sábado, 21 de outubro de 2017

Harmonia pelo avesso

Governo, STF e Congresso irmanam-se mais uma vez em torno de tema vital para o destino da Lava Jato: o fim das prisões após condenações em segunda instância.

Essas prisões foram autorizadas pelo mesmo STF, há um ano, fixando a jurisprudência que agora pretende revogar. A única alteração na Corte, desde então, foi a entrada de Alexandre de Moraes, em substituição a Teori Zavaski, que, aliás, foi quem propôs essa prisão, antes do trânsito em julgado, que pode durar muitos anos, décadas mesmo. Será concretamente o fim da Lava Jato.

Nos Estados Unidos e na França, por exemplo, o condenado já começa a cumprir pena após condenação em primeira instância. Recorre às instâncias superiores de dentro da cadeia. Aqui, se voltar a prevalecer a prisão após o trânsito em julgado, a condenação prescreve sem que o condenado saia de sua rotina.


Paulo Maluf é o exemplo clássico. Todas as suas condenações prescreveram, sem que ele purgasse a cadeia. A jurisprudência do STF, prestes a ser revogada, havia estabelecido uma mudança importante para romper a cultura da impunidade no país.

Lula, já condenado em primeira instância pelo juiz Sérgio Moro, aguarda a confirmação da sentença em segunda instância, pelo TRF 4, de Porto Alegre, que o levaria à prisão. Idem José Dirceu. Se depender dos titulares dos três Poderes, não têm mais o que temer.

Há uma semana, o ministro Ricardo Lewandowski, sinalizando essa mudança, mandou soltar o ex-vereador de Goiânia, Amarildo Pereira, preso após sentença confirmada em segundo grau. Foi um dia depois de o mesmo STF transferir ao Legislativo a prerrogativa de prender parlamentares – e mesmo dia em que o ministro Luís Fux concedeu habeas corpus ao terrorista italiano Cesare Battisti.

Na sequência, o Senado, confirmando as piores expectativas, devolveu na terça-feira passada o mandato ao senador tucano Aécio Neves. E a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, na quarta, rejeitou a denúncia da Procuradoria Geral da República contra o presidente Temer e seus ministros Eliseu Padilha e Moreira Franco.

Estima-se que o plenário da Câmara, na semana que se inicia, confirme aquele resultado, já que o governo é majoritário e intensifica o corpo a corpo com os aliados na base do troca-troca.

Dentro da teoria das aproximações sucessivas da crise, mencionada pelo general Hamilton Mourão, como hipótese para uma intervenção militar, não há dúvida de que essas duas semanas foram de avanços significativos. O general, em palestra na Maçonaria, um mês atrás, condicionou a defesa da normalidade institucional a que o Judiciário cumpra o papel de colocar os políticos infratores na cadeia. Não o fazendo, advertiu, “vamos ter que impor isso”.

Até aqui, o Judiciário tem feito o oposto. A primeira instância - juízes como Sérgio Moro (Curitiba), Marcelo Bretas (Rio) e Waldisney Moura (DF) - prende, mas as instâncias superiores soltam.

Anteontem, por exemplo, o desembargador federal Olindo Menezes, do TRF 1, em Brasília, suspendeu o bloqueio de parte dos bens dos irmãos Joesley e Wesley Batista. O bloqueio inicial, de R$ 60 milhões (insignificante para quem opera na escala dos bilhões), fora ampliado pelo juiz Ricardo Leite, da 10ª Vara Federal do DF.

O desembargador achou um exagero essa ampliação – e, além de liberar os bens pessoais dos dois, permitiu que suas empresas retomem normalmente suas transações financeiras. Mais um gol contra do Judiciário, dando novo passo nas aproximações sucessivas.

Enquanto isso, o ex-presidente FHC, otimista, considerou que há novidades na política brasileira. E citou o apresentador de TV, Luciano Huck, marido de Angélica e pré-candidato à Presidência da República (!!) como uma delas. Há também, e ele se esqueceu de mencionar, o treinador de vôlei Bernardinho, sem falar do craque Romário, hoje senador, que postula o governo do Rio de Janeiro.

Tiririca errou quando disse que pior não fica. Ficou.

Que tudo que é vapor possa se solidificar

A crise cria e destrói reputações de pessoas e instituições; tudo é fluido, nada é perene. O PSDB, por exemplo, viveu várias fases diante dela: foi ao céu com a ''quase vitória'' de Aécio Neves, em 2014 — na verdade, vitória política, mais que eleitoral —; estava pronto para assumir protagonismo, diante do governo Dilma, que se reelegia cansado. Depois, viu tudo escapar-lhe das mãos, com a vitória de Eduardo Cunha, na Câmara.

No impeachment, os tucanos fizeram o diabo para destruir o PT. Para isso, renegaram a si próprios: rasgaram medidas que eles mesmos propuseram no passado; assumiram a ''pauta bomba'' de Eduardo Cunha, com quem ombrearam marcha nos corredores e nos bastidores do Congresso. Depois, aderiram ao governo Temer, omitindo a natureza do presidente e do seu PMDB. Ao final, para salvar Aécio Neves, resolveram cortar o próprio pescoço. Do céu ao inferno, se vai a um vacilo.

