadas, obrigam ou permitem a punição pelo cometimento de crimes contra a honra. As ofensas do advogado devem estar em sintonia com a causa e com a necessidade para a sua discussão. A crítica literária não fica isenta de censura penal se extrapola o seu campo natural e denota intenção meramente ofensiva. Quanto ao agente público, o mesmo se dá, pois se as apreciações mostrarem o escopo de ofender, e não só de informar, ele deverá responder pelos excessos.
Assim é em relação à atividade política. O homem público perde a sua imunidade se comete exageros e usa expressões infamantes. Nessas hipóteses, sim, ele perde a sua imunidade.
Pois bem, quanto à mentira, aceita-se mais a do cidadão comum do que a do político. É plenamente aceitável a mentira folclórica, como a do pescador; aquela proferida na mesa de um bar para o mentiroso se vangloriar de algum feito; a mentira caridosa, com o objetivo de amenizar o sofrimento alheio. E não nos devemos esquecer do chamado mitomaníaco, que mente para narrar fatos e histórias imaginárias.
Dizia que para o político mentir é mais grave do que para o homem comum. A ética para alguém que ocupa cargo público, atua no Parlamento ou mesmo apenas exerce a política é muito mais rigorosa. Ele representa, pelo menos em teoria, uma linha de pensamento ideológico que agrega adeptos. Representa também, por meio do voto, aqueles que nele confiaram. É gestor e depositário da coisa e dos interesses públicos. Ainda no plano da teoria e do ideal, é portador da vontade de toda a sociedade.
Políticos podem mentir, talvez possam utilizar-se de mentirinhas veniais, sem consequências. Mas jamais lhes é permitido mentir para engodar, para ludibriar, para iludir todo um povo e outros povos.
A mentira com tais objetivos é inconciliável com os graves e superiores encargos que lhes são atribuídos pela Constituição da República, como representantes do povo. Como a mentira se compatibiliza com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com o desenvolvimento nacional, com a erradicação da pobreza e com a promoção do bem de todos (artigo 3.º da Carta Magna)?
O atual presidente da República tem nos brindado, neste um ano e tanto de mandato, com a descrição de um país imaginário, sonhado, mas não existente, um país criado pela sua imaginação. Uma descrição que agride a verdade e a nossa inteligência e, eu diria com toda a ênfase, a nossa tolerância. Pergunto: até quando?
Espanta-me verificar não haver um seu assessor, militar ou civil, direto ou indireto, que lhe diga: presidente, mentindo tanto, quando e se o senhor falar a verdade, ninguém acreditará.
Não, não deve haver ninguém que lhe diga o que ele deveria ouvir em prol do seu governo e do Brasil. Se houvesse, não o deixariam colocar-nos como um país perseguido pelos demais; negar a existência dos incêndios e do desflorestamento; tecer loas à política econômica; glorificar a luta contra a pandemia; indicar como responsáveis pela tragédia amazônica os índios e os povos ribeirinhos. Essas e outras preciosidades, que formam um assustador rol de acintes ao que vemos, ouvimos e sabemos, não seriam repetidas se ao seu lado houvesse patriotas.
O boneco Pinóquio, criado por seu dono, Gepeto, tinha um nariz que crescia à medida que mentia. No nosso Pinóquio caboclo nada cresce, além da justa revolta que provoca nos brasileiros dignos. E nem sequer temos um Gepeto para reclamar. Ele surgiu assim e foi, para governar, fruto da escolha de milhões de patrícios, que hoje devem estar amargando um doloroso arrependimento.
Em seu pronunciamento para o mundo, ele ultrapassou todos os limites de uma aceitação racional e de boa vontade. Não vou repetir as falácias. Não acredito que haja algum seu adepto que nelas tenha acreditado. Podem também mentir dizendo o contrário. Mas não é possível que tenham acreditado. Continuarão a apoiá-lo se quiserem, e continuarão a ter todo o nosso desprezo. Estarão apoiando a involução, o retrocesso, a marcha à ré de um país amado, mas desencantado com os seus filhos. Bem, apenas com alguns deles.
