quarta-feira, 10 de junho de 2020

Entre o medo do coronavírus e a luta contra o racismo e o fascismo

Duas jovens, Julia e Simone, na manifestação em São Paulo contra o racismo e o fascismo, resumiram ontem o clima que estavam enfrentando com a frase: “temos mais medo do racismo que do coronavírus”, recolhida por Carla Jiménez, diretora do EL PAÍS Brasil. As manifestações de ontem em várias cidades do país talvez tenham sido o começo de um movimento que poderia ser irrefreável contra um Governo que perdeu o rumo e ameaça desprezar seja o perigo da pandemia de que zomba e tenta escondê-la dos brasileiros e do mundo, sejam os valores da democracia ameaçando dar um golpe para se apossar do poder absoluto.

As manifestações foram realizadas com a angústia do dilema se era oportuno, em pleno crescimento do coronavírus, sair às ruas. Algo que acabou dividindo aqueles que neste momento tentam se unir em uma ampla frente de consenso democrático contra a barbárie que assombra o país.

Os seguidores fanáticos do presidente Bolsonaro e os que lutam por um Brasil livre de ameaças de golpes autoritários foram aconselhados a não participar dessas manifestações. Aparentemente, as hostes de Bolsonaro foram mais obedientes, ou tiveram mais medo, ou talvez estejam começando a ser menos do que se alardeia, porque apenas um punhado de gente saiu às ruas. Por outro lado, aqueles que começam a se unir em um clamor cada vez maior contra o desmanche da democracia ameaçada a cada hora e às vezes até de maneira grosseira, preferiram enfrentar o perigo e sair em defesa das liberdades ameaçadas.



As jovens Julia e Simone explicaram com lucidez, afirmando que têm mais medo do racismo do que do coronavírus, porque a ameaça do coronavírus é algo cuja solução está sendo buscada, ninguém nega sua nocividade, enquanto o caso do racismo é algo velado que acaba sendo aceito como algo normal ou no máximo uma fatalidade, como acontece no Brasil desde a escravidão até hoje.

Não foi por acaso que nas manifestações no Brasil as televisões misturaram imagens locais com as manifestações ainda em andamento contra o racismo nos Estados Unidos e em todo o mundo, que serviram como estímulo para perder o medo de sair às ruas aqui também.

E talvez uma das coisas mais importantes sobre as manifestações brasileiras tenha sido o fato de aparecerem como o início de um movimento pela libertação dos demônios que atormentam a sociedade na qual, neste momento, se dão um abraço mortal três crises igualmente cruciais: a da pandemia, uma das mais graves do mundo, a política com ameaças diárias à democracia e desprezo pela população negra. Uma população que, além de ser maioria no Brasil, é cada vez mais marginalizada e assassinada em um verdadeiro genocídio à luz do sol. Finalmente, e concomitantemente, a econômica, que ameaça criar novos guetos de brasileiros que serão forçados a voltar ao inferno da miséria que nunca é apenas material, mas também cultural e social, e que são vistos como aqueles que não têm direito à vida.

O simbolismo cruel e cínico do presidente Bolsonaro bebendo um copo de leite em público enquanto ardiam nos Estados Unidos as manifestações de protesto contra o assassinato de um homem negro por um policial branco, algo que acabou comovendo todo o mundo civilizado, indica que o Brasil, cujo país é cada vez mais visto no mundo como pária, também está perdendo o relógio da história.

As manifestações de protesto, em plena pandemia, realizadas ontem no Brasil, podem ter sido o pavio de um incêndio de tomada de consciência da gravidade do momento. E é importante que tenham sido principalmente os jovens, inclusive do mundo do futebol e do esporte, os que venceram o medo e saíram às ruas para dizer BASTA à barbárie exibida por um Governo e um chefe de Estado que ameaçam matar seu futuro.

Como as jovens Julia e Simone disseram ontem durante a manifestação em São Paulo, “se não for agora, quando? Temos que lutar porque este é um Governo de opressão”. A coragem destas jovens aparece como um sonho de libertação que começa a surgir no meio da tempestade que ameaça e humilha um país da importância do Brasil. Serão estes jovens que um dia poderão contar aos filhos que lutaram e enfrentaram os monstros do novo autoritarismo destrutivo para devolver-lhes os valores ameaçados da liberdade.