O cientista político Sérgio Abranches escreveu um precioso artigo sobre a legenda. Com o título ''Tudo o que é líquido transforma-se em geleia'', despe o processo que levou o PSDB à vala de corpos vitimados pela crise, que faz do partido, hoje, uma espécie de PMDB do B.


Diz esse artigo que o partido ''preferiu mergulhar na geleia geral. Adotou o padrão moral do PMDB. Contribuiu para enfraquecer o poder da suprema corte na luta contra a corrupção política. Rasgou qualquer sobra do programa da social democracia ao votar pelo privilégio, pela prerrogativa nobiliárquica de foro.'' Contribuiu para que se fechasse ''o cerco da autoproteção corporativista'' e, assim, ''as instituições republicanas perderam e a geleia geral ocupou de forma ainda mais absoluta o topo da estrutura partidária brasileira''.

Sérgio não poderá ser desqualificado como antitucano ou petista ressentido. Trata-se de um dos mais importantes analistas políticos do Brasil: publicou, neste ano, um extraordinário livro — ''A Era do Imprevisto: a grande transição do século XXI'' —; é fino, culto, profundo; possui a credibilidade de ser autor da primeira importante formulação a respeito da natureza do ''presidencialismos de coalizão'' brasileiro, já em 1988 — sistema sobre o qual sua avaliação acertou na mosca. Seu artigo não deveria ser ignorado.

É irônico — ou é triste — que o processo apontado por Abranches atropele caras referências para a história dos tucanos e do Brasil. Gente como Franco Montoro, Mário Covas, José Richa, Fernando Henrique e tantos outros que viveram e ainda vivem para combater o populismo e o arrivismo; o patrimonialismo que o PMDB representa — ao qual o PT também aderiu — e o corporativismo que destrói o sentido de República.

Também é irônico que a crise que parecia destruir o PT tenha acertado em cheio o PSDB. Um ano e tanto após o impeachment de Dilma, por ter fiel torcida — que canta ''eu nunca vou te abandonar'' —, o PT parece ter perdido, eleitoralmente, menos que os tucanos. Além disso, para o bem ou para o mal, o PT tem Lula; enquanto o PSDB, recusando-se ser algo por si próprio, imaginou consolidar personalidade sendo anti Lula e pró Temer. Entre o ''anti'' e o ''pró'', os tucanos acabaram por se anular.

O fato é que nos últimos tempos, têm se depauperado: perdem militantes e simpatizantes; intelectuais de ativo papel durante o governo FHC, abandonam o ninho para longe de seu destino. À esquerda ou à direita, seja para a indefinida modernidade da Rede ou para o liberalismo do Partido Novo (e até para a explosão de Jair Bolsonaro), os tucanos abriram os flancos e se descapitalizam eleitoral, política e socialmente.

Sua base social típica — urbana, de classe média e escolarizada —, já não enxerga na legenda capacidade de representa-la. O viés assumidamente moderado e socialdemocrata se perdeu na performance radical e exagerada do prefeito de São Paulo. A disposição republicana naufragou no fisiologismo do ''é dando que se autoprotege'' do governo Temer. Suas bancadas, na Câmara e no Senado, se dividiram na impossibilidade de acordo entre visões já inconciliáveis. O que os tucanos fizeram de si próprios, nem o PT conseguiu fazer de si mesmo.

Em seu texto, Abranches se refere ao partido ''leva-tudo'' — na terminologia da ciência política, partidos sem conotação ideológica, onde todos cabem e cujos objetivos são meramente eleitorais —; diz que o PSDB não nasceu assim, embora nunca tenha sido ''solidamente pragmático''. Mas, quiseram o destino, a dinâmica política e a conveniente indulgência de critérios que o partido se transformasse na geleia que Abranches tão habilmente colhe como termo, na geladeira de cadáveres da crise.

Pegue-se alguns exemplos: Bonifácio Andrada (PSDB-MG), relator na Comissão de Constituição e Justiça, que a bancada do PSDB quis afastar. Conservador, originário da antiga Arena, por questão lógica, há de se perguntar: o que faz um deputado com este perfil numa agremiação socialdemocrata?

Outro exemplo: assim como impediu que os tucanos morressem no governo Collor, é pouco provável que Mário Covas não desconfiasse da índole reformista do PMDB e se dispusesse posar de coadjuvante na foto fisiológica do governo de Michel Temer. Tudo isto delineia uma trilha para o abismo.

Mas, Política é também recomeçar: existem os que ainda sonham resgatar o já ''velho'' da fundação dos grandes partidos nacionais: políticos que erraram, se omitiram ou fracassaram na disputa interna, mas que nem por isso se perderam ou se confundem na massa pastosa em que as legendas se transformaram. Há gente assim em todo lugar — também no PSDB e no PT.

Esses, no entanto, precisam se encontrar: resgatar a Política, renegar o peemedebismo atávico e ancestral; romper a geleia. Jogá-la para o alto, apostando que, no contato com o ar mais puro, a geleia evapore. E, na magia da Política, o vapor se condense. E tudo o que é líquido possa novamente se solidificar. Grande texto de Sérgio Abranches!

