sábado, 4 de janeiro de 2020

O último ano perdido na guerra pelo clima?

Apesar dos relatórios científicos, das manifestações de jovens por todo o mundo e das cimeiras intermináveis entre países, os factos ainda são o que são: em 2019, as emissões de gases com efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global, aumentaram em relação ao ano anterior. Ou seja, o gráfico das emissões globais continuou a subir, mais uma vez, exatamente como tem sucedido desde que se iniciou o período industrial. Como se, na prática, todos continuássemos a ignorar tudo aquilo que já conhecemos, de ciência certa, sobre as consequências do aumento da temperatura média no planeta. Sabemos que estamos a “fritar” a Terra, mas continuamos a “fritá-la” mais e mais, como se não fosse nada connosco – como se bastassem uns quantos sobressaltos e umas quantas indignações, somadas a algumas práticas de reciclagem, para nos sentirmos de consciência limpa e atirarmos a culpa para cima dos “outros”.


Tentemos, no entanto, ser um bocadinho otimistas, atendendo à época de novo ano, em que são admissíveis as mais delirantes resoluções. Assim, se olharmos com atenção, até podemos encontrar alguns ligeiríssimos sinais positivos nos cálculos divulgados pelo Global Carbon Project. Um deles é o facto de o aumento das emissões, em 2019, ter sido de apenas 0,6% – um valor inferior ao registado em 2018 (2,1%) e até à média de crescimento anual ao longo da última década (0,9%). Os números também indicam que tanto a União Europeia como os Estados Unidos da América conseguiram ligeiras diminuições nas suas emissões perigosas, graças à diminuição da produção nas centrais a carvão.
Só que, na verdade, a realidade não dá muito espaço para o otimismo. No caso da União Europeia, por exemplo, registou-se um aumento do consumo de combustíveis, tanto para automóveis como para aviões. Isto significa que a redução das emissões foi conseguida apenas à custa do carvão, mas que nada foi feito para promover a transição para os veículos elétricos e que, portanto, a situação pode inverter-se novamente. Também nos EUA, o ligeiro abrandamento nas emissões não chega para compensar o aumento de 2,8% medido em 2018. Mais: sabendo o que Donald Trump pensa sobre o assunto e a forma como tem revogado muitas das medidas lançadas por Obama para o controlo das emissões, não existem quaisquer garantias de que esta diminuição se vá manter no próximo ano – até porque, convém recordar, 2020 é ano bissexto e, portanto, existe mais um dia para poluir e fazer aumentar, assim, a média final de emissões de carbono.

Tendo em conta o que se viu na última cimeira do clima, em Madrid, com os principais países a mostrarem-se incapazes de assumir compromissos ambiciosos e medidas concretas para impedir o aquecimento global, tudo indica que não se pode ser muito otimista sobre o que pode ocorrer no ano que agora começa. Embora, mais uma vez, tenhamos todos consciência da realidade e estejamos devidamente avisados sobre as consequências. As Nações Unidas alertaram, há já algum tempo, que as emissões de carbono precisam de ser reduzidas 7,6% por cada ano, entre 2020 e 2030, para se evitar a “catástrofe climática”. Por aquilo que tem sido a tendência dos últimos anos, não será ainda neste 2020 que iremos assistir a essa inversão. Quase de certeza, 2020 não será o primeiro ano em que o índice das emissões começa a descer.

Apenas nos resta, por isso, esperar que 2020 seja o último ano perdido na luta contra o aquecimento global. O último ano em que se continuaram a adiar as decisões mais importantes para o nosso futuro. É esse o único otimismo que nos resta.

Paraísos imperfeitos

A paisagem era um anúncio publicitário para óculos de sol, relógios caros ou roupa de praia. O mar azul turquesa, liso como um espelho, parecia quase irreal. A ilha, ao fundo, com um rendado debrum de areia branca e uma alta coroa de palmeiras, destacava-se contra o azul metálico do céu. Então, o barco parou e nós mergulhamos. 

Praia em Moçambique
O fundo do mar era uma lixeira imensa. Nunca cheguei a perceber como todo aquele lixo chegara até ali, uma pequena ilha deserta, perdida entre as mais de 17.000 que constituem o vastíssimo arquipélago da Indonésia.

