sexta-feira, 19 de julho de 2019

Brasil da mesma cara


Não, não pode

Uma das tarefas mais difíceis desta vida, por alguma razão ainda não explicada pela ciência, é aprender uma de suas regras mais fáceis. A regra é a seguinte: certas coisas não se fazem. Não têm nada a ver com o fato de serem permitidas ou não por lei. Também podem não ser, em si mesmas, boas ou más, certas ou erradas. São, apenas, coisas que não se fazem. Por quê? Porque não se fazem, só por isso — não por uma pessoa dotada de coeficientes médios de decência, consideração pelos outros e boa educação. E quais são elas? Aí, se você não sabe, temos um problema. Ou se aprende isso antes dos 10 anos de idade, ou não se aprende nunca. A língua inglesa tem uma expressão admirável a esse respeito: “It’s not done”. Na tradução mais direta quer dizer: “Não se faz” — e há todo um universo moral contido nesse “não se faz”. É o que divide, no fundo, a qualidade interior dos seres humanos. Quem sabe naturalmente o que não se deve fazer, sem ter de perguntar a cada meia hora se deve agir assim ou assado, está no lado do bem. Quem não sabe está no lado escuro da força.

Uma das coisas mais evidentes no bloco daquilo que “não se faz” é nomear seu filho como embaixador do Brasil nos Estados Unidos — se você, justamente, é o presidente do Brasil. Quem, com um mínimo de bom-senso, pode ter alguma dúvida a respeito de uma coisa dessas? Tanto faz se ele vai, no fim das contas, ser embaixador ou não: um homem público, seja qual for o seu cargo no governo, não pode nomear parentes para outro cargo público, qualquer cargo público. Se for o presidente da República, então, aí é que não pode mesmo — principalmente se vai ter de fazer isso na frente de todo mundo. Uma coisa, muito bacana, é promover os valores da família. Outra, muito diferente e muito ruim, é promover os membros de sua família a empregos cinco-estrelas dentro do governo. Quer dizer que o filho do presidente, só por ser filho do presidente, não pode ser embaixador nos Estados Unidos? Sim, quer dizer isso mesmo: não pode.


Pois é, a vida é assim — e ainda bem que é assim. Presidentes da República, mais que quaisquer outros servidores da população, têm de pagar um pedágio alto para ocupar o seu cargo, e ninguém precisa ficar com dó, pois eles estão lá porque quiseram muito estar; não foram obrigados.

A decisão do presidente Jair Bolsonaro de indicar seu filho Eduardo para a embaixada brasileira em Washington é um desastre com perda total. A soma das qualificações que Eduardo tem para o cargo não chega a zero. Mas mesmo que ele fosse o melhor embaixador possível de ter hoje nos Estados Unidos, um novo Barão do Rio Branco, isso não mudaria nada, porque filho não pode ser nomeado — e pronto. Bolsonaro, nesse caso, teria de mandar para lá o segundo melhor, e tocar a bola para a frente. Paciência. Não vale, também, o argumento de que os diplomatas brasileiros detestam Bolsonaro, e que o Brasil se prejudica com isso. É verdade. Em geral eles já têm vergonha de ser brasileiros; com Bolsonaro na Presidência, então, passaram a ter pavor de representar um governo “fascista”. E daí? Eles vão continuar exatamente assim; isso não se resolve nem se você nomear Deus Padre em pessoa para Washington.

Ninguém se lembra quem foram os embaixadores brasileiros nos Estados Unidos nos últimos anos, diz o presidente. De fato: daria para encher um museu de nulidades com o pessoal que tem passado por lá. Mas a saída, então, seria nomear mais uma nulidade? É certo, também, que Bolsonaro não é defendido pela diplomacia brasileira das acusações de ser um ditador, um homofóbico e um racista. Mas os fatos estão a seu favor. Ditadores não aprovam projetos com 74% dos votos da Câmara dos Deputados, como acaba de ocorrer na reforma da Previdência. Não há, em seis meses de seu governo, uma única decisão contra homossexuais. Não há um episódio sequer de racismo. É nisso que o presidente tem de investir — nos fatos, e não em Eduardo. Em vez de reclamar, e nomear o filho para ser embaixador, ele terá de continuar demonstrando, pelos seus atos, que não é ditador, homofóbico nem racista. Ponto-final.

Pessoas que muito erraram na vida têm um sonho tão precioso quanto impossível: voltar ao passado, por uns modestos instantes, só para não fazer os erros que fizeram. O arrependimento, como se sabe, deveria vir antes do pecado; a vida seria outra, se fosse assim. Infelizmente, só vem depois — e aí já não adianta nada. Bolsonaro, nessa história, tem a chance de se arrepender antes de pecar. Deveria aproveitar, correndo.

República de bananas, hamburguer e laranjas

Uma das explicações mais convincentes para a renitência de Jair Bolsonaro em defender o que é radical e estapafúrdio - mesmo depois de assumir o cargo de presidente - é o fato de nunca ter perdido uma eleição. A falta de derrotas - como aconteceu com Lula, por exemplo - teria preservado o temperamento. Conquistas sucessivas cultivaram a soberba com que, entre outros desatinos, o leva a querer indicar o próprio filho a embaixador em Washington. Caberá aos senadores decidir se alimentam ou não, no chefe do Executivo, o sentimento de soberania ilimitada, reforçado ao longo do tempo.