Carlos Melo 

Gente fora do mapa

Temos de ser mais humanos

Abram os olhos. Somos umas bestas. No mau sentido. Somos primitivos. Somos primários. Por nossa causa corre um oceano de sangue todos os dias. Não é auscultando todos os nossos instintos ou encorajando a nossa natureza biológica a manifestar-se que conseguiremos afastar-nos da crueza da nossa condição. É lendo Platão. E construindo pontes suspensas. É tendo insônias. É desenvolvendo paranoias, conceitos filosóficos, poemas, desequilíbrios neuroquímicos insanáveis, frisos de portas, birras de amor, grafismos, sistemas políticos, receitas de bacalhau, pormenores.

É engraçado como cada época se foi considerando "de charneira" ao longo da história. A pretensão de se ser definitivo, a arrogância de ser "o último", a vaidade de se ser futuro é, há milênios, a mesmíssima cantiga.

"A sinceridade é ferramenta útil nas mãos do inimigo. Sem nos confrontarmos com ela, tornamo-nos pessoas gelatinosas e mornas, no conforto das “mentiras sinceras” que brotam das bocas, olhos e abraços daqueles que nos querem bem. Precisamos da sinceridade do inimigo para nos atiçar o desejo do bom combate, para nos despertar diante do opositor. Amigos não são sinceros o suficiente para nos fortalecer; os inimigos, sim."
Temos de ser mais humanos. Reconhecer que somos as bestas que somos e arrependermo-nos disso. Temos de nos reduzir à nossa miserável insensibilidade, à pobreza dos nossos meios de entendimento e explicação, à brutalidade imperdoável dos nossos atos. O nosso pé foge-nos para o chinelo porque ainda não se acostumou a prender-se aos troncos das árvores, quanto mais habituar-se a usar sapato.

A única atitude verdadeiramente civilizada é a fraqueza, a curiosidade, o desespero, a experiência, o amor desinteressado, a ansiedade artística, a sensação de vazio, a fé em Deus, o sentimento de impotência, o sentir-mo-nos pequeninos, a confissão da ignorância, o susto da solidão, a esperança nos outros, o respeito pelo tempo e a bênção que é uma pessoa sentir-se perdida e poder andar às aranhas, à procura daquela ideia, daquela casa, daquela pessoa que já sabe de antemão que nunca há-de encontrar.

O progresso é uma parvoíce. Pelo menos enquanto continuarmos a ser os animais que somos.

Miguel Esteves Cardoso

Brasil entre a pós-verdade e o teatro do absurdo

O Brasil, às vésperas da eleição presidencial de 2018, está vivendo uma mistura explosiva entre a mentira emotiva da pós-verdade, e a obra de teatro do absurdo, materializada na genial peça, “Esperando Godot”, do dramaturgo Samuel Beckett. Na obra do dramaturgo irlandês sabemos que Godot nunca vai chegar e, mesmo assim, todos continuam esperando por ele. O escritor ironiza que a vida é o que está acontecendo e não o que estamos esperando, do contrário, acabaríamos não vivendo a realidade. Ou alguém imagina que em 2018 vai chegar o Godot para redimir o Brasil de todos seus males? Ou que teremos o milagre de contar com um Congresso novo, expurgado dos caciques que dominam hoje, com políticos limpos de corrupção? Ou um Supremo que, finalmente, também colocará os políticos de luxo na prisão, que seja apenas a garantia da Constituição, sem se sujar em obscuros jogos políticos? Ou que dedique seu tempo discutindo se os cigarros podem ter sabor? O tabaco mata, com ou sem sabor. Todos sabem.


Não é pessimismo, é simples observação da realidade. Logo iremos ver, por exemplo, repetida pela terceira vez, uma com Dilma e duas com Temer, a votação para decidir se condenam ou absolvem um presidente. Será uma nova peça de teatro do absurdo. Podemos observar, se ainda tivermos paciência para ouvir, o vazio da linguagem de suas senhorias, a oferta de seu voto às suas famílias, a mentira da pós-verdade coberta pela emoção da pobreza de suas palavras. O verdadeiro Brasil parece não existir ou contar. Não conta o Brasil das pessoas normais que gostariam que as palavras significassem a verdade, que, por exemplo, fosse abolido o foro privilegiado, que é realmente um refúgio seguro contra os crimes dos políticos, privilégio que possuem hoje, no Brasil, 20.000 pessoas enquanto que nos Estados Unidos nem o Presidente da República conta com isso. Ou que o voto fosse livre e não obrigatório. Ou que as pessoas entrassem na política não para se enriquecer nem para acumular privilégios, mas para estar a serviço dos eleitores.

O Brasil precisa hoje de um banho de realidade contra as mentiras da pós-verdade, manuseadas pela linguagem dos políticos que é mais perigosa do que jocosa, porque, em sua grosseria está escondido o desejo de enganar principalmente a grande massa de pessoas com pouca cultura, fascinadas pelos discursos messiânicos dos novos ou velhos Godot, que são na verdade mais um fantasma da mídia do que uma realidade e uma solução. A sociedade brasileira moderna precisa abrir os olhos para não ser arrastada pela ilusão de que são os políticos, com suas mentiras ou meias-verdades, os únicos que podem tirar o país do poço em que ele foi jogado. É preciso uma reação inteligente, racional e não emocional da rua e dos meios de comunicação para saber distinguir entre aqueles que se apresentam como meros salvadores e aqueles que realmente sentem e se interessam pela vida das pessoas, cada dia mais ameaçadas e manipuladas.

