quinta-feira, 18 de maio de 2023

O inexorável

De umas poucas semanas para cá, o historiador israelense Yuval Harari escreveu um par de artigos afirmando que a inteligência artificial (IA) “hackeou” o “sistema operacional” da espécie humana. Tratase de uma metáfora: “sistema operacional”, aqui, significa linguagem. A máquina finalmente dominou nossas formas de expressão e comunicação – e o perigo que isso representa é inédito, colossal, maior do que qualquer outro que tenhamos conhecido antes.

Harari tece raciocínios com uma limpidez irresistível. Autor de best-sellers mundiais, como Homo Sapiens (publicado no Brasil pela Companhia das Letras), tem o dom de tornar palatáveis, acessíveis e até mesmo envolventes alguns dos mais excruciantes dilemas do nosso tempo. O primeiro dos artigos, originalmente publicado no The New York Times, foi traduzido em jornais brasileiros. O Estadão o estampou em suas páginas no dia 28 de março, com o título de O domínio da inteligência artificial sobre a linguagem é uma ameaça à civilização.

Pouco depois, o escritor liderou um abaixo-assinado transnacional pedindo uma trégua de seis meses nas pesquisas sobre inteligência artificial. Em seguida, voltou à carga com um novo texto, desta vez no semanário inglês The Economist (de 28 de abril), com a mesma mensagem: uma tecnologia capaz de se apossar da linguagem humana tem tudo para encilhar a humanidade inteira.

O argumento procede. Todos os mitos, todas as religiões e todas as culturas que existem ou já existiram sobre a face da Terra não são feitos de aminoácidos ou de cromossomos, mas de signos linguísticos. Esses signos vertebram o “sistema operacional” dos nossos sistemas de fé, da nossa expressão artística e da nossa identidade – são o tecido da nossa consciência. Logo, softwares e hardwares que se apropriem desse “sistema” poderão mandar em nós. Eis por que, na opinião de muita gente bem informada, a inteligência artificial se equipara aos armamentos nucleares em potencial destrutivo.

Mas isso não é nem a metade da missa de réquiem que mal começou. Se olharmos a questão de frente, notaremos que Yuval Harari poderia ter dito mais do que disse. O desenvolvimento do chamado machine learning, do big data e dos equipamentos autoprogramáveis segue um curso irrefreável. Nenhum abaixo-assinado poderá estancá-lo. O ponto de não retorno talvez já tenha ficado para trás.

Para entender a irreversibilidade do processo tecnológico, é bom nos lembrarmos daquele outro processo, o jurídico, tal como foi descrito por Franz Kafka. A despeito da existência ou não de provas, a trama judicial ia em frente, sem que ninguém lograsse detê-la. A tecnologia, como o direito, é uma criação humana. Diferentemente do direito, porém, fica mais forte à medida que se desumaniza e se liberta das pessoas.

Martin Heidegger pressentiu algo parecido quando falou do poder da técnica, na primeira metade do século 20. Trezentos anos antes, Thomas Hobbes notou que o Estado, possuído pelo monstro Leviatã, faria o que bem entendesse, contra quem quer que fosse. A sensação de que o engenho humano fabrica “monstros” que ganham vida própria não é nova. Adam Smith vislumbrou uma tal “mão invisível” puxando os fios do mercado. Karl Marx detectou um “sujeito automático” escondido em alguma reentrância entre a mercadoria e o capital.

A realidade lhes deu razão. A burocracia que Max Weber viu com uma ponta de otimismo logo se degradou em stalinismo e devorou seus pais, como se confirmasse a maldição do romance Frankenstein, de 1818, em que Mary Shelley retratou a criatura que subjuga o criador. Nas tragédias da Grécia Antiga, a fatalidade que não tinha governo atendia pelo nome de destino. Na modernidade, você pode chamá-la de inconsciente. O pensamento até entende o que contempla, mas não tem como impedir.

E aqui estamos nós, cara a cara com a inteligência artificial. A possibilidade de domá-la é exígua. Ela conseguiu o feito de retirar a linguagem humana do domínio dos falantes de carne e osso. Ela, a linguagem, que só podia existir através de nós, agora poderá viver além de nós. Não subestimemos o tamanho deste pequeno passo que será um grande salto para a tecnologia. O linguista Ferdinand de Saussure ensinou que aquele que inventa uma língua e a coloca em circulação perde o controle sobre ela. Em breve, poderemos perder o controle sobre as máquinas que aprenderam a falar a linguagem que era só nossa.

A inteligência artificial automatiza protocolos que eram humanos na origem e deles extrai predições eficazes, em escalas progressivamente mais velozes e mais agigantadas. Ela cresce e se complexifica dentro dos bunkers privados e opacos das big techs – ou dentro dos subterrâneos dos mais bem guardados segredos de Estado, também opacos. Não há força política na atualidade que consiga quebrar essas duas opacidades simultaneamente. Não, uma trégua de seis meses não vai resolver nada. Nossas chances são mínimas.

Olhe com ternura e compaixão para o mundo à sua volta, porque ele vai desaparecer num suspiro.

Pensamento do Dia

 


Agora pode-se chamar a ex-primeira-dama de MiCash

A certeza da impunidade produz episódios que, se estivessem num roteiro de filme, seriam considerados estapafúrdios. Só isso explica a declaração dada por Michelle Bolsonaro, segundo o advogado da família, Fabio Wajngarten, sobre usar o cartão de crédito em nome de uma amiga nos últimos dez anos: “meu marido sempre foi muito pão-duro“.

Coitada. Para não ter os gastos controlados pelo companheiro, Michelle teve que usar uma laranja e agora entra para as estatísticas. Uma em cada cinco mulheres fazem compras escondidas do parceiro, segundo levantamento da fintech Onze. Por outro lado, o site Gleeden, especializado em relações não monogâmicas, mostra que 59% dos maridos ocultam parte de suas finanças da esposa.

Tem até nome esse hábito de omitir como são gastos os recursos que teoricamente são do casal: infidelidade financeira. Uma situação difícil quando se tem um marido que anda com um escorpião no bolso, caso de Bolsonaro, segundo Michelle. Poderia ser pior.

Imagine ter as contas pagas por um sujeito suspeito de corrupção, que usa auxílio moradia para comer gente, embolsa parte dos salários dos funcionários e que pode ter se beneficiado dos contratos feitos por uma empresa com o governo federal para pagar os boletos da mulher. Pois é. Muito pior

E, convenhamos, chamar Bolsonaro de pão-duro? Um pouco exagerada, para não dizer mal-agradecida. Não é de hoje que jorra dinheiro na conta da ex-primeira-dama. Nunca soubemos por que Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, depositou R$ 89 mil em sua conta, entre 2011 e 2016. Em cheques, importante dizer.

Talvez agora Michelle se livre da alcunha conquistada no começo do governo do marido quando a lambança dos cheques veio a público. Micheque é coisa do passado, talvez já possa ser chamada de MiCash. Para que Pix, se dá para pagar as contas em dinheiro vivo?

Evasão tolerada

Por falta de lutar para acabar com a divisão do sistema escolar entre escolas senzala para os filhos dos pobres, em geral afrodescendentes, e escolas casa grande para os filhos dos ricos, em geral eurodescendentes, essa opção termina fazendo com que o sistema universitário tenha universidades senzala e universidades casa grande

Uma demonstração de nosso racismo institucional é o ensino de história esquecendo o papel dos negros e ignorando a riqueza da cultura africana na formação do Brasil. Esse é um racismo supremacista, mas há um racismo submisso que vem sendo imputado há séculos.

A reserva de vagas para ingresso na universidade tem uma finalidade positiva na luta contra o racismo, mas o debate visando reduzir exigências no conteúdo da disciplina de cálculo, nos cursos de engenharia, para diminuir a evasão de alunos cotistas tem um caráter negativo nessa luta, ao desviá-la para quebrar a desigualdade na educação de base.


As cotas são necessárias para ajudar a diminuir o racismo, mas não bastam e podem até agravar o racismo supremacista se não houver um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base. No lugar de lutar por isso, prefere-se compensar a desigualdade exigindo menos conhecimento de matemática para os "engenheiros cotistas".

Por falta de lutar para acabar com a divisão do sistema escolar entre escolas senzala para os filhos dos pobres, em geral afrodescendentes, e escolas casa grande para os filhos dos ricos, em geral eurodescendentes, essa opção termina fazendo com que o sistema universitário tenha universidades senzala e universidades casa grande para servir diferentemente aos alunos que vêm do sistema escolar dividido.

A luta imediata contra o racismo exige cotas que ajudem a mudar a cor da cara da elite brasileira dentro das universidades, como temos conseguido nos últimos anos. Mas basear-se nas cotas para alguns entrarem na universidade não acaba com o racismo se deixarmos para trás dezenas de milhões de analfabetos ou sem educação de base com qualidade.

A desigualdade na qualidade da educação de base é consequência do desprezo à educação e do acomodamento populista, unidos para enganar os pobres, afrodescendentes ou não. Prometemos diploma universitário, em vez de uma estratégia para implantar no Brasil um sistema de educação de base com a mesma qualidade, independentemente da renda, do endereço e da raça. Só essa igualdade eliminará o racismo supremacista e seu aliado, o racismo submisso.

Ao desprezar o direito de todos à educação de base com a mesma qualidade, tolera-se escola casa grande para quem pode pagar e escola senzala para os pobres, prometendo compensar as dificuldades que surgirão quando chegarem à universidade, mas sem quebrar o fundamento do racismo: a educação desigual na base.

A evasão escolar nos cursos de engenharia não vem da raça do aluno, vem da educação de básica deficiente dos pobres, quase todos negros, porque no Brasil a pobreza tem cor. Não é porque seus antepassados vieram da África, mas porque eles vieram de escolas ruins, sem qualidade no ensino de aritmética, álgebra, geometria e todas áreas do conhecimento, inclusive português.

A evasão não é decorrente da raça, mas da classe social que não permite receber uma boa educação de base. Porque, 135 anos depois da Abolição, o Brasil mantém seu sistema educacional dividido conforme a renda e o endereço do aluno. Reduzir exigências na disciplina de cálculo para engenheiros, depois na biologia para os médicos pode até aumentar o racismo, quando depois de formados seus beneficiários mostrarem menos preparo para as profissões do que os não cotistas.

O racismo institucional decorre sobretudo do rendismo educacional: toleramos que o filho do mais pobre — branco ou negro — estude em uma escola com menos qualidade que o filho do mais rico. Apesar disso, os movimentos antirracismo não fazem campanha pela erradicação do analfabetismo, mesmo sabendo que 80% dos adultos analfabetos são afrodescendentes; ainda menos lutam por um sistema único nacional público de educação de base, para ricos e pobres.

Um Brasil decente precisa hoje das cotas para ingresso na universidade, mas elas fracassarão como instrumento de luta contra o racismo se não vierem acompanhadas de uma estratégia para garantir educação de base com a mesma qualidade para todos. Sem as cotas, não enfrentamos o racismo, só com as cotas não acabamos com ele. Não basta levar alguns à casa grande universitária, é preciso acabar a senzala escolar.

O efeito da evasão de jovens estudantes de engenharia por falta de base em matemática é preocupante. E mais ainda é a evasão das crianças por falta de alfabetização na idade certa e falta de qualidade na escola.

Pensa-se que a terra é insensível


Vi um terreno
morto de vergonha
por estar exposto à venda
como escravo
que trouxesse preço
preso ao pescoço

Dom Hélder Câmara, "Meditações do padre José"

Fake words

Estamos submetidos a tantas e tão danosas Fake News (notícias falsas) que é bom pensar também nas Fake Words (palavras falsas); ambas nos enganam e, pois, não deveriam existir. Mas existem, e espalhá-las deveria merecer punição. Há, ainda, o que podemos designar com um pleonasmo: as Fake Illusions (falsas ilusões), pleonasmo porque ilusões, por definição, são falsas! Todas essas falsidades nos enganam e induzem a comportamentos pessoal e socialmente destrutivos e, pois, devem ser banidas. O problema é que ainda não se conhece a maneira ideal de identificá-las e eliminá-las, exceto educação, muita educação, capacidade de pensar criticamente e acesso a variadas fontes de informação. Regular a divulgação de falsidades é necessário, mas toda regulação é falha e carece de frequente atualização, assim como os métodos policiais precisam evoluir para enfrentar as novidades dos criminosos!

Uma fake word muito usada é “produzir”. Claro, quando se diz produzir um sapato, arroz, uma refeição ou camisa, de fato se está produzindo, não é fake. Mas quando se fala, como fazem a Petrobrás e a Vale, entre outros, em “produzir” petróleo ou minério de ferro, temos aí uma fake word, pois elas apenas extraem, jamais “produziram” ferro ou gás! Alguns tentarão justificar esse uso dizendo “é o jargão da indústria”! Assim fazendo, atestam que as indústrias nos enganam!!


Muitas outras indústrias usam fake words e apelam às fake illusions, como a automobilística, de refrigerantes e da moda. A publicidade mostra um carro enorme, cujo tamanho é um desperdício, passeando a altas velocidades em locais lindos, ou em cidades sem outros veículos, fazendo manobras arriscadas, e “vendendo” felicidade, como aquela que se diz conquistar ao abrir um certo refrigerante!! Ilusões, ilusões e mais ilusões e, em busca delas, comprometimento da renda pessoal, do clima, da biosfera e, por consequência, da nossa própria vida!

Mas, dizem-nos, devemos manter o rumo, pois ao final alcançaremos o “desenvolvimento”, palavra esta que passou a ser mais uma fake word: sem objetivos claros relativos à qualidade de vida, a promessa do “desenvolvimento” é uma miragem, tal qual o inexistente oásis que o sedento vê no deserto!

Há muitas outras falsidades, entre elas a falsa fé, que muitos dizem professar e, buscam, em essência, enganar fiéis, tirar-lhes o dinheiro. Nisso, assemelham-se àquelas indústrias que divulgam notícias falsas, palavras falsas e falsas ilusões, assim como economistas que prometem o “desenvolvimento” sem que se saiba, com precisão, qual o sentido da palavra!

Evitar essas falsidades, assim como promessas vãs, é fundamental para se alcançar o essencial: a melhoria da qualidade de vida dos 60% mais pobres e o fim da degradação ambiental!!

Fácil não é, mas é possível, necessário e urgente!!! Para tal, a educação é fundamental, e a regulação pode ajudar. Vejamos a qualidade da contribuição que o Legislativo e o Executivo darão, quando o PL das fake News se transformar em norma vigente e respeitada!!