segunda-feira, 23 de abril de 2018

Nem falta vergonha


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O arsenal teórico, político e cultural de que dispõem a esquerda e a direita para darem conta do estrago parece miseravelmente pobre, limitado, tacanho
Cristovão Tezza

A economia na Era Lula

O crescimento da economia brasileira na era Lula é tema recorrente na retórica do lulismo. Com efeito, no início do governo Dilma, o Brasil superou o Reino Unido e se tornou a sexta maior economia do planeta em números absolutos. Como isso aconteceu? A pergunta, aliás, me foi feita por um jovem que queria saber como responder a um colega que se valia desse fato para exaltar o governo petista. Sugeri a ele que desafiasse o colega a indicar três providências adotadas por Lula para obter tal resultado.

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Trata-se de uma pergunta sem resposta possível. O crescimento da economia brasileira na era Lula resultou da combinação de dois fatores que nada tiveram a ver com seu governo. De um lado, o consistente superávit fiscal alcançado a muito custo e sob cerrada oposição petista no período anterior; de outro, o formidável ingresso da China como compradora no mercado de commodities. Na virada do milênio, assim como cresceu a economia brasileira, cresceram, também, todas as economias periféricas graças a um inusitado aumento, simultâneo, dos volumes exportados e dos preços das mercadorias.

No entanto, o que foi causa de muita alegria deu motivo às atuais tristezas. Na prosperidade, nascia um novo Lula, cheio de si, convencido, como o galo Chanteclaire, de que o sol nascia porque ele cantava. A pessoa física de Lula era a causa da prosperidade nacional. Com ele, a vida seria sempre assim. O Brasil teria cadeira no Conselho de Segurança, sentaria entre os grandes da Terra, ele presidiria a ONU. Morria o Lula dos humildes e nascia o dos poderosos.

Quando a economia mundial foi varrida pelo tsunami causado pela crise do subprime, Lula rejeitou todos os chamados à prudência e à moderação. Descartou medidas de contenção dizendo que aquela crise, aqui, seria apenas uma marolinha. O Brasil era maior do que a crise. Para ilustrar a situação com apenas dois dos muitos excessos de nouveau riche que acometeram os governos petistas, em 2007 Lula foi buscar a Copa de 2014 e, em 2009, contratou os Jogos Olímpicos de 2016.

Para manter a galinha em voo, o endividamento voltou a crescer, os juros a subir, a inflação retornou aos dois dígitos e o governo deitou mão, inclusive, do cofrinho das aposentadorias dos fundos de pensão das estatais. O Estado inchou, a galinha engordou, as asas desistiram de bater e o PIB despencou 10,4%.

Esses são os fatos. Se há algo que se possa atribuir a Lula em relação à economia brasileira são as consequências de uma gestão irresponsável no desenrolar de seu segundo mandato (2007-2011) e a igualmente leviana indicação de sua estabanada sucessora.

Percival Puggina

Imagem do Dia

Geoffrey Wynne Acuarelas - Watercolours
Geoffrey Wynne

A Lava Jato e o transtorno bipolar do New York Times

O sociólogo francês Pierre Bourdieu, citado por Edmund White em O Flâneur ─ Um Passeio pelos Paradoxos de Paris, indica que “a opinião dos estrangeiros é um pouco como o julgamento da posteridade”.

A ideia aqui é que apenas o distanciamento ─ marca de quem observa o desenrolar dos fatos de um mirante longínquo ─ possibilita uma perspectiva realmente objetiva.

Aos participantes de uma mesma trama nacional, tal intervalo espacial não existe, e, portanto, apenas o tempo pode contribuir para delineamentos históricos mais apurados.

Essa suposta avaliação objetiva e a dimensão global de um veículo jornalístico em língua inglesa de grande tradição projetam o enorme alcance do jornal The New York Times.

Tais atributos apenas aumentam a responsabilidade da direção do jornal, sobretudo no momento em que expressam a posição da casa por meio de editoriais.
Conveniences

Se esse é o caso, então os milhões de leitores do diário nova-iorquino foram brindados na última quinta-feira (12) com uma desagradável constatação.

Num editorial intitulado “Lula está preso, e a democracia do Brasil, em perigo”, o NYT oferece exemplo marcante do que uma opinião de jornal não deve ser: contraditória, superficial, confusa.

O texto, claro, trata da ascensão e da queda do ex-presidente Lula, faz alguns elogios à Operação Lava Jato e ao juiz Sergio Moro e busca examinar o caminho do Brasil até as eleições presidenciais de outubro.