Sim, as jovens Julia e Simone têm razão: “Se não for agora, quando?”. Porque amanhã pode ser tarde demais. Alguém se lembra da história do nazismo? Também naquela época a racionalidade chegou tarde demais. E o holocausto já estava consumado.

Coragem moral

Tivesse alguma coragem moral, o ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, teria pedido demissão ao receber a ordem para esconder os números relativos à pandemia de covid-19. Ao permanecer no cargo e cumprir a absurda determinação, Pazuello não apenas colaborou para desmoralizar ainda mais o Ministério da Saúde, como danificou a imagem das Forças Armadas, já que é militar da ativa e apresentado pelo presidente Bolsonaro como um dos sustentáculos militares de seu governo. Se não é, deveria deixar isso claro.

Não é de hoje que o presidente Jair Bolsonaro vem colocando em dúvida o número de mortos na pandemia. Mais de uma vez, acusou os governadores de Estado, seus desafetos, de inflar as estatísticas para justificar a quarentena e, assim, criar uma crise com o objetivo de prejudicar o governo.

Foi necessário afastar dois titulares da Saúde para que Bolsonaro finalmente encontrasse um ministro subserviente o bastante para transformar essa teoria da conspiração em política de governo.

Em perfeita sintonia, o empresário Carlos Wizard, convidado para ocupar uma Secretaria no Ministério da Saúde, deu o tom da presepada ao dizer que os dados produzidos até aqui eram “fantasiosos ou manipulados” e que uma “equipe de inteligência militar” identificou sinais de fraude nas informações prestadas pelos Estados. Em resposta, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde divulgou nota em que diz que Wizard, “além de revelar sua profunda ignorância sobre o tema, insulta a memória de todas aquelas vítimas indefesas desta terrível pandemia e suas famílias”. Quando já estava claro que suas declarações prejudicariam a imagem de suas empresas, Wizard pediu desculpas e declinou do convite – mas a lembrança da ofensa que praticou será perene.

Ao maquiar os dados, o presidente Bolsonaro e seus serviçais no Ministério da Saúde atentam contra as regras básicas de transparência da administração pública. Sem a publicidade ampla e integral de informações produzidas pelo Estado, a democracia não se realiza, pois a manipulação de dados compromete a capacidade dos cidadãos de exercer o controle público da administração. Além disso, informações distorcidas certamente resultam em decisões equivocadas, tanto por parte dos cidadãos como por parte do governo.

Na hipótese de que a ardilosa revisão dos números da pandemia desenhe um quadro menos grave do que o atual, seria natural que os cidadãos desafiassem as regras de isolamento social impostas pelas autoridades estaduais e municipais – exatamente como deseja o presidente Bolsonaro. Ou seja, tomariam uma decisão temerária baseados em estatísticas falsas ou adulteradas, colocando em risco ainda maior a saúde pública em meio à pandemia.

Como bem lembrou o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, “a manipulação de estatísticas é manobra de regimes totalitários” e, portanto, é preciso “parar de brincar de ditadura” no Brasil. Na Venezuela chavista, que o presidente Bolsonaro tanto critica, os dados oficiais foram tão manipulados que perderam completamente a credibilidade, obrigando a sociedade civil a apurar as informações por conta própria.

Há um movimento semelhante aqui no Brasil. Logo depois que o País tomou conhecimento da iniciativa do governo de esconder os dados da pandemia, veículos de comunicação – entre os quais o Estado – decidiram trabalhar de forma colaborativa para obter as informações nas Secretarias de Saúde de todos os Estados. Além disso, o Tribunal de Contas da União ofereceu-se para fazer a consolidação dos números. Por fim, partidos de oposição entraram na Justiça para exigir a divulgação correta e ágil das estatísticas.

