quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Brasil recriado

 


O peste e a peste

A palavra, substantivo de dois gêneros, define pessoa de características tenebrosas, das quais quanto mais longe ficarmos melhor. Indica também doença infecciosa, altamente contagiosa, capaz de causar pandemias, com número incontável de mortes.

No momento, convivemos com os dois. Direta ou indiretamente, contribuímos para a existência de ambos. Seres humanos, exaurimos a terra e a natureza ao ponto de perdermos o controle sobre o que seria evitável, curável ou remediável.

Brasileiros, eleitores, demos poder a um peste. Ruim de tudo – de sentimento, de palavras, de conhecimento, de comportamento. Péssimo sujeito a quem, pelo voto, nos sujeitamos.


Quem elegeu presidente o Jair, que até pra sindico seria temerário? Não foram os 20% que, orgulhosamente, têm nele seu igual, seu representante, seu mito. Foram outros muitos tantos, que tamparam o nariz e cravaram 17 na urna eletrônica. Essa que, agora, tentam salvar da pestilência do peste.

Hoje, esses e nós – os que conheciam, temiam e não votaram no peste – vamos, talvez, encarar, nas fuças, carros blindados, aeronaves, lançadores de mísseis e foguetes. Serão, prometem, 150 veículos militares passeando pela Esplanada dos Ministérios, por ordem de Jair.

Não é parada de 7 de setembro. É só 10 de agosto. O dia em que deputados, em plenário, decidem entre o mimeógrafo e o smartfone. Digo, entre a urna eletrônica e o voto impresso.

Com o bonde da força armada, Jair faz sua cena da semana. Mais uma.

O peste quer mostrar que tem mais do que seus motoqueiros, devidamente bem armados, na tarefa de segurar o traseiro na cadeira presidencial. Dia sim outro também, Jair ameaça desembainhar espadas das Forças Armadas e, com elas, sapatear fora das quatro linhas da Constituição em vigor. A tal que, em 2019, jurou respeitar.

Como chegamos a isso? Em que país dos democráticos um PR chama de FDP um ministro de Corte Suprema? Aqui. E, votando, chegamos a tanto.

Voto errado! Concedem hoje os isentões. Os tais que, em 2018, votariam no próprio demônio contra o PT – “a esquerda que saqueou o país”. Fi-lo porque qui-lo, diria Jânio, o da vassoura que empoeirou o país de desgraças.

Pois então. Deliberadamente, fecharam com o peste dos infernos. Agora, lamentam a vida infernizada, confiança e esperança saqueadas diariamente. Fardo pesado que, graças à turma da coluna do meio, carregamos todos.

O Brasil não merece isso.

Como assim, não merece?

Quem põe canga em burro indomado espera montar pra passeio tranquilo?

Ninguém foi isento ao votar no Jair. Há os que o queriam e o querem como herói. E os que quiseram derrotar o PT, mudar a maneira de conduzir o país. Apostaram no peste querendo acreditar que davam a cadeira de presidente a um pândego domável pelo Mercado, pelas Instituições democráticas.

O Mercado não é gente, não tem alma, nem ideologia ou responsabilidade. Compromisso? Só com a Bolsa. As Instituições democráticas padecem achincalhadas pelo capitão sem farda, armado até os dentes de maus propósitos.

Dá até para fazer piada com a desgraceira advinda do Jair e sua tropa. Não dá para ignorar a ameaça. Pelo nosso histórico golpista, não dá para não temer coisa pior.

Não há inocentes entre os que deram ao Jair 57,7 milhões de votos, 55% dos votos validos. Voto tem consequência e preço. E a conta alta, infelizmente, cai sobre nós todos.

Dá uma olhada em volta. Veja o país desmoronando. Veja a população de rua, crescente. Gente de mãos vazias e olhos tristes, desumanizados. O gás a 100, gasolina a mais de 6 reais… Até junho/21, registrava o IBGE, a inflação acumulada bateu 8,35%. **

E ainda tem A peste, a pandemia. Mais de 550 mil mortos. Ainda não somamos os órfãos.

Tá osso! E, descontando o gado, os minions, há muitas responsabilidades a serem admitidas e assumidas. Quem sabe, devidamente, processadas, possam fortalecer corrente capaz de conter, manter Jair, O peste, restrito ao quadradinho de seu inferno pessoal.