Nessa avaliação, o editorial do NYT comete uma série de equívocos imperdoáveis. Alguns exageram o quão sensível é o quadro político-institucional brasileiro e confundem causa e efeito das atribulações por que atravessa o país.

É certo que as falas do ministro do Supremo Tribunal Federal Luis, Roberto Barroso, e de Moro, em seminário na Escola de Direito de Harvard na última segunda (16) ─ ambos ressaltando a pujança da democracia no Brasil ─, tiveram como pano de fundo esse editorial do NYT.

Não é para menos. O título já é redondamente errado. Ele permite supor uma conexão imediata entre Lula atrás das grades e riscos à democracia brasileira. Ora, é bem o inverso. Com a prisão de poderosos, a democracia sai fortalecida.

Logo no primeiro parágrafo, o editorial declara que “quando uma onda anticorrupção varre o político mais popular do país, a justiça é servida, mas a democracia é testada”. Talvez seja o oposto. Dado o longo histórico de morosidade e manobras protelatórias das instâncias jurídicas no Brasil, é no julgamento e na prisão de poderosos culpados que a Justiça é testada, e a democracia, servida.

Num período adiante, a opinião do New York Times estabelece que a Lava Jato “desferiu um duro golpe na corrupção, mas também desestabilizou o sistema político brasileiro e ajudou a empurrar o país à recessão e deixou milhares de desempregados”.

Bem, chacoalhar o sistema político no Brasil, tradicionalmente alimentado por favoritismo, clientelismo e compadrio, é um movimento que deve ser saudado ─ na medida em que fortalece as instituições e o mérito, e consolida o Estado de Direito.

Além disso, atribuir à Lava Jato coautoria na dramática recessão e elevado desemprego a que o país foi arremessado representa uma tremenda confusão entre doença e cura, origem e consequência. Não foi a Operação que contribuiu para levar o Brasil à pior recessão de sua história, mas muitos dos males que ela combate. O editorial também aponta, deve-se notar, várias observações corretas, como “o Congresso brasileiro, por si só, não apoia a luta anticorrupção”.

Ou ainda: “o Brasil de fato dispõe das instituições e meios para enfrentar até os mais poderosos ─ e populares ─ malfeitores”.

Numa outra passagem, porém, o NYT outra vez se presta à confusão. O editorial sugere: “em que pese todo o sucesso da Lava Jato, nada foi feito para consertar o sistema jurídico. O perigo de uma guinada ao populismo e à radicalização política é óbvio”.

Nesse aspecto, é claro que uma reforma do Judiciário seria bem-vinda. Aqui, contudo, o NYT parece endossar a exótica tese de que um dos efeitos colaterais da Lava Jato é conduzir o país a um maior risco do populismo e intolerância política. Ora, não é justamente o contrário?

Conclusão: mesmo as mais veneráveis instituições do jornalismo internacional podem ter seus dias de transtorno bipolar.

Lábia do 'preso político' saiu do prazo de validade

O PT divulgou neste domingo uma mensagem que Lula gravou em 7 de abril, antes de deixar o bunker sindical de São Bernardo para se render à Polícia Federal. A peça exibe um personagem sem nexo. Em duas semanas, a lábia do “preso político” saiu do prazo de validade. Admitindo-se que o PT ainda queira participar da sucessão presidencial, a exibição do vídeo inspira uma indagação: o que é que o partido pretende oferecer?

Na gravação, Lula repetiu que poderia ter dado no pé. Mas ''não quis fugir porque quem é inocente não corre.” Subiu no caixote: “Não tenho medo das denúncias contra mim porque sou inocente e não sei se meus acusadores são inocentes”. Lula não está em cana por conta de “denúncias”. Foi passado na tranca porque se tornou o primeiro ex-presidente da República condenado por corrupção. É um corrupto de segunda instância. Além da confirmação da sentença no TRF-4, há o aval do STJ e a concordância do STF.

Quanto à ''inocência'' de Lula, esse é um estado comum a todos os presidiários, como explicou o companheiro José Dirceu na semana passada, numa elucidativa entrevista à repórter Mônica Bergamo. Prestes a retornar ao xadrez, Dirceu declarou que, atrás das grades, ''todo mundo é inocente''. Didático, acrescentou: ''O cara matou a avó, fritou o gato dela, comeu. Mas ele começa a conversar com você e a reclamar que é inocente.” Quem se animaria a contestar um especialista?''