Bolsonaro ganhou a primeira eleição a vereador do Rio em 1988 e as sete seguintes (1990, 94, 98, 2002, 06, 10 e 14) para deputado federal. Em sua carreira, sempre foi um vitorioso nas urnas, apesar de ter perambulado pela Câmara, como um lobo solitário, à margem das representações partidárias. Abaixo da média do baixo clero, nunca influenciou o debate público em questões amplas ou profundas. Mas colheu muitos votos graças ao papel de sindicalista dos militares. Na tipologia de quadros políticos - que inclui o pragmático e o ideólogo - Bolsonaro é o lobista. O ocupante do Planalto foi um jogo de palavras: um lobo solitário lobista. Mas solitário em termos. Pois tem a prole.

O sucesso de Bolsonaro é maior quando se considera que sempre amealhou triunfos ao utilizar o capital político para emplacar os filhos no Legislativo. O mais velho, Flávio, ganhou cinco eleições: quatro a deputado estadual (2002, 06, 10 e 14) e uma a senador pelo Rio (18). Carlos, o Zero Dois, também venceu cinco disputas a vereador (2000, 04, 08, 12 e 16). O terceiro filho, Eduardo, elegeu-se deputado federal em 2014, por São Paulo, e sua reeleição bateu recorde, em 2018, na esteira da candidatura do pai à Presidência.

O único revés do clã Bolsonaro foi há três anos, quando Flávio concorreu à Prefeitura do Rio, à revelia do patriarca e dos irmãos. Vem daí a animosidade entre o senador e Carlos, que não o ajudou na campanha municipal e com quem mal fala, desde então. De olho na eleição presidencial, Bolsonaro temia que a derrota do filho à prefeitura pudesse lhe prejudicar - o que não se confirmou. Em 30 anos, o quarteto ganhou nada menos do que 21 de 22 eleições. Já seria uma façanha o desempenho até o ano passado (18 em 19). Mas a vitória ao Planalto - a despeito dos escassos recursos e de tempo de TV - somada à explosão do bolsonarismo elevou a sensação de invencibilidade do clã num outro patamar.


O pai, depois de uma facada, ganhou contornos de guerreiro imortal ao vencer o petismo. Flávio conquistou a primeira vaga ao Senado. Eduardo tornou-se o deputado federal mais votado da história. Catapultado pelo ex-capitão do Exército, o PSL, de legenda nanica, virou a segunda maior bancada na Câmara e a maior nas Assembleias Legislativas de quase todo o Sudeste (São Paulo, Rio e Espírito Santo) e do Paraná.

O atual ocupante do Planalto liderou, mas também é resultado, do maior fenômeno eleitoral já visto no país. Um acontecimento raro, surgido num ambiente de anomia, com escândalos de corrupção, descrédito da classe política, antipetismo ferrenho e a maior crise econômica da história brasileira. Incapaz de perceber os elementos estruturais da ascensão de um movimento que leva o seu nome, Bolsonaro dá demonstrações cotidianas de egolatria - ainda que contrarie o que dizia em campanha.

O homem que bradava "A mamata vai acabar!", elogiava a meritocracia e criticava o Estado aparelhado pelos adversários políticos é o mesmo que defende a indicação de Eduardo a embaixador, sem as credenciais para o cargo, exceto a de ser filho de quem é e por ter "fritado hambúrguer" nos Estados Unidos. O salário - quase R$ 70 mil - passaria a ser o dobro do que recebe o deputado. E na embaixada, como destacou, o filho seria garantia de que "ninguém com estrelinha vermelha vai entrar".

Para Bolsonaro, basta um ato de vontade para que o imoral, o ilegítimo, o inconstitucional ou o improvável se concretize. Da corrida de Fórmula 1 no Rio ao decreto sobre armas. O presidente se vê acima do bem, do mal, das instituições e da opinião alheia: "Se estão criticando é porque está certo". As atualizações do "L'État c'est moi" foram realizadas com sucesso.

Bolsonaro tem um quê de Luís XIV mas também de Calígula. O imperador romano nomeou senador seu cavalo preferido, Incitatus, que, até onde se sabe, não estava preparado para exercer a função. Um cavalo investido de poderes é uma bizarrice. Mas pode ser menos ofensivo e imprudente do que um filho no lugar errado.

A indicação do Zero Três à embaixada em Washington pode ser considerada a próxima batalha eleitoral da família Bolsonaro, desta vez pelo voto dos 81 senadores. É um teste de força para o rebento apontado como plano B, caso o presidente não concorra à reeleição. A fotografia de Eduardo entre o pai e o presidente americano Donald Trump - ambos apontando para ele - é daquelas peças de marketing já prontas para a entrega.

Se desse importância para os assuntos internos, Bolsonaro escalaria o filho como articulador do governo no Congresso, onde, porém, tal como o pai era, só não pode ser chamado de zero à esquerda por uma contradição ideológica. Na Câmara, Eduardo já disse que se vê "engessado, quase sendo mais um entre os 513 deputados".