Levantando a cabeça eu via o paraíso, baixando os olhos via o inferno. Isso hoje já não me surpreende. Aprendi, com o passar dos anos, que todo o paraíso esconde um certo inferno. Para o encontrar temos apenas de baixar os olhos, de mergulhar, ou de escavar um pouco. Essa experiência fez-me desconfiar para sempre da expressão “paraíso perfeito”.

No primeiro dia deste ano voltei a lembrar-me da Indonésia, ao mergulhar numa das praias da Ilha de Moçambique, pequena cidade histórica, no norte do país, à qual muitas vezes os visitantes também se referem como um “paraíso perfeito”. Aquela paisagem belíssima esconde, sob a superfície lisa das águas, um descuido de décadas: todo o tipo de objeto de plástico, cacos de vidro, o triste lixo que a humanidade rejeita. 

Semana sim, semana não, lemos nos jornais notícias de mais uma baleia encontrada morta, com toneladas de plástico no estômago. Há cinco enormes ilhas de lixo, uma delas do tamanho de três minas gerais, flutuando nos oceanos Pacífico, Índico e Atlântico. Ainda estarão ali depois que a humanidade tiver desaparecido, se entretanto não formos capazes de criar micro-organismos capazes de digerir o plástico.

A boa notícia é que há cada vez mais países decididos a combater o plástico. A partir do próximo ano, a venda de produtos de plástico de utilização única será proibida em todo o território da União Europeia. Curiosamente, os africanos adiantaram-se aos europeus. Em 2008, Ruanda proibiu as sacolas de plástico. Outros países africanos, como Tanzânia, Uganda, Egito e Quênia, seguiram o exemplo dos ruandeses. No Quênia, quem insistir em fabricar e comercializar sacos de plástico arrisca-se a ser condenado a quatro anos de cadeia, além de ter de pagar pesadas multas.

As políticas proibicionistas só terão sucesso se os governos desses países investirem na criação de uma consciência ecológica. Em alguns casos, as sociedades civis adiantam-se aos governos. É assim em Moçambique, onde um jovem jurista, Carlos Serra Júnior, percorre as praias do país, mobilizando multidões, que se juntam para recolher detritos de plástico e outro lixo. Carlos Serra tenta convencer as pessoas dos benefícios econômicos e sociais resultantes da implementação de boas políticas de proteção do ambiente. Se algum dia for possível descrever a Ilha de Moçambique, com justiça, como um paraíso perfeito, será graças a heróis como ele.

Brasil do ano novo jurássico


Cidades nórdicas têm a ensinar sobre viver bem

Ir ao trabalho de bicicleta, trem ou até de patins no gelo. Usar a academia ao ar livre gratuita em um parque bem cuidado ao lado do seu escritório na hora do almoço. Passar o fim de semana em uma exposição interativa de design sem sair de seu apartamento. Essas podem parecer atividades de alguma cidade do futuro, mas, para muitas pessoas que vivem nos países nórdicos (os três escandinavos — Suécia, Noruega e Dinamarca — mais Finlândia e Islândia), isso faz parte de sua realidade cotidiana, graças a uma abordagem única a planejamento urbano.

"Nos países nórdicos, há muito tempo existe uma ênfase na vida urbana das pessoas", explica David Pinder, professor de estudos urbanos na Universidade Roskilde, na Dinamarca. Por isso, os responsáveis pelo planejamento de cidades priorizaram condições de moradia, sustentabilidade, mobilidade e empoderamento dos cidadãos, criando parques verdes, espaços públicos bem iluminados, robustas malhas de transporte público e instalações acessíveis para crianças e idosos.

Também houve ênfase na construção de sociedades mais iguais, diz ele, um objetivo acompanhado por "uma forte disciplina de participação", que encoraja os tomadores de decisão a pensar em diversos grupos ao planejar novas áreas urbanas e incluí-los diretamente nas discussões.

Uma breve análise de vários índices globais de habitabilidade indica que esses métodos parecem estar funcionando. Capitais como Copenhague, Estocolmo, Oslo e Helsinque figuram bem colocadas em rankings de cidades com melhor qualidade de vida em 2019 da consultoria global Mercer e da revista internacional de estilo de vida Monocle.