O Lula da gravação repetiu: “Eu tenho muita honra e quero me defender. Por isso eu estou muito tranquilo.” Sua honra está encarcerada há 15 dias. Nesse período, o TRF-4 indeferiu o “embargo do embargo”. Restam recursos ao STJ e ao STF. Nessas Cortes, não há espaço para rediscussão de fatos e provas. Discutem-se questões de Direito —o tamanho da pena, por exemplo.

Indefeso, Lula, os advogados e os devotos guerreiam agora contra a regra que autorizou a prisão de condenados na segunda instância. Contudo, a coerência da ministra Rosa Weber reduziu a margem de manobra dos apologistas do recuo. Enquanto reza por uma reviravolta na jurisprudência do Supremo, o preso rumina a perspectiva de novas condenações.

No vídeo, Lula disse que aceitou cumprir o mandado de prisão para verificar o que queriam o juiz Sergio Moro e procurador Deltan Dallagnol. Estava ansioso para “saber se eles estão dispostos a discutir comigo e debater publicamente os processos, porque quero provar que eles estão mentindo a meu respeito.”

Quer dizer: o Lula da fita comportava-se como um Napoleão que cruzaria as fronteiras de Curitiba por vontade própria, como se estivesse chegando a Moscou. Decorridos 15 dias, o preso se parece mais com o general Bonaparte, que retornou humilhado para Paris. Os russos curitibanos continuam no seu encalço. Preparam duas novas sentenças. E Lula, com o prazo de validade já bem vencido, não parece dispor de munição para “provar que eles estão mentindo.”

Repita-se a pergunta do primeiro parágrafo: O que é que o PT pretende oferecer? Manter um candidato ficha-suja no jogo e registrar sua candidatura natimorta no Tribunal Superior Eleitoral em 15 de agosto pode representar muita coisa —uma prova de lealdade ou um gesto de desespero, por exemplo—, mas não é uma solução.

O que aprendi com uma semana lendo apenas mídia impressa

Fui convidado pela Folha a fazer um experimento: passar uma semana me informando apenas por meio de veículos de comunicação impressos. Sem TV, sem rádio e, principalmente, sem notícias na internet. Para mim, ler o jornal diário não é voltar ao passado. É adquirir um hábito que nunca tive.

Quando passei a ler notícias, a mídia já estava na internet. As páginas dobradas de um jeito confuso e que soltam tinta na mão não tinham mais razão de ser. Pense no gasto de papel. De uns anos para cá, chegaram as redes sociais e dominaram a internet. Hoje, é por elas —Facebook, Twitter e WhatsApp— que nos chega grande parte das informações.

Sempre fui otimista com a internet. E, no entanto, há um tempo sinto que algo vai mal. Fiquei saturado das redes sociais, suspeitando que elas afetam nossa capacidade de pensar e se informar. Será que uma semana (do dia 19 ao dia 25 de março) só com mídia impressa acrescentaria algo? Topei na hora.


The Newspaper Reader sculpture 2
O leitor de jornal,  J. Seward Johnson
Tudo na vida são “trade-offs”. Existem prós e contras. Nesse caso, o que perdi? Em primeiro lugar, a instantaneidade da notícia. O bate-boca entre os ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes no Supremo Tribunal Federal, por exemplo, só fui ler no dia seguinte.

Claro, eu já estava ciente de que ele tinha ocorrido; mesmo longe das redes —e sem rádio ou televisão—, as pessoas ao meu redor sabiam e comentavam. Mas só na manhã seguinte eu li as citações completas e entendi o contexto.

Outra coisa a que não tive acesso foi a opinião de milhares de pessoas que comentam nos portais e fazem posts nas redes sociais. Estabeleceu-se uma separação entre a notícia e sua repercussão.

Se por um lado foi uma perda —não vi milhares de memes com as frases do Barroso; não pude comentar e ser lido no ato—, por outro foi um ganho. Posicionar-se ficou menos importante e, sem o parâmetro da opinião alheia, a reflexão pessoal pôde correr mais livremente.

Tive que superar algumas barreiras psicológicas. Sentar para ler o jornal me deixou inseguro. Senti que seria tempo perdido, improdutivo, imperdoável. Era só impressão.

Na verdade, aquele tempo de leitura sem distrações rendeu muito mais do que horas num computador alternando entre um artigo a ser escrito, notícias picadas selecionadas a esmo, emails não lidos, artigos abertos uma semana antes e mensagens inesperadas.