Foi a resposta que deu, há dois dias, pelo Instagram, a um simpatizante que lhe pedia que fique no Brasil, para avançar "os projetos contra o Foro de São Paulo". O deputado argumentou que no posto em Washington seria um "porta-voz" ideológico "não só para os EUA mas para boa parte da mídia internacional". "Hoje os únicos que fazem essa conexão são da extrema esquerda", escreveu, sem citar nome influente do PSTU ou do PCO que faça a cabeça da imprensa estrangeira.

Uma derrota de Eduardo no Senado representaria importante choque de realidade a Bolsonaro, cujos seguidores menos radicais se mostram silenciosos ou até contrários à indicação, dado o nepotismo flagrante. Referendar a escolha é reforçar a imagem de uma república que o presidente teima em construir: de hambúrguer, bananas e laranjas.

O Brasil ao lado das ditaduras mais cruéis do mundo

No final de junho, uma diplomata latino-americana que preparava uma declaração conjunta com o Brasil na ONU submeteu ao Itamaraty o texto que iria ler, dias depois, ao Conselho de Direitos Humanos.

No dia seguinte, ao abrir seu email, levou um susto ao ver a resposta do Governo brasileiro. O texto tinha sido devolvido com vetos a termos que, pelos últimos 25 anos, eram considerados como consensos internacionais e assinados até mesmo pelo Brasil.

Expressões como “igualdade de gênero”, direitos sexuais e reprodutivos e várias outras frases foram literalmente riscadas e substituídas por termos escolhidos para deixar claro uma visão de mundo em que direitos eram limitados, e não ampliados.

A diplomata estrangeira, surpreendida, apenas respondeu que aqueles termos originalmente colocados no texto não seriam modificados e, lamentando, notava que a postura da tradicional diplomacia brasileira sofria uma transformação inédita.

Nos bastidores da política externa, o Brasil de Jair Bolsonaro dava uma claro sinal de que o posicionamento baseado em orientações religiosas, de restrições ou ultraconservadoras não se limitaria à retórica. Nas salas de negociação, nos corredores e trocas de telegramas, a guinada passara a ser uma realidade. E, com ela, novas alianças improváveis, sempre com governos marcados por posições polêmicas.


Nas semanas que se seguiram ao email entre o Brasil e o governo latino-americano, o que as delegações estrangeiras ocidentais descobriram era um novo país, distante daquele que havia liderado um movimento progressista desde o final dos anos 90 no campo dos direitos humanos.

Nas fichas de votações publicadas ao final de cada resolução, o nome do Brasil já não acompanhava a Europa ou mesmo a América Latina. Mas sim algumas das ditaduras mais cruéis do mundo. Ali, o grupo de Bolsonaro e príncipes árabes encontraram um ponto em comum: a suposta defesa da família e valores.

Assim, o Brasil apoiaria propostas da Organização de Cooperação Islâmica para excluir educação sexual de textos da ONU, criticaria o uso do termo gênero, e até passou a concordar com sauditas sobre a necessidade de se manter em resoluções uma referência explícita à defesa do papel dos pais em casos em que se combatia o casamento forçado de meninas, muitas vezes patrocinados pelos próprios pais.

À medida que abandonavam suas tradicionais posições de ampliação de direitos, delegados brasileiros começaram a ser procurados por grupos do lobby anti-gay, que passaram a se sentir confortáveis em trocar impressões com a nova administração brasileira. Eventos com a presença do Brasil ainda foram patrocinados por ongs ultraconservadoras para falar da perseguição que cristãos estariam sofrendo.

Dias depois, o Itamaraty resistiria à ideia de que a ONU promovesse um maior espaço para que grupos indígenas pudessem se expressar e tomar posição, uma proposta apoiada por escandinavos e vários governos latino-americanos.

O Brasil ainda não apoiaria uma resolução amplamente patrocinada pelo Ocidente solicitando que a ONU iniciasse investigações sobre a campanha de Rodrigo Duterte, nas Filipinas, contra a suposta criminalidade. Em três anos, foram mais de 27.000 mortos, além de propostas como a redução da idade penal para apenas nove anos de idade.

Meses antes, o governo Bolsonaro havia abandonado sua tradição e votado em resoluções que condenam as violações de direitos humanos por parte de Israel.

Em todas as votações de emendas e mesmo no caso das Filipinas, o Brasil se aliou ao lado derrotado. Nenhuma das emendas foi aprovada e Duterte será investigado. Para completar, o governo de Jair Bolsonaro passou a receber cartas de protesto da ONU, denúncias e cobranças em relação a diversas políticas públicas de sua gestão.
Eleição?

Mas é exatamente neste contexto que o Brasil se apresentará à eleição para mais um mandato de três anos no Conselho de Direitos Humanos da ONU. A votação ocorre em outubro e a verdade é que dificilmente Bolsonaro será derrotado. Afinal, são oferecidas duas vagas para a América Latina e apenas dois candidatos se apresentaram: Brasil e, ironicamente, a Venezuela. Um espelho de uma região dividida e sem direção, para nenhum dos lados.