Os países nórdicos têm uma rica história de planejamento assistencial,
 que visa criar sociedades igualitárias e habitáveis

Estocolmo recentemente ficou em segundo lugar na categoria sustentabilidade no Índice Arcadis de Cidades Sustentáveis. Copenhague, que tem pouco menos de 800 mil habitantes, ficou em nono lugar no ranking de habitabilidade da Economist Intelligence Unit. Embora esses estudos usem critérios ligeiramente diferentes, todos eles destacam a percepção de sucesso do modelo de planejamento urbano nórdico ao priorizar a qualidade de vida e buscar um futuro mais verde.

Alimentadas pelo crescente interesse internacional de entender porque os países nórdicos estão se saindo tão bem, três das principais universidades da região recentemente uniram forças para lançar o primeiro programa de mestrado internacional do mundo especializado em planejamento urbano nórdico.

Oferecido em inglês, ele é uma colaboração entre a equipe de Pinder na Universidade de Roskilde, a oeste de Copenhague, pesquisadores da Universidade de Malmö, no sul da Suécia, e a Universidade do Ártico da Noruega, em Tromsø, localizada dentro do Círculo Ártico. Os primeiros 32 alunos começaram o curso em setembro de 2019 e passarão pelo menos um semestre em cada local durante o programa de dois anos.

"Tenho viajado pelos países nórdicos e fiquei muito impressionado com os espaços verdes, a arquitetura que combina estética e a mobilidade nos espaços urbanos", diz Leo Couturier Lopez, de 32 anos, um urbanista de Paris. Ele se inscreveu no curso para ter um "olhar renovado" em sua profissão. Mas o curso multidisciplinar também atraiu participantes da Europa e da América do Norte de diversas origens, bem como graduados em planejamento urbano ou pessoas que passaram algum tempo trabalhando no setor.

"Há muitos lugares em que podemos aprender com as perspectivas nórdicas sobre o planejamento", afirma Camilla Boye Mikkelsen, estudante dinamarquesa de 27 anos que faz o mestrado. "Recentemente fui para os EUA e viajei pela parte sul. Em Nashville, era quase impossível se locomover sem carro e era até difícil viajar entre cidades. Ao entrar em um ônibus (nos EUA), ficou claro que eram principalmente pessoas com um perfil socioeconômico específico que usavam o transporte público."

Nos países nórdicos, uma eficiente infraestrutura ferroviária conecta a maioria das grandes cidades. Trens e ônibus de longa distância geralmente são equipados com wi-fi, oferecendo uma opção confortável para o deslocamento diário entre o trabalho e o lar. Obviamente, os países nórdicos são muito menores que a América do Norte e têm menos centros urbanos grandes, o que significa que é difícil fazer uma comparação direta.

No entanto, Mikkelsen diz que a experiência a tornou ciente dos benefícios de investir em transporte público. "Eu percebi que é muito clara a rapidez com que você se adapta a viver em uma cidade habitável. Estou muito acostumada a caminhar ou andar de bicicleta por todos os lugares", reflete ela.

Anniken Førde, professora da Universidade Ártica da Noruega em Tromsø, acredita que os estudantes internacionais têm uma ideia muito melhor dos métodos de planejamento nórdico vivendo na região enquanto estudam. Em Tromsø, por exemplo, a sustentabilidade está em foco graças à sua localização ao norte da cidade.

"É um lugar geopoliticamente 'quente' na região, com o novo interesse nas questões do Ártico — especialmente devido às mudanças climáticas — aqui no norte, onde o gelo está derretendo", diz Førde. A cidade também exibe os benefícios de priorizar o acesso à natureza, outro elemento central do planejamento urbano nórdico.

"Tromsø está localizada em uma pequena ilha e, mesmo quando você está no centro da cidade, você está perto de um fiorde, com baleias e arenques, e você pode ver as montanhas", acrescenta.
Questão de inclusão?

Mas outros que trabalham nessa área são mais céticos quanto à ideia de destacar os métodos nórdicos como um ideal global digno de seu próprio programa de pós-graduação.