A firme reação da sociedade ante as patranhas do governo Bolsonaro em relação à pandemia coincide com o início de um movimento de defesa da democracia, que no domingo passado, a despeito da necessidade de manter o isolamento social, levou milhares de pessoas às ruas, em protestos pacíficos. Para o governo, esses cidadãos cansados do embuste bolsonarista são “terroristas”.

Um governo que vive de enganar os cidadãos e de criminalizar a oposição não é democrático e deve ser denunciado com o maior vigor, mesmo diante das limitações sanitárias impostas pela pandemia. A coragem moral que falta a alguns no governo sobra entre os brasileiros de bem – maioria absoluta da população.

A verdade nos libertará de Bolsonaro

Não é primeira vez que Bolsonaro luta contra dados oficiais. Em abril do ano passado, criticou o IBGE pelos números do desemprego, prometendo mudanças na metodologia. Em agosto, demitiu o cientista Ricardo Galvão da direção do Inpe pelos números desastrosos do desmatamento da Amazônia (que, em 2020, aliás, só têm piorado).

Ainda não está claro o que motivou a mudança na divulgação dos dados de mortes por Covid-19 do Ministério da Saúde. Tudo indica, contudo, que foi o desejo expresso do presidente de que o número de mortes diárias não ultrapassasse mil que motivou a lambança vista nos últimos dias, com sérias consequências para a credibilidade do governo e do Brasil.

Não existe indicador perfeito. Toda coleta de dados está sujeita a falhas e todo número decorrente dela tem suas limitações enquanto representação da realidade. O importante é que o indicador mapeie minimamente bem o fenômeno estudado, que a metodologia seja transparente, o uso generalizado e que tenha consistência ao longo do tempo. Só assim podemos comparar diferentes países e o mesmo país ao longo do tempo.


O grau de obscurantismo e incompetência no governo é assustador. Inicialmente, Bolsonaro fazia a previsão de que o total de mortes por Covid-19 no Brasil não chegaria a 800.

Não vimos qualquer mudança de postura de sua parte depois de um erro tão profundo em um assunto tão sério. Agora, tenta desesperadamente maquiar os números para que as mortes fiquem abaixo de mil por dia. Conforme noticiado no domingo, a cúpula do Ministério da Saúde justificou a mudança no tratamento dos dados mandando aos técnicos, via WhatsApp, um vídeo do empresário bolsonarista Luciano Hang.

Nisso, os nossos militares que comandam o Ministério da Saúde saem com a reputação manchada.

Em vez de servir ao Brasil e dar números confiáveis à população, preferiram retorcer os dados para melhorar a imagem da atual gestão.

O governo sabe que não conseguirá esconder o número de mortes registradas diariamente. As secretarias de Saúde estaduais continuam a publicá-los. Mas a criação de um novo indicador basta para criar um número paralelo. É a reedição, para a saúde pública, do "PIB público" e "PIB privado" do início do ano. É o bastante para melar o debate por alguns dias e produzir mais alguns conflitos.

Desde o início da crise, Bolsonaro se absteve de governar, preferindo sabotar o trabalho de quem tentou combater a epidemia, seja nos governos estaduais ou no próprio governo federal.

A cada nova briga, ele sai menor. Governadores conquistaram autonomia, Congresso aprova o que bem quiser, STF veta e investiga à vontade.

Agora é a vez da imprensa. Grandes jornais já não perdem tempo noticiando as gracinhas do presidente na frente do palácio. Agora, numa parceria entre diversos veículos, viabilizaram a divulgação dos dados nacionais da epidemia à revelia dos esforços do governo para turvar as águas.

Bolsonaro se preocupa apenas com sua própria imagem. Os protestos de domingo, majoritariamente pacíficos e que congregaram alguns milhares de pessoas o preocupam mais do que a pandemia. Busca culpados, jamais traz soluções.

E quando o desastre vem, embaralha propositalmente os números. Ele pode negar a realidade, mas as consequências dessa negação seguirão batendo à sua porta.

Os crimes de responsabilidade se empilham. Agora, as mortes também. Notas de repúdio não bastam.