Para ser eleito, basta o país ter 97 dos 194 países da Assembleia Geral. Mas o teste será outro. Nas urnas, o Governo Bolsonaro vai descobrir até que ponto é aceito pela comunidade internacional e, no fundo, a votação se transformará em uma espécie de termômetro da popularidade do país.

Ao longo dos últimos anos, o Brasil viu de fato essa popularidade despencar. Depois de acumular 175 voto em 2008 e 184 em 2012, o governo brasileiro viu o apoio internacional cair na gestão de Michel Temer. Visto com hesitação, o Itamaraty perdeu quase 50 votos e, na eleição de 2016, ficou com apenas 137 apoios.

Para a campanha de 2019, o programa brasileiro tem uma linha clara: a delimitação de direitos, e não sua expansão.

Em seu programa apresentado aos demais governos, o centro das propostas brasileiras é a proteção à família, entendida apenas como aquela composta entre um homem e uma mulher.

Entre suas prioridades, nenhuma referência foi feita ao combate à tortura, ao direito à verdade, a processos de reconciliação, à garantia de direitos para imigrantes ou à educação. Em toda a campanha brasileira, a menção ao combate à homofobia ou direitos de LGBTs foi simplesmente omitida.

Bolsonaro, assim, caminha para a eleição em outubro em Nova Iorque fazendo acenos não a uma expansão de direitos. Mas a governos que, abertamente, buscam ampliar o número de aliados dentro do Conselho da ONU para enfraquecer uma tendência de abrir novas fronteiras nos direitos fundamentais no mundo.

Assim, quando os sauditas, egípcios e paquistaneses derem seu voto por Bolsonaro, não estarão aplaudindo os avanços na proteção à vida no Brasil. Mas sim considerando que terão, a seu lado, mais um governo hostil a investigações internacionais, a homossexuais e às eventuais violações ao caracter sacro da soberania.

Quando Duterte der seu voto ao Brasil, não estará apostando em uma nova forma de lidar com as drogas e nem uma visão mais humana do combate ao crime. Mas por ter tido, em Bolsonaro, um aliado contra a ingerência da ONU em assuntos domésticos.

Quando poloneses e húngaros derem seu voto ao Brasil, não será por sua abertura de fronteiras. Mas por sua recusa em assinar pactos de migração, assim como fizeram os governos do leste-europeu.

Quando o Itamaraty se apresentar para a eleição na ONU, portanto, sua bandeira não será a da expansão de direitos. Mas justamente a de impedir que as fronteiras das liberdades fundamentais sejam cada vez mais amplas.

Poderia parecer uma contradição o Brasil de Bolsonaro se candidatar ao Conselho de Direitos Humanos. Mas não o é, especialmente se o objetivo for o de formar uma aliança contra qualquer ideia de direitos internacionais que se sobreponham à soberania.

Minando esses direitos por dentro, o Brasil se alia a outros governos que, de forma hipócrita, usam as tribunas internacionais para desmontar um sistema criado há 70 anos e que serve de bússola moral ao mundo.

Entre as delegações ocidentais, o dia de votação promete ser um momento amargo: os diplomatas estarão entre dar seu voto a Bolsonaro ou a Nicolas Maduro, reconhecido pela própria ONU como violador de direitos humanos.

Mas, nos corredores da entidade, não faltam ironias diante da situação constrangedora. “Tem horas que dá uma enorme vontade de votar pela Venezuela”, debocha uma diplomata europeia.

Pensamento do Dia

Pawel Kuczynski

'Nãopotismo'

Não sejamos injustos. A discussão sobre se um presidente da República nomear um filho embaixador constitui nepotismo ou não toma um rumo indesejável, agravado pela ignorância ou a má-fé. Muitos não sabem, ou fingem não saber — ou, ao contrário do filho do presidente, não conhecem outra língua além do português — , que a palavra

"nepote" é italiana, significa “sobrinho” e ganhou conotação política com o costume dos papas antigos de presentear parentes com poder, ou nacos de poder, uma prática que ganhou o nome de “nepotismo”.

Os críticos do presidente não aceitam os argumentos dos que o defendem lembrando que — como é um presidente diferente, com um estilo só seu e hábitos incomuns como o de treinar tiro ao alvo mirando o próprio pé — não se poderia esperar que fosse um presidente comum. Também não devemos esquecer que o homem que hoje diz que um presidente nomear um filho embaixador não é nepotismo é o mesmo que disse que não houve ditadura no Brasil, uma opinião também ridicularizada, na época, mas que provou ser a mesma de 57,7 milhões de eleitores brasileiros, desagravando o presidente.

Para responder aos seus críticos, o presidente poderia recorrer à ironia e também ridicularizá-los, lembrando que — como a ditadura — a prática de nomear parentes nunca existiu no Brasil; portanto, o que existe é o que poderia ser chamado de “nãopotismo”. Ou então, já que só pode ser coisa de comunista tentando ressuscitar a esquerda, de “neopetismo”.