Aprendi mais sobre os temas principais que me interessavam e ainda li sobre assuntos que a priori não seriam do meu interesse, mas que, por estarem ali na página, atraíram minha atenção. “Temer aprova ensino a distância… Vamos ver melhor isso aí.”

Deixei que a decisão dos editores dos jornais —e não o número de cliques ou um algoritmo que identifica e reforça meus interesses— guiasse minha leitura.

O próprio ciclo editorial reestruturou minha experiência. Online, as notícias chegam num fluxo constante, perde-se a noção de uma edição diária; são notícias que vão aparecendo e mudando a qualquer momento. De manhã a manchete sobre a Lava Jato, na hora do almoço um artigo polêmico, à noite uma declaração de ministro do Supremo. Informar-se é um processo gradual que nunca termina.

Com o veículo impresso, o momento de mergulhar nas notícias e artigos do dia é delimitado. Você aguarda o momento de ler o jornal e, uma vez lido, está informado pelo dia todo; aquilo deixa de ser uma preocupação. A paz de espírito agradece.

Passar uma semana com jornais e revistas impressos foi, ao mesmo tempo, uma purificação da estafa mental gerada pelas redes e um aprofundamento naquilo que importa do noticiário: formar uma visão geral e detalhada sobre os principais eventos do mundo. O saldo foi muito positivo, mas era hora de voltar.

As redes sociais trouxeram algo maravilhoso: agora, qualquer um pode escrever e ser lido, sem barreiras. O lado ruim disso é que todo mundo quer escrever e ser lido. Estamos brigando mais e querendo sempre chamar a atenção.

Para mim, já saturou. A cada dois ou três dias, uma notícia gera polêmica —em geral, irrelevante— e milhares de usuários resolvem comentar. Dificilmente alguém sai do esperado. Rolar a timeline é ver opiniões infindáveis e no mais das vezes iguais, cada uma com um detalhezinho para se diferenciar. A sensação final é um niilismo profundo: nada daquilo pode fazer sentido.

O mais deprimente é constatar que os próprios jornais já produzem seu conteúdo e escrevem suas manchetes pensando nessa repercussão. Quando nos afastamos disso, por alguns dias que seja, fica difícil voltar, embora seja necessário. Ficar de fora dá a sensação de não existir.

Dias atrás, Mark Zuckerberg prestou depoimento ao Congresso americano sobre abusos na hora de garantir a segurança da informação dos usuários no Facebook.

A questão é séria, mas creio que mais sério ainda seja o efeito que o uso normal, esperado, da rede tenha não sobre nossas informações, mas sobre as informações que chegam a nós e nossa capacidade e disposição para assimilá-las.

Uma tela e um papel podem conter a mesma informação escrita, mas nosso cérebro as processa de maneira diferente. A leitura na tela é mais superficial e menos fixada pela memória. O papel dá contexto, vemos o jornal inteiro e sabemos nos localizar. A tela oferece a você uma janela e uma coluna de texto corrido, perdido no vácuo.

Some-se a isso todo o resto que costuma vir junto da experiência na tela: distrações variadas e constantes, que tornam a leitura mais curta, mais picada e ainda mais superficial.

Por fim, o efeito específico da rede social: submeter a nossa leitura das notícias à guerra ideológica e à busca do status individual.

A mídia impressa é uma tecnologia que nem sempre existiu e talvez um dia deixe de existir. Nada garante que seja o melhor arranjo possível para a humanidade.

Creio, contudo, que, no mundo atual, recuperar o hábito da leitura da mídia impressa traz ganhos relevantes. Sem isso, você facilmente se perde no oceano digital.

Sempre fiz questão de separar horários do meu dia para ler livros, hábito que também está em franca decadência. Agora faço o mesmo com a mídia. Ler as notícias no papel, sem pressa, nos deixa melhor informados e menos ansiosos.

Joel Pinheiro da Fonseca

Gente fora do mapa

Sewage flows through Asia's largest slum, Dharavi. Ref pic for Paani
Dharavi, favela de Mumbai (Índia)

O bloco da saudade

O verão está no fim. Sinto pela temperatura da água, pelos ventos mais frios. Na Europa, segundo Hermann Hesse, há verão que tem morte súbita: uma trovoada, dias de chuva e ele não volta mais.

