quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Brasil talibã

 


Trevas é Bolsonaro

Michelle Bolsonaro deveria tomar um gancho nas redes sociais. Mas, assim como fake news, intolerância religiosa parece também não ser um problema para as plataformas. Dona Micheque, como ficou conhecida por causa dos R$ 89 mil depositados em sua conta por Fabrício Queiroz, relacionou um ritual de candomblé a "trevas".

No vídeo em que Lula aparece com lideranças religiosas, a vereadora Sonaira Fernandes diz que o ex-presidente "entregou sua alma para vencer a eleição". Dona Micheque pergunta se "isso pode". É uma pergunta retórica, a primeira-dama sabe ou é preconceito. Pode. O Brasil é laico, tão laico que pode até filial da Igreja Satânica, que tem sede em Massachussetts e foi criada menos por adoração ao diabo e mais para provocar gente intolerante feito Michelle.


Dias atrás ela havia dito que o Planalto era "consagrado a demônios". Ainda que Michel Temer pareça uma reencarnação do Drácula e tenha feito conchavos com gente da pior espécie, é um exagero. Bolsonaro entregou a alma e o cartão de crédito dos brasileiros ao centrão e continua posando de cristão.

O presidente quer Michelle em campo para diminuir sua rejeição entre o eleitorado feminino. Só se for entre o eleitorado feminino evangélico. Em poucas aparições, a primeira-dama mostrou que só quer conversa com gente que reza a mesma reza. Tal qual Bolsonaro, que continua em campanha para os mesmos convertidos de sempre, Michelle só tem um argumento para a reeleição do cônjuge: Deus quer.

Que Deus é esse? Trevas é rachadinha, amizade com miliciano, gente com fome, briga que acaba em morte, orçamento secreto, quase 700 mil mortos pela Covid, exaltação ao jet ski, motociata, ataques ao sistema eleitoral, piada homofóbica. Trevas é ter que escrever carta contra golpista em 2022. Trevas é o delinquente do Bolsonaro como presidente. Que a democracia nos ilumine.

Arma é bíblica


Comprem suas armas, comprem suas armas. Isso também está na Bíblia. […] ‘Vendam suas capas e comprem espadas’ 
Jair Bolsonaro

Bolsonaro é a mais completa tradução do cafajeste

Quantas palavras de baixo calão, referências homofóbicas, piadas misóginas e menções racistas não saem todos os dias da boca de Bolsonaro em dissonância com a imagem que ele tenta vender de chefe de família exemplar, defensor dos bons costumes, religioso ao ponto de ter sido batizado nas águas do rio Jordão, em Israel.

Local de milagres, o rio Jordão foi cenário para diversas histórias da narrativa bíblica. Ali, Bolsonaro, em 2016, quando já plantava as sementes de sua futura candidatura a presidente, foi batizado pelo pastor Everaldo, então presidente nacional do PSC, partido ao qual ele era filiado. O pastor foi preso depois por corrupção.


O que causa perplexidade é que condutores do rebanho evangélico, a parcela mais fiel do eleitorado de Bolsonaro, responsável pelo segundo lugar que ele ocupa nas pesquisas de intenção de voto, não o censurem por mais que ele se renda aos seus instintos mais primitivos. Nessas ocasiões, fazem de conta que não o escutam.

A religião evangélica está repleta de pastores picaretas, apenas interessados em enriquecer, que acenam com uma vaga no céu em troca do dinheiro alheio. Mas não dá para medir por seu comportamento falso e criminoso a sinceridade da fé que move os que lhe dão ouvidos e acreditam em suas palavras.

Disso eles se valem para construir fortunas; disso se valem também Bolsonaro e seus filhos para se manter no Poder, e prosperar nos diversos ramos que exploram com base nas posições conquistadas. Flávio gosta mais de votos e conforto; Eduardo, de armas, cassinos, cursos digitais. Jair Renan é um aprendiz.