"Existe um grande paradoxo entre como a Suécia, a Noruega e a Dinamarca se vendem e o que realmente são", argumenta James Taylor Foster, curador britânico do ArkDes, o Centro Sueco de Arquitetura e Design de Estocolmo.

"O planejamento urbano deve ser inclusivo e não tenho certeza de quão inclusiva a região é na realidade, em relação a como ela pode ser descrita com frequência", diz Taylor Foster, que é formado em arquitetura.

Uma questão que ele acredita merecer atenção especial é o estoque cada vez menor de moradias populares na região. Muitos dos principais centros urbanos, incluindo Copenhague, Estocolmo e até Tromsø, estão passando por um aperto em meio ao rápido crescimento populacional, gentrificação e aumento do turismo. Isso levou ao aumento da segregação, à medida que os assalariados que ganham menos são forçados a sair dos centros das cidades e exacerbaram os desafios de integração após índices recordes de imigração, especialmente na Suécia.

Em Estocolmo, por exemplo, regiões de subúrbio como Tensta e Rinkeby são em grande parte povoados por famílias de imigrantes de baixa renda. Essas áreas compreendem blocos de apartamentos, parques e áreas comerciais para pedestres bem conservados e boas conexões de metrô com o centro da cidade, mas Taylor Foster argumenta que os moradores ainda podem se sentir isolados e que a interação com os serviços da cidade é limitada.

"Se você precisar ir a um hospital especializado, eles estão em grande parte no centro da cidade. Repartições públicas, museus... eles estão em grande parte no centro", diz Taylor Foster. "Mas algumas famílias de baixa renda simplesmente não podem pagar um passe mensal do SL (transporte público de Estocolmo), que deve ficar ainda mais caro em 2020."

Ele argumenta que a mobilidade — física, cultural e social — precisa ser priorizada no futuro. "Precisamos ser capazes de pensar de uma maneira holística que permita engajamento e experimentação. Na prática, o transporte público dentro de uma cidade pode ser totalmente gratuito", diz ele.

Para Jordan Valentin Lane, arquiteto e estrategista de sustentabilidade nascido na Austrália e que trabalha em Södertälje, uma cidade ao sul da capital sueca, o planejamento urbano ali é "bastante homogêneo", com moradores de classe média tendendo a dominar o campo. Isso, ele argumenta, pode promover uma perspectiva limitada, enquanto a propensão da região a regras estritas e decisões baseadas em consenso às vezes limitam a inovação. "As cidades são obras em andamento, mas, às vezes, as coisas demoram muito. Podemos aprender muito com outros lugares que experimentam e testam ideias rapidamente".

No entanto, Valentin Lane argumenta que cursos como o programa de mestrado em planejamento urbano nórdico podem desempenhar um papel positivo na promoção da diversidade nessa campo. "Podemos aprender nos países nórdicos contratando pessoas com formação internacional", diz ele. "Essas pessoas têm maneiras diferentes de conhecer o mundo. Eles levam consigo toda uma história de criação de lugares e construção de cidades que talvez nem tenham sido consideradas nos (países) nórdicos."

Ele cita o exemplo de áreas com assentos ao ar livre em restaurantes e cafés do centro da cidade, um conceito popular em outras cidades europeias que deram "um verdadeiro empurrão" nas autoridades da cidade quando os arquitetos sugeriram introduzi-las em Estocolmo na década de 1970. Esse tipo de experiência ao ar livre se mostrou muito popular, apesar do clima mais frio da Suécia, com bares e restaurantes agora autorizados — de abril a outubro — a abrir suas áreas ao ar livre.

Valentin Lane também acredita que os estudantes internacionais tenham muito a ganhar com o trabalho na região. "Existe um bom nível de inglês, uma generosa licença parental que você não recebe em outros países e muito mais discussão e pesquisa sendo realizada sob perspectivas críticas."
Adaptando o jeito nórdico

De volta à Universidade de Roskilde, David Pinder diz estar ciente do perigo de "apresentar uma perspectiva excessivamente congratulatória do planejamento urbano nórdico". Ele diz que o curso também levanta "questões críticas" sobre projetos regionais passados ​​e presentes que podem ter um papel importante na solução de problemas futuros.