Não é adequado falar das estações do ano numa página de política. Elas nos remetem à passagem do tempo, aos lances da vida passada, e só servem para ressaltar a tristeza do momento no Brasil.

Caminhamos para uma eleição imprevisível não apenas por causa das pessoas que a disputam, mas também pela falta de dados sobre o que farão, caso cheguem ao poder.



Fica difícil olhar para a frente. A questão da impunidade não foi resolvida porque há um forte núcleo de resistência no STF.

Os ministros desse núcleo não consideram o caso encerrado, pelo contrário, estão dispostos a uma luta permanente, a uma guerrilha técnica para soltar os que estão presos e impedir a prisão dos que ainda estão na rua.

Lewandowski e Toffoli são simpáticos ao PT e desprezam a luta contra a corrupção, talvez pela própria análise da esquerda que a considera um fato de pé de página nos livros de história.

Gilmar Mendes não tinha essa posição, mas ao longo desses anos tornou-se um grande adversário da Lava-Jato. Na sua fúria, ele se identifica com a esquerda na medida em que quer soltar os que estão presos e, se possível, prender juízes e procuradores.

Juntam-se a eles Marco Aurélio e Celso de Mello, que parecem comprometidos com uma generosa tese jurídica e pouco se importam com suas consequências catastróficas na vida real brasileira.

Não vou repetir o mantra de que a sociedade está dividida: este mito é um bálsamo para as minorias. A sociedade apoia maciçamente a Lava-Jato e quer punição para os culpados.

Mas o que pode a sociedade contra eles? No seu delírio de mil e uma noites na Al Jazeera, Gleisi Hoffmann disse que a imprensa manda no Supremo. Sabemos que não é assim. A imprensa reflete um clamor social contra a impunidade. O próprio comandante do Exército se viu obrigado a manifestar sua opinião sobre o tema, possivelmente por sentir que o clamor também chega às suas tropas.

Mas falta a dimensão política. O sistema partidário adotou uma posição defensiva. Todas as suas energias se voltam para neutralizar a Lava-Jato. Objetivamente, joga suas esperanças nas tramas do núcleo resistente do Supremo.

Essas duas forças, o sistema político partidário (nos bastidores) e o núcleo do STF (na frente da cena) são os artífices da tentativa de bloquear as mudanças no Brasil.

Nem sempre os políticos atuam apenas nos bastidores. De vez em quando, como aconteceu agora, surge um projeto destinado a limitar investigações e a tornar mais fácil a vida dos gestores corruptos.

Essa aliança de políticos que não dependem do voto de opinião com ministros do STF engajados na defesa da impunidade, ou embriagados nas suas teses generosas, é uma constelação difícil de ser batida.

Ela significa que ainda teremos dias difíceis pela frente. O único grande problema para todos nós será o de manter a raiva popular dentro dos limites pacíficos.

Tanto juízes como políticos envolvidos na sua teia de interesses, míopes diante da realidade que os cerca, não hesitam em colocar em risco a democracia.

Alguns são muito corajosos, outros apenas irresponsáveis. Será difícil buscar o horizonte, se não resolvermos essa questão. Ela está atravessada no futuro imediato do Brasil.

Na volta de Deus

Quando Deus voltou ao mundo,
Para castigar os infiéis,
Deu ao Egito gafanhotos
E ao Brasil deu bacharéis...

A maioridade de um aís

Hoje lembramos os 518 anos da chegada de uma frota portuguesa à costa da atual Bahia. Outrora adoravam discutir se o episódio seria intencional ou acidental. Há argumentos para os dois lados. Querendo ou não, achando ou descobrindo (ou os termos mais quinhentistas, achamento ou invenção), o fato era que a prioridade lusitana estava no lucro das Índias que despejariam especiarias sobre Lisboa e fariam a beleza do mosteiro dos Jerônimos. Portugal e Argentina compartilham esse sentimento de apogeu já vivido. O Brasil na bancarrota ou em certa prosperidade sempre foi, como disse Stefan Zweig, “o país do futuro”.

Traço marcante dos brasileiros fictícios como Policarpo Quaresma (na obra de Lima Barreto) ou dos reais como o monarquista Afonso Celso (Porque me Ufano do Meu País – 1900): somos um país de imensas possibilidades no horizonte por atingir. Aliás, na frota do almirante Cabral já viajava o homem fundador da tradição. Pero Vaz de Caminha olhou para a Terra de Santa Cruz com o olhar profético de que ali, naquela terra graciosa, tudo germinaria por força das águas.

