sábado, 16 de julho de 2022
O Brasil de 2022 e a Alemanha de 1932
As similaridades entre o Brasil de 2022 e a Alemanha de 1932 são significativas. O assassinato de Marcelo Arruda do PT em Foz do Iguaçu pelo policial bolsonarista Jorge Guaranho, sem relação pessoal direta, lança luzes turvas sobre o futuro próximo de nosso país, em nítido assassinato político. A fala de Bolsonaro em “fuzilar a petralhada” estimula a polarização e o ódio, liberando as amarras que contêm os cidadãos nos limites da ética e da lei. Da mesma forma que no terrorismo, onde as amarras são soltas para os ataques individuais, dentro do escopo da ideologia predatória.
Tanto o Brasil como a Alemanha passaram por regimes democráticos e crises econômicas previamente à polarização e deterioração de suas instituições. Na Alemanha, a República de Weimar perdurou de 1918 a 1933. No Brasil, o período constitucional tem perdurado de 1989 a 2022. A Alemanha passou por forte recessão econômica após a Primeira Guerra, com hiperinflação em 1922 e perda da representatividade das elites tradicionais. O Brasil passou por forte recessão econômica em 2015 durante o impeachment de Dilma Rousseff, com a perda da representatividade do PT e do PSDB. Na Alemanha, Hitler com o discurso do ódio contra a comunidade judaica e o comunismo foi eleito em 1932 com 31% dos votos totais. No Brasil, Bolsonaro com o discurso do ódio contra a “velha política” e o PT foi eleito com 32% dos votos totais em 1º turno, 39% em 2º turno. Ambos com minorias provindas das classes médias iliteratas, sem voz na sociedade, base social do fascismo.
Na Alemanha, Hitler controlou as elites empresariais, o legislativo, e o judiciário, com a eliminação da imprensa, através da SS e do Exército. No Brasil, Bolsonaro tem pressionado as elites empresariais, o legislativo, e o judiciário, com êxito limitado, com ataques sucessivos à imprensa, sem o maior controle sobre a Polícia Federal e o Exército. No caso de derrota eleitoral, a tentativa da quebra da ordem institucional se pauta pelo estilo Trump da invasão do Capitólio, adicionado a grupos militares e paramilitares em favor do golpe. Existem diferenças entre militares no governo e militares no Exército. O Exército, em sua maioria, permanece legalista; no governo, menos legalistas. A normalidade democrática ou a quebra institucional dependerá dos erros, acertos e firmeza das diversas partes nos episódios que irão se seguir. O STF continua firme em suas funções constitucionais.
Tanto no Brasil como na Alemanha, as elites foram coniventes com o andamento político. As elites, no vislumbre de interesses imediatos, erroneamente acreditaram que o discurso do ódio somente significava estratégia eleitoral, vítimas após que foram daquilo que mal avaliaram. Elites fortes com valores definidos dão rumo a um país. Elites fracas desprovidas de valores podem deixar um país ir ao caos.
Tempos turvos no prenúncio dos tempos estranhos já prenunciados.
Na Alemanha, Hitler controlou as elites empresariais, o legislativo, e o judiciário, com a eliminação da imprensa, através da SS e do Exército. No Brasil, Bolsonaro tem pressionado as elites empresariais, o legislativo, e o judiciário, com êxito limitado, com ataques sucessivos à imprensa, sem o maior controle sobre a Polícia Federal e o Exército. No caso de derrota eleitoral, a tentativa da quebra da ordem institucional se pauta pelo estilo Trump da invasão do Capitólio, adicionado a grupos militares e paramilitares em favor do golpe. Existem diferenças entre militares no governo e militares no Exército. O Exército, em sua maioria, permanece legalista; no governo, menos legalistas. A normalidade democrática ou a quebra institucional dependerá dos erros, acertos e firmeza das diversas partes nos episódios que irão se seguir. O STF continua firme em suas funções constitucionais.
Tanto no Brasil como na Alemanha, as elites foram coniventes com o andamento político. As elites, no vislumbre de interesses imediatos, erroneamente acreditaram que o discurso do ódio somente significava estratégia eleitoral, vítimas após que foram daquilo que mal avaliaram. Elites fortes com valores definidos dão rumo a um país. Elites fracas desprovidas de valores podem deixar um país ir ao caos.