"À medida que as cidades crescem e se tornam prósperas, precisamos realmente observar as desvantagens desse desenvolvimento, especialmente questões sobre acessibilidade e crescente desigualdade", argumenta ele. "O que se entende por habitabilidade? Essa é uma agenda potencialmente exclusiva? E como ela pode resolver esses problemas de desigualdade e justiça social? (Esta) será uma área chave de debate nos próximos anos."

Os estudantes participam de discussões regulares com profissionais que já estão começando a lidar com esses desafios, incluindo municípios da região, empresas de consultoria urbana e organizações sem fins lucrativos. Pinder espera que alguns desses profissionais contratem estudantes após se formarem ou os inspirem a embarcar em seus próprios projetos de planejamento.

Enquanto isso, já há sinais de que os estudantes internacionais estão trazendo uma perspectiva crítica para o debate.

Leo Couturier Lopez argumenta que, embora aprecie morar perto de parques, as ruas largas e a tendência para edifícios baixos na Dinamarca, ele acredita que Copenhague pode se tornar mais atraente se densificar, em vez de se concentrar em criar novas áreas como Lynetteholmen — uma nova "ilha" que deve fornecer 35 mil novas casas a leste do centro da cidade.

Ele também sente falta da agitada vida cultura noturna de restaurantes e cafés de Paris. Em Copenhague, ele está "às vezes um pouco decepcionado" com a vida social em alguns bairros residenciais. "Copenhague poderia desenvolver e revitalizar suas existência na área central, com a criação de pequenos restaurantes, lojas, cafés e até casas a preços acessíveis, em vez do risco de criar novos bairros sem vida."

Essa observação reflete uma discussão que tem tido ampla repercussão no país, após estudos sugerirem que os países nórdicos são alguns dos mais desafiadores para expatriados e imigrantes fazerem amigos, e apontarem para preocupações com isolamento social e solidão entre a população local.

A estudante Camilla Boye Mikkelsen diz que um ponto importante do curso até agora é que a região talvez seja melhor usada como fonte de inspiração para outras cidades, e não como um guia direto para "copiar e colar".

"Dizer 'agora vamos transformar Londres em uma cidade bike-friendly como Copenhague' pode não ser a coisa certa a fazer", argumenta ela. "Londres é muito mais movimentada e uma cidade estressante, onde sempre há pessoas por perto."

"Se você fosse inspirado pela perspectiva nórdica do planejamento, o mais importante não seria copiá-lo diretamente na sua cidade, mas sim pensar: 'como posso adaptar o modelo nórdico à nossa cidade, da maneira como nossa cidade funciona e aos ritmos únicos dela?"

Governante só dos seus



Um presidente que transforma identidade de gênero em ideologia de gênero e altera dados da realidade é um presidente que não tem vocação para governar em nome de todos
Lilia Schwarcz

O que será da democracia brasileira em 2020?

Quando Bolsonaro assumiu a presidência, exato um ano atrás, temia-se pela democracia brasileira. Até agora, ela não só resiste, mas mostra que existem contrapesos que limitam a atuação presidencial. E em 2020?

Quando Jair Messias Bolsonaro recebeu, no dia 1º de janeiro de 2019, a faixa presidencial das mãos de Michel Temer, analistas no Brasil e no mundo se dividiram basicamente entre duas previsões.

Uns diziam que Bolsonaro se tornaria menos radical quando assumisse a presidência, e outros esperavam uma guinada forte para a direita, transformando o Brasil num país mais autoritário e menos democrático.

Mas o que aconteceu ao longo de 2019 foi diferente: não se confirmaram nem a primeira previsão, nem a segunda, avalia o cientista político Marco Aurélio Nogueira.

"A expetativa que se tinha era de que o cargo de presidente iria suavizar um pouco a postura dele. Mas isso não aconteceu, muito pelo contrário”, comenta.

Depois de muitos tuítes e falas presidenciais bem controversas, Nogueira prefere chamar 2019 de "um ano de muitas coisas bizarras e poucas coisas concretas”.