Da visão do escrivão até nossa esperança contemporânea no aquífero Guarani ou no petróleo do pré-sal, somos o país das terras, recursos e esperanças infindas.

Por que ainda não saímos do leito eterno e esplêndido?

Há um argumento sobre nossas origens que merece ser revisitado. Já afirmei, em mais de uma ocasião, que a corrupção é ambidestra e que, em nosso cotidiano, praticamos pequenos atos imorais, antiéticos e francamente corruptos. Seja em Raymundo Faoro, a quem citei no mês passado, seja na controversa série O Mecanismo, a ideia de que existe uma elite corrupta que nos subtrai atavicamente desde o século 19 (ou desde os tempos coloniais) é frequente. No seriado, a busca da origem genética de um Estado patrimonialista e corrupto localiza Elias António Lopes, um traficante de escravos luso-brasileiro que doou sua casa na Quinta da Boa Vista para o regente. Em troca da “generosidade”, virou cavaleiro da Ordem de Cristo, ganhou cargo em Paraty e em São João del-Rei (atual Tiradentes) e obteve a oportunidade de cobrar impostos em várias localidades. Comerciantes ou empreiteiros; traficantes de escravos de antigamente ou os de drogas do século 21; empresários e latifundiários sempre miraram o poder arrecadatório do Estado para obter vantagens. 


É realmente inegável que havia conúbio incestuoso entre Estado e outros setores da sociedade em 1808 ou nos tempos de Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal. A questão que se põe é outra. O chamado Antigo Regime era baseado nisso. Era perfeitamente legítimo e esperado que houvesse favorecimentos, apadrinhamentos e um toma lá dá cá entre a monarquia e os amigos do rei. As capitanias hereditárias foram a perfeita simbiose entre o interesse particular dos donatários e o poder da coroa. Um dono de uma concessão próspera como Pernambuco era, ao mesmo tempo, a empreiteira e o partido no poder. D. João no Rio de Janeiro estreitaria esses laços fraternos em corrente de aço: o doador da Quinta da Boa Vista não realizou a transferência da propriedade por lealdade aos Braganças ou a algum diáfano sentimento nacionalista. Fez por interesse e anseio de retribuição.

No século 18, certo discurso republicano de matriz iluminista passou a criticar essas práticas. Era necessário separar os poderes, ter transparência, criar uma imprensa livre, treinar burocracias técnicas, probas e eficazes, eleger representantes do povo (ainda que a ideia de povo, 250 anos atrás, fosse completamente diferente da de hoje). Houve revoluções e novas formas políticas surgiram tentando pôr em prática essas ideias novas. Ao fazê-lo, incorporaram muito do patrimonialismo do Antigo Regime. Nosso país não foi exceção. Aliás, em um continente republicano, optamos pela manutenção da fórmula monárquica por todo o século 19.

As observações anteriores parecem conduzir a alguns sentimentos paralisantes. O primeiro é “sempre foi assim”, o imobilismo histórico. O segundo é “todo mundo faz assim”, o imobilismo sociológico. A crença em estruturas deterministas e anteriores é problemática. Seu oposto, a ideia de que tudo é derivado da vontade e ação humanas, é pouco científico. Os homens fazem a História, porém não do jeito que gostariam, lembrava um filósofo alemão. Um país nasce de opções concretas, diárias, individuais e coletivas. Mas tais opções são moldadas por uma forte tradição herdada do passado. Não é fácil, mas tudo pode ser mudado, até mesmo para pior. Não existe um destino ou um miasma natural brotando do solo. Dentro das possibilidades do presente, tudo é ação ou omissão dos agentes históricos: nós.

Assim como no passado, o povo de Pindorama ainda anseia por um futuro brilhante no horizonte. Permanece o desejo por um D. Sebastião a quem delegaremos a tarefa de refazer a mítica terra sem males. As águas continuam infindas e ainda há milhares de motivos para nosso ufanismo.

Parabéns ao país no qual moramos. Ele é jovem e forte, antigo e frágil, haja vista que sobrevive a seus governos ao mesmo tempo que naufraga em suas utopias. Sim, eu e você, querida leitora e estimado leitor, teremos de escolher alguém no ano em curso para recolocar o velho sonho de Caminha em outros trilhos.

Teremos de nos virar com o que temos, com o que nos legaram e com o que deixaremos para o amanhã. Aos 518 anos, já somos grandinhos: não dá para debitar tudo na conta de ex-colônia portuguesa.