Hoje existe no Brasil uma parte da sociedade mil vezes mais bem preparada do que a geração de seus pais. É uma reserva imobilizada, frente a uma porta fechada para impedir sua entrada na vida política. Uma parte da sociedade que seria capaz de entender o perigo da pós-verdade e o absurdo dos messianismos já desgastados. É dever de todos deixar que passem, abrir as portas do poder a eles e para isso é essencial que, quando chegar a hora de decidir nas urnas, seja punida a velha política que agora funciona como tampão para evitar a chegada de uma nova sabedoria. Votar de novo, por exemplo, nos caciques de sempre, sabendo que estão condenados ou são culpados de crimes de corrupção, seria a constatação de que o Brasil prefere esperar sentado a chegada de Godot. Ou que, no fundo, prefere e acha divertido se embalar na ambiguidade da pós-verdade, o novo maná dos políticos que se recusam a morrer.

Apesar de vocês

O gigante está se guardando pra quando o carnaval eleitoral chegar. A opinião pública — essa entidade simpática e distraída — deu um tempo da dura realidade, que não leva a nada, e saiu aprontando suas alegorias para 2018. Funaro Guerreiro do Povo Brasileiro é uma das preferidas.

Funaro é aquele agente do caubói biônico escalado para “fechar o caixão” do mordomo, conforme áudio divulgado para todo o Brasil. Mas nessa hora o Brasil estava ocupado com as alegorias, e não ouviu os bandidos bilionários confessando a armação da derrubada do governo com Rodrigo Janot — outro guerreiro do povo brasileiro.

Vejam como o Brasil é sagaz: seu despertar ético está depositado numa denúncia bêbada (leitura obrigatória, prezado leitor) urdida por Joesley (preso), Janot (solto), Miller (solto e rico) e Fachin (solto e dando expediente na Suprema Corte), todos cacifados política e/ou financeiramente pela quadrilha que depenou o país por 13 anos. Como se diz na roça, é a ética que passarinho não bebe.


A vocação dos brasileiros para santificar picaretas não é novidade. Se fosse, o conto do vigário pornô não teria durado 13 anos, fantasiado de apoteose social. A novidade — tirem as crianças da sala — é a adesão dos bons.

Isso sim pode ser o fechamento inexorável da tampa do caixão — não de um presidente ou de um governo, mas desse lugar aqui como tentativa de sociedade. Os bons não são esses heróis de história em quadrinhos tipo Dartagnol Foratemer, que transformam notoriedade em gula eleitoral e sonham ser ex-BBBs de si mesmos. O que dizer de um aprendiz de Janot, que poderia ter Sergio Moro como inspiração, mas preferiu o truque de demonizar os políticos para virar político?

Os bons não são ex-tucanos patéticos como Álvaro Dias e demais reciclados, que ressurgem sob slogans espertos tentando perfumar o próprio mofo. Nem os ainda tucanos (e ainda mais patéticos) como Tasso Jereissati, com seu teatrinho de dissidência ética. Os realmente bons são os que sabem que, após a ruína administrativa do PT, se impôs a agenda da reconstrução — defendida desde sempre por eles mesmos.

Agora, o escárnio: mesmo testemunhando os resultados inegáveis, a restauração de indicadores socioeconômicos para ricos e pobres, as perspectivas repostas a duras penas por gente que trabalha sério (eles conhecem cada um), dos juros/inflação ao risco/investimento, essa minoria esclarecida resolveu surfar no engodo. Os ex-virtuosos também estão se guardando para quando o carnaval eleitoral chegar.

Fim de papo, Brasil. Um réquiem para o espírito público e todos à praia. Espírito público?! Pode gargalhar, prezado leitor. Melhor do que ir ao Google checar quantos nomes insuspeitos do meio acadêmico e da administração pública estão dando sangue neste governo de transição, virando noites para enfrentar o estrago dos cupins de Lula (solto), e vendo seus melhores parceiros intelectuais virando a cara, colocando os óculos escuros e dando uma surfadinha no foratemer, que ninguém é de ferro. Não vá ao Google. Chega de história triste.

Ponha seus óculos escuros e assuma imediatamente seu lugar ao sol. Você também é filho de Deus, e Ele há de consertar essa porcaria toda. Peça uma caipirinha e fique gritando contra tudo isso que aí está, porque a essa altura cogitar que haja alguém trabalhando sério em Brasília pode até dar cana. Já que os picaretas são maioria, faça como a maioria: finja que ninguém presta, que só você e sua caipirinha são confiáveis. Grite para que ninguém seja reeleito — que era mais ou menos a mensagem de Adolfinho na Alemanha dos anos 30, e a limpeza que ele imaginou também era arretada.

Mas diga aos sorveteiros que você é contra a ditadura, contra a censura (que censura? Procurem saber), a favor da beleza e também da felicidade. Você é contra o sistema, contra o que é velho e a favor do que é novo. A sua modernidade está provada inclusive no seu apoio à causa gay — que já tem meio século, mas os revolucionários do Facebook não precisam saber disso.