Nascida em família de baixa renda, Michelle, a quarta mulher de Bolsonaro, o conheceu na Câmara como servidora pública. À época, Bolsonaro padecia do mal de ter sido traído. Entre tapas e beijos (isso é só força de expressão), os dois souberam atravessar anos difíceis até que as portas do céu se lhes abriram.

Depois de muitas vezes comer pão amargo (outra força de expressão), Michelle provou do mel (mais uma força de expressão) de tornar-se a primeira-dama de um dos maiores países do mundo. E quem prova do mel nunca mais quer abrir mão de bebê-lo. Se tiver que abandonar a discrição, é o preço a ser pago.

Na cerimônia de posse do marido, Michelle limitou-se a bancar sua porta-voz na linguagem de libras; fez sucesso e abandonou o palco. Preferia atuar a salvo do julgamento da plateia. Comparecia aos eventos que não podia faltar, e em mais de um deles a força que exercia sobre o marido foi notada.

Aos poucos, pôs a cabecinha de fora e mostrou que também podia mandar. Foi ela que pesou decisivamente na nomeação de André Mendonça para ministro do Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro vetou a candidatura ao Senado de Damares Alves, ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos; Michelle bancou-a.

É o contraponto perfeito ao marido – ele, um cafajeste travestido de presidente e com vocação de ditador; ela uma mulher que cultiva os bons modos e é religiosa de berço, não por conveniência. Uma parte dos seguidores de Bolsonaro admira suas canalhices. Uma parte maior, o apego fervoroso de Michelle a Deus.

Em maio último, na entrevista de Bolsonaro ao programa Alerta Nacional, da RedeTV, Michelle fez uma concessão à vulgaridade do marido. À pergunta sobre se ele estava “dando conta em casa”, respondeu que ele é “imbrochável”, “incomível” e “imorrível”. No lançamento da candidatura de Bolsonaro, foi outra Michelle:

“Quando o [Palácio do] Planalto se fecha, eu entro com meus intercessores e oro na cadeira dele. E eu declaro todos os dias: Jair Messias Bolsonaro, sê forte e corajoso, e não tema. Ele é o escolhido de Deus”.

Saindo de mansinho

De tempos em tempos, desisto do Brasil. Estou desistindo novamente agora. Além de renunciar às urnas, resolvi renunciar também ao nosso site. A partir de hoje, vou parar de escrever para a imprensa. No caso, O Antagonista e a Crusoé.

O plano é me dedicar a atividades mais gratificantes do ponto de vista intelectual e espiritual. De fato, pretendo passar meus dias deitado no sofá, tirando meleca do nariz. Quanto tempo isso vai durar? O trato é permanecer um ano de folga. Pode ser mais, pode ser menos. A única certeza é que vou me abster de comentar a campanha eleitoral, os debates na TV, o resultado do primeiro turno, a festa do vencedor, os nomes dos ministros, as tentativas de golpe, a compra dos parlamentares. Sinto-me revigorado só de ver essa lista.

É claro que há reciprocidade nisso. Eu desisti do Brasil, o Brasil desistiu de mim. Ninguém está disposto a ler pela trigésima-oitava vez os mesmos comentários sobre os mesmos assuntos. Eu já disse o que tinha a dizer. O afastamento, portanto, é consensual. O Brasil e eu enjoamos um do outro. Vou sair de mansinho e o leitor nem vai notar.

Estupidamente, eu havia prometido me atirar do campanário de São Marcos em caso de segundo turno entre Lula e Jair Bolsonaro. A aposentadoria precoce foi o jeitinho acovardado que arrumei para descumprir a promessa. É uma espécie de terceira via particular. Minha vida vai virar uma Simone Tebet: estreita, tediosa, supérflua e sem brilho, mas longe daquela gentalha fedorenta que há vinte anos embosteia meu dia a dia.
Diogo Mainardi