Sermão do Diabo
Bem aventurados os aleijados porque não distinguem as proporções dos
sentimentos morais e desenham triângulos tortos na areia.
Bem-aventurados os cegos de nascença porque rangem quando rangem
nas curvas os astros do cosmos sem música.
Bem-aventuradas as mulheres feias porque trocam sinais com a Via-Láctea
e são tangíveis a todas as semáforas.
Bem-aventurados os que morrem nas catástrofes ferroviárias porque a vida
foi de repente a sinistra aventura.
Bem-aventurados os desequilibrados líricos porque inventam tristes
gnomonias.
Bem-aventurados os que perdem os filhos porque, incendiados, são hábeis
em distinguir a estrela do naufrágio.
Bem-aventurados os mendigos porque pertencem às searas mitológicas.
Bem-aventurados os suicidas porque chegam de armas na mão ao outro
lado.
Bem-aventurados os indigentes porque resumem as misérias da poesia.
Bem-aventurados os bêbados sem remédio porque se extinguem no
crepúsculo como o carvão.
Bem-aventurado o que alimenta um mal secreto porque pode telefonar à
hiena e convidá-la para jantar.
Bem-aventurado o indivíduo que tem o rosto deformado porque pode
olhar a morte nos olhos e interrogá-la.
Bem-aventurados enfim todos os homens, todas as mulheres, todos os
bichos, bem-aventurados o fogo e a água, bem-aventuradas
as pedras e as relvas, bem-aventurados o Deus que cria o universo
e o demônio que o perdoa.
Paulo Mendes Campos
sentimentos morais e desenham triângulos tortos na areia.
Bem-aventurados os cegos de nascença porque rangem quando rangem
nas curvas os astros do cosmos sem música.
Bem-aventuradas as mulheres feias porque trocam sinais com a Via-Láctea
e são tangíveis a todas as semáforas.
Bem-aventurados os que morrem nas catástrofes ferroviárias porque a vida
foi de repente a sinistra aventura.
Bem-aventurados os desequilibrados líricos porque inventam tristes
gnomonias.
Bem-aventurados os que perdem os filhos porque, incendiados, são hábeis
em distinguir a estrela do naufrágio.
Bem-aventurados os mendigos porque pertencem às searas mitológicas.
Bem-aventurados os suicidas porque chegam de armas na mão ao outro
lado.
Bem-aventurados os indigentes porque resumem as misérias da poesia.
Bem-aventurados os bêbados sem remédio porque se extinguem no
crepúsculo como o carvão.
Bem-aventurado o que alimenta um mal secreto porque pode telefonar à
hiena e convidá-la para jantar.
Bem-aventurado o indivíduo que tem o rosto deformado porque pode
olhar a morte nos olhos e interrogá-la.
Bem-aventurados enfim todos os homens, todas as mulheres, todos os
bichos, bem-aventurados o fogo e a água, bem-aventuradas
as pedras e as relvas, bem-aventurados o Deus que cria o universo
e o demônio que o perdoa.
Paulo Mendes Campos
A boiada passa...
Caio é um adolescente incrível – bem humorado, sagaz, risonho, apaixonado e especialista em futebol, corintiano raiz, judoca com dois anos de prática e faixa cinza de ponta branca, conquistada no chão duro dos tatames. Adora dançar. É curtidor de funk, sertanejo, rock, musica latina e samba. Faz teatro, adora cinema e balada. Tem 16 anos e, com muito orgulho, cursa o primeiro ano do ensino médio. Tem certeza, chegará à faculdade de Educação Física para ser técnico de futebol. “O primeiro treinador/professor down do mundo”, promete.
A família vai atrás, cobra. Quando não resolve, procura outra escola. Tarefa difícil no país onde, ainda que a lei exija, há o famoso jeitinho de fazer que está cumprindo, sem cumprir de fato.
Felizmente, na seara pública e privada, há escolas e profissionais, empenhados na inclusão de fato. Dedicação que é sempre premiada com bons resultados. “Eu gosto de aprender de verdade”, explica Caio, que adora ter notas altas. E tem.
Coisas como ser informado que determinado colega deixou a escola porque a família não aceitava que o filho estivesse em sala de aula com “crianças assim”.