Grite que está cercado e sufocado por famílias conservadoras decrépitas, finja que os dias são assim e você é a contracultura! Se precisar, defenda a pílula anticoncepcional contra os celibatários malditos. Quem sabe até alguém te convida para um convescote noturno com Dartagnol Foratemer e a alegre tropa de choque da Dilma (bota choque nisso).

Minta como todo mundo: finja que o governo de transição pertence à gangue do Cunha e ignore a salvação da Petrobras da gangue do Dirceu. Isso pega bem. E é claro que a sua luta cívica contra a corrupção jamais terá qualquer campanha lamuriosa pela prisão de Lula e Dilma. Eles esfolaram o Brasil, mas são do bem.

Quanto a vocês, ex-virtuosos em situação de surfe, vocês que sabem como poucos o que está se passando de fato no país, vocês que conhecem exatamente o tamanho da fraude narrativa e o custo criminoso disso para a recuperação nacional, boa sorte em seus projetos particulares. O Brasil não parou, e talvez até nem caia nas mãos de um idiota em 2018. Apesar de vocês.

Imagem do Dia

Fancy - Taimu Mountain @ Fujian, China
Monte Taimu (Fujian, China)

O cisne negro

O cientista político Marcus André Melo, num ensaio instigante intitulado “A malaise política no Brasil: causas reais e imaginárias” (Journal of Democracy, outubro de 2017), compara a crise brasileira a um cisne negro, resultado de uma rara conjugação: “Uma crise econômica de grande envergadura e um escândalo de corrupção de proporções ciclópicas”. A situação foi agravada pelo impacto fiscal das desonerações e subsídios do governo Dilma, pelo fato de que as Olimpíadas e a Copa do Mundo possibilitaram a expansão fiscal acelerada e devido à exposição da corrupção sem paralelo em regimes democráticos. A reeleição de Dilma, nesse contexto, para ele, foi um “estelionato eleitoral”.

Crise econômica e corrupção corroeram a popularidade do governo Dilma, o que levou a um inédito enfraquecimento do Executivo, em razão da mobilização das ruas e do esfacelamento da base de sustentação parlamentar do governo. Melo destaca esses elementos para contestar avaliações que ignoram o cisne negro, ou seja, a excepcionalidade da crise. Contesta avaliações de que o sistema político brasileiro entrou em falência. Para ele, “a fragilização inédita do Executivo e de autonomização das instituições de controle lato sensu”, no caso o Ministério Público Federal e a Polícia Federal, jogaram um papel decisivo no impeachment de Dilma, que somente ocorreu porque houve um choque frontal entre o Executivo e o Congresso. “Não havia nada inexorável em jogo”, ressaltou.

O impeachment não foi resultado do colapso do presidencialismo de coalizão brasileiro, mas fruto da interação estratégica entre seus atores, sob condições extraordinárias. “A bomba atômica não era para ser usada: era só arma dissuasória — para atores como o PSDB — ou de extração de rendas — para o PMDB — em típica lógica hospedeiro-parasita. Mas a barganha não prosperou, entre outras razões, pela incapacidade do Executivo em oferecer promessas críveis de que podia conter a Lava-Jato.”

Resumo da ópera: Dilma foi à lona por causa da Lava-Jato, da recessão, do encolhimento eleitoral do PT na sua reeleição, do estelionato eleitoral e dos custos sociais de seu ajuste fiscal. Mas, sobretudo, da teimosia de Dilma Rousseff ao confrontar o PMDB, especialmente dois caciques que estavam mais alinhados entre si do que se imaginava: Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, e Michel Temer, vice-presidente da República. O primeiro foi pego pela Lava-Jato e está preso; o segundo, porém, está na cadeira de presidente da República, apesar das duas denúncias contra ele, a segunda em vias de ser rejeitada pela Câmara.

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Chegamos ao ponto que mais nos interessa. Michel Temer assumiu o governo com o país em recessão e seu governo acuado pela Lava-Jato, mas as circunstâncias do impeachment, que poderia ter sido evitado por Dilma, não se repetiram em sua gestão, apesar do mal-estar político que o país ainda vive. Há, pelo menos, duas grandes diferenças: a Operação Lava-Jato “coesiona” a base de seu governo; não provoca a sua completa desestruturação. A nova equipe econômica sob comando do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, reaproximou a elite econômica da elite política, refazendo o pacto de governabilidade. Essa é a razão da sobrevivência de Temer, o primeiro presidente da República a ser denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) no exercício do cargo, duas vezes.

Melo conclui que não houve um esgotamento do presidencialismo de coalizão. “É um truísmo”, dispara. Depois de resgatar os autores do conceito — Afonso Arinos, no pós-1945, com seu “presidencialismo de transação”; e Sérgio Abranches, que cunhou a nova expressão, após a Constituição de 1988) —, destaca que dois terços das atuais democracias do mundo são presidencialistas ou semipresidencialistas e governadas por coalizões multipartidárias. A diferença de uma situação para a outra, porém, é que a primeira não tinha uma instância de arbitragem entre o Legislativo e o Executivo, grande lacuna apontada por Arinos, um dos fatores das crises que desaguaram no golpe militar de 1964.