Tempos turvos no prenúncio dos tempos estranhos já prenunciados.
O poder das milícias
O psicanalista Bruno Bettelheim, ao recapitular o período em que esteve internado na condição de judeu em um campo de concentração nazista, afirma que nunca viu um soldado da SS (Schutzstaffel / Esquadrão de Proteção) gastar o tempo com maltratos aos prisioneiros – fora do horário de serviço. Com o que contestou as interpretações que apontam o sadismo como motivo para a conduta dos funcionários do Führer. Os estereótipos comportamentais não auxiliam no entendimento do fascínio despertado pela pulsão destrutiva do nazismo. O sentimento de dever imperioso pautava a tropa, que suspendia o juízo moral sobre o conteúdo do que os superiores determinavam fazer.
O neofascismo é um movimento de massas que se serve de tipos vários, entre os quais, o guarda penal que matou o militante do PT, Marcelo Arruda, após invadir a festa de aniversário do petista com gritos de apoio ao homo demens que desgoverna o país. Detalhe: estava de folga ao cometer o ignóbil assassinato. A violência catártica, somada às próximas, joga água no moinho das covardias anticonstitucionais. A contribuição do bolsonarismo à extrema direita é uma overdose irracional.
O verde-amarelismo neofascista abriga indivíduos de diferentes complexidades psicológicas. Coisa que confere um valor explicativo secundário às avaliações subjetivas. No vazio de utopias da chamada pós-modernidade, o que importa salientar é que o irracionalismo cava espaços em meio aos ressentidos de toda espécie. Isto é, entre os rebeldes a favor da ordem desigualitária. Estes, a exemplo do comandante Rudolf Hoess, responsável pelo extermínio de três milhões de pessoas em Auschwitz, mentem no testamento ao assegurar que nunca foram “homens com um mau coração”. Cabe aos que mantêm a capacidade de revolta, dos justos, pôr na coleira les bêtes humaines.
Uma militância de novo tipo despertou diante da incapacidade da democracia tradicional atender as demandas, represadas, por reconhecimento. Militância que não discute política, contenta-se com falar mal dos políticos e das instituições (partidos e parlamentos), e dos movimentos progressistas que lutam por justiça social, com empatia em relação ao sofrimento do povo. Trata-se de pequenos burgueses inseridos em uma cultura de hierarquias rígidas, dominantes na microfísica do poder conquanto subordinados na macrofísica da dominação – que descobriram no iliberalismo o elã do super-homem nietzscheano para justificar suas existências medíocres, mergulhadas na alienação.
Com a derrota na Segunda Guerra, o fascismo clássico foi pulverizado na Europa. Na Itália, a seguir, se reagrupou em torno da organização fundada com o sugestivo nome de Partido do Homem Comum (Uomo Qualunque). Na Alemanha, já em 1946, os grupos remanescentes do antissemitismo se concentraram no recém-criado Partido da Direita Alemã (Deutsche Rechtspartei). Em 1948, para surpresa geral, venceram as eleições em Wolfsburg (cidade onde funciona a Volkswagen, batizada em referência ao apelido de Hitler nos círculos militares, Wolf / Lobo), o que forçou as autoridades inglesas ocupantes a declarar nulo o pleito para a Prefeitura municipal. Em ambos os casos, as agremiações fizeram adaptações programáticas para sobreviver. Lobisomens voltam na lua cheia.
No Brasil, idem, com o esfacelamento do domínio colonial direto e a desagregação do escravismo, foi preciso redefinir o cosmo mental, moral e social em função do desenvolvimento do capitalismo e da inovadora esquadria de classes. Afloraram então outras formas econômicas de exploração e subalternização dos negros e mulatos. O racismo foi encoberto pelo mistificador “preconceito de não ter preconceito”, na expressão de Florestan Fernandes, no artigo “Nos marcos da violência”, in: A ditadura em questão (TAQ). Com efeito, sociedades estratificadas possuem uma massa de violência institucionalizada para legitimar a violência intersticial, oculta por trás dela. As dobras de estratificação persistentes nas mudanças estruturais necessitam trocar de roupa, rotinizar no cotidiano o novo direito positivo, dispersar pelo corpo social e unificar nos tentáculos do Estado.