Ou seja, eles precisam voltar ficar à parte, separados dos ditos normais. Com o novo decreto modelo bolsonazi as poucas escolas inclusivas – publicas e privadas - de poucas vagas, estarão desincentivadas e desobrigadas de investir na integração dos diferentes, dos que demandam maior capacitação dos professores, mais esforço e paciência no processo de aprendizado.
A legislação tem papel fundamental na promoção da integração social e no desenvolvimento intelectual de pessoas com deficiência ou com altas habilidades. Sim. Os superdotados também têm dificuldades para inclusão.
Desde 1988, quando ficou assentado na Constituição que a educação é direito de todos, independente de condição física, intelectual, social, política ou religiosa, leis, decretos e resoluções foram definindo e abrindo portas para a educação inclusiva. Os resultados são positivos para todos.
A diversidade enriquece os processos de educação e de conhecimento. Mas, numa penada, o Brasil pode anular três décadas na caminhada de pais e professores para o direito real à educação formal para todos, em todas as escolas, até o nível superior.
Caio sonha com a universidade. Sabe das suas dificuldades e as encara. Sabe tanto que, ao ser elogiado porque cantou bem, diz: “Menos. Eu ainda tenho que melhorar muito pra cantar bem de verdade.” Sabe que não é convidado para todas as festas de aniversário de colegas porque é diferente. “A vida é assim”, simplifica.
Caio não sabe ainda que, parece, o Brasil tem caveira de burro enterrada. Cada período de avanços sociais, políticos e econômicos – é seguido de retrocessos, desmandos e descasos, que levarão anos para serem eliminados.
Por enquanto, Paulo Freire que nos perdoe a indigência desses tempos bicudos.
Desde a pré-escola, Caio estuda em escolas inclusivas, particulares. São poucas, com poucas vagas. Umas melhores, outras nem tanto. Algumas aceitam o aluno especial, mas estão longe de cumprir o prometido – a inclusão de fato. Nessas, o “incluído” é sempre tratado como café-com-leite, aquele que aprende menos, aquele escanteado no esforço de ensinar. Caio já viveu isso. Sentia e se rebelava. “Por que eu tenho que ficar fazendo desenho de criancinha quando os outros estão na aula de inglês?”
A família vai atrás, cobra. Quando não resolve, procura outra escola. Tarefa difícil no país onde, ainda que a lei exija, há o famoso jeitinho de fazer que está cumprindo, sem cumprir de fato.
Felizmente, na seara pública e privada, há escolas e profissionais, empenhados na inclusão de fato. Dedicação que é sempre premiada com bons resultados. “Eu gosto de aprender de verdade”, explica Caio, que adora ter notas altas. E tem.
Para trazê-lo até o ensino médio, a família e ele esbarraram em obstáculos de muitas ordens – preconceito, discriminação, má vontade, descrença, às vezes, desqualificação, booling, descaso e até deboche.
Coisas como ser informado que determinado colega deixou a escola porque a família não aceitava que o filho estivesse em sala de aula com “crianças assim”.
Deve ter sido para atender a essa gente que, na contramão de todos os princípios da educação moderna, na semana passada, foi publicado decreto presidencial incentivando a criação de salas e escolas especiais para “crianças com deficiências, transtornos globais do desenvolvimento, como autismos e superdotação”.
Ou seja, eles precisam voltar ficar à parte, separados dos ditos normais. Com o novo decreto modelo bolsonazi as poucas escolas inclusivas – publicas e privadas - de poucas vagas, estarão desincentivadas e desobrigadas de investir na integração dos diferentes, dos que demandam maior capacitação dos professores, mais esforço e paciência no processo de aprendizado.
A legislação tem papel fundamental na promoção da integração social e no desenvolvimento intelectual de pessoas com deficiência ou com altas habilidades. Sim. Os superdotados também têm dificuldades para inclusão.
Desde 1988, quando ficou assentado na Constituição que a educação é direito de todos, independente de condição física, intelectual, social, política ou religiosa, leis, decretos e resoluções foram definindo e abrindo portas para a educação inclusiva. Os resultados são positivos para todos.