Ao contrário, agora, constata-se a emergência do Supremo Tribunal Federal (STF) como moderador dos conflitos entre o Executivo e o Legislativo e protagonista de uma mudança que pode realmente implodir a corrupção sistêmica, com os julgamentos da Operação Lava-Jato. Executivo e Legislativo, porém, se uniram para conter esse protagonismo, o que também corrobora a tese de que o presidencialismo de coalizão sobreviverá. Basta chegar ao pleito de 2018.

Sob Temer, 200 ruralistas presidem 200 milhões

Michel Temer adotou um novo modelo de administração. Governa o país seguindo o método conhecido como do ‘vai que cola’. Fraco e impopular, o presidente é refém de apoiadores arcaicos. Para se manter no Planalto, Temer faz qualquer negócio. No seu governo, as coisas não são certas ou erradas. Elas são absorvidas ou pegam mal. A portaria que dificulta o combate ao trabalho escravo pegou mal. Pegou muito mal. Ao perceber que a coisa não colou, Temer ensaia um ajuste na pose.

Aconteceu a mesma coisa com um decreto de Temer para a exploração mineral numa área de reserva na Amazônia. O presidente anunciou a novidade de sopetão. Pegou mal. Temer mandou refazer o decreto. Não colou. Submetido a uma gritaria internacional, Temer revogou o decreto e saiu de fininho.

O que assusta no governo Temer não é a sua crueldade. Se os primeiros meses da atual gestão ensinaram alguma coisa é que ninguém deve esperar qualquer tipo de hesitação altruísta do PMDB. Temer avança ou recua segundo a moral da sobrevivência. Assustadora mesmo é a sina dos brasileiros. Depois de serem despudoradamente assaltados por sucessivos governos, os mais de 200 milhões de brasileiros passaram a ser governados por 200 deputados da bancada ruralista da Câmara, cuja prioridade é escravizar Temer para levar o Brasil até o Século 16.

Aécio por trás da persiana, espanto e desafio de Macunaíma

Em votação aberta no plenário do Senado, pelo elástico e expressivo placar de 44 x 26, foi consumada a ardilosa (já havia escrito o termo neste artigo, pouco antes do senador tucano o utilizar em seu discurso de retorno) operação triangular com atuação ativa e decisiva de figuras poderosas do Supremo Tribunal Federal, Palácio do Planalto e Congresso – a começar pelos respectivos presidentes dos três poderes maiores da República - , de salvação do senador Aécio Neves (PSDB-MG).

O fato principal desta semana, de dias cada vez mais temerários e drásticos, devolveu à plenitude de sua atuação política, pessoal e parlamentar, o mais novo e reconhecido herói sem caráter do País de história e cultura tão marcada por personagens do tipo. Na melhor e mais completa tradução de Macunaíma, seja no original e referencial romance de Mário Andrade, seja na magistral adaptação produzida pelo cineasta Joaquim Pedro de Andrade, no filme marco do tropicalismo no cinema nacional.


Os incomodados com a comparação (sei que são muitos espalhados pelo Planalto Central e Brasil afora) que me perdoem, mas é esta a primeira e mais veemente recordação que me ocorreu.

Não só depois da proclamação do resultado da votação pelo presidente do senado, Eunício de Oliveira, mas principalmente no dia seguinte, do constrangedor retorno do senador ao convívio de seus pares, no Senado, e de seu pronunciamento da volta da curta temporada de retiro em seu apartamento, determinada pelo Supremo. Mais constrangedor ainda.

Aliás, por falar nisso e antes que eu me esqueça, o senador cearense que substituiu o também macunaimico Renan Calheiros (PMDB-AL) na presidência do Congresso para tocar o desconcerto parlamentar da crise da vez, é outro personagem de cinema.

Figura típica de tragicomédias anos 60/70, ou de produções ainda mais antigas do filme noir, na França e nos Estados Unidos do tempo da Lei Seca.

Matreiro e enigmático, sempre a um passo do implausível, navegando nas sombras das estranhas transações negociadas nos gabinetes do Congresso, e fechadas em almoços, jantares e visitas fora da agenda presidencial no Alvorada ou no Jaburu.

Eunício tem sido um figurante que parece talhado sob medida para atuar em filmes clássicos do diretor italiano Federico Fellini, que dá cartas no senado da República, no terreiro às margens do Lago Paranoá, neste outubro de operações casadas, para salvar Aécio Neves (a dele já realizada com sucesso esta semana) e, em seguida, o mandatário Michel Temer.

Manobra ainda em andamento, mas com todos os sinais apontando, até aqui, que a decisão do plenário qu e livrará o maioral de ser investigado, pelo Supremo e pela PF, nas contundentes acusações da PGR, por graves crimes de organização criminosa e tentativa de obstrução da justiça (nesta segunda denúncia), é só uma questão de tempo.

Nisso tudo, no entanto, só um motivo de espanto, de verdade, para o rodado jornalista, pelo impacto visual e simbólico inesperado: o flagrante jornalístico espetacular registrado na foto de Luiz Nova, do Correio Braziliense, digno de prêmio nacional de fotojornalismo.

Obtido pouco depois da votação, que logo ganharia o espaço merecido no alto do site digital do CB, e, em seguida, das edições digitais dos jornais, dos blogs políticos nas redes sociais, antes de correr o mundo nas asas das agências internacionais de notícias, para ocupar espaço de destaque em importantes jornais estrangeiros.

