sexta-feira, 19 de julho de 2019

Trabalho infantil é outra coisa, presidente

Quando, na edição de ÉPOCA da semana passada, escrevi sobre os cortes no combate ao trabalho escravo no governo Bolsonaro, não imaginava que, no mesmo dia em que a revista era publicada, Jair Bolsonaro defenderia numa transmissão ao vivo no Facebook o valor do trabalho infantil. Segundo Bolsonaro, uma situação em que se vê “um moleque fumando um paralelepípedo de crack” é considerada “normal”. Mas, quando se “pega um moleque lavando um carro”, afirmou, “é um escândalo”. Sem dizer quem considera normal crianças usarem drogas, o presidente provocou uma enxurrada de manifestações em defesa do trabalho infantil, por pessoas que ou não tinham ideia do que estavam falando ou foram intencionalmente desonestas em seus exemplos. A deputada federal Bia Kicis, do PSL do Distrito Federal, por exemplo, chegou a se orgulhar no Twitter de que aos 12 anos fazia brigadeiros para vender na escola e, com o dinheiro, pagava sua aulas de tênis. Trabalho infantil não é isso. E Bolsonaro sabe.

Se o presidente estivesse defendendo o natural ensinamento de responsabilidades ou de noções de empreendedorismo às crianças, o que é aconselhado por qualquer pedagogo, não teria feito a ressalva, na mesma fala, de que não enviaria “nenhuma proposta ao Congresso” para legalizar o trabalho infantil. Caso contrário, “seria massacrado”.

Nenhuma lei proíbe que uma criança venda brigadeiros na escola para pagar as aulas de tênis. Nem que ajude na loja do pai, como o juiz Marcelo Bretas lembrou no Twitter. Ou se tornar um jovem cadete, como o líder do governo, Major Vitor Hugo (PSL-GO), que contou ter entrado para a escola de cadetes aos 16. Tudo isso é permitido na lei, que inclusive prevê que jovens de 14 a 18 anos sejam contratados como aprendizes legais. Portanto, se Bolsonaro disse que o tipo de trabalho que estava defendendo precisaria passar pelo Congresso, ele estava, sim, falando de trabalho infantil.

A Constituição também fala de trabalho infantil, mas para proibi-lo. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi na mesma linha: é proibido qualquer tipo de trabalho infantil — novamente, não se trata de vender limonada para angariar fundos para a festa da escola, como comparou a líder do governo Joice Hasselmann (PSL-SP) em seu Instagram. A partir dos 14 anos, o adolescente pode ser menor aprendiz, e já passa a ter seus direitos trabalhistas e previdenciários protegidos.

No trabalho infantil, isso não existe. No Nordeste, em cidades da cultura da castanha de caju, inspetores do Ministério Público do Trabalho (MPT) encontram crianças que já perderam suas digitais de tanto descascar castanha. Na Região Norte, o MPT afirma ainda ser alta a incidência de casos de meninas de cidades pobres que são levadas para as capitais e, em troca de comida e teto, tornam-se responsáveis por cuidar de outras crianças, limpar a casa e cozinhar. Não só deixam de ir à escola, como também manuseiam sem nenhuma supervisão fogões a gás, facas e produtos químicos. Em todo o país, lixões a céu aberto ainda contam com crianças como catadoras de lixo. Fora os vendedores de bala, engraxates ou, como disse Bolsonaro, “lavadores de carro”.

O Brasil vem sendo cobrado pelo tema na comunidade internacional. O acordo entre o Mercosul e a União Europeia, por exemplo, traz uma cláusula sobre o compromisso do Estado no combate ao trabalho infantil. Não é à toa.

Os últimos dados existentes são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2016, e mostram que naquele ano havia 2,4 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos trabalhando — o que representava 6% da população (40,1 milhões) nessa faixa etária.

Dos 2,4 milhões de trabalhadores infantis, 1,7 milhão exerciam também afazeres domésticos de forma concomitante ao trabalho e, quando estavam na escola, também ao estudo.

O procurador do trabalho Rafael Dias Marques, hoje chefe de gabinete na Procuradoria-Geral do Trabalho, comandou durante sete anos a área de combate ao trabalho infantil no MPT. Numa conversa nesta semana, ele elencou três áreas da vida de qualquer pessoa que são impactadas quando elas trabalham na infância: saúde, educação e o lado psíquico-social.

Segundo o procurador, dados do Ministério da Saúde mostram que, na comparação com um adulto, uma criança que trabalha tem três vezes mais chances de desenvolver uma doença ou morrer durante o trabalho. Crianças que trabalham ou não frequentam a escola ou, se o fazem, chegam na aula tão cansadas que não assimilam o que é ensinado. Geralmente, crianças que trabalham têm altos níveis de repetência e de analfabetismo funcional, e se tornam adultos que não conseguem interpretar um texto ou fazer operações básicas de matemática. Quando não abandonam os estudos. Finalmente, menores que trabalham têm tempo insuficiente para brincadeiras ou lazer, e se tornam adultos mais introspectivos e sem humor.

“A sociedade brasileira não consegue enxergar que o trabalho infantil é uma das maiores tragédias que temos. O trabalho precisa, sim, ser incentivado, mas na idade certa e nas condições corretas”, defendeu o procurador, que atribui a essa falta de conscientização a confusão feita por muitos entre ajudar na loja do pai e trabalhar na lavoura para ajudar a sustentar a família.

A defesa do trabalho infantil não foi o primeiro desrespeito da família Bolsonaro ao ECA. No dia 19 de junho, o deputado Eduardo Bolsonaro, o 03,

Segundo especialistas, as duas pontas do problema, o trabalho infantil e o crime, podem estar ligadas. Ao contrário do que disse o presidente, sobre eventuais benefícios do trabalho infantil, existem dados que, embora não comprovem uma relação direta entre um problema e outro, pelo menos colocam em xeque a defesa da ideia de que crianças que trabalham têm menos chances de entrar para o crime quando adultos. Em sua dissertação de mestrado, o desembargador Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, do Tribunal Regional do Trabalho do Paraná, entrevistou presos no Carandiru. Surpreendeu-se com o dado que encontrou: 85% deles haviam trabalhado quando crianças.

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