Os atentados sob o fascismo histórico, assim como sob o colonialismo escravista, ancoravam-se nos poderes existentes em cada época. Em nenhuma das situações, acima, a violência se restringiu à dimensão simbólica. Foi aplicada brutalmente contra os corpos. Mesmo nas “comunidades políticas plenamente desenvolvidas”, para evocar Max Weber, o monopólio da violência nunca é absoluto. Existem modalidades que não partem do poder político e, por conseguinte, são consideradas “ilegítimas”, segundo o Oxford English Dictionary. Algumas, exercidas com a permissão velada ou com o estímulo escancarado do próprio Estado. Não significa que haja uma quebra do monopólio estatal da violência, senão a autorização do topo hierárquico aos particulares aficcionados do governo lesa-pátria e lesa-moralidade, em curso – para atos de agressão contra os oposicionistas.
Para o advogado Kakay, “a morte de Marcelo é retrato da violência que o presidente Bolsonaro impôs, e tem de ser responsabilizado por isso”. Ser vítima ou ser carrasco, são as opções colocadas na conjuntura hegemonizada por apelos contínuos à necropolítica. Em tal contexto, o filósofo Vladimir Safatle, conclui que o projeto bolsonarista é fazer de todo brasileiro um robô miliciano, indiferente à morte daqueles que são reputados como “inimigos”, a começar pelos identificados com os ideais do humanismo: “a milícia se torna o modelo fundamental de organização política”.
O Observatório da Violência Política e Eleitoral, integrado por pesquisadores do Grupo de Investigação Eleitoral (Giel), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), confirma a tese. Houve aumento de 23% no número de episódios violentos no primeiro semestre de 2022, em comparação com a eleição de 2020. São 214 casos, culminando no crime do Paraná, contra 174 há dois anos. A facilidade para compra de pistolas e fuzis e a abertura de Clubes de Tiro mecanizaram e industrializaram a violência, em escala jamais vista. Tudo legalizado pela Polícia Federal (PF).
Há mais armas entregues à sociedade do que às Forças Armadas, hoje. Um escândalo, aos olhos do processo civilizatório. Não aos de governantes que praticam a violência caleidoscópica: devastação ambiental, ataques à pesquisa científico-tecnológica e às universidades, depredação do patrimônio público, eliminação de direitos trabalhistas e previdenciários, desindustrialização, desemprego, fome e fake news. Compreende-se que Engels, na Situação da Classe Operária na Inglaterra (1845), avalizasse o reverso proletário que pregava “guerra aos palácios, paz às choupanas”.
Com efeito, o neofascismo é a face política da violência incrustada nas políticas baseadas no neoliberalismo, que orienta as ações sob a governança da dupla Bolsonaro / Guedes, em favor das classes proprietárias e do capital internacional. Não é por nada que ainda encontram sustentação na parcela do empresariado neocolonialista, incapaz de conciliar uma proposta de desenvolvimento econômico com os vetores da democracia e da soberania nacional. Fazem o serviço sujo, com gosto. Por igual, não é por nada que se rodeiam de militares sem luzes e sem a mínima noção intelectual, cívica ou geopolítica do que significa defender os interesses nacionais, num mundo globalizado.
Nesta perspectiva, o ódio social cumpre um papel estruturante na distopia sinalizada pela destruição simbólica e física: (a) dos sujeitos protagonistas por um mundo mais igualitário e; (b) dos alicerces econômicos (Petrobrás, Pré-Sal, Eletrobrás, Embraer, etc) para a edificação de um Estado de Bem-Estar Social. A intenção é impedir a materialização de uma república orientada para a felicidade da maioria, em vez de conduzida à cobiça privada. “O ódio é o substrato sensível dos protofascismos emergentes, na medida em que cauciona o estado de guerra permanente e inerente a essas formas de exacerbação autoritária, portanto, uma das principais figuras da disrupção atual da sociedade civil”, escreve com razão Muniz Sodré, em A sociedade incivil: mídia, iliberalismo e finanças (Vozes).
Vem do Nordeste a coragem e a consciência política, que se recusa aceitar o avanço da violência na “pátria amada”. Depois de ver a foto de um bolsonarista afixada, de maneira provocativa, na porta de seu gabinete na Assembleia Legislativa, com o gesto da arminha, uma deputada potiguara sentenciou. “Se eles querem nos meter medo, a gente se junta e se pinta de vermelho, ergue as nossas bandeiras, desfila nossas toalhas, põe adesivo no peito e honra a história de luta de Marcelo, de Dom, de Bruno, de Marielle, de todos os mortos pela intolerância política”, bradou a guerreira Isolda Dantas (PT/RN). Indignação na veia dos que se insurgem contra o poder das milícias.
O neofascismo é um movimento de massas que se serve de tipos vários, entre os quais, o guarda penal que matou o militante do PT, Marcelo Arruda, após invadir a festa de aniversário do petista com gritos de apoio ao homo demens que desgoverna o país. Detalhe: estava de folga ao cometer o ignóbil assassinato. A violência catártica, somada às próximas, joga água no moinho das covardias anticonstitucionais. A contribuição do bolsonarismo à extrema direita é uma overdose irracional.
O verde-amarelismo neofascista abriga indivíduos de diferentes complexidades psicológicas. Coisa que confere um valor explicativo secundário às avaliações subjetivas. No vazio de utopias da chamada pós-modernidade, o que importa salientar é que o irracionalismo cava espaços em meio aos ressentidos de toda espécie. Isto é, entre os rebeldes a favor da ordem desigualitária. Estes, a exemplo do comandante Rudolf Hoess, responsável pelo extermínio de três milhões de pessoas em Auschwitz, mentem no testamento ao assegurar que nunca foram “homens com um mau coração”. Cabe aos que mantêm a capacidade de revolta, dos justos, pôr na coleira les bêtes humaines.
Uma militância de novo tipo despertou diante da incapacidade da democracia tradicional atender as demandas, represadas, por reconhecimento. Militância que não discute política, contenta-se com falar mal dos políticos e das instituições (partidos e parlamentos), e dos movimentos progressistas que lutam por justiça social, com empatia em relação ao sofrimento do povo. Trata-se de pequenos burgueses inseridos em uma cultura de hierarquias rígidas, dominantes na microfísica do poder conquanto subordinados na macrofísica da dominação – que descobriram no iliberalismo o elã do super-homem nietzscheano para justificar suas existências medíocres, mergulhadas na alienação.
Com a derrota na Segunda Guerra, o fascismo clássico foi pulverizado na Europa. Na Itália, a seguir, se reagrupou em torno da organização fundada com o sugestivo nome de Partido do Homem Comum (Uomo Qualunque). Na Alemanha, já em 1946, os grupos remanescentes do antissemitismo se concentraram no recém-criado Partido da Direita Alemã (Deutsche Rechtspartei). Em 1948, para surpresa geral, venceram as eleições em Wolfsburg (cidade onde funciona a Volkswagen, batizada em referência ao apelido de Hitler nos círculos militares, Wolf / Lobo), o que forçou as autoridades inglesas ocupantes a declarar nulo o pleito para a Prefeitura municipal. Em ambos os casos, as agremiações fizeram adaptações programáticas para sobreviver. Lobisomens voltam na lua cheia.
No Brasil, idem, com o esfacelamento do domínio colonial direto e a desagregação do escravismo, foi preciso redefinir o cosmo mental, moral e social em função do desenvolvimento do capitalismo e da inovadora esquadria de classes. Afloraram então outras formas econômicas de exploração e subalternização dos negros e mulatos. O racismo foi encoberto pelo mistificador “preconceito de não ter preconceito”, na expressão de Florestan Fernandes, no artigo “Nos marcos da violência”, in: A ditadura em questão (TAQ). Com efeito, sociedades estratificadas possuem uma massa de violência institucionalizada para legitimar a violência intersticial, oculta por trás dela. As dobras de estratificação persistentes nas mudanças estruturais necessitam trocar de roupa, rotinizar no cotidiano o novo direito positivo, dispersar pelo corpo social e unificar nos tentáculos do Estado.
Os atentados sob o fascismo histórico, assim como sob o colonialismo escravista, ancoravam-se nos poderes existentes em cada época. Em nenhuma das situações, acima, a violência se restringiu à dimensão simbólica. Foi aplicada brutalmente contra os corpos. Mesmo nas “comunidades políticas plenamente desenvolvidas”, para evocar Max Weber, o monopólio da violência nunca é absoluto. Existem modalidades que não partem do poder político e, por conseguinte, são consideradas “ilegítimas”, segundo o Oxford English Dictionary. Algumas, exercidas com a permissão velada ou com o estímulo escancarado do próprio Estado. Não significa que haja uma quebra do monopólio estatal da violência, senão a autorização do topo hierárquico aos particulares aficcionados do governo lesa-pátria e lesa-moralidade, em curso – para atos de agressão contra os oposicionistas.
Para o advogado Kakay, “a morte de Marcelo é retrato da violência que o presidente Bolsonaro impôs, e tem de ser responsabilizado por isso”. Ser vítima ou ser carrasco, são as opções colocadas na conjuntura hegemonizada por apelos contínuos à necropolítica. Em tal contexto, o filósofo Vladimir Safatle, conclui que o projeto bolsonarista é fazer de todo brasileiro um robô miliciano, indiferente à morte daqueles que são reputados como “inimigos”, a começar pelos identificados com os ideais do humanismo: “a milícia se torna o modelo fundamental de organização política”.
O Observatório da Violência Política e Eleitoral, integrado por pesquisadores do Grupo de Investigação Eleitoral (Giel), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), confirma a tese. Houve aumento de 23% no número de episódios violentos no primeiro semestre de 2022, em comparação com a eleição de 2020. São 214 casos, culminando no crime do Paraná, contra 174 há dois anos. A facilidade para compra de pistolas e fuzis e a abertura de Clubes de Tiro mecanizaram e industrializaram a violência, em escala jamais vista. Tudo legalizado pela Polícia Federal (PF).
Há mais armas entregues à sociedade do que às Forças Armadas, hoje. Um escândalo, aos olhos do processo civilizatório. Não aos de governantes que praticam a violência caleidoscópica: devastação ambiental, ataques à pesquisa científico-tecnológica e às universidades, depredação do patrimônio público, eliminação de direitos trabalhistas e previdenciários, desindustrialização, desemprego, fome e fake news. Compreende-se que Engels, na Situação da Classe Operária na Inglaterra (1845), avalizasse o reverso proletário que pregava “guerra aos palácios, paz às choupanas”.
Com efeito, o neofascismo é a face política da violência incrustada nas políticas baseadas no neoliberalismo, que orienta as ações sob a governança da dupla Bolsonaro / Guedes, em favor das classes proprietárias e do capital internacional. Não é por nada que ainda encontram sustentação na parcela do empresariado neocolonialista, incapaz de conciliar uma proposta de desenvolvimento econômico com os vetores da democracia e da soberania nacional. Fazem o serviço sujo, com gosto. Por igual, não é por nada que se rodeiam de militares sem luzes e sem a mínima noção intelectual, cívica ou geopolítica do que significa defender os interesses nacionais, num mundo globalizado.
Nesta perspectiva, o ódio social cumpre um papel estruturante na distopia sinalizada pela destruição simbólica e física: (a) dos sujeitos protagonistas por um mundo mais igualitário e; (b) dos alicerces econômicos (Petrobrás, Pré-Sal, Eletrobrás, Embraer, etc) para a edificação de um Estado de Bem-Estar Social. A intenção é impedir a materialização de uma república orientada para a felicidade da maioria, em vez de conduzida à cobiça privada. “O ódio é o substrato sensível dos protofascismos emergentes, na medida em que cauciona o estado de guerra permanente e inerente a essas formas de exacerbação autoritária, portanto, uma das principais figuras da disrupção atual da sociedade civil”, escreve com razão Muniz Sodré, em A sociedade incivil: mídia, iliberalismo e finanças (Vozes).
Vem do Nordeste a coragem e a consciência política, que se recusa aceitar o avanço da violência na “pátria amada”. Depois de ver a foto de um bolsonarista afixada, de maneira provocativa, na porta de seu gabinete na Assembleia Legislativa, com o gesto da arminha, uma deputada potiguara sentenciou. “Se eles querem nos meter medo, a gente se junta e se pinta de vermelho, ergue as nossas bandeiras, desfila nossas toalhas, põe adesivo no peito e honra a história de luta de Marcelo, de Dom, de Bruno, de Marielle, de todos os mortos pela intolerância política”, bradou a guerreira Isolda Dantas (PT/RN). Indignação na veia dos que se insurgem contra o poder das milícias.
Bolsonaro quer a rota venezuelana
Qual é o projeto estratégico e de longo prazo do bolsonarismo? Responder a essa pergunta é decisivo para entender o sentido das próximas eleições. O caminho almejado por Bolsonaro é muito similar ao traçado na Venezuela chavista. É uma rota de destruição paulatina das instituições democráticas, substituindo-as por um modelo concomitantemente autocrático e populista, que reduz o controle independente sobre os governantes e mobiliza constantemente setores populares, inclusive por meio da violência, em apoio ao líder máximo. Não é possível saber se essa ideia vai vingar no Brasil, mas o atual presidente tentará, com todas as suas forças, alcançar esse objetivo.
À primeira vista, trata-se de uma grande ironia da história. Nas eleições de 2018 o bolsonarismo não cansou de dizer que o PT queria que o Brasil se transformasse na Venezuela. Aproveitava-se do fato de que os governos petistas tinham se imiscuído demais na política interna venezuelana, o que foi um erro enorme de política externa. Mas, observando mais atentamente a trajetória de Bolsonaro, desde aquela época já se percebia que ele tinha mais similaridades com Chávez do que qualquer outra liderança política.
Ambos têm origem militar e praticamente foram expulsos da instituição por seu personalismo golpista. Ideologicamente seguem um populismo autoritário no qual não há espaço para partidos nem para uma sociedade civil independente. Quando chegou ao governo, Bolsonaro aumentou ainda mais as similaridades em sua luta contra a Justiça e a imprensa, na campanha pelo armamento de seus aliados na sociedade e na política externa maniqueísta e isolacionista. Por fim, e mais importante: os dois optaram não pelo golpe clássico de Estado, mas sim por usar a democracia para jogar o povo contra as instituições - Chávez por meio de plebiscitos e Bolsonaro usando as redes sociais para insuflar uma revolta contra o sistema.
Evidentemente que haverá também dissonâncias entre essas duas figuras políticas, principalmente por conta da diferença de contextos. Bolsonaro tem uma ditadura militar prévia como base de suas ideias, ao passo que o chavismo criou o seu próprio modelo autocrático num país que tinha ficado imune da onda de regimes autoritários que assolaram a região entre as décadas de 1960 e 1980. Outras diferenças entre Brasil e Venezuela poderiam ser citadas, porém, o fato marcante é que ambos os líderes escolheram uma estratégia política similar de construir uma autocracia pela destruição e, ressalte-se, desmoralização paulatina do jogo democrático.
Embora admire muito Viktor Orbán, governante da Hungria, além de reverenciar Trump e Putin, o caminho bolsonarista é muito mais parecido com o do chavismo, por causa de peculiaridades sul-americanas e pelo perfil militar de seu líder. Assim, é possível listar cinco passos estratégicos desse modelo político.
O primeiro é o de construir o poder político com base numa lógica da violência. Há dois pilares aqui, o oficial e o informal, de modo a criar uma unidade (artificial) entre o Estado e o povo. No primeiro pilar está a conquista do apoio das Forças Armadas, tornando-as cúmplices do projeto, mas não comandantes dele, diferentemente do que ocorrera no Brasil no regime fundado em 1964.
Para conseguir isso, usa as benesses dos cargos e recursos públicos, o aumento do prestígio público - isso explica em boa medida a escolha do candidato a vice na chapa bolsonarista - e a criação ou reforço de um inimigo comum - no caso brasileiro, os “comunistas”, imaginariamente identificados como o PT. Bolsonaro e Chávez buscaram cooptar os militares para dizer que as armas são o árbitro final do conflito político, e não juízes ou qualquer ator civil.
A lógica da violência também está presente na campanha pelo armamento da população civil. Embora o discurso bolsonarista diga que todo cidadão pode e deve ter sua arma, o foco é o mesmo da Venezuela de Chávez: aumentar o poderio bélico de indivíduos (lobos solitários) e milícias favoráveis ao grande líder - ou mito. Neste caso, trata-se não só de somar o poderio estatal com o de grupos civis, mas também uma forma de seguro contra uma possível traição dos militares. O pensamento populista autoritário não confia completamente no Estado e precisa de seguidores extremistas e fanáticos para pressionar o poder formal.
O incentivo à ação direta e violenta de civis contