segunda-feira, 3 de julho de 2017
A arte da queda
Entre as várias disciplinas que as crianças deveriam estudar na escolinha, e cuja importância a maioria dos pedagogos não costuma considerar, está a arte da queda. Em primeiro lugar, a queda real: como cair sem machucar a cabeça e a dignidade. Em segundo lugar, tão importante quanto a primeira, a queda metafórica: como cair, ou seja, como enfrentar uma derrota, sem machucar a dignidade.
É só quando tropeçamos e caímos que nos lembramos disto. Aconteceu-me, mais uma vez, esta manhã. Seguia distraído, ergui os olhos para contemplar uma varanda (gosto de varandas), e no instante seguinte estava estatelado ao comprido na calçada — e as pessoas riam. Dias antes, passeando com um amigo, ex-campeão de jiu-jitsu, ele tropeçou, e enquanto caía enrolou o corpo, protegendo a cabeça, reerguendo-se num único e elegantíssimo movimento, como se nem sequer tivesse tocado no chão. Parecia um bailarino. Parecia um demiurgo. Parecia um campeão de jiu-jitsu. As pessoas aplaudiram. O que era para ter sido um desaire, transformou-se numa vitória.
— Onde você aprendeu isso? — perguntei impressionado.
— No jiu-jitsu, claro” — respondeu. — Para um atleta é importante saber cair.
Na verdade, para todo o mundo. No caso das quedas metafóricas, isto é, das grandes derrotas, então nem se fala. Pensemos em Michel Temer. O mundo olha para ele e vê um sujeito a cair. A cair sem elegância nenhuma, num ridículo estupendo, numa tremenda e ruidosa exibição de incompetência na queda. O mundo ri. Só não ri mais porque, ao contrário da minha queda concreta, que durou um piscar de olhos, o metafórico trambulhão de Michel Temer se arrasta há longos e penosos meses. O mundo não ri mais porque aquela queda sem fim, de tão absurda, de tão grosseira, de tão indigna e vil, provoca vergonha alheia.
Chega um ponto em que o mundo não ri de todo, porque, quando a queda é muito feia, deixa de ser comédia para virar tragédia. É o que se está a passar neste momento na Venezuela, com Nicolás Maduro. Não há nada de engraçado na queda de Maduro, porque nesse processo ele está a arrastar o país inteiro. Quase todos os dias morrem pessoas devido à incompetência e teimosia de Maduro. A Venezuela está à beira da guerra civil.
Foi o que se passou também com Muamar Khadafi. As últimas imagens do ditador líbio, perseguido por uma turba enfurecida nas ruas de Sirte, a 20 de outubro de 2011, são um verdadeiro filme de terror. A queda de Khadafi, contudo, começou muito antes, numa sexta-feira, 17 de dezembro de 2010, quando um jovem tunisiano, Mohamed Bouazizi, ateou fogo ao próprio corpo, desencadeando uma série de protestos, que culminariam na derrubada do presidente Ben Ali. O ditador líbio teve imenso tempo para preparar uma saída — uma queda elegante, digamos assim —, mas preferiu fechar os olhos e manter-se aferrado ao poder.
Lição número um: fechar os olhos não interrompe a queda. Tão pouco detém o tempo. Continuamos a cair, mas como estamos de olhos fechados é provável que nos machuquemos ainda mais.
Kadhafi poderia ter convocado eleições livres, justas, vigiadas pela comunidade internacional. Se vencesse as eleições (o que nem sequer seria impossível, pois a Líbia tinha bons indicadores sociais e econômicos), continuaria no poder. Não teria havido queda. Se perdesse, ainda assim sairia em glória. Seria quase uma vitória.
Nicolás Maduro já não vai a tempo para sair em beleza, mas ainda está em posição para se esquivar ao infeliz destino de Kadhafi. Quanto a Michel Temer pode, pelo menos, evitar que a democracia caia com ele. Pode evitar que o país caia com ele. Renunciando à Presidência da República, e aceitando enfrentar a Justiça, Temer mostraria um assomo de dignidade, até mesmo de patriotismo, que embora não o salvasse da queda o salvaria pelo menos do ridículo. Acho que até que conseguiria alguns aplausos.
Lição número dois: se está a cair, aceite a queda. Não sendo possível contrariar a lei da gravidade (ou, no caso de Temer, as leis em geral), o melhor é tentar minimizar os danos: encoste o queixo ao peito para proteger o pescoço, flexione as pernas, enrole o tronco, atire as mãos para a frente e deixe-se ir.
Infelizmente, não creio que isso vá acontecer. Pessoas como Muamar Khadafi, Nicolás Maduro ou Michel Temer tendem a confundir a própria queda com um desconcerto geral do universo: não são eles que estão caindo, é a terra que perdeu o rumo. Agarram-se a quem esteja por perto, numa ânsia de sobreviver a qualquer custo.
Última lição: não fique muito perto de quem, não sabendo cair, tenha certa propensão para tropeçar.
José Eduardo Agualusa
— Onde você aprendeu isso? — perguntei impressionado.
— No jiu-jitsu, claro” — respondeu. — Para um atleta é importante saber cair.
Na verdade, para todo o mundo. No caso das quedas metafóricas, isto é, das grandes derrotas, então nem se fala. Pensemos em Michel Temer. O mundo olha para ele e vê um sujeito a cair. A cair sem elegância nenhuma, num ridículo estupendo, numa tremenda e ruidosa exibição de incompetência na queda. O mundo ri. Só não ri mais porque, ao contrário da minha queda concreta, que durou um piscar de olhos, o metafórico trambulhão de Michel Temer se arrasta há longos e penosos meses. O mundo não ri mais porque aquela queda sem fim, de tão absurda, de tão grosseira, de tão indigna e vil, provoca vergonha alheia.
Chega um ponto em que o mundo não ri de todo, porque, quando a queda é muito feia, deixa de ser comédia para virar tragédia. É o que se está a passar neste momento na Venezuela, com Nicolás Maduro. Não há nada de engraçado na queda de Maduro, porque nesse processo ele está a arrastar o país inteiro. Quase todos os dias morrem pessoas devido à incompetência e teimosia de Maduro. A Venezuela está à beira da guerra civil.
Foi o que se passou também com Muamar Khadafi. As últimas imagens do ditador líbio, perseguido por uma turba enfurecida nas ruas de Sirte, a 20 de outubro de 2011, são um verdadeiro filme de terror. A queda de Khadafi, contudo, começou muito antes, numa sexta-feira, 17 de dezembro de 2010, quando um jovem tunisiano, Mohamed Bouazizi, ateou fogo ao próprio corpo, desencadeando uma série de protestos, que culminariam na derrubada do presidente Ben Ali. O ditador líbio teve imenso tempo para preparar uma saída — uma queda elegante, digamos assim —, mas preferiu fechar os olhos e manter-se aferrado ao poder.
Lição número um: fechar os olhos não interrompe a queda. Tão pouco detém o tempo. Continuamos a cair, mas como estamos de olhos fechados é provável que nos machuquemos ainda mais.
Kadhafi poderia ter convocado eleições livres, justas, vigiadas pela comunidade internacional. Se vencesse as eleições (o que nem sequer seria impossível, pois a Líbia tinha bons indicadores sociais e econômicos), continuaria no poder. Não teria havido queda. Se perdesse, ainda assim sairia em glória. Seria quase uma vitória.
Nicolás Maduro já não vai a tempo para sair em beleza, mas ainda está em posição para se esquivar ao infeliz destino de Kadhafi. Quanto a Michel Temer pode, pelo menos, evitar que a democracia caia com ele. Pode evitar que o país caia com ele. Renunciando à Presidência da República, e aceitando enfrentar a Justiça, Temer mostraria um assomo de dignidade, até mesmo de patriotismo, que embora não o salvasse da queda o salvaria pelo menos do ridículo. Acho que até que conseguiria alguns aplausos.
Lição número dois: se está a cair, aceite a queda. Não sendo possível contrariar a lei da gravidade (ou, no caso de Temer, as leis em geral), o melhor é tentar minimizar os danos: encoste o queixo ao peito para proteger o pescoço, flexione as pernas, enrole o tronco, atire as mãos para a frente e deixe-se ir.
Infelizmente, não creio que isso vá acontecer. Pessoas como Muamar Khadafi, Nicolás Maduro ou Michel Temer tendem a confundir a própria queda com um desconcerto geral do universo: não são eles que estão caindo, é a terra que perdeu o rumo. Agarram-se a quem esteja por perto, numa ânsia de sobreviver a qualquer custo.
Última lição: não fique muito perto de quem, não sabendo cair, tenha certa propensão para tropeçar.
José Eduardo Agualusa
Saiu pelo ladrão
Sempre seguir a tudo tolerar. Viver virou aturar. A gente já nasceu desigual. Assistimos tanta injustiça que nem dá para contar. Aceitamos tudo. Como se não fosse conosco. Falta indignação. Saiu pelo ladrão.
Não mais importa o que se fez, o que se faz ou o que se vai fazer. Todos os favores indevidos são sempre por nós pagos. E mesmo as migalhes que sobram, nos debitam nos tratando como otários. Falta razão. Saiu pelo ladrão.
Seguimos arrastando pelo mundo a vergonha de ter sido, e a dor de já não ser. Sem saber se somos ou fomos frouxos, ou cegos. Desiludidos, certamente. Seguimos rolando costa abaixo as ilusões passadas que não já não se podem alcançar. Conformados com a mediocridade. Com razão. Sobra arrependimento. Falta sonho. Saiu pelo ladrão.
Vivemos tempos de maldade insolente. Não há quem negue. Tudo misturado na mesma lama. Parecendo igual. Nada parece melhor. Aceitamos a falta de respeito. Vivemos o atropelo a razão. Sem dignidade. Saiu pelo ladrão.
Tudo a luz do dia. A céu aberto. Sem segredos. Sabemos dos feitos, dos idos e dos descaídos.
A tudo assistimos. Paralisados. Aceitando o impensável como realidade. E o inaceitável como normal. Nem mais se nota.
Estamos cansados. Sem dignidade ou indignação. Presos e acostumados à lama que nos espera. Insensíveis ao absurdo. Falta justiça. Saiu pelo ladrão.
Somos muitos cidadãos. Iguais em quase tudo na vida. Desiludidos antes depois trinta. Perdidos de depois dos vinte. E um pouco mais cínicos a cada dia. Falta vergonha. Saiu pelo ladrão.
Elton Simões
Não mais importa o que se fez, o que se faz ou o que se vai fazer. Todos os favores indevidos são sempre por nós pagos. E mesmo as migalhes que sobram, nos debitam nos tratando como otários. Falta razão. Saiu pelo ladrão.
Vivemos tempos de maldade insolente. Não há quem negue. Tudo misturado na mesma lama. Parecendo igual. Nada parece melhor. Aceitamos a falta de respeito. Vivemos o atropelo a razão. Sem dignidade. Saiu pelo ladrão.
Tudo a luz do dia. A céu aberto. Sem segredos. Sabemos dos feitos, dos idos e dos descaídos.
A tudo assistimos. Paralisados. Aceitando o impensável como realidade. E o inaceitável como normal. Nem mais se nota.
Estamos cansados. Sem dignidade ou indignação. Presos e acostumados à lama que nos espera. Insensíveis ao absurdo. Falta justiça. Saiu pelo ladrão.
Somos muitos cidadãos. Iguais em quase tudo na vida. Desiludidos antes depois trinta. Perdidos de depois dos vinte. E um pouco mais cínicos a cada dia. Falta vergonha. Saiu pelo ladrão.
Elton Simões
O fim da história?
Há 25 anos, um professor muito inteligente teve a ideia de, depois da queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética, apesar de alguns, como o presidente Michel Temer, não terem sido informados, lançar o livro definitivo, como uma crônica de Paulo Mendes Campos.
Um livro em que a história se encerraria com ele, o manual dos manuais: O Fim da História e o Último Homem. Que ganhou o Los Angeles Book Prize, entrou na lista de best-seller do New York Times e foi saudade pelo crítico do Washington Post como “awesome, a landmark work, profoundly realistic and importante, supremely timely and cogente, the first book to fully fathom the depth and range of the changes now sweeping through the world”, que nem precisaria traduzir, pois dá para sacar que é um vulcão que expele magmas de elogios (incrível, um trabalho de referência, profundamente realista e importante, supremamente atual e oportuno, o primeiro livro a entender a complexidade e alcance das transformações que varrem o mundo).
O nome do afortunado é Francis Fukuyama. Em meses, só se falava dele. “Aceitando ou não a sua tese, ele injetou séria filosofia política na discussão do dia a dia, com relevância”, saiu no Washington Post. “Fukuyama merece ter seus argumentos levados a sério”, recomendou o New York Times Book Review. Mas não foram.
Pouco adiantava a grande imprensa clamar pela seriedade do trabalho. A maior parte do mundo acadêmico detonou a precipitada tese de que, com o fim do comunismo, a História estava encerrada, comunismo ainda regente na segunda maior economia do mundo, com retoques de mercado livre, a China, onde mora ¼ da população mundial.
Fukuyama, filósofo, economista, cientista político formado por Harvard, como muitos do meio acadêmico, trafegou pela Casa Branca, na administração Reagan, a mais conservadora dos últimos tempos, que declarou guerra contra o comunismo, as drogas e os gays (quando a epidemia da aids se alastrou pela comunidade homossexual americana).
Publicou o artigo The End Of History na revista The National Interest, em que defendia que a difusão mundial do livre capitalismo de mercado e das democracias liberais sobre regimes monarquistas, fascistas e comunistas, indicava o “ponto final na evolução ideológica da humanidade” e “a forma final de governo”, o que constituiria “o fim da história”.
Em 1992, o professor de economia política internacional da Universidade Johns Hopkins de Washington (atualmente dá aulas em Stanford) juntou mais 30 artigos e veio o livro-bomba.
De fato, vivíamos uma era de transformações. Centenas de países se democratizavam: colônias africanas, ditaduras latino-americanas, reinos e regimes autoritários europeus, países ocupados pela ex-União das Repúblicas Soviéticas. Os ares democráticos começaram a soprar em Portugal, na Revolução dos Cravos, foi para a Espanha, Grécia, África, o Cone Sul e Leste Europeu.
Um livro em que a história se encerraria com ele, o manual dos manuais: O Fim da História e o Último Homem. Que ganhou o Los Angeles Book Prize, entrou na lista de best-seller do New York Times e foi saudade pelo crítico do Washington Post como “awesome, a landmark work, profoundly realistic and importante, supremely timely and cogente, the first book to fully fathom the depth and range of the changes now sweeping through the world”, que nem precisaria traduzir, pois dá para sacar que é um vulcão que expele magmas de elogios (incrível, um trabalho de referência, profundamente realista e importante, supremamente atual e oportuno, o primeiro livro a entender a complexidade e alcance das transformações que varrem o mundo).
O nome do afortunado é Francis Fukuyama. Em meses, só se falava dele. “Aceitando ou não a sua tese, ele injetou séria filosofia política na discussão do dia a dia, com relevância”, saiu no Washington Post. “Fukuyama merece ter seus argumentos levados a sério”, recomendou o New York Times Book Review. Mas não foram.
Pouco adiantava a grande imprensa clamar pela seriedade do trabalho. A maior parte do mundo acadêmico detonou a precipitada tese de que, com o fim do comunismo, a História estava encerrada, comunismo ainda regente na segunda maior economia do mundo, com retoques de mercado livre, a China, onde mora ¼ da população mundial.
Fukuyama, filósofo, economista, cientista político formado por Harvard, como muitos do meio acadêmico, trafegou pela Casa Branca, na administração Reagan, a mais conservadora dos últimos tempos, que declarou guerra contra o comunismo, as drogas e os gays (quando a epidemia da aids se alastrou pela comunidade homossexual americana).
Publicou o artigo The End Of History na revista The National Interest, em que defendia que a difusão mundial do livre capitalismo de mercado e das democracias liberais sobre regimes monarquistas, fascistas e comunistas, indicava o “ponto final na evolução ideológica da humanidade” e “a forma final de governo”, o que constituiria “o fim da história”.
Em 1992, o professor de economia política internacional da Universidade Johns Hopkins de Washington (atualmente dá aulas em Stanford) juntou mais 30 artigos e veio o livro-bomba.
De fato, vivíamos uma era de transformações. Centenas de países se democratizavam: colônias africanas, ditaduras latino-americanas, reinos e regimes autoritários europeus, países ocupados pela ex-União das Repúblicas Soviéticas. Os ares democráticos começaram a soprar em Portugal, na Revolução dos Cravos, foi para a Espanha, Grécia, África, o Cone Sul e Leste Europeu.
Reconhecia que mesmo as democracias estáveis, como americana, francesa e suíça, não estavam ainda totalmente livres de injustiças ou sérios problemas sociais. Mas tais problemas eram implementações incompletas dos princípios da liberdade e igualdade de regimes que sempre melhorariam.
Para ele, a China logo sofreria um colapso, iniciado com os protestos na Praça da Paz Celestial em 1989. A invasão do Iraque acabaria com os conflitos no Oriente Médio. Reconhecia a ideia de que a história é um processo evolutivo a ser manipulado pelos próprios homens, em busca de uma forma de sociedade utópica (Hegel e Marx).
Dizia que o pessimismo era um vício herdado das Grandes Guerras, que “good news has come”, com o incrível desenvolvimento do último quarto do século: “Democracia liberal se manterá a única aspiração política coerente, que se espalhará pelas mais diferentes regiões e culturas através do globo”.
Na mesma era dos livros de autoajuda, Fukuyama faturou milhões, virou pop. E foi desprezado até pelos republicanos, ignorado na era Bush pai e filho. Subestimou o regime dos aiatolás, jihad, talibãs, Osama bin Laden, Al-Qaeda, Estado Islâmico, o desmembramento da Síria, a invasão islâmica na Europa, que leva à ascensão da extrema-direita e da islamofobia, que quase ganhou o poder na Áustria, terra de Hitler, obteve 33,9% dos votos na França, levou o Reino Unido a levantar fronteiras com a Europa, deu em Trump, que constrói muros na fronteira do país vizinho e fecha o mercado.
Não previu um ex-agente da KGB, Putin, realimentar o sentimento da Grande Rússia, invadir a Crimeia, ameaçar a Ucrânia e governar como um velho camarada soviético, num estilo imperial. Não previu que uma península sem dinheiro para plantar batatas, a Coreia do Norte, desestabilizaria a geopolítica da vibrante economia asiática. Nem o temor dos lobos solitários.
A Iugoslávia se desmembrou logo depois do livro. O terrorismo doméstico atacou os Estados Unidos e a Europa. Israel construiu muros por toda parte. A Primavera Árabe destronou ditadores e empossou outros. E a líder da extrema-direita alemã, que queima abrigos com imigrantes sírios, Frauke Petry, afirma que a Alemanha, que no passado queimava sinagogas, é terra de judeus e cristãos, não de seguidores do Islã.
Sem contar que o capitalismo entrou em erupção em 2008. Jerusalém continua em disputa, como na época das Cruzadas. Golpes de Estado e ditaduras voltaram a ameaçar novas democracias da América Latina. O Brasil...
A história continua sangrenta, injusta, afunilando a quantidade de bilionários, empobrecendo a maior parte da população, com uma nuvem de pessimismo encobrindo os sete mares. Como uma neblina sem vento.
Para ele, a China logo sofreria um colapso, iniciado com os protestos na Praça da Paz Celestial em 1989. A invasão do Iraque acabaria com os conflitos no Oriente Médio. Reconhecia a ideia de que a história é um processo evolutivo a ser manipulado pelos próprios homens, em busca de uma forma de sociedade utópica (Hegel e Marx).
Dizia que o pessimismo era um vício herdado das Grandes Guerras, que “good news has come”, com o incrível desenvolvimento do último quarto do século: “Democracia liberal se manterá a única aspiração política coerente, que se espalhará pelas mais diferentes regiões e culturas através do globo”.
Na mesma era dos livros de autoajuda, Fukuyama faturou milhões, virou pop. E foi desprezado até pelos republicanos, ignorado na era Bush pai e filho. Subestimou o regime dos aiatolás, jihad, talibãs, Osama bin Laden, Al-Qaeda, Estado Islâmico, o desmembramento da Síria, a invasão islâmica na Europa, que leva à ascensão da extrema-direita e da islamofobia, que quase ganhou o poder na Áustria, terra de Hitler, obteve 33,9% dos votos na França, levou o Reino Unido a levantar fronteiras com a Europa, deu em Trump, que constrói muros na fronteira do país vizinho e fecha o mercado.
Não previu um ex-agente da KGB, Putin, realimentar o sentimento da Grande Rússia, invadir a Crimeia, ameaçar a Ucrânia e governar como um velho camarada soviético, num estilo imperial. Não previu que uma península sem dinheiro para plantar batatas, a Coreia do Norte, desestabilizaria a geopolítica da vibrante economia asiática. Nem o temor dos lobos solitários.
A Iugoslávia se desmembrou logo depois do livro. O terrorismo doméstico atacou os Estados Unidos e a Europa. Israel construiu muros por toda parte. A Primavera Árabe destronou ditadores e empossou outros. E a líder da extrema-direita alemã, que queima abrigos com imigrantes sírios, Frauke Petry, afirma que a Alemanha, que no passado queimava sinagogas, é terra de judeus e cristãos, não de seguidores do Islã.
Sem contar que o capitalismo entrou em erupção em 2008. Jerusalém continua em disputa, como na época das Cruzadas. Golpes de Estado e ditaduras voltaram a ameaçar novas democracias da América Latina. O Brasil...
A história continua sangrenta, injusta, afunilando a quantidade de bilionários, empobrecendo a maior parte da população, com uma nuvem de pessimismo encobrindo os sete mares. Como uma neblina sem vento.
O comportamento conflituoso
Por que tanta paixão, se já estamos em guerra? Melhor seria começar a raciocinar. Não é o orçamento monetário que faz uma autoridade eficiente. É o mobiliário moral que utiliza. O mal vem gotejando lentamente e aproxima dois mundos escandalosamente vencedores.
A situação permanente de conflito em que vive o Brasil contém um fato estranho. Menos de mil autoridades do Estado consomem o tempo de 204 milhões de habitantes. Número semelhante de marginais comanda o crime que inferniza a vida dos moradores das cidades.
Quem pilota a tensão nacional atual — políticos, juízes, procuradores e policiais — na alta cúpula dos Três Poderes, anda usando voz de comando parecida a de quem atemoriza bairros. Curve-se, aqui mando eu, você pode, você não.
Nada protege a mente obcecada por influência da submissão total ao padrão oferecido pelo privilégio. Se a vaidade é do poder o maior recreio, a ambição é seu fundamento. Nenhum dos grupos, do lado oficial ou da banda delinquencial, cuida de prevenção, contenção, moderação ou término das hostilidades em sua área. Com objetivos diferentes, o denominador comum é aumentar os envolvidos e aprisionar o país na apuração e produção do delito.
O privilégio, no Estado e no crime, é ser parte do conflito. É ele a causa da corrupção e da violência. Mas ambos advogam, com algum sucesso ainda, que são na verdade sua consequência. Conseguiram uma razoável desordem bem administrada na cabeça da sociedade para confundir a origem da bagunça nacional.
Quando jovens delinquentes chegam ao topo do crime, antes dos 25 anos, se metem na vida faustosa de carros, seguranças, drogas, hotéis, lajes com churrasqueiras e piscinas. Delimitam território, impedem que pessoas livres circulem, não deixam crianças ir à escola. Definem o acesso e a frequência à praia para punir a maioria. Morrerão antes dos 30 por contribuírem para que o país não seja justo.
Na alta cúpula do Estado, antes dos 40 anos, muitos se sentem velhos. Funcionários humildes carregam suas malas e, certos de aposentar antes de 60, alugarão a mansão que compraram com salário extrateto e auxílios impublicáveis. Viajarão por dois anos pelo mundo, como saudáveis inúteis, cujo espírito saiu do corpo antes da hora. E por mais 40 anos serão pagos pelos que trabalham. Especialistas em cápsulas de café, entediados fumadores de charuto, bebendo conhaque no calor criticarão a violência do país que ajudaram a fazer injusto.
O comportamento conflituoso nasce de objetivos morais incompatíveis com a vida da maioria das pessoas. O conflito é uma técnica e um instrumento de poder que visa a impedir a fundação de um sistema de segurança e compreensão coletivos. Freia o sistema de negociação e arbítrio, a cultura da autonomia que nasce do diálogo e do partilhamento de interesses da sociedade envolvida.
Qualquer jurisdição de exceção deixa sem saída a maioria. Seja da elite legal, com seus ninhos e lobbies de carreira, seja da elite ilegal, pela imposição do medo. Ambas permanecem ativas pelo espírito de corpo e instrumentos de coerção superiores aos que a sociedade dispõe.
Duas margens de um rio que ameaçam se encontrar.
A situação permanente de conflito em que vive o Brasil contém um fato estranho. Menos de mil autoridades do Estado consomem o tempo de 204 milhões de habitantes. Número semelhante de marginais comanda o crime que inferniza a vida dos moradores das cidades.
Quem pilota a tensão nacional atual — políticos, juízes, procuradores e policiais — na alta cúpula dos Três Poderes, anda usando voz de comando parecida a de quem atemoriza bairros. Curve-se, aqui mando eu, você pode, você não.
Nada protege a mente obcecada por influência da submissão total ao padrão oferecido pelo privilégio. Se a vaidade é do poder o maior recreio, a ambição é seu fundamento. Nenhum dos grupos, do lado oficial ou da banda delinquencial, cuida de prevenção, contenção, moderação ou término das hostilidades em sua área. Com objetivos diferentes, o denominador comum é aumentar os envolvidos e aprisionar o país na apuração e produção do delito.
O privilégio, no Estado e no crime, é ser parte do conflito. É ele a causa da corrupção e da violência. Mas ambos advogam, com algum sucesso ainda, que são na verdade sua consequência. Conseguiram uma razoável desordem bem administrada na cabeça da sociedade para confundir a origem da bagunça nacional.
Quando jovens delinquentes chegam ao topo do crime, antes dos 25 anos, se metem na vida faustosa de carros, seguranças, drogas, hotéis, lajes com churrasqueiras e piscinas. Delimitam território, impedem que pessoas livres circulem, não deixam crianças ir à escola. Definem o acesso e a frequência à praia para punir a maioria. Morrerão antes dos 30 por contribuírem para que o país não seja justo.
Na alta cúpula do Estado, antes dos 40 anos, muitos se sentem velhos. Funcionários humildes carregam suas malas e, certos de aposentar antes de 60, alugarão a mansão que compraram com salário extrateto e auxílios impublicáveis. Viajarão por dois anos pelo mundo, como saudáveis inúteis, cujo espírito saiu do corpo antes da hora. E por mais 40 anos serão pagos pelos que trabalham. Especialistas em cápsulas de café, entediados fumadores de charuto, bebendo conhaque no calor criticarão a violência do país que ajudaram a fazer injusto.
O comportamento conflituoso nasce de objetivos morais incompatíveis com a vida da maioria das pessoas. O conflito é uma técnica e um instrumento de poder que visa a impedir a fundação de um sistema de segurança e compreensão coletivos. Freia o sistema de negociação e arbítrio, a cultura da autonomia que nasce do diálogo e do partilhamento de interesses da sociedade envolvida.
Qualquer jurisdição de exceção deixa sem saída a maioria. Seja da elite legal, com seus ninhos e lobbies de carreira, seja da elite ilegal, pela imposição do medo. Ambas permanecem ativas pelo espírito de corpo e instrumentos de coerção superiores aos que a sociedade dispõe.
Duas margens de um rio que ameaçam se encontrar.
Audível e legível
As empresas de planos, que preferem perder os clientes impossibilitados de pagar reajustes muito elevados, precisam assegurar suas taxas de retorno e demandarão mais isenções e deduções fiscais, alongamento eterno e renovado de dívidas, créditos e anistia de multas. Para tanto, necessitam recrutar e institucionalizar a militância de empresários e executivos favoráveis à redução dos preços pagos a profissionais e estabelecimentos de saúde, restrição de coberturas e formulação de estratégias de competição com o SUS. Fica caro criar e manter organizações pagas, em primeira e última instância, com recursos retirados dos contribuintes e clientes, que aderem aos contratos privados em busca de garantia de acesso e utilização de serviços. É dinheiro jogado nos altos salários e comissões de intermediadores de transações e no ralo da corrupção.
A existência de uma possível rota da “arrecadação de propina” envolvendo empresas de planos de saúde e a Agência Nacional de Saúde Suplementar está inteiramente legível no documento de colaboração premiada de Delcídio do Amaral com o Ministério Público Federal. No anexo 28, página 107, lê-se: “especial atenção deve ser dada à ANS e Anvisa, cujas diretorias foram indicadas pelo PMDB do Senado, principalmente pelos senadores Eunício Oliveira, Renan Calheiros e Romero Jucá. Jogaram pesado com o governo para emplacarem os principais dirigentes dessas agências. Com a decadência dos empreiteiros, as empresas de planos de saúde e laboratórios se tornaram os principais alvos de propina para os políticos e executivos do governo.”
Desde que Antonio Palocci foi preso, se ouve que o setor contrariou os limites acústicos da emissão de ruídos toleráveis pelas regras legais. O ex-ministro assessorou a maior empresa de planos de saúde do Brasil. Sua delação poderá expor as engrenagens de grandes negociações de compra e venda de empresas, inclusive internacionais.
Mas a proximidade do perigo, ao contrário de estimular cautela, impulsionou a celeridade das novas indicações para a ANS e da tramitação de medidas sobre redução do pagamento de impostos. A recondução de uma diretora, já sabatinada pelo Senado, e o registro pela Casa Civil de nomes para outros cargos foram realizados em tempo recorde. A Presidência da República e o Ministério da Fazenda apoiaram a recusa das empresas de planos a pagarem o ISS de acordo com o local de prestação do serviço. A demanda empresarial só não foi plenamente acolhida porque as bases políticas municipais se insurgiram contra a perspectiva de não arrecadação de cerca de R$ 6 bilhões. Por um triz, as empresas não emplacaram a habitual e bem-sucedida dobradinha: reajuste estratosférico das mensalidades e não pagamento de impostos. Desta feita, o argumento exposto no veto do presidente Temer não teve audiência. O som da afirmação de que o pagamento do tributo iria encarecer os planos foi abafado pelo barulho causado pela autorização de um índice para o reajuste das mensalidades incompatível com a realidade econômica do país.
Precisamos apurar nossa capacidade de audição e leitura para discriminar causas subjacentes e condições que precipitam problemas. Se os pacientes morrem de infarto, mas são fumantes, é necessário ampliar o espectro de ações preventivas e curativas. Analogamente, a resposta à pergunta sobre por que o SUS não se tornou universal e de qualidade não é a mesma que se seria dada a indagação de por que as empresas de planos passaram a ditar as políticas públicas de saúde. Os princípios básicos de responsabilidade e solidariedade dissociam contribuições sociais das recompensas individuais. Por isso, o Brasil tem SUS.
Consequentemente, a conjugação da racionalidade econômica com democracia política requer a revisão da proteção estatal indevida a agentes que anunciam orgulhosamente integrar o mercado. Entidades empresariais da saúde que assinaram manifestos exigindo mudanças políticas deveriam, de livre e espontânea vontade, se adiantar à Lava-Jato e adotar o saudável hábito de tomar uma chuveirada cívica diária.
Ligia Bahia
Pensando na morte da bezerra
No Brasil atual, há muita gente pensando na morte da bezerra. Mas a bezerra agora é outra e pode ser a prosperidade, substituída pela crise e pelo desemprego.
Está pensando na morte da bezerra a pessoa triste, desanimada ou às vezes carrancuda. Alguma coisa lhe aconteceu para estar assim, num estado bem diferente da outra expressão “que bicho foi que te mordeu?”, uma vez que esta última descreve a pessoa agindo de uma forma bem diferente da habitual, quando o bicho ainda não tinha mordido.
Faz tempo que a escola brasileira abandonou, em todos os níveis, o estudo destas expressões, o que é uma pena. Houve tempo em que os professores de Português e de suas literaturas explicavam estas frases feitas, como as definiu João Ribeiro, mestre em pesquisar suas origens.
Tais frases e expressões, à semelhança dos provérbios e dos ditos populares, compõem uma lição de sabedoria. E muitas delas revelam as profundezas de nossa alma, de nosso modo de sentir e pensar, da identidade que faz do brasileiro aquilo que ele é: uma das nacionalidades mais ricas do mundo, a começar pela herança e modificação destes saberes.
Quem as pesquisou de maneira magistral foi o escritor e filólogo carioca João Ribeiro, também jornalista, pintor, tradutor e historiador, falecido em 1934, aos 74 anos.
Ele diz que a expressão “morte da bezerra” foi tirada dos autos de fé. A bezerra não era o bezerro de ouro, cujo culto levou Moisés a quebrar as tábuas da lei quando descia do Monte Sinai, mas a Torá, do Hebraico Torah, como os judeus chamam o Pentateuco, do Grego penta, cinco, e têukhos, livro, os cinco primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.
Duramente perseguidos, torturados e mortos em Portugal, ou convertidos ao cristianismo à força (daí o substantivo cristão-novo), os judeus eram acusados e levados à fogueira, como foi o caso de Violante Mendes e seu marido, queimados vivos em 1591 por denúncia de que um filho do casal, uma criança ainda, tinha sido visto brincando com uma bezerrinha de marfim. O caminho para bezerra pode ter sido este: de torá para tourinha, ensejando a mudança de significado para bezerra.
Muitos séculos se passaram, já estamos no segundo milênio, mas ainda usamos a expressão para designar uma tristeza que foi originalmente inconfessável.
Há, contudo, uma grande diferença: todos que estão pensando na morte da bezerra já podem confidenciar o que está se passando com eles para estarem tristes e acabrunhados.
A defesa de Michel Temer e o ataque a Rodrigo Janot
Michel Temer e seus camaradas não são a unanimidade que se poderia supor diante das pesquisas; ainda há uns poucos setores que o apoiam e confiam em seu papel supostamente reformista. Para eles, a recuperação econômica e a lógica das reformas a qualquer custo são mais relevantes que princípios éticos e mudanças políticas, que só se fariam sentir no longo prazo. É um compreensível modo de ver o mundo, onde pesam os valores do indivíduo. Todavia, como disse Luís Roberto Barroso esta semana, no Insper, se ''cada um tem direito à própria opinião, não tem direito aos próprios fatos''.
E os fatos falam por si, a despeito dos valores, da estratégia e dos pronunciamentos do presidente e de seus defensores. O fato é que o sistema entrou em colapso e Michel Temer representa, antes que a redenção econômica, o abraço de afogado desse sistema, o que, paradoxalmente, impede a própria recuperação da economia. A salvação da própria pele é, hoje, o que dá a lógica da ação presidencial e da maior parte dos aliados políticos que o abraçam. Vem daí a luta feroz que travam com o Ministério Público, no geral, e com Rodrigo Janot, em particular.
Esses poucos crentes — com mandatos e poder — se desesperam por aquilo que poderia ter sido, mas não será. Afirmam que, não fosse o 17 de maio, Michel Temer se consolidaria como o maior reformista da história do Brasil. Exagero e omissão; o Joesley Day foi um Cisne Negro que surgiu como natural resultado de um processo de putrefação. No mais, negligencia-se a história e a natureza do ator: por toda a vida parlamentar, Temer jamais foi além do articulador de interesses do ''baixo clero'' — o grupo de parlamentares de mentalidade provinciana, exclusivamente fisiológica, sem opinião a dar sobre questões realmente relevantes.
Em seu período na Câmara dos Deputados, não há notícia de debates abrangentes que tenha estimulado. Em regra, tudo foi antes, processos de acomodação de pequenos interesses, mesmo quando se falava em reformas. Pautas corporativas do parlamento, negociações de espaços na máquina em troca de apoios; renegociações por mais espaço; embates dessa natureza deram-lhe sentido e fizeram sua carreira. Não foi o único, mas, talvez seja o mais bem-sucedido político do tipo — mais que Eduardo Cunha, guardado hoje em Curitiba.
Com o passamento de atores de maior estatura, figuras assim deram a impressão de que se elevaram, mas foi o Brasil que estancou de repente. A associação com esses atributos duvidosos interessou ao projeto de poder do Partido dos Trabalhadores, que os arrematou em leilão. Contudo, arrodeado por anões, Temer jamais pode-se emparelhar aos gigantes que, de fato, o país um dia teve. Como tamanho é coisa relativa, não por acaso, seus defensores insistem em compará-lo a Dilma Rousseff. Mas, aí os parâmetros são outros.
O impeachment de Dilma e a assunção de Temer foram, antes, uma tentativa de salvação do sistema que colapsara, que Dilma nunca conseguira coordenar — ainda que tentasse. Um processo de reloading (já escrevi sobre isto, leia aqui) que buscou reanimar o velho e dar fôlego ao moribundo tradicional modo de fazer política pequena que já não mais se sustentava diante da sociedade que emergira a partir das jornadas de 2013 e da crise que agora cobra seu preço pela indolência e pela imprevidência do passado.
A evolução de personagens como Dilma Rousseff, Michel Temer, Eduardo Cunha e até Aécio Neves — com origem e natureza distintas — deu-se na ordem inversa do empobrecimento da liderança política, das grandes questões nacionais, de uma visão nobre de entrega política e social; representam o colapso dos grandes partidos. Os personagens que resultaram de um processo degenerativo e de abandono social, que hoje nos damos conta entre surpresos e resignados.
Com todos os defeitos que se possa atribuir ao Procurador-Geral, ao novo Judiciário e a turma de Curitiba — e são várias as correções aí necessárias —, não se pode negar que representam a possibilidade de ruptura com o sistema político decadente já há algumas décadas. O enfrentamento com Janot é, portanto, primeiro que tudo, um grito de socorro; a agonia de um mundo que se desfaz, resultado de várias crises que compõem a atual crise (também sobre isto já disse: leia aqui.); resultado de conflitos inconciliáveis. Um mundo político decrépito e que, no entanto, ainda resiste.
Vociferam indignados seus apoiadores; formam brigadas dispostas a cruzadas e patrulhas ideológicas, vocalizam essa resistência. Tem direito a opinião, mas os fatos os tornam cada vez menos numerosos, isolando-os. O que se passa no Brasil é, quando menos, a tentativa de remoção do entulho fisiológico e corrompido — que, sob o tapete, se formou ao longo dos anos e tomou toda a sala — contra práticas que transformaram a política oficial numa atividade, infelizmente, miserável; salvo as mais distintas e louváveis exceções.
A defesa de Michel Temer oculta isto; negligencia a natureza da crise e se agarra à fantasia de um estadista que não existe: reformador e injustiçado. Opinião que se difere dos fatos que revelam um presidente incapaz de se defender — que ataca ilações supostas por meio de ilações explícitas e confessas. Um desespero patético que tenta remeter um importante conflito ético-político ao campo de disputas políticas mais ordinárias.
Carlos Melo
E os fatos falam por si, a despeito dos valores, da estratégia e dos pronunciamentos do presidente e de seus defensores. O fato é que o sistema entrou em colapso e Michel Temer representa, antes que a redenção econômica, o abraço de afogado desse sistema, o que, paradoxalmente, impede a própria recuperação da economia. A salvação da própria pele é, hoje, o que dá a lógica da ação presidencial e da maior parte dos aliados políticos que o abraçam. Vem daí a luta feroz que travam com o Ministério Público, no geral, e com Rodrigo Janot, em particular.
Em seu período na Câmara dos Deputados, não há notícia de debates abrangentes que tenha estimulado. Em regra, tudo foi antes, processos de acomodação de pequenos interesses, mesmo quando se falava em reformas. Pautas corporativas do parlamento, negociações de espaços na máquina em troca de apoios; renegociações por mais espaço; embates dessa natureza deram-lhe sentido e fizeram sua carreira. Não foi o único, mas, talvez seja o mais bem-sucedido político do tipo — mais que Eduardo Cunha, guardado hoje em Curitiba.
Com o passamento de atores de maior estatura, figuras assim deram a impressão de que se elevaram, mas foi o Brasil que estancou de repente. A associação com esses atributos duvidosos interessou ao projeto de poder do Partido dos Trabalhadores, que os arrematou em leilão. Contudo, arrodeado por anões, Temer jamais pode-se emparelhar aos gigantes que, de fato, o país um dia teve. Como tamanho é coisa relativa, não por acaso, seus defensores insistem em compará-lo a Dilma Rousseff. Mas, aí os parâmetros são outros.
O impeachment de Dilma e a assunção de Temer foram, antes, uma tentativa de salvação do sistema que colapsara, que Dilma nunca conseguira coordenar — ainda que tentasse. Um processo de reloading (já escrevi sobre isto, leia aqui) que buscou reanimar o velho e dar fôlego ao moribundo tradicional modo de fazer política pequena que já não mais se sustentava diante da sociedade que emergira a partir das jornadas de 2013 e da crise que agora cobra seu preço pela indolência e pela imprevidência do passado.
A evolução de personagens como Dilma Rousseff, Michel Temer, Eduardo Cunha e até Aécio Neves — com origem e natureza distintas — deu-se na ordem inversa do empobrecimento da liderança política, das grandes questões nacionais, de uma visão nobre de entrega política e social; representam o colapso dos grandes partidos. Os personagens que resultaram de um processo degenerativo e de abandono social, que hoje nos damos conta entre surpresos e resignados.
Com todos os defeitos que se possa atribuir ao Procurador-Geral, ao novo Judiciário e a turma de Curitiba — e são várias as correções aí necessárias —, não se pode negar que representam a possibilidade de ruptura com o sistema político decadente já há algumas décadas. O enfrentamento com Janot é, portanto, primeiro que tudo, um grito de socorro; a agonia de um mundo que se desfaz, resultado de várias crises que compõem a atual crise (também sobre isto já disse: leia aqui.); resultado de conflitos inconciliáveis. Um mundo político decrépito e que, no entanto, ainda resiste.
Vociferam indignados seus apoiadores; formam brigadas dispostas a cruzadas e patrulhas ideológicas, vocalizam essa resistência. Tem direito a opinião, mas os fatos os tornam cada vez menos numerosos, isolando-os. O que se passa no Brasil é, quando menos, a tentativa de remoção do entulho fisiológico e corrompido — que, sob o tapete, se formou ao longo dos anos e tomou toda a sala — contra práticas que transformaram a política oficial numa atividade, infelizmente, miserável; salvo as mais distintas e louváveis exceções.
A defesa de Michel Temer oculta isto; negligencia a natureza da crise e se agarra à fantasia de um estadista que não existe: reformador e injustiçado. Opinião que se difere dos fatos que revelam um presidente incapaz de se defender — que ataca ilações supostas por meio de ilações explícitas e confessas. Um desespero patético que tenta remeter um importante conflito ético-político ao campo de disputas políticas mais ordinárias.
Carlos Melo
A limpeza que não limpa
É provável que não exista no mundo nenhum outro país, como o Brasil, em que os grandes colossos do pensamento político, ou gente que ganha a vida apresentando-se como tal, têm tanta paixão por recomendar o desrespeito à Constituição, em nome de altos interesses nacionais, todas as vezes que aparece um problema mais enjoado pela frente. Complicou? Então mude-se a lei, porque é a lei que está atrapalhando. Mudar a regra deveria ser o último recurso; aqui é sempre um dos primeiros. É um dos motivos, possivelmente, pelos quais tanto os donos da nossa vida pública quanto a própria Constituição valem a miséria que se sabe. O país está vivendo, justo agora, um dos grandes momentos dessa busca permanente do atalho e do facilitário trapaceiro para anular realidades. Corruptores confessos, entre os maiores já registrados na história mundial da compra de políticos com dinheiro vivo, ganham um inexplicável perdão perpétuo para seus crimes por decisão do procurador-geral da República e de um ministro do Supremo Tribunal Federal; em troca, acusam o presidente da República de chefiar uma quadrilha de bandidos. Solução proposta pela sabedoria nacional, após dez minutos de desconforto: mudar a Constituição para fazer eleições “diretas já” e, em seguida, entregar a um outro o lugar do presidente atual.
Os Estados Unidos têm a mesma Constituição desde 1789, e ao longo desses 228 anos só fizeram 27 emendas para mexer em alguma coisa do texto. Nesse meio-tempo, passaram por uma guerra civil que deixou 600 000 mortos, ou mais, duas guerras mundiais, guerras na Coreia, no Vietnã e em meia dúzia de outros cantos do planeta, jogaram uma bomba atômica, enfrentaram a recessão econômica mais comentada da história, venceram um problema racial tido como insolúvel, e por aí afora. No Brasil, a Constituição ainda não completou trinta anos e já teve 96 emendas ─ deve estar nisso, talvez, um dos segredos que explicam por que os Estados Unidos são uma droga de país e o Brasil é essa coisa admirável que está aí. Aqui, por safadeza ou com as melhores intenções, por incapacidade de praticar a democracia ou pela arrogância dos que elevam suas opiniões à condição de ciência, os marechais de campo do jogo político têm um serviço de delivery, aberto 24 horas por dia, para o pronto fornecimento de reformas constitucionais sempre que não têm ideias verdadeiras, nem coragem, para enfrentar dificuldades ─ disque já, entregamos a solução em no máximo quarenta minutos. Virou um vício. E, como todo vício, não precisa de motivo para aparecer ─ precisa apenas de uma oportunidade. A desgraça de Michel Temer, chefe de um governo morto e herdeiro de uma fraude eleitoral sem precedentes, é a oportunidade do momento.
Um bom bode expiatório, como se sabe, muitas vezes vale tanto quanto uma solução ─ um bode com menos de 10% de popularidade nas pesquisas, então, é uma saída quase ideal. É o que acontece com Temer. O problema essencial, no caso, é que ele é o único presidente legal que o Brasil tem hoje; para tirar o homem de lá, só depois das eleições presidenciais de 2018 ou através de um processo de impeachment como o que despejou do Palácio do Planalto sua antecessora, Dilma Rousseff. Propõe-se então, para eliminar o incômodo de tudo isso, que Temer renuncie ao mandato num “gesto de grandeza”. Claro: não há nada mais fácil do que exigir grandeza dos outros. A partir daí é simples. Monta-se uma gambiarra qualquer para mudar a Constituição e permitir, assim, a invenção de “eleições diretas, já”, algo que não existe em lugar nenhum da lei. A coisa é apresentada também com palavras diferentes ─ “eleições gerais”, “antecipação das eleições”, “entrega das decisões ao voto popular” etc. Mas dá tudo na mesma.
O que interessa, no mundo das realidades, é cair fora de uma situação que não está prometendo nada de bom a nenhum dos grupos que se alimentam, de um jeito ou de outro, da máquina pública e do Tesouro Nacional ─ incluindo os que estão hoje grudados no osso. Uns vêm com palavrório de “ciência política”. Dizem que o governo Temer é legal, mas “não é legítimo”, que a validade da Constituição “não está sendo aceita” e que “a soberania popular precisa legitimar a ordem”; se não for assim, “as ruas” vão exigir “a ruptura das regras” que estão valendo. “Regras”? Sim, regras. Ficaria desagradável falar em ruptura das leis. Não está claro, em nada disso, quem tem o direito de decidir se o governo é legítimo ou não ou quanta gente, precisamente, não aceita mais a validade da Constituição. Também não há informações sobre os exatos desejos da “soberania popular” no momento, nem se ela está realmente interessada em “legitimar” alguma coisa. Ninguém tem dados, enfim, para afirmar se “as ruas” vão fazer isso ou aquilo, nem quando, nem como. Os demais interessados em “eleições já”, por seu lado, não perdem tempo discutindo essas filosofias todas. Querem, simplesmente, escapar da cadeia e da Justiça, e acreditam que a maneira mais conveniente para fazer isso, ou a única disponível, é ganhar as eleições presidenciais ─ não em 2018, como manda a lei, mas já, quando a Lava Jato está roncando ─ e comprar a imunidade para os crimes de que são acusados. Além do mais, na esperança das centenas ou dos milhares de ladrões que controlam apolítica brasileira, uma virada de mesa desse tamanho teria a imensa vantagem de “zerar tudo” ─ os processos de corrupção que correm na Justiça iriam travar, e todo mundo, de todos os partidos, sairia feliz. A “soberania popular”, para essas coisas, é uma beleza.
O fato é que não existe nada de bom nas “eleições antecipadas”. O candidato mais cotado para a Presidência da República, segundo ele próprio, as pesquisas e a mídia, é o ex-presidente Lula. Como falar em “arejamento da política”, “renovação”, “passar o Brasil a limpo” e outras bobagens repetidas diariamente em favor das “diretas”, se o resultado é voltar tudo a Lula? O ex-presidente comandou durante oito anos o governo mais corrupto da história brasileira. É o que está comprovado, na Justiça, pelas confissões em massa de crimes cometidos durante seus dois mandatos; o único que não roubou ali, na teoria oficial do PT, foi ele. É incompreensível falar em “faxina geral”, da mesma forma, quando se consideram os outros possíveis candidatos. De todos os nomes citados até agora, nenhum está livre da gosma tóxica em que vive a política no Brasil ─ é só um deles chegar à Presidência, qualquer um, em qualquer tipo de eleição, e vai começar tudo de novo, com as delações, confissões, gravações. Que limpeza será essa? Ignoram-se, igualmente, outras realidades essenciais. O novo presidente terá de comprar o apoio do Congresso. Seja ele quem for, não terá a menor possibilidade real de resolver nenhuma das calamidades urgentes do Brasil. E como poderá ser feita uma eleição direta para presidente sem fazer a mesma coisa com os 27 governadores, 81 senadores e 513 deputados federais hoje exercendo seu mandato? Renunciam todos, em 621 gestos separados de grandeza?
Do começo ao fim, nada fecha nessa comédia.
Um bom bode expiatório, como se sabe, muitas vezes vale tanto quanto uma solução ─ um bode com menos de 10% de popularidade nas pesquisas, então, é uma saída quase ideal. É o que acontece com Temer. O problema essencial, no caso, é que ele é o único presidente legal que o Brasil tem hoje; para tirar o homem de lá, só depois das eleições presidenciais de 2018 ou através de um processo de impeachment como o que despejou do Palácio do Planalto sua antecessora, Dilma Rousseff. Propõe-se então, para eliminar o incômodo de tudo isso, que Temer renuncie ao mandato num “gesto de grandeza”. Claro: não há nada mais fácil do que exigir grandeza dos outros. A partir daí é simples. Monta-se uma gambiarra qualquer para mudar a Constituição e permitir, assim, a invenção de “eleições diretas, já”, algo que não existe em lugar nenhum da lei. A coisa é apresentada também com palavras diferentes ─ “eleições gerais”, “antecipação das eleições”, “entrega das decisões ao voto popular” etc. Mas dá tudo na mesma.
O que interessa, no mundo das realidades, é cair fora de uma situação que não está prometendo nada de bom a nenhum dos grupos que se alimentam, de um jeito ou de outro, da máquina pública e do Tesouro Nacional ─ incluindo os que estão hoje grudados no osso. Uns vêm com palavrório de “ciência política”. Dizem que o governo Temer é legal, mas “não é legítimo”, que a validade da Constituição “não está sendo aceita” e que “a soberania popular precisa legitimar a ordem”; se não for assim, “as ruas” vão exigir “a ruptura das regras” que estão valendo. “Regras”? Sim, regras. Ficaria desagradável falar em ruptura das leis. Não está claro, em nada disso, quem tem o direito de decidir se o governo é legítimo ou não ou quanta gente, precisamente, não aceita mais a validade da Constituição. Também não há informações sobre os exatos desejos da “soberania popular” no momento, nem se ela está realmente interessada em “legitimar” alguma coisa. Ninguém tem dados, enfim, para afirmar se “as ruas” vão fazer isso ou aquilo, nem quando, nem como. Os demais interessados em “eleições já”, por seu lado, não perdem tempo discutindo essas filosofias todas. Querem, simplesmente, escapar da cadeia e da Justiça, e acreditam que a maneira mais conveniente para fazer isso, ou a única disponível, é ganhar as eleições presidenciais ─ não em 2018, como manda a lei, mas já, quando a Lava Jato está roncando ─ e comprar a imunidade para os crimes de que são acusados. Além do mais, na esperança das centenas ou dos milhares de ladrões que controlam apolítica brasileira, uma virada de mesa desse tamanho teria a imensa vantagem de “zerar tudo” ─ os processos de corrupção que correm na Justiça iriam travar, e todo mundo, de todos os partidos, sairia feliz. A “soberania popular”, para essas coisas, é uma beleza.
O fato é que não existe nada de bom nas “eleições antecipadas”. O candidato mais cotado para a Presidência da República, segundo ele próprio, as pesquisas e a mídia, é o ex-presidente Lula. Como falar em “arejamento da política”, “renovação”, “passar o Brasil a limpo” e outras bobagens repetidas diariamente em favor das “diretas”, se o resultado é voltar tudo a Lula? O ex-presidente comandou durante oito anos o governo mais corrupto da história brasileira. É o que está comprovado, na Justiça, pelas confissões em massa de crimes cometidos durante seus dois mandatos; o único que não roubou ali, na teoria oficial do PT, foi ele. É incompreensível falar em “faxina geral”, da mesma forma, quando se consideram os outros possíveis candidatos. De todos os nomes citados até agora, nenhum está livre da gosma tóxica em que vive a política no Brasil ─ é só um deles chegar à Presidência, qualquer um, em qualquer tipo de eleição, e vai começar tudo de novo, com as delações, confissões, gravações. Que limpeza será essa? Ignoram-se, igualmente, outras realidades essenciais. O novo presidente terá de comprar o apoio do Congresso. Seja ele quem for, não terá a menor possibilidade real de resolver nenhuma das calamidades urgentes do Brasil. E como poderá ser feita uma eleição direta para presidente sem fazer a mesma coisa com os 27 governadores, 81 senadores e 513 deputados federais hoje exercendo seu mandato? Renunciam todos, em 621 gestos separados de grandeza?
Do começo ao fim, nada fecha nessa comédia.
Quem tem medo de delação premiada?
A colaboração premiada só assusta os corruptos, não os cidadãos de bem. Trata-se de uma figura jurídica que existe na maior parte do mundo e que, no Brasil, em sua forma atual, foi regulamentada em 2013, embora com matizes que estavam sendo aplicados há mais de 20 anos. Essa possibilidade de poder colaborar com a justiça para descobrir crimes, que de outro modo, ficariam escondidos para sempre, e que foi fundamental para o processo da Lava Jato, esteve prestes a naufragar em um duro debate no Supremo. A discussão durou quatro dias, mas a postura favorável à colaboração premiada terminou vitoriosa por 8 votos a 3.
Nas discussões acaloradas dos 11 juízes do Supremo Tribunal havia, no fundo, o perigo de jogar um balde de água fria sobre essa instituição que assusta, somente com citá-la, muitos políticos, ansiosos de que muitas das colaborações possam ser canceladas e eles, absolvidos. É bom lembrar àqueles que mantêm reservas sobre essas colaborações para descobrir criminosos que todas as máfias do mundo condenam à morte os colaboradores com a polícia e juízes. O lema da máfia é, ao contrário, a omertá, o silêncio e a morte para aqueles que não a respeitam. Até instituições tão sagradas quanto a Igreja Católica, que deveriam privilegiar a transparência e denúncia daqueles que, por exemplo, cometem crimes de pedofilia com crianças inocentes, sempre preferiram a omertá mafiosa do que a colaboração com a justiça.
Que essa colaboração é importante não só nos crimes de políticos e empresários, mas em todos os campos, acaba de ficar evidente com a prisão de 96 policiais militares no Rio, graças às confissões de um dos colaboradores da quadrilha. Sem essas confissões continuariam vivendo com a impunidade de seus crimes. Tudo isso nos leva a perguntar até onde poderia chegar a eficácia das colaborações premiadas. Não será essa possibilidade que assusta não só os políticos, mas outras categorias? Será que dá medo também aos juízes e advogados que a criticam tanto? Há ainda categorias e instituições, sem descartar as próprias igrejas, católica e evangélicas, que ainda não participam dessas colaborações, mas que amanhã também poderiam tremer por causa delas. Devem ser criticados, certamente, os possíveis abusos que, como em todas as coisas, podem ocorrer no uso das colaborações premiadas e, se for o caso, esses abusos devem ser punidos. Não é possível, no entanto, esquecer que aqueles que não devem temê-las, e, portanto devem ser seus maiores defensores, são os indivíduos ou instituições que estão em paz com a lei.
Se há alguma coisa hoje que muitos outros países invejam do Brasil é essa luta aberta contra a corrupção que, pela primeira vez, está pescando em suas redes aqueles que no passado nunca sonhavam que iriam para a cadeia como os pobres mortais. Impunidade para os poderosos era uma lei tácita no Brasil, enquanto os pobres se amontoavam em prisões muitas vezes desumanas. Enquanto existirem no país aqueles que sucumbem à tentação de se opor às colaborações premiadas, caindo na armadilha dos ataques abertos ou enrustidos feitos pelos corruptos, neste momento em que a imagem do Brasil aparece em frangalhos por causa de seus políticos, o país é aplaudido pelo trabalho feito por juízes, cujos frutos só poderão ser medidos em alguns anos. É como um investimento e uma esperança de tempos melhores para nossos filhos e netos. Por isso, deve ser aplaudida a coragem do Supremo, que soube impedir a tempo o perigo de morte que ameaçava as investigações em curso contra o flagelo da corrupção, essa que, conforme declarou a esposa do réu Sérgio Cabral, fazia com que “vivessem em êxtase”.
Nas discussões acaloradas dos 11 juízes do Supremo Tribunal havia, no fundo, o perigo de jogar um balde de água fria sobre essa instituição que assusta, somente com citá-la, muitos políticos, ansiosos de que muitas das colaborações possam ser canceladas e eles, absolvidos. É bom lembrar àqueles que mantêm reservas sobre essas colaborações para descobrir criminosos que todas as máfias do mundo condenam à morte os colaboradores com a polícia e juízes. O lema da máfia é, ao contrário, a omertá, o silêncio e a morte para aqueles que não a respeitam. Até instituições tão sagradas quanto a Igreja Católica, que deveriam privilegiar a transparência e denúncia daqueles que, por exemplo, cometem crimes de pedofilia com crianças inocentes, sempre preferiram a omertá mafiosa do que a colaboração com a justiça.
Que essa colaboração é importante não só nos crimes de políticos e empresários, mas em todos os campos, acaba de ficar evidente com a prisão de 96 policiais militares no Rio, graças às confissões de um dos colaboradores da quadrilha. Sem essas confissões continuariam vivendo com a impunidade de seus crimes. Tudo isso nos leva a perguntar até onde poderia chegar a eficácia das colaborações premiadas. Não será essa possibilidade que assusta não só os políticos, mas outras categorias? Será que dá medo também aos juízes e advogados que a criticam tanto? Há ainda categorias e instituições, sem descartar as próprias igrejas, católica e evangélicas, que ainda não participam dessas colaborações, mas que amanhã também poderiam tremer por causa delas. Devem ser criticados, certamente, os possíveis abusos que, como em todas as coisas, podem ocorrer no uso das colaborações premiadas e, se for o caso, esses abusos devem ser punidos. Não é possível, no entanto, esquecer que aqueles que não devem temê-las, e, portanto devem ser seus maiores defensores, são os indivíduos ou instituições que estão em paz com a lei.
Se há alguma coisa hoje que muitos outros países invejam do Brasil é essa luta aberta contra a corrupção que, pela primeira vez, está pescando em suas redes aqueles que no passado nunca sonhavam que iriam para a cadeia como os pobres mortais. Impunidade para os poderosos era uma lei tácita no Brasil, enquanto os pobres se amontoavam em prisões muitas vezes desumanas. Enquanto existirem no país aqueles que sucumbem à tentação de se opor às colaborações premiadas, caindo na armadilha dos ataques abertos ou enrustidos feitos pelos corruptos, neste momento em que a imagem do Brasil aparece em frangalhos por causa de seus políticos, o país é aplaudido pelo trabalho feito por juízes, cujos frutos só poderão ser medidos em alguns anos. É como um investimento e uma esperança de tempos melhores para nossos filhos e netos. Por isso, deve ser aplaudida a coragem do Supremo, que soube impedir a tempo o perigo de morte que ameaçava as investigações em curso contra o flagelo da corrupção, essa que, conforme declarou a esposa do réu Sérgio Cabral, fazia com que “vivessem em êxtase”.
\Um país que não aprende com a vergonha
Dos três elementos psicológicos de punição coletiva a desvios da norma social, a culpa cristã, a vergonha asiática e o medo difuso, o retrato que emerge da sociedade brasileira sugere um controle mais próximo do medo do que da culpa ou da vergonha. O problema é que o medo é pouco eficiente na função de evitar o individualismo cego e exacerbado.
Primeiro porque, em dissonância com a culpa ou a vergonha, o medo se alimenta em demasia do inesperado e da imprevisibilidade. Isto gera perda de coesão social, de capacidade de planejamento e de bem-estar coletivo. Segundo, ao contrário da bravura e da coragem, caldos de cultura das boas ações cívicas nos contos de Homero, o medo não é proativo. É apenas reativo. O medo é medroso.
Émile Durkheim nos ensinou que nenhum agrupamento humano subsiste de forma eficiente se baseado apenas no individualismo míope. Há necessidade de uma cola social. Esta cola tem por obrigação se sobrepor aos corporativismos sectários. Fato difícil. Deve unir a todos em torno de algum sentimento comum.
Vinte e quatro séculos antes de Durkheim, Confúcio propunha à sociedade asiática a punição da não adesão à norma social através da vergonha. É conhecido o seu mandamento pelo qual, em adição às leis, deve-se conduzir pelo exemplo e pela honra. A alternativa à adesão estaria na vergonha e no exílio social. As práticas maoístas durante a Revolução Cultural exemplificam este processo.
A leitura diária dos jornais, entretanto, sugere que estamos distantes de nos beneficiarmos o necessário da restrição comportamental que advém da vergonha.
A cultura cristã, com o apoio intelectual de Santo Agostinho, institui, alternativamente, a punição pela culpa. É exemplo clássico de culpa cristã a visão de Teodósio, imperador de Roma, ajoelhando-se aos pés de Santo Ambrósio, bispo de Milão e tutor intelectual de Santo Agostinho.
Não tratamos aqui da culpa que deriva da consciência da não adesão à lei. A culpa à qual nos referimos é aquela inerente à formação civil, religiosa ou filosófica, que prescinde da norma legal.
A punição pela culpa tem a força de punir também a simples intenção. Isto lhe confere um papel inibidor da conduta antissocial potencialmente mais amplo que a vergonha. A vergonha pune apenas um subconjunto do que pune a culpa cristã.
Um terceiro elemento inibidor de individualismos exacerbados é o medo. É conhecida a frase de um florentino que queria revelar ao povo do início do século XVI como pensava a nobreza da época, mas que talvez tenha passado à história de forma diversa da que pretendia: “Se tiveres que decidir entre controlar pelo amor ou pelo medo, escolha controlar pelo medo”.
Exemplos modernos da tentativa de controle pelo medo são Stalin no século XX e os terroristas no século XXI.
A sociedade brasileira, ao longo do tempo, dá a impressão de beneficiar-se menos e menos das restrições sociais derivadas da vergonha e da culpa. Um dos motivos para isto é que a forte heterogeneidade social tem sido capaz, em episódios importantes, de viabilizar confusões coletivas nas quais a má conduta é vendida e aceita como um heroísmo à Robin Hood.
A restrição comportamental pelo medo, por outro lado, é clara nas comunidades carentes, onde o Estado se faz total ou parcialmente ausente. Nestas, a posse de arma é a posse da palavra, a gênese do medo e o exercício da lei.
No asfalto, impera cada vez mais o medo hobbesiano da guerra de todos contra todos, individualmente frustrante e socialmente vexante.
Às vezes, é preciso a uma sociedade reaprender os ensinamentos constituídos através de milênios. De Abraão a Confúcio, há inúmeras culturas das quais se podem derivar âncoras de civilidade e harmonia. Não se trata necessariamente de opção religiosa. Mas da necessidade de retomar o bom senso coletivo.
Primeiro porque, em dissonância com a culpa ou a vergonha, o medo se alimenta em demasia do inesperado e da imprevisibilidade. Isto gera perda de coesão social, de capacidade de planejamento e de bem-estar coletivo. Segundo, ao contrário da bravura e da coragem, caldos de cultura das boas ações cívicas nos contos de Homero, o medo não é proativo. É apenas reativo. O medo é medroso.
Émile Durkheim nos ensinou que nenhum agrupamento humano subsiste de forma eficiente se baseado apenas no individualismo míope. Há necessidade de uma cola social. Esta cola tem por obrigação se sobrepor aos corporativismos sectários. Fato difícil. Deve unir a todos em torno de algum sentimento comum.
Vinte e quatro séculos antes de Durkheim, Confúcio propunha à sociedade asiática a punição da não adesão à norma social através da vergonha. É conhecido o seu mandamento pelo qual, em adição às leis, deve-se conduzir pelo exemplo e pela honra. A alternativa à adesão estaria na vergonha e no exílio social. As práticas maoístas durante a Revolução Cultural exemplificam este processo.
A leitura diária dos jornais, entretanto, sugere que estamos distantes de nos beneficiarmos o necessário da restrição comportamental que advém da vergonha.
A cultura cristã, com o apoio intelectual de Santo Agostinho, institui, alternativamente, a punição pela culpa. É exemplo clássico de culpa cristã a visão de Teodósio, imperador de Roma, ajoelhando-se aos pés de Santo Ambrósio, bispo de Milão e tutor intelectual de Santo Agostinho.
Não tratamos aqui da culpa que deriva da consciência da não adesão à lei. A culpa à qual nos referimos é aquela inerente à formação civil, religiosa ou filosófica, que prescinde da norma legal.
A punição pela culpa tem a força de punir também a simples intenção. Isto lhe confere um papel inibidor da conduta antissocial potencialmente mais amplo que a vergonha. A vergonha pune apenas um subconjunto do que pune a culpa cristã.
Um terceiro elemento inibidor de individualismos exacerbados é o medo. É conhecida a frase de um florentino que queria revelar ao povo do início do século XVI como pensava a nobreza da época, mas que talvez tenha passado à história de forma diversa da que pretendia: “Se tiveres que decidir entre controlar pelo amor ou pelo medo, escolha controlar pelo medo”.
Exemplos modernos da tentativa de controle pelo medo são Stalin no século XX e os terroristas no século XXI.
A sociedade brasileira, ao longo do tempo, dá a impressão de beneficiar-se menos e menos das restrições sociais derivadas da vergonha e da culpa. Um dos motivos para isto é que a forte heterogeneidade social tem sido capaz, em episódios importantes, de viabilizar confusões coletivas nas quais a má conduta é vendida e aceita como um heroísmo à Robin Hood.
A restrição comportamental pelo medo, por outro lado, é clara nas comunidades carentes, onde o Estado se faz total ou parcialmente ausente. Nestas, a posse de arma é a posse da palavra, a gênese do medo e o exercício da lei.
No asfalto, impera cada vez mais o medo hobbesiano da guerra de todos contra todos, individualmente frustrante e socialmente vexante.
Às vezes, é preciso a uma sociedade reaprender os ensinamentos constituídos através de milênios. De Abraão a Confúcio, há inúmeras culturas das quais se podem derivar âncoras de civilidade e harmonia. Não se trata necessariamente de opção religiosa. Mas da necessidade de retomar o bom senso coletivo.
Clamor sem Justiça
Na sexta-feira, a ministra Cármen Lúcia disse que o Supremo Tribunal Federal não vai ignorar o “clamor por Justiça que hoje se ouve em todos os cantos do país”. No mesmo dia, a corte concedeu benefícios a dois políticos sob suspeita de corrupção. Permitiu que Aécio Neves volte ao Senado e libertou Rodrigo Rocha Loures, o deputado da mala.
Além do passe livre, Aécio ganhou elogios. Ao devolver o mandato e o passaporte do tucano, o ministro Marco Aurélio Mello anotou que ele tem “fortes elos com o Brasil”. “É brasileiro nato, chefe de família, com carreira política elogiável”, escreveu.
Em outra decisão individual, o ministro Edson Fachin soltou Rocha Loures. A defesa alegou que ele estaria trancado em “condições insalubres”. O ministro se sensibilizou e mandou o peemedebista para casa. Ele é um feliz morador do Lago Sul, bairro mais valorizado de Brasília.
O Planalto comemorou a libertação do deputado da mala. Filmado recebendo R$ 500 mil, Loures se sentia pressionado a dizer quem era o verdadeiro destinatário do dinheiro. Solto, ele fica mais distante de fechar um acordo de delação premiada.
Além do passe livre, Aécio ganhou elogios. Ao devolver o mandato e o passaporte do tucano, o ministro Marco Aurélio Mello anotou que ele tem “fortes elos com o Brasil”. “É brasileiro nato, chefe de família, com carreira política elogiável”, escreveu.
Em março, o senador foi gravado pedindo R$ 2 milhões a Joesley Batista. O empresário descreveu a transação como um repasse de propina. Na versão de Aécio, tratou-se apenas de um empréstimo sem registro oficial.
O Planalto comemorou a libertação do deputado da mala. Filmado recebendo R$ 500 mil, Loures se sentia pressionado a dizer quem era o verdadeiro destinatário do dinheiro. Solto, ele fica mais distante de fechar um acordo de delação premiada.
Nesta semana, Michel Temer se tornou o primeiro presidente a ser formalmente acusado de corrupção no exercício do cargo. Na noite seguinte, ele jantou na casa de Gilmar Mendes, o ministro do Supremo que o salvou no TSE. Sentaram-se à mesa Eliseu Padilha e Moreira Franco, também investigados na Lava Jato.
Na sexta-feira, Celso Jacob foi o único a marcar presença na Câmara. Condenado a sete anos, o peemedebista passa o dia no Congresso e a noite na Papuda, onde cumpre a pena no regime semiaberto. O deputado presidiário é um símbolo do Brasil em 2017, onde o “clamor por Justiça” enfeita discursos, mas não vale para todos.
Na sexta-feira, Celso Jacob foi o único a marcar presença na Câmara. Condenado a sete anos, o peemedebista passa o dia no Congresso e a noite na Papuda, onde cumpre a pena no regime semiaberto. O deputado presidiário é um símbolo do Brasil em 2017, onde o “clamor por Justiça” enfeita discursos, mas não vale para todos.
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