**Em 12 meses, a inflação na feira.
Óleo de Soja: 83,79
Feijão fradinho: 48,19%
Arroz: 46,21%
Músculo: 46,06%
Acém: 40,11%
Repolho: 38,59%
Carne de porco: 32,65%
Salsicha em conserva: 30,45%
Gás veicular: 30,03%
Açúcar cristal: 28,38%
Linguiça: 24,90%
Alface: 24,66%
Mandioca (aipim): 24,32%
Feijão-preto: 22,92%
Fubá de milho: 22,01%
Leite condensado: 21,26%
Fígado: 20,91%
Sardinha em conserva: 20,59%
Margarina: 20,03%
Gasolina: 42,21%
Gás de botijão: 24,25%
Óleo diesel: 40,74%
Etanol: 59,61% (subiu de novo hoje)

Refrescando a memória encalhada

 


Brincando com blindados

Quando era pequeno, eu adorava brincar com miniaturas de soldados e tanques de guerra. Na época, nos anos 80, podia-se comprar dúzias de bonequinhos de plástico, por pouco dinheiro, em qualquer supermercado. Era um sonho. Aí, ao entrar na puberdade, passei a ter vergonha dos joguinhos de guerra. Tocar violão e ler livros inteligentes era a jogada certa para quem queria ganhar pontos com os amigos e o sexo oposto.

Quando homens adultos exibem o potencial militar de seu país, a intenção é intimidar tanto outros países quanto os inimigos internos: "Vejam só que armas imponentes e aniquiladoras eu tenho!" Vemos as gigantescas paradas na China, Rússia ou Coreia do Norte, em que os líderes – todos homens, aliás – mostram seus músculos. Quanto à discussão sobre até que ponto isso seja também uma demonstração de potência, prefiro deixar para os psicoterapeutas.

O desfile de um comboio militar pela Esplanada dos Ministérios e pela Praça dos Três Poderes em Brasília não foi nenhum sinal para os vizinhos. Não se tratava de dissuadir a Argentina, Paraguai ou Guiana de um avanço sobre o Brasil: ele serviu unicamente para sublinhar a recente ameaça de Bolsonaro de que poderia agir fora da Constituição.

Após ameaçar o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes – "A hora dele vai chegar" – e xingar o colega dele Luís Roberto Barroso de "filho da puta", agora rolam os tanques.


A sugestão de violência contra adversários políticos – e a passagem do comboio nada mais é que isso – sempre fez parte dos truques de Bolsonaro. O suposto plano de explodir bombas em quartéis – com que, nos anos 80, o capitão pretendia pressionar o comando do Exército por aumento de salários – já seguia esse esquema.

Mais tarde, nos anos 90, ele mencionaria 30 mil oposicionistas que era melhor a ditadura ter matado. Numa mensagem de vídeo, pouco antes das eleições de 2018, ameaçou expulsar os seus rivais do país.

Bolsonaro sabe do efeito traumático que a perspectiva de violência concreta tem sobre seus opositores políticos. A ameaça de sair das "quatro linhas" da Constituição joga com o medo primordial humano de recaída numa situação social anárquica, em que o mais fraco está indefeso diante de quem tem vantagem física.

O Estado moderno, baseado na divisão dos Poderes e nos pesos e contrapesos, visa justamente evitar isso, permitindo, assim, a seus cidadãos viverem em paz entre si.

Em muitos bairros pobres brasileiros já – ou melhor, ainda – reina aquele estado primordial anárquico. Lá, a passagem de tanques não é nada fora do comum. Mais ainda: atira-se com munição viva a partir de helicópteros e veículos blindados, e muitas vezes as balas atingem crianças e moradores a caminho da escola ou do trabalho.

Lá se joga roleta russa com a população. Morrer ou viver não depende de ser um cidadão de bem ou um bandido, de ser um bom cristão ou ateu: é puro acaso.

A ameaça de Bolsonaro se dirige àquelas parcelas da classe média e alta que não gostam dele – as quais, segundo pesquisas de opinião, são uma grande maioria dos brasileiros. Desse modo, ele ameaça ampliar essa zona anárquica para incluir as vidas até então tranquilas e protegidas dos seus opositores. É a ameaça de transformar suas vidas também num caos, igual às das classes pobres.

Esse truque de mágico de rua só funciona porque a sociedade brasileira, apesar de todas as asseverações das Forças Armadas, não está segura de que não possam se repetir uma tomada de poder como a de 1964 e o subsequente terror.

Tais dúvidas são reforçadas pela poderosa presença dos militares no governo Bolsonaro. Nomear o general Eduardo Pazuello ministro da Saúde foi um sinal claro: não importa quantos brasileiros morram de covid-19, "um manda, o outro obedece".

Entretanto, culpados pela atual bagunça são também os outros Poderes, o Judiciário e o Legislativo. Nenhum dos dois quis ou ousou impor limites ao deputado Bolsonaro quando ele pregou o fuzilamento do então presidente Fernando Henrique Cardoso; ou exaltou o torturador Carlos Brilhante Ustra durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff.