Pensamento do Dia


Vírus tatuou os mortos na biografia de Bolsonaro

Ao ordenar que o Ministério da Saúde conte a verdade ao país sobre os mortos do coronavírus, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, liberou Jair Bolsonaro para cometer seu próximo erro na crise sanitária. Ele virá, é questão de tempo.

É como se a sequência de erros tivesse surtido o efeito de uma vacina às avessas. Cada dose de equívoco reforçou os anticorpos que tornaram o presidente imune ao acerto. A desfaçatez e a insensibilidade encontraram o equilíbrio em suas veias.

Há algo de sádico no comportamento de Bolsonaro. Houve um momento em que ele poderia ter abandonado o negacionismo. Foi no instante em que manuseou, no início de abril, uma pesquisa do Datafolha.

A sondagem revelava que 76% dos brasileiros aprovavam a maneira como o Ministério da Saúde, sob Henrique Mandetta, lidava com a pandemia. Entre os eleitores bolsonaristas, a aprovação explodia para notáveis 82%.

Bastaria a Bolsonaro encostar sua imagem na gestão de Mandetta, jactar-se da qualidade de sua equipe, e credenciá-la para realizar uma coordenação da crise desde Brasília.


O esforço poderia resultar em nada. Mas revelaria a presença no Planalto de um presidente disposto a presidir a crise. Bolsonaro preferiu ser presidido pela pandemia. Permitiu que o vírus influenciasse o rumo do seu governo.

Com a pasta da Saúde transformada em unidade militar com um par de puxadinhos do centrão, Bolsonaro deixou-se infectar por um germe oportunista. O germe da ocultação. O presidente quis maquiar a pilha de cadáveres. Não colou.

O Brasil está prestes a ultrapassar a barreira dos 40 mil corpos. Há na praça previsões que empurram o número de cadáveres para as fronteiras do inimaginável.

Mais tarde, dentro de uns 100 anos, quando a posteridade puder falar sobre esse período da história sem usar máscara, surpreenderá os brasileiros do futuro com o relato fantástico de uma história de amor: a trajetória do vírus que tatuou centenas de milhares de corpos na biografia de um presidente que se apaixonou pelo erro, sendo plenamente correspondido.

O Partido dos Robôs sem voto

A democracia moderna foi atravessada por um desafio inimaginável até pouco tempo: a ocupação da pólis por seres irreais. Quem são esses usuários que diariamente emplacam temáticas políticas nos trending topics do twitter, com uma capacidade quase imediata de mobilização em torno de hashtags perfeitamente bem combinadas, perfeitas até demais para serem verdade?<br/> <br/>Há uma falha no teste do pato. “Se ele parece com um pato, nada como um pato e grasna como um pato, então provavelmente é um pato” – diz o ditado. E o usuário que se parece com eleitor, reclama como eleitor, apoia como eleitor, mas usa hashtags milagrosamente lançadas, em questão de minutos, aos assuntos mais comentados do momento? É robô.


Tudo que acontece de mais relevante na política nacional vira uma hashtag, ou mais provavelmente duas: uma de apoiadores e outra de detratores. Inicia-se, então, a batalha digital do dia.

Existem, porém, as batalhas reais e as batalhas que nascem forjadas e se tornam reais. As primeiras não deixam de interessar à análise do cenário dicotômico, mas as segundas merecem especial atenção crítica. Robô não vota. Então por que importa tanto o tumulto que ele faz? Porque a movimentação de usuários irreais tem o condão de pautar o debate. A aparência de que um assunto está sendo comentado faz com que ele passe a ser comentado de fato. Está feito o sequestro da pauta política de um país.

A movimentação de uma expressiva quantidade de usuários falsos tem a perigosa capacidade de criar uma bolha inflacionária política ou eleitoral. O que significa isso? Que ela traz uma falsa robustez a uma ideia, a uma pessoa ou a uma causa. Esse conjunto de robôs desprovidos de título de eleitor cria uma “bolha” de apoiadores - frágil, posto que mentirosa. Mas a demonstração da ampla adesão à ideia chama mais gente, desta vez pessoas reais. É uma bolha inflacionária política e eleitoral, na medida em que carrega uma pessoa nos ombros invisíveis de celulares conectados a contas falsas e entrega a ombros verdadeiros de quem sentiu que estava aderindo a um forte movimento, “que subitamente eclodiu”. Então, pouquíssimo importa que robô não vota, não comparece a manifestação, não bate panela na janela, desde que ele consiga fazer pessoas reais, capazes de tudo isso, aderirem ao movimento.