Ou o presidente pode contra-atacar e desafiar seus críticos a encontrar um exemplo, na sua administração — apenas um, em todos os ministérios, em todos os partidos da sua base, entre todos os chefes de gabinetes e auxiliares de escritório, e todos os parlamentares que o apoiam, entre ascensoristas, motoristas, faxineiras, telefonistas, cozinheiras, empregados, animais de estimação, membros da sua família — apenas um sobrinho do Papa.

'Por que essa pressão em cima de um filho?', pergunta Bolsonaro. E eu respondo!

O presidente Jair Bolsonaro (PSL) questionou, nesta quinta-feira, as criticas que vem recebendo pela indicação de seu filho, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), para o cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Ele ressaltou a “competência” de Eduardo, que tem “bom relacionamento” com o atual presidente norte-americano, Donald Trump, e questionou a “pressão” sobre o assunto.

“Por que essa pressão em cima de um filho meu? Ele é competente ou não é competente? Dentro do quadro das indicações políticas, vários países fazem isso. E é legal fazer no Brasil também”, declarou ao sair do Palácio da Alvorada, em Brasília. “Tem algum impedimento? Não tem impedimento. Atende o interesse publico. Qual o grande papel do embaixador? Não é o bom relacionamento com o chefe de estado daquele outro país? Atende isso? Atende. É simples o negócio”, completou.


Bolsonaro citou, ainda, o caso do ex-deputado federal Tilden Santiago (PT-MG), que foi embaixador em Cuba quando não tinha sido eleito para um cargo público. “O Tilden Santiago não foi reeleito em 2002, foi ser embaixador em Cuba, ninguém falou nada”, argumentou.

E lá está o presidente usando o argumentum ad petistum, a nova moda do bolsonarismo. Ao se comparar sempre com o PT, o governo pretende nivelar por muito baixo as expectativas. Se o PT fez, então por que ele não poderia? Sendo que o presidente deixou de lado um “detalhe”: Tilden não era filho de Lula. E sim, vários criticaram a escolha na época, mas veja o destino: Cuba!

No caso atual estamos falando da embaixada mais importante, a americana. E além do parentesco com o presidente, Eduardo não tem experiência nisso, sequer fala inglês direito, e acabou de completar 35 anos, a idade mínima para o cargo. Tudo soa ruim, inadequado, favoritismo dinástico.

Bolsonaro acha que é bem simples: se dar bem com o governante do outro país. Não! Uma embaixada não precisa apenas disso. É algo bem mais complexo, que envolve relacionamento com vários estados, com vários empresários, com o mundo dos negócios e da geopolítica, que exigem determinado perfil diplomático que Eduardo passou longe de possuir. William Waack comentou sobre o caso:

“Ao se empenhar em colocar o filho Eduardo como embaixador do Brasil em Washington, o presidente Jair Bolsonaro decidiu ignorar um dos mais antigos princípios nas relações entre Estados. É o princípio segundo o qual países não têm amigos, têm interesses. […] Tomado no seu conjunto, o campo das relações internacionais é, por definição, o campo da impessoalidade. Os Estados Unidos não são de Trump, nem o Brasil é de Bolsonaro.”

Bruno Garschagen também comentou, lembrando que a eventual aprovação no Senado pode custar caro: “Eu acho essa escolha um erro do Bolsonaro, pelo fato do Eduardo ser filho dele. Poderia ter todas as credenciais, poderia ser um diplomata de carreira. Mas o fato de ser filho é um elemento que, na minha opinião, pesa contra essa indicação. No Senado, talvez seja a sabatina mais aguardada desde o início da República. Vai atrair muita atenção. Alguns senadores vão aproveitar para tentar negociar alguma coisa com o Governo”.

Mas os bolsonaristas querem que todos achem normal um pai indicar o filho para um cargo desses, sem a devida experiência e com um currículo totalmente aquém do necessário, só porque ele é “amigo” de Trump. E ainda teve gente que acreditou que, em contrapartida, o presidente americano indicaria seu filho Eric para a embaixada americana no Brasil! É uma turma engraçada, temos de admitir.

Enquanto isso… em meio às articulações para sua indicação como embaixador do Brasil nos EUA, Eduardo Bolsonaro viajou para a Indonésia, informa Igor Gadelha na Crusoé. O deputado aproveitará o recesso parlamentar para surfar no país asiático. E os deputados do PSL querem que seu irmão Flávio seja um dos presentes na sabatina do Senado, vejam que coisa mais republicana!

Estamos vendo bem diante de nossos olhos o que significa a tal “nova era”, meus caros. A militância fica nas redes sociais xingando todo crítico, patrulhando até piada de humorista em defesa do “seu mito”, enquanto o filho vai curtir o longo recesso parlamentar na Indonésia, preparando-se para morar na mansão luxuosa em Washington e ganhar R$ 70 mil por mês, para tirar fotos com Trump e ver se aprende de uma vez a língua de Shakespeare.

Rodrigo da Silva, do Spotniks, resumiu bem a palhaçada: “Eduardo Bolsonaro na embaixada dos EUA não é defesa do Ocidente, preservação das instituições, manutenção dos princípios judaicos cristãos. É o exato oposto disso: é populismo, degradação institucional, nepotismo. Quem não entendeu isso até aqui não sabe o que é conservadorismo”.