A diversidade enriquece os processos de educação e de conhecimento. Mas, numa penada, o Brasil pode anular três décadas na caminhada de pais e professores para o direito real à educação formal para todos, em todas as escolas, até o nível superior.
Com a nossa complacência, a boiada vai tratorando a diversidade. O objetivo é a eugenia de inspiração nazi. Só pode.
Caio sonha com a universidade. Sabe das suas dificuldades e as encara. Sabe tanto que, ao ser elogiado porque cantou bem, diz: “Menos. Eu ainda tenho que melhorar muito pra cantar bem de verdade.” Sabe que não é convidado para todas as festas de aniversário de colegas porque é diferente. “A vida é assim”, simplifica.
Talvez nem sofra por isso. Já entendeu que o mundo é um pouco mais difícil pra ele. Mas vai que vai, confiando que tem espaço para ser o que quiser. Feliz, lê, copia e repassa notícias sobre downs – meninos e meninas – que são campeões de várias modalidades de esportes, dos que são professores, advogados, artistas, bailarinos, modelos e etc.. Deve entender que são os que tiveram – e têm ; mais respeito, mais oportunidades.
Caio não sabe ainda que, parece, o Brasil tem caveira de burro enterrada. Cada período de avanços sociais, políticos e econômicos – é seguido de retrocessos, desmandos e descasos, que levarão anos para serem eliminados.
Por enquanto, Paulo Freire que nos perdoe a indigência desses tempos bicudos.
Amigos do peito
Não constitui problema um presidente da República ter amigos do peito em outros Poderes. As relações de caráter pessoal do chefe do Executivo com alguns integrantes do Legislativo e do Judiciário são até presumíveis, dada a convivência cotidiana em Brasília, que em alguns casos pode chegar a décadas. O problema é quando essa relação sugere que tem outros propósitos além do cultivo de uma amizade sincera.
A democracia presume a separação de Poderes. Esse princípio, pilar do Estado de Direito, é antídoto contra a tentação autoritária de quem pretende concentrar poderes que a Constituição não lhe faculta. É evidente que o Executivo, o Legislativo e o Judiciário não são estanques. Sua relação se dá por meio dos chamados freios e contrapesos, fórmula que propicia fiscalização mútua e impõe obstáculos a qualquer tentativa de usurpação de poder.
Para que funcione conforme o espírito constitucional, de forma harmônica, essa relação deve se dar exclusivamente no ambiente institucional, a salvo de interesses particulares dos ocupantes temporários dos cargos nos Três Poderes. Há mais de 200 anos é assim, ao menos nas democracias maduras.
Diante dessas considerações, vem causando justificável estupor o modo como o presidente Jair Bolsonaro pretende construir as relações de sua Presidência com o Supremo Tribunal Federal (STF). Sua primeira nomeação para aquela Corte, a do desembargador Kassio Nunes Marques, serve a um único propósito, conforme o próprio presidente admite sem corar: ter no topo do Judiciário um ministro que esteja “100% alinhado comigo”, como Bolsonaro escreveu recentemente numa rede social. Esse “alinhamento”, segundo o presidente, significa ser contra o aborto e a favor do armamento da população, além de “defender a família e as pautas econômicas”.
“Preciso governar”, disse o presidente Bolsonaro a um apoiador que o criticou pelo abraço em Toffoli, como se seu governo dependesse de relações de caráter pessoal, e não institucional. E depende mesmo: sabendo que “governar”, para Bolsonaro, é manter-se no poder a qualquer custo, proteger seus filhos na Justiça e de quebra ajudar os companheiros do Centrão que lhe dão apoio crucial neste momento, é natural que o presidente ainda venha a precisar de muitos amigos do peito.
A democracia presume a separação de Poderes. Esse princípio, pilar do Estado de Direito, é antídoto contra a tentação autoritária de quem pretende concentrar poderes que a Constituição não lhe faculta. É evidente que o Executivo, o Legislativo e o Judiciário não são estanques. Sua relação se dá por meio dos chamados freios e contrapesos, fórmula que propicia fiscalização mútua e impõe obstáculos a qualquer tentativa de usurpação de poder.