No site blog que edito na Bahia elegi o magnífico trabalho de Nova como A Imagem do Dia, e a reproduzi com o título: “Tucano mira a rua por trás da persiana”. E escrevi na legenda: “Aécio Neves observa a movimentação da rua da janela da casa, no Lago Sul, logo após o resultado da votação que o beneficiou no Senado”.

É, sem dúvida, um flagrante raro e de alta competência profissional. O fotógrafo “escreve com a luz”, para citar um texto biográfico do autor do registro, de acordo com jornalista e pesquisador atento que fez a descoberta e a publicou em primeiro lugar.

Mas para mim é aí que explode a lembrança do senador tucano de Minas Gerais, transfigurado em Macunaíma dos dias que correm no Brasil. A figura de Aécio, escondida sob as sombras das persianas semi-cerradas da janela.


E o foco genial de repórter fotográfico pondo em destaque o olhar (quase sinistro) de preocupação e desafio do parlamentar.

É como, de repente, estar de volta ao momento antológico do berro de Macunaíma ao chegar à cidade grande com os irmãos Jiguê e Maanape: “agora é cada um por si e Deus contra todos”. Só resta dar tempo ao tempo, para descobrir se o romance e o filme se repetirão como farsa ou como tragédia.

Paisagem brasileira

Matriz de Itanhaém (1937), Orlando Bifulco 

'Lirismo' na favela era só uma ilusão do pessoal da intelectualidade

Durante anos, muitos anos, ou mesmo décadas, intelectuais, literatos, músicos, compositores, jornalistas e artistas em geral louvavam o morro e as favelas cariocas em prosa, verso, músicas, contos, crônicas e romances. O verso, a prosa e a frase versavam todos sobre a doce vida no morro. A favela era lugar de beleza, de felicidade. Diziam eles. Essa turma dava o nome a isso de lirismo. Lirismo é o cacete. Aí apareceu a turma do funk e do punk e desmistificou essa história. Suas rimas e métricas tortuosas cantam a vida como ela é. Com todo o realismo que os cercam.

Não conheço ninguém que, se pudesse morar em outro lugar, não caísse fora desse lirismo em instantes. Vá lá na Favela do Arará, que faz parte do complexo de favelas da Barreira do Vasco no bairro de Bonsucesso, na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Vá no Morro do Chapadão, na Pavuna. Quero ver alguém achar algum lirismo ali. É dura e cruel a vida por lá. O morador convive com a autoridade do bandido e a total ausência do Estado. O primeiro se faz presente, o segundo nem toma conhecimento.

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Com o Estado ausente, a crueldade, a selvageria, a insensatez, a barbárie e a ferocidade com que os vagabundos dominam as favelas faz parecer um exército jihadista. Quem viu as cenas de carnificina na Rocinha, no começo do mês de outubro de 2017, quando traficantes de um grupo esfolavam inimigos de outra facção, pode achar o Estado Islâmico moderado. Exagero meu na comparação, é claro. Lá como cá a violência e a fúria imperam.

Um ser humano foi esfolado diante de uma câmera, seu coração e língua arrancados a faca e exibidos como troféu. A imagem chocante não foi mostrada pelas TVs. Mas na internet sim.

Para provar que não há diferenças entre o Estado Islâmico e as facções de morros da cidade do Rio de Janeiro basta recorrer à leitura do livro “O Estado Islâmico – Desvendando o Exército do Terror” (Editora Seoman, 2015), de autoria dos jornalistas Michael Weiss, americano, ex-correspondente na cidade de Aleppo, na Síria, e editor chefe da revista Foreng Policy, e de Hassan Hassan nascido em Habu Kamal e hoje cidadão londrino que trabalhou para o New York Times e é editor do jornal inglês “The Guardian”.
Este livro é também um excelente manual para nossas forças de segurança. Impressiona pela coragem e pelo relato minucioso dos dois jornalistas. Eles descrevem o Estado Islâmico como “chacinadores, selvagens, agentes do caos, formados por convertidos e jihadistas cinco estrelas especializados em extorsões e recrutamento.

Através da força brutal, decapitações de reféns e selvageria chocou o mundo”. Ora bolas, eles nunca ouviram falar nos morros cariocas. Mas são iguais. Lá como cá eles se dividem em facções. Lá eles buscam um objetivo comum e aqui buscam múltiplos objetivos também com a violência gratuita através da qual passam a reinar.

Lá são estimulados pela fé e cobiça. Aqui pela miséria, abandono que se manifestam em assaltos, tráfico de drogas, balas perdidas, agressões, assassinatos e astúcias que se transformam em mortes de inocentes. Lá, vários exércitos os derrotam há anos. Aqui, há décadas, apenas as forças da Polícia Militar os enfrentam.

E os favelados só aumentam. São prisioneiros da desgraça, como nós do asfalto. Tolo aquele que acredita que o cidadão que habita as 1,2 mil favelas do Grande Rio prefere colaborar com a polícia.

Ainda não vestiu o pijama?!