Não pode ser subestimada a grande susceptibilidade de uma pessoa real se juntar a um movimento de origem falsa. As pessoas entram diariamente nas redes sociais em busca de um tema para comentar. Não é mais só uma questão de programação comportamental, é também uma questão de pertencimento. Se uma hashtag entra para os trending topics, para muitos isso significa quase automaticamente que o assunto em torno dela merece um comentário ou uma ação.

Muita ficção científica foi produzida no passado, especulando sobre robôs usurpando empregos e até postos de comando humanos; mas pouco se imaginou sobre robôs usurpando o debate público humano, o debate sobre a própria forma de uma sociedade humana se organizar e se deixar liderar.

Qual é o grande mal disso? Justamente pela fugacidade do “assunto do momento”, a batalha política passou a ser diária, pontual e pormenorizada. Houve um claro esvaziamento da política de identificação de ideias e propostas, em favor da política de identificação de posturas e falas, cotidianamente. É um rumo perigoso para se tomar: o debate político deixar de ser sobre ideias e passar a ser sobre circunstâncias. A transitoriedade do apoio gera graves crise de representatividade e de capacidade de se liderar, pelo prazo necessário para fazer qualquer diferença.

Se esses fatos estão postos e estamos falando de uma realidade enquanto ela acontece (vide batalha de hashtags do dia), o que se há de fazer? Muito se debate, acertadamente, sobre regulação, investigação e inibição da presença digital fake. Mas conhecem-se os desafios de se controlar algo que é pouco rastreável, que desconhece fronteiras territoriais e faz-se esbarrar em alcances jurisdicionais.

Sem dúvidas, a melhor forma de encarar é escancarar. Não se questiona a importância de a comunidade digital global continuamente trabalhar para evoluir em segurança, rastreabilidade e confiança; e de as comunidades jurídicas amadurecerem os debates sobre controle, responsabilização e desmobilização. Mas a contribuição mais eficaz e imediata virá – e já tem vindo – das iniciativas de jogar luz sobre as trevas da mobilização robotizada em torno de pautas políticas.

Não tem fidelidade partidária no Partido dos Robôs sem Voto. É preciso apostar alto na “trollagem” contra os robôs. Isso significa expor suas contradições, suas obviedades, suas falhas, seus movimentos e suas inconsistências. Talvez seja essa uma boa releitura moderna do enigma da esfinge. Precisamos decifrar as redes a serviço do fake, sob pena de vermos devorado o debate público tal como se conhece. Nas urnas: um homem, um voto. Nas redes: um homem, um post.
Marcos Aurélio Carvalho, ex-marqueteiro de Bolsonaro e um dos donos da AM4, foi peça-chave na campanha presidencial de Jair Bolsonaro em 2018 

O risco do bolsonarismo chavista

Quando os professores José Arthur Giannotti, Denis Lerrer Rosenfield e a deputada Joice Hasselmann dizem uma mesma coisa, é bom que se preste atenção. Afinal, cada um com suas qualificações, eles têm pouco em comum.

“Bolsonaro dá um passo além, em seguida dá um passo recuando. Aos poucos, vai instalando o Estado de modo em que ele possa se transformar em uma Venezuela.”

Rosenfield: “No caso da experiência venezuelana, considerada por Lula um exemplo de democracia, processou-se a subversão da democracia por meios democráticos. As instituições democráticas foram inicialmente preservadas, enquanto o seu interior foi progressivamente minado. A imprensa e os meios de comunicação em geral foram, passo a passo, calados, o Legislativo perdeu suas funções, com o presidente passando a legislar por decretos, e o Supremo Tribunal, após ser atacado, foi cooptado. Milícias foram criadas e passaram a violentar e controlar os cidadãos. No Brasil, estamos vivendo um processo semelhante nos seus inícios, só que de sinal trocado.”

Joice Hasselmann, ex-líder do governo Bolsonaro no Congresso: “Antes que o Brasil caia num chavismo de verdade com o sinal trocado, eu propus o processo de impeachment.”

Antes da eleição presidencial de 2018 havia gente assustada com a possibilidade de o Brasil virar uma Venezuela na mão do PT. Deu-se o imprevisível e surgiu o risco de uma venezuelização com Bolsonaro. Ele foi um capitão indisciplinado, Hugo Chávez foi um coronel golpista. Ambos foram eleitos e ambos eram paraquedistas. Uma vez no poder, Chávez aparelhou-o com militares e, nas palavras do vice-presidente Hamilton Mourão, “existe uma corrupção muito grande nas Forças Armadas venezuelanas. Elas perderam a mão em relação à missão que têm no país”.

Bolsonaro nomeou centenas de militares da reserva e da ativa para cargos na sua administração. No Ministério da Saúde há 21. Seu governo mostrou-se tolerante com policiais militares amotinados, mas não mexeu com a disciplina dos quartéis. O chavismo firmou uma base numa milícia popular, enquanto a milícia bolsonarista é sobretudo eletrônica. As militâncias de Bolsonaro e do chavismo assemelham-se na hostilidade aos meios de comunicação, ao Congresso e ao Judiciário.

Bolsonaro repete que respeita a Constituição e nunca falou em referendos, enquanto Chávez atropelou as instituições durante seu primeiro mandato. Bolsonaro, como Chávez e Nicolás Maduro, produz uma crise por semana. A seu modo, tornou-se um excêntrico na comunidade internacional.

A grande diferença entre os dois países está nas suas economias. A brasileira é seis vezes maior que a venezuelana. Além disso, Pindorama tem empreendedores no andar de cima, enquanto a elite da Venezuela vivia nas tetas da riqueza do petróleo. A sociedade brasileira tem uma complexidade que a venezuelana nunca teve. Essas ressalvas valem pouco. Se o passado explicasse tudo, o nazismo teria surgido na Grécia, não na Alemanha, e Cuba nunca teria virado um país comunista.

Assim como Paris encheu-se de nobres russos nos anos 20 do século passado, Miami está cheia de cubanos e venezuelanos que não acreditavam que seus países virassem o que viraram. Eles não deram atenção ao que diziam pessoas como Giannotti, Rosenfield e Hasselmann.
Elio Gaspari

O Exército é a 1ª estatal privatizada por Bolsonaro: vendida aos Bolsonaros

Aos poucos, o Exército Brasileiro vai se transformando num puxadinho dos interesses da família Bolsonaro. Antes que o presidente faça qualquer privatização de relevo, parece que uma das três Forças já está em franco processo de privatização.

Não se esqueçam: na reunião ministerial do dia 22 de abril, o capitão reformado Jair Bolsonaro afirmou, entre dois generais (Braga Netto e Hamilton Mourão), e com outro também a compor o lado principal do retângulo da mesa, que ele atua de forma deliberada para armar a população para que esta possa resistir, na base da bala, a decisões de governantes. O nome disso é guerra civil.

Essa é uma questão importante porque as organizações em defesa da vida e dos direitos humanos no Brasil têm agora a tarefa de fazer chegar a organismos internacionais que atuam na área a seguinte informação: o governo, por intermédio do Exército e de uma empresa americana, quer incrementar a produção e venda de armamentos para indivíduos.

Isso se dá num contexto muito particular: o chefe da nação assume que armar a população é uma questão política, não uma medida de autodefesa. Vale dizer: o eventual acordo se torna peça relevante num cenário que tem como horizonte a luta de brasileiros contra brasileiros. Leiam o que informa a Folha. Volto em seguida.
*

Após intenso lobby do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o Exército está prestes a fechar uma parceria para a fabricação de pistolas da marca americana SIG Sauer no Brasil. O filho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é entusiasta de armas, e é visto no mercado como uma espécie de garoto-propaganda da SIG. Sua insistência em promover a empresa gerou desconforto em setores do Exército, já incomodados pela revogação de portarias de controle de armas e munições por ordem do presidente. No seu canal no YouTube e em sua conta no Facebook, Eduardo aparece testando pistolas da marca em um clube de tiro em março deste ano.