Para que funcione conforme o espírito constitucional, de forma harmônica, essa relação deve se dar exclusivamente no ambiente institucional, a salvo de interesses particulares dos ocupantes temporários dos cargos nos Três Poderes. Há mais de 200 anos é assim, ao menos nas democracias maduras.
Diante dessas considerações, vem causando justificável estupor o modo como o presidente Jair Bolsonaro pretende construir as relações de sua Presidência com o Supremo Tribunal Federal (STF). Sua primeira nomeação para aquela Corte, a do desembargador Kassio Nunes Marques, serve a um único propósito, conforme o próprio presidente admite sem corar: ter no topo do Judiciário um ministro que esteja “100% alinhado comigo”, como Bolsonaro escreveu recentemente numa rede social. Esse “alinhamento”, segundo o presidente, significa ser contra o aborto e a favor do armamento da população, além de “defender a família e as pautas econômicas”.
É prerrogativa do presidente escolher quem bem entender para o Supremo, desde que atendidas as exigências constitucionais de notório saber jurídico e reputação ilibada. Também é natural que o indicado represente valores caros ao eleitorado do presidente, legitimados pelas urnas. O que não é natural nem saudável numa democracia é quando o presidente pretende que seu indicado ao Supremo atue como advogado de seus interesses pessoais, o que se depreende de sua insistência em classificar o desembargador Kassio Nunes Marques como um amigo: “Kassio Nunes já tomou muita tubaína comigo. A questão de amizade é importante, né? O convívio da gente”.
Mas as amizades estratégicas de Bolsonaro, com ou sem tubaína, não se limitam a seu indicado ao Supremo. O abraço afetuoso entre o presidente e o ministro do STF Dias Toffoli, numa “confraternização” na casa do magistrado no fim de semana, é a constrangedora imagem da ausência de limites institucionais na república bolsonariana.
Nessa república, o presidente age como se não fosse ocupante temporário do cargo e, assim, não precisasse observar a liturgia que garante a impessoalidade do exercício da Presidência. Procura estabelecer com integrantes do Judiciário laços de compadrio que embutem uma óbvia expectativa de cumplicidade. Faz campanha pessoal por seu indicado ao Supremo como se fosse um cabo eleitoral. Só falta distribuir santinhos.
Tudo muito conveniente para quem é o chefe de um clã enroscado com a Justiça e é, ele mesmo, investigado. Também é muito conveniente para quem tem como base parlamentar um grupo de partidos e políticos que, em razão dos muitos processos que enfrentam por corrupção, estão igualmente interessados em cultivar relações de camaradagem no Judiciário.
Mas as amizades estratégicas de Bolsonaro, com ou sem tubaína, não se limitam a seu indicado ao Supremo. O abraço afetuoso entre o presidente e o ministro do STF Dias Toffoli, numa “confraternização” na casa do magistrado no fim de semana, é a constrangedora imagem da ausência de limites institucionais na república bolsonariana.
Nessa república, o presidente age como se não fosse ocupante temporário do cargo e, assim, não precisasse observar a liturgia que garante a impessoalidade do exercício da Presidência. Procura estabelecer com integrantes do Judiciário laços de compadrio que embutem uma óbvia expectativa de cumplicidade. Faz campanha pessoal por seu indicado ao Supremo como se fosse um cabo eleitoral. Só falta distribuir santinhos.
Tudo muito conveniente para quem é o chefe de um clã enroscado com a Justiça e é, ele mesmo, investigado. Também é muito conveniente para quem tem como base parlamentar um grupo de partidos e políticos que, em razão dos muitos processos que enfrentam por corrupção, estão igualmente interessados em cultivar relações de camaradagem no Judiciário.
“Preciso governar”, disse o presidente Bolsonaro a um apoiador que o criticou pelo abraço em Toffoli, como se seu governo dependesse de relações de caráter pessoal, e não institucional. E depende mesmo: sabendo que “governar”, para Bolsonaro, é manter-se no poder a qualquer custo, proteger seus filhos na Justiça e de quebra ajudar os companheiros do Centrão que lhe dão apoio crucial neste momento, é natural que o presidente ainda venha a precisar de muitos amigos do peito.
Assinar:
Postagens (Atom)