Se eu tivesse recebido 44 ligações de um réu às vésperas de um julgamento já estaria aposentado compulsoriamente há tempos
Juiz Pedro Nogueira, titular da 3ª Vara Criminal de Juara (MT)

Educação e eleições formando cidadãos competentes para o século 21

Estudo divulgado nesta semana pelo Instituto Ayrton Senna mostra que um em cada quatro jovens de 15 a 17 anos vai abandonar a escola antes do fim do ano.

Alguns voltarão a se matricular, mas cerca de 15% dos jovens dessa faixa etária não retornam. Houve uma estagnação no número de matrículas dos jovens de 15 a 16 anos e mesmo um crescimento dos de 17 que estão fora da escola nos últimos 15 anos.

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Claramente, andamos para trás. As consequências dessa situação são visíveis: num mundo em que a composição do emprego mudou de forma importante, com automação de atividades rotineiras e fechamento de postos de trabalho, a falta de acesso a níveis mais elevados de educação vaticina um futuro muito ruim para esses adolescentes e não nos permite antever a retomada do crescimento da produtividade do país, há anos estagnada.

Por que esses jovens abandonam a escola? Os motivos são diversos, como casamento precoce e dificuldades financeiras, mas certamente o desinteresse pelo que é ensinado é fator importante. Se sinto que não estou aprendendo, num ensino médio que tenta comprimir cerca de 13 disciplinas em quatro horas diárias de aula, com salas lotadas, tendo a buscar alternativas mais interessantes.

Algo precisa ser feito com urgência, pois, no ritmo atual, alerta o estudo liderado por Ricardo Paes de Barros, levaremos 200 anos para atingir a meta prevista no Plano Nacional de Educação para o fim de 2016 de colocar todos os jovens de 15 a 17 anos na escola. Afinal, num país cada vez mais desesperançado, a educação deveria ser o eixo de reconstrução nacional e o ponto de convergência dos esforços para transformar a realidade.

As eleições de 2018 colocam uma oportunidade de nos organizarmos para isso. Sem educação de qualidade para todos —o que não quer dizer não só acesso ao ensino médio e melhoria das taxas de conclusão, hoje ainda na ordem de 59% para jovens de 19 anos, como melhorias na profissão de professor e em sua formação na universidade—, não haverá cidadania consciente, crescimento sustentável e fim da violência.

Em diferentes espaços, organizações da sociedade civil têm se articulado para propor as mudanças necessárias à reconstrução do Brasil. Jovens lançam movimentos suprapartidários para participar do processo com regras pactuadas entre eles sobre ética e busca de justiça social na política.

As primeiras candidaturas começam a aparecer, mas falta um eixo, um ponto a partir do qual todo o resto se constrói.

Que uma educação de qualidade para todos, que prepare o Brasil para o século 21, seja o centro das novas reflexões e propostas.

Nossos paddocks

1º de outubro de 2017, Nevada, EUA. Equipado com diversas armas de fogo, o norte-americano Stephen Paddock começou a dispará-las contra uma multidão que se divertia em um espetáculo. Segundo consta, perderam a vida 59 pessoas e mais de 500 ficaram feridas.

Como sempre acontece em seguida a eventos desta natureza, buscou-se retratar, sob a forma de estatísticas, a situação nacional. Descobriu-se, assim, que nos primeiros 275 dias de 2017 (ou seja, de 1º de janeiro a 2 de outubro) 273 atiradores como Paddock deixaram suas marcas sinistras pelo país afora. Isto significa que em apenas dois dias, durante todo este período, os norte-americanos não conviveram com chacinas.


Apurou-se, igualmente, que ao longo deste prazo 11.685 morreram nos EUA vítimas de disparos de armas de fogo. Feitas as contas, chegamos à inacreditável média de 42 homicídios por dia! E falamos apenas daqueles cometidos com o uso de armas de fogo.

Por conta deste horror nossa imprensa - justificadamente, diga-se de passagem - dedicou amplo espaço à cobertura da chacina. Foi possível vermos até imagens do quarto do hotel a partir do qual o assassino levou a cabo seu massacre.

Esta intensa cobertura ensejou, de um meu conhecido, um interessante comentário: "Ainda bem que não temos este tipo de coisa aqui no Brasil". Fiquei a meditar sobre suas palavras, e decidi realizar uma pequena pesquisa.

Descobri, sem grandes dificuldades, que em 2016 foram abatidas a tiros nada menos que 123 pessoas por dia sobre o solo deste tão pacífico Brasil - que "felizmente não tem este tipo de coisa".

É realmente curioso: o fato de aqui no Brasil matarmos três vezes mais gente a tiros praticamente não é notícia, ressalvadas algumas publicações isoladas - a maior parte delas em seguida à divulgação de estudos sobre o tema ou homicídios praticados contra pessoas emblemáticas. Um quadro desses, que deveria ser enfrentado energicamente, induzindo manifestações duras, investigações extensas e medidas extraordinárias, praticamente não é sequer objeto de debate! Aqui, o absurdo viu rotina.

Como explicar-se isso? Deve ser porque lá nos EUA mataram pessoas como nós - e aqui as vítimas, no mais das vezes, são ‘apenas’ os miseráveis das periferias distantes, nas quais o Estado não entra. Longe dos olhos, longe do coração!

Pedro Valls Feu Rosa