E vale acrescentar: o pilar básico do conservadorismo é o ceticismo com os políticos. Ou seja, bajular políticos é tudo, menos atitude de conservador que se preza!

Rodrigo Constantino

Farinha pouca, meu filé mignon primeiro

Jair Bolsonaro bateu no peito para dizer que vai nomear Eduardo, o 03, embaixador nos Estados Unidos e ainda ameaçou: se reclamarem, ele coloca o filho como ministro das Relações Exteriores.

Não é a primeira vez. Na cabeça do presidente, seus filhos são os mais competentes, os mais inteligentes, os mais preparados.

Ao tentar nomear Carlos Bolsonaro como secretário de Comunicação ainda na transição, Bolsonaro disse que devia sua eleição ao 02, por causa do apoio das redes sociais. Até hoje, se arrepende de não ter ‘bancado’ a nomeação diante das críticas – como faz agora.

Já em relação ao 01, investigado por movimentações financeiras suspeitas, o presidente disse em janeiro: “Se por um acaso ele errou e for provado, eu vou lamentar como pai, mas ele terá que pagar o preço.”

No início da semana, Dias Toffoli – com quem Bolsonaro firmou um ‘pacto republicano’ em maio, ao lado de Rodrigo Maia – parece ter garantido que nada ficará provado.

Ao acolher pedido da defesa de Flávio, o ministro suspendeu a investigação no MP do Rio – além de outras milhares baseadas em relatórios do Coaf, da Receita e do BC. O ex-advogado do PT ajudou o filho do presidente, blindou Verdevaldo e ainda deu um “vale night” para todos os lavadores de dinheiro do país.

Na live hoje, Bolsonaro não deu uma palavra sobre o caso.

Desde maio, aliás, notava-se o esforço conjunto para esvaziar os poucos órgãos de controle de movimentações financeiras – nos EUA há 22 nos mesmos moldes.

Na votação da MP da reforma administrativa, o Congresso conseguiu retirar o Coaf das mãos de Sergio Moro e quase calou a Receita, tudo pelas mãos do próprio líder do governo no Senado, Fernando Bezerra, em acerto com o Palácio do Planalto.

Bezerra, que defendeu a absurda medida de Toffoli, é um “homem que realmente está fazendo pelo seu país” – nas palavras do próprio Bolsonaro.

Diante desse quadro de ‘estancamento de sangria’, há quem diga que a AGU se manifestou a favor do inquérito de Dias Toffoli contra ‘milícias digitais’, em troca de livrar o 02 da investigação.

O que explicaria também a possível indicação de André Mendonça, terrivelmente evangélico, para o STF. Nada a ver com Deus, claro.

Paisagem brasileira

Marcelo Romani Borges de Araujo

Trabalho infantil é outra coisa, presidente

Quando, na edição de ÉPOCA da semana passada, escrevi sobre os cortes no combate ao trabalho escravo no governo Bolsonaro, não imaginava que, no mesmo dia em que a revista era publicada, Jair Bolsonaro defenderia numa transmissão ao vivo no Facebook o valor do trabalho infantil. Segundo Bolsonaro, uma situação em que se vê “um moleque fumando um paralelepípedo de crack” é considerada “normal”. Mas, quando se “pega um moleque lavando um carro”, afirmou, “é um escândalo”. Sem dizer quem considera normal crianças usarem drogas, o presidente provocou uma enxurrada de manifestações em defesa do trabalho infantil, por pessoas que ou não tinham ideia do que estavam falando ou foram intencionalmente desonestas em seus exemplos. A deputada federal Bia Kicis, do PSL do Distrito Federal, por exemplo, chegou a se orgulhar no Twitter de que aos 12 anos fazia brigadeiros para vender na escola e, com o dinheiro, pagava sua aulas de tênis. Trabalho infantil não é isso. E Bolsonaro sabe.

Se o presidente estivesse defendendo o natural ensinamento de responsabilidades ou de noções de empreendedorismo às crianças, o que é aconselhado por qualquer pedagogo, não teria feito a ressalva, na mesma fala, de que não enviaria “nenhuma proposta ao Congresso” para legalizar o trabalho infantil. Caso contrário, “seria massacrado”.

Nenhuma lei proíbe que uma criança venda brigadeiros na escola para pagar as aulas de tênis. Nem que ajude na loja do pai, como o juiz Marcelo Bretas lembrou no Twitter. Ou se tornar um jovem cadete, como o líder do governo, Major Vitor Hugo (PSL-GO), que contou ter entrado para a escola de cadetes aos 16. Tudo isso é permitido na lei, que inclusive prevê que jovens de 14 a 18 anos sejam contratados como aprendizes legais. Portanto, se Bolsonaro disse que o tipo de trabalho que estava defendendo precisaria passar pelo Congresso, ele estava, sim, falando de trabalho infantil.