Em 16 de abril do ano passado, postou no Twitter a foto de uma reunião com representantes da empresa, prometendo ajudá-los: "Falta a garantia política de que o lobby não atochará tantas burocracias para emperrar a instalação" de uma fábrica no país. Em janeiro, o deputado disse que havia sido procurado pela SIG e que acreditava no interesse de outras empresas no Brasil, como a Beretta --a legendária forja italiana dá nome à sua cachorra. Há duas semanas, visitou o general Alexandre Porto, que assumiu a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército em substituição a Eugênio Pacelli, cujas portarias foram derrubadas.
(...)
O Exército informa que as duas empresas só precisam agora do aval dos respectivos governos para firmar um acordo de produção conjunta no Brasil. Ainda não há detalhes sobre metas e investimento.
(...)
Isso não é mais um governo, mas um grande lobby em favor da indústria armamentista.

Desde que assumiu a Presidência, esse é o setor em que presidente é mais buliçosamente legiferante — e sempre para relaxar posse e porte de arma, além de facilitar a compra de munição.

Na reunião ministerial do dia 22 de abril, Bolsonaro se refere a uma portaria que foi, de fato, baixada no dia seguinte, que elevou de 200 por POR ANO para 550 POR MÊS a quantidade de munição que pode ser comprada por civis: foi multiplicada 33 vezes.

Já a Portaria 62 extinguiu três outras — 46, 60 e 61 — e pôs fim ao rastreamento de armas e munições. Para tanto, Bolsonaro interveio pessoalmente no Comando de Logística do Exército e cavou a exoneração do general Eugênio Pacelli da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados. Era ele o responsável pelas portarias extintas, que garantiam a rastreamento. Há uma ação do PSOL no Supremo contra a Portaria 62.

Na semana passada, em mais uma intervenção no setor, Bolsonaro permitiu que civis comprem os fuzis de assalto fuzis 5.56 e 7.62 fabricados pela Imbel, a empresa fabricante de armas do Exército, que faria, então, a parceria com SIG Sauer, em favor da qual Eduardo Bolsonaro faz lobby.

Quem sai ganhando com a generalização de posse e porte de armas, incluindo fuzis de assalto, sem rastreamento? Não é preciso ser muito bidu: as milícias e o narcotráfico. Isso nada tem a ver com autodefesa. E, claro!, há a aposta do presidente na guerra civil. Relembro sua fala do dia 22 de abril:

"O que esses filha de uma égua quer, ô Weintraub, é a nossa liberdade. Olha, eu tô, como é fácil impor uma ditadura no Brasil. Como é fácil. O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua. (...) Eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta! Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! E não dá pra segurar mais! Não é? Não dá pra segurar mais. (...) É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado".

E pensar que um dos filhos de Lula é réu, com o pai, num inquérito por suposto lobby em favor do caças Gripen, da Suécia, comprados pela Aeronáutica.

É a mais alucinada de todas as acusações contra o petista. A compra dos caças só se deu em 2013. A decisão foi inteiramente da Aeronáutica, sem interferência do governo. COMO SABE A AERONÁUTICA.

Lula está sendo investigado porque recebeu uma carta do então sindicalista e presidente do Partido Social Democrata sueco, Stefan Löfven, defendendo o Gripen. Pedia que ela fosse endereçada ao governo. Löfven é o atual primeiro-ministro da Suécia.

Tal carta bastou para que o Ministério Público Federal fabricasse uma teoria mirabolante sobre a suposta influência do petista na escolha dos caças. A única evidência de que dispõem é essa.

Comparem com a atuação desabrida de Eduardo, que se comporta abertamente como lobista, com a devida, digamos, documentação na Internet.

Se o acordo sair, vamos ver o que vai fazer o Ministério Público Federal.

Eis aí! O Exército e a primeira estatal privatizada por Bolsonaro. Em favor da família Bolsonaro.