As poucas realizações, como a reforma da previdência, foram frutos do desempenho congressional. "A reforma passou porque a Câmara se movimentou de forma eficiente. Não pode ser colocado como troféu do governo. Mas o resto só foi desgraça e desastre.”

Para Nogueira, as áreas de cultura, meio ambiente e educação foram "um horror, uma pasmaceira obscurantista e reacionária”, e o desempenho do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, "caricato”.

Mas há um risco nisso para a democracia brasileira? "Não diria que a democracia brasileira está em risco, mas seguramente ela não está sendo qualificada do modo que deveria, levando em conta as caraterísticas da sociedade brasileira com seu passado autoritário.”

Graças à fraqueza do governo, o Brasil está blindado contra um avanço autoritário, avalia Nogueira. "O governo Bolsonaro não tem força suficiente para acabar com a democracia. Não vai fazer uma guinada autoritária no plano institucional.”

Mas isso não significa que não haverá danos à democracia. "Bolsonaro pode, como está sendo feito, intoxicar a ideia de democracia, de coisas que vão desvalorizando aos olhos da população.”

"É como se o governo reagisse para retirar da população uma expectativa positiva em relação à democracia: o combate à política, o esforço permanente de crítica à educação livre, as ações contra a cultura, tudo isso acaba por soltar na sociedade uma espécie de toxina que vai minando a confiança das pessoas na democracia.”

Para Nogueira, essa foi a tendência de 2019 e ela deve continuar. Mas há fatores que, de repente, podem mudar esse cenário. As as eleições municipais de 2020 seriam um deles, porque, segundo o analista, podem "trazer derrotas para o governo e aliados”, ainda mais com as incertezas que rodeiam a criação do partido bolsonarista Aliança pelo Brasil.

Um segundo fator seria a organização da oposição: "Quem sabe a mistura de democratas desarticuladas e o desempenho eleitoral não produz uma química positiva para o país. É mais uma torcida do que um diagnóstico meu", comenta.

O cientista político Jairo Nicolau lembra que muitos analistas acreditavam que o Brasil se transformaria, sob o presidente Bolsonaro, numa "grande Hungria”, com Bolsonaro como um "Viktor Orbán dos trópicos”. "Internacionalmente, ele conseguiu construir essa imagem", avalia o pesquisador do Centro de Pesquisa e História Contemporânea do Brasil, ligado à Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Mas no plano nacional, as coisas são diferentes.

"O que o presidente e os ministros falam é uma coisa. Mas na prática, temos ações muito menos antidemocráticas do que foi a promessa ou o temor da oposição. É o grande ponto positivo do governo.”

"A retórica continua terrível, antidemocrática e ameaçadora", diz Nicolau. Mas, na prática, o governo efetivamente não fez nada "para que o consideremos um governo de extrema direita ou antidemocrático".

O ano de 2019 trouxe uma surpreendente fraqueza da figura presidencial, avalia o cientista político e professor do Insper Carlos Melo. Para começar, há uma falta de base de poder do governo dentro do Congresso, tanto para aprovar leis como, também, se proteger de um eventual impeachment. "Hoje, nem um partido o presidente tem”, comenta.

"O governo está descoberto no Congresso e depende muito fortemente das lideranças do Congresso Nacional, especialmente de Rodrigo Maia", avalia Melo.

A importância do presidente da Câmara aumentou muito, enquanto a figura de Bolsonaro perdeu força. "Maia mostra uma postura reformista e de freios e contrapesos às loucuras do Poder Executivo. O que saiu de reforma, saiu por causa do Rodrigo Maia, e não do presidente da República."

A fraqueza de Bolsonaro se mostrou, segundo Melo, no grande número de medidas provisórias e vetos do presidente derrubados. O cientista vê o presidente "apático e alheio às questões do Congresso e de uma agenda econômica”. "O governo só não ficou numa situação pior porque ele acabou sendo blindado pelas lideranças do Congresso e por setores da economia também.”

Em vez de enfraquecer a democracia brasileira, avaliam analistas, o governo mergulhou em crises, fragilizando a figura forte do presidente, enquanto o Legislativo ganha força.