A Constituição também fala de trabalho infantil, mas para proibi-lo. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi na mesma linha: é proibido qualquer tipo de trabalho infantil — novamente, não se trata de vender limonada para angariar fundos para a festa da escola, como comparou a líder do governo Joice Hasselmann (PSL-SP) em seu Instagram. A partir dos 14 anos, o adolescente pode ser menor aprendiz, e já passa a ter seus direitos trabalhistas e previdenciários protegidos.

No trabalho infantil, isso não existe. No Nordeste, em cidades da cultura da castanha de caju, inspetores do Ministério Público do Trabalho (MPT) encontram crianças que já perderam suas digitais de tanto descascar castanha. Na Região Norte, o MPT afirma ainda ser alta a incidência de casos de meninas de cidades pobres que são levadas para as capitais e, em troca de comida e teto, tornam-se responsáveis por cuidar de outras crianças, limpar a casa e cozinhar. Não só deixam de ir à escola, como também manuseiam sem nenhuma supervisão fogões a gás, facas e produtos químicos. Em todo o país, lixões a céu aberto ainda contam com crianças como catadoras de lixo. Fora os vendedores de bala, engraxates ou, como disse Bolsonaro, “lavadores de carro”.

O Brasil vem sendo cobrado pelo tema na comunidade internacional. O acordo entre o Mercosul e a União Europeia, por exemplo, traz uma cláusula sobre o compromisso do Estado no combate ao trabalho infantil. Não é à toa.

Os últimos dados existentes são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2016, e mostram que naquele ano havia 2,4 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos trabalhando — o que representava 6% da população (40,1 milhões) nessa faixa etária.

Dos 2,4 milhões de trabalhadores infantis, 1,7 milhão exerciam também afazeres domésticos de forma concomitante ao trabalho e, quando estavam na escola, também ao estudo.

O procurador do trabalho Rafael Dias Marques, hoje chefe de gabinete na Procuradoria-Geral do Trabalho, comandou durante sete anos a área de combate ao trabalho infantil no MPT. Numa conversa nesta semana, ele elencou três áreas da vida de qualquer pessoa que são impactadas quando elas trabalham na infância: saúde, educação e o lado psíquico-social.

Segundo o procurador, dados do Ministério da Saúde mostram que, na comparação com um adulto, uma criança que trabalha tem três vezes mais chances de desenvolver uma doença ou morrer durante o trabalho. Crianças que trabalham ou não frequentam a escola ou, se o fazem, chegam na aula tão cansadas que não assimilam o que é ensinado. Geralmente, crianças que trabalham têm altos níveis de repetência e de analfabetismo funcional, e se tornam adultos que não conseguem interpretar um texto ou fazer operações básicas de matemática. Quando não abandonam os estudos. Finalmente, menores que trabalham têm tempo insuficiente para brincadeiras ou lazer, e se tornam adultos mais introspectivos e sem humor.

“A sociedade brasileira não consegue enxergar que o trabalho infantil é uma das maiores tragédias que temos. O trabalho precisa, sim, ser incentivado, mas na idade certa e nas condições corretas”, defendeu o procurador, que atribui a essa falta de conscientização a confusão feita por muitos entre ajudar na loja do pai e trabalhar na lavoura para ajudar a sustentar a família.

A defesa do trabalho infantil não foi o primeiro desrespeito da família Bolsonaro ao ECA. No dia 19 de junho, o deputado Eduardo Bolsonaro, o 03,

Segundo especialistas, as duas pontas do problema, o trabalho infantil e o crime, podem estar ligadas. Ao contrário do que disse o presidente, sobre eventuais benefícios do trabalho infantil, existem dados que, embora não comprovem uma relação direta entre um problema e outro, pelo menos colocam em xeque a defesa da ideia de que crianças que trabalham têm menos chances de entrar para o crime quando adultos. Em sua dissertação de mestrado, o desembargador Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, do Tribunal Regional do Trabalho do Paraná, entrevistou presos no Carandiru. Surpreendeu-se com o dado que encontrou: 85% deles haviam trabalhado quando crianças.

A perigosa letargia

Estamos tão vacinados contra a indignação, que já nenhuma infâmia nos causa mosse
Miguel Torga , Diário XVI

Bolsonaro evoca Lula para justificar filho nos EUA

Jair Bolsonaro fez uma opção preferencial pela polêmica. Costuma desfazer uma controvérsia criando outra. De preferência maior. Dias atrás, tumultuava a votação da reforma da Previdência na Câmara como sindicalista da corporação policial. Agora, envenena o ambiente do Senado, para onde seguirá a proposta previdenciária, com a ideia de converter o filho Eduardo em embaixador. 

Escasseando-lhe os argumentos, escorou-se em Lula: "O Tilden Santiago ex-deputado do PT) não foi reeleito em 2002. Foi ser embaixador em Cuba (durante o primeiro mandato de Lula). Ninguém falou nada."

Já se sabia que o desejo de enviar o Zero Três para Washington era grande. Ao comparar o filho com o escolhido de Lula, Bolsonaro revela que sua vontade é mesmo ardente e irrefreável. A obsessão faz com que o capitão esqueça que seus 57 milhões de eleitores o enviaram ao Planalto para fazer o oposto do que fez Lula. A opção por Tilden Santiago foi tão precária e inadequada quanto a preferência por Eduardo Bolsonaro. Com duas diferenças: o ex-deputado petista não é filho de Lula. E Havana não é Washington.