Agora, a questão é correr atrás do prejuízo. A Justiça decidiu proceder contra o presidente por divulgação de notícias falsas. Paralelamente, a CPI no Senado visa responsabilizá-lo por sua política para a pandemia de covid-19. E, ignorando os blindados, ainda no mesmo dia a Câmara bloqueou a PEC do voto impresso.

Tudo isso traz esperanças de que os truques de camelô de Bolsonaro sejam finalmente desmascarados como tal. E de que, tomara, não passem mesmo de truques baratos.
Thomas Milz

Presidente deu mais um tiro no pé – desta vez no dos militares

O que foi mais vexaminoso em Brasília? Uma minúscula parada militar não prevista em nenhum calendário para a entrega de um convite ao presidente da República? Ou o estado deplorável de parte dos equipamentos bélicos exibidos com a intenção de meter medo nos deputados prestes a decidir sobre o voto impresso?


A exibição de 40 veículos da Marinha, entre blindados, caminhões e jipes, provocou riso e foi motivo de deboche nas redes sociais. Ali, segundo levantamento da Quaest Pesquisa, dos 2,3 milhões de posts publicados, 93% foram de chacota ou crítica ao governo federal. Mais um tiro no pé, e desta vez no das Forças Armadas.

Na época da ditadura militar, essas coisas eram feitas com mais cuidado. Foi montado em um cavalo branco, com a farda impecável e um chicote na mão, que o general Newton Cruz, notório pelos maus bofes, reprimiu manifestantes que esperavam defronte ao Congresso a aprovação da emenda das Diretas, já.

Verdade que não faltou um toque de ridículo. O Exército depois distribuiu fotos do saque a um supermercado onde aparecia um homem carregando um suposto explosivo que não chegou a ser detonado. O Jornal do Brasil descobriu que o explosivo não passava de uma lata de Nescau. O guerrilheiro Nescau.

Faltou gente na rua para observar a entrega pelo comandante da Marinha do convite ao presidente Jair Bolsonaro que ostentava seu sorriso de plástico ao lado do ministro Braga Neto, da Defesa, e dos chefes do Exército e da Força Aérea. Desperdiçou-se combustível com um ato que se revelou inócuo.

Uma militante do PT, vestida com uma blusa onde pedia o impeachment de Bolsonaro, ainda tentou salvar as aparências oferecendo flores ao piloto de um dos blindados. Quando nada, lembrava vagamente uma cena da Revolução dos Cravos, em Portugal, que inspirou uma música de Chico Buarque de Holanda.

O esforço valeu, mas as aparências não foram salvas. Vozes em off tentaram salvar a face do comandante do Exército ao soprar que ele estava ali visivelmente constrangido. Se Bolsonaro alcançar seu objetivo de dar um golpe caso não se reeleja, só faltará que digam que os militares o apoiaram por puro constrangimento.

A marcha da insensatez

Bolsonaro vai dar um golpe? Quando? Como será? Ninguém tem respostas exatas a essas questões por uma razão muito simples: o fator militar. É difícil avaliar a extensão do respaldo fardado a Bolsonaro porque pouco se sabe sobre o que acontece nos quartéis. Nem ele sabe ao certo. Se estivesse seguro quanto a uma eventual retaguarda, talvez já tivesse arriscado um lance mais ousado, que desse concretude à sua obsessão golpista.


Quando os fardados falam, por meio da imprensa, é essencial distinguir informação de contrainformação ou, simplesmente, blefe. Quase sempre, protegidos pelo “off the record” produzem versões e teorias da conspiração à vontade. Contribuem mais para adensar o nevoeiro do que para dissipá-lo. A bem da verdade, são treinados para isso.

Que algum suporte existe, é fato. Mal qual seria o grau de participação e/ou de adesão de comandantes e comandados a uma ruptura da legalidade? O bolsonarismo contaminou bolsões radicalizados ou já tornou-se metástase fora de controle?

Dúvidas semelhantes se aplicam ao conjunto das forças de segurança do país: polícias militares e civis dos estados, Polícia Federal, Força Nacional, Polícia Rodoviária Federal. Para turvar ainda mais o cenário, há as milícias, cevadas pela facilidade de acesso às armas, e que, no Rio de Janeiro, travam sangrenta disputa por territórios.

Mesmo sem um quadro nítido do apoio armado a Bolsonaro, o que parece certo é que ele não precisa do apoio majoritário, mas apenas de setores dessas forças dispostos a fomentar ambiente de turbulência e desordem pública que justifique medidas de força e exceção. Daí para a quebra institucional, é uma canetada.

Militares não dão golpe sozinhos. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), contribuiu com a marcha da insensatez, ao prolongar a discussão sobre o voto impresso, levando-a para o plenário. Deu de presente a Bolsonaro mais uma oportunidade de esticar a corda, desta vez, ameaçando com desfile de tanques de guerra em Brasília.