"As confusões são a marca do governo”, resume Melo. Ele fala de um "presidencialismo em transe”, tanto no sentido da palavra "transe” como "confusão” como, também, de "transição para algo novo, em virtude da fragilidade do Executivo”. Ao invés de um enfraquecimento democrático, principalmente do Poder Legislativo, observa-se um enfraquecimento do Poder Executivo, blindando a democracia brasileira de tendências autoritárias.

Tal enfraquecimento do Executivo se vê também na política externa, onde setores da economia pressionaram o governo a mudar a postura, como nas relações com o novo governo argentino e diante da China.

"Isso significa que a palavra do presidente não conta muito, que ele se vê obrigado a morder a língua. Não é um pragmatismo do presidente da República, mas um pragmatismo de setores da economia que forçam o presidente a voltar atrás nas suas declarações.” Assim, há algo positivo como efeito colateral de todos os erros cometidos, avalia Melo.
Deutsche Welle

Construindo uma grande nação

Três historinhas para ilustrar nossa última reflexão do ano, a primeira muito conhecida.

– Condenado à morte por corromper a juventude, o filósofo Sócrates recusou a oferta para fugir de Atenas, pois seu compromisso com a pólis não lhe permitia transgredir as regras. Os gregos cultivavam o respeito à lei.

– Lúcio Júnio Bruto, fundador da República Romana, libertou seu povo da tirania de Tarquínio, derrubando a monarquia. Depois executou os próprios filhos por conspirarem contra o regime. Pregava o poeta Horácio: “Doce e digno é morrer pela dátria”.

– Outro romano, rico e matreiro, conta Maquiavel no “Livro III sobre Tito Lívio”, deu comida aos pobres na epidemia de fome e por isso foi executado. O argumento: pretendia tornar-se tirano. Os romanos prezavam mais a liberdade do que o bem-estar social.


Emerge a pergunta: qual personagem se sairia melhor no cenário contemporâneo? O terceiro, com uma diferença: o matreiro político não seria executado por alimentar a plebe, mas glorificado, mesmo escondendo, por trás da distribuição de alimentos, seu projeto de poder. Hipótese mais provável em nossa tradição patrimonialista.

Uma leitura de dois mundos. O primeiro regrado por princípios e valores, compromisso com o bem comum, obediência às leis, defesa da moral e da ética. Combina com a utopia da ilha de Thomas Morus: “uma terra de paz e tranquilidade onde os habitantes não têm propriedade individual e absoluta”.

Esse Estado perfeito contrapõe a cidade divina e a terrestre, esta afinada ao universo de Maquiavel: “os fins justificam os meios”. Para o florentino, o povo é dotado de razão e capaz de decidir o seu destino. Sonha com a liberdade e, para conquistá-la, usa quaisquer meios necessários. Sua lógica: ideologias e valores morais cedem lugar aos instrumentos em nome da hegemonia. Aqui a ética da ação prevalece sobre a ética da consciência.

O desenho ajuda a entender nosso tempo. Protagonistas políticos e até juízes lutam para impor suas demandas, multiplicando mazelas e velhos padrões da política. Afinal, de que o Brasil necessita para fortalecer seu conceito de nação em 2020? Primeiro: democratizar sua democracia, expandir a participação do povo, com inclusão social, boas condições do trabalho, proteção ao meio ambiente, direitos humanos, qualificando serviços públicos como educação, saúde e segurança.

Impõe-se convocar a sociedade para um projeto nacional, sem conveniências eleitoreiras. O Brasil clama por planos essenciais nas áreas social, cultural, geográfica e econômica. Paredes inteiriças em vez de tijolos. E uma relação harmônica entre os Poderes, dentro da norma constitucional. 

Deve-se valorizar a meritocracia e atenuar as indicações partidárias, selecionando perfis adequados para a administração. Aristóteles dá uma pista: “Quando diversos tocadores de flauta possuem mérito igual, não é aos mais nobres que as melhores flautas devem ser dadas, pois eles não as farão soar melhor; ao mais hábil é que deve ser dado o melhor instru­mento”. Isso é mérito. Convém lembrar: uma grande democracia repousa sobre base de direitos e deveres, de ordem e harmonia, de ética e moral.