Em conversa com os repórteres, Bolsonaro lançou na atmosfera um lote de interrogações. Alguém precisa responder. Vai abaixo uma tentativa:

1- "Por que essa pressão em cima de um filho meu?" Simples: porque o pai não se dá ao respeito.

2 - "Ele é competente ou não é competente?" Mais simples ainda: Não, o deputado Eduardo Bolsonaro não exibe as credenciais para representar o Brasil no mais importante posto diplomático no exterior.

3 - "Tem algum impedimento?" Há inúmeros impedimentos. Dois deles são aberrantes: a) O nepotismo; b) A conversão do Brasil numa autocracia bananeira.

4 - "Qual o grande papel do embaixador?" Ora, se o presidente da República desconhece as atribuições de um embaixador, o que parecia algo contornável torna-se uma dificuldade crítica, capaz de influenciar o rumo de um governo.

Decisão proibiu que o próprio Toffoli seja investigado pela mesa dos R$ 100 mil

Cada vez fica mais claro que o Brasil está vivendo a Era da Esculhambação, em que os três Poderes se mostram altamente despreparados. O maior problema é a desmoralização do Supremo, porque a Justiça é o fator de equilíbrio institucional do país, ao exercer na democracia uma espécie de poder moderador, que substitui o papel do rei na monarquia. É o Supremo que declara se atos do Executivo ou do Legislativo devem ser revogados.

Justamente por isso, quando a Justiça não funciona bem, todo o resto fica destrambelhado, como está acontecendo agora, no caso desta estranhíssima Lei de Toffoli, criada por ele num momento de intensa luminosidade intelectual.

Para início de conversa, a decadência da Justiça ficou evidenciada desde que os ministros do Supremo sepultaram as leis (são várias) que declaram as hipóteses de suspeição do magistrado, impedindo que participe de julgamento de réu com o qual tenha estabelecido relações diretas ou indiretas em alguma fase da vida, inclusive através de parentes, e esse impedimento abrange também o caso de relacionamento com os advogados da causa.

Há ministros do Supremo – como Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski – que jogaram essas leis na lata do lixo, jamais se declaram suspeitos, nem mesmo quando se trata de julgar um amigo íntimo, como nos casos de Toffoli e José Dirceu, Gilmar e Michel Temer ou Lewandowski e Lula da Silva.

E essas relações são públicas e notórias, por demais conhecidas pela opinião pública, porque motivam frequentes reportagens. Mesmo assim os três ministros jamais se declaram suspeitos, e não acontece nada, porque o Supremo é inatingível, como topo da pirâmide institucional, com o salário de seus membros sendo considerado teto na União, Estados e Municípios.

Agora mesmo, ao invés de decidir liminar escatológica, que está garantindo a impunidade de criminosos de alta periculosidade, como os chefes das facções PCC e CV, Toffoli deveria se julgar suspeito, por estar blindando não somente a própria mulher, mas também a mulher de seu melhor amigo e preceptor no Supremo, o ministro Gilmar Mendes.

Como se sabe, as advogadas Roberta Maria Rangel (Toffoli) e Guiomar Feitosa (Gilmar) foram apanhadas na malha fina do Coaf, com movimentações atípicas. Mais do que isso, porém, o próprio Toffoli sofreu um flagrante na mesma situação, quando vazou a notícia de que ele recebe (ou recebia…) uma mesada de R$ 100 mil mensais da mulher.

Segundo a revista Crusoé, os repasses saem (ou saíam) de uma conta de Roberta Rangel no Itaú, com destino a outra mantida em nome do casal no banco Mercantil do Brasil. Os depósitos foram realizados ao menos de 2015 a 2018 e somam R$ 4,5 milhões. Dos R$ 100 mil mensais, a metade (R$ 50 mil) era transferida para a ex-mulher do ministro, Mônica Ortega. Ainda segundo a reportagem, a conta era operada por um funcionário do gabinete de Toffoli, vejam a que ponto chegamos.

Ao instituir essa nova “legislação” que suspende inquéritos e processos oriundos do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, da Receita e do Banco Central, o criativo ministro Toffoli não conseguiu blindar inteiramente o senador Flávio Bolsonaro (PLS-RJ), que tem inquérito de enriquecimento ilícito em andamento, mas blindou a si próprio, além de suas duas mulheres (a anterior e a atual) e também a atual esposa de Gilmar. Aliás, no governo Temer, o ministro conseguiu abrigar sua primeira mulher na diretoria da Itaipu Binacional, vejam como em Brasília tudo funciona interligado.

Quanto à Lei de Toffoli, é um monstrengo jurídico que vai ter vida curta. Os ministros do Supremo estão calados e este silêncio é muito significativo. Em agosto, na primeira sessão em plenário, ficaremos sabendo se ainda há juízes que merecem envergar o manto sagrado que alguns fazem questão de emporcalhar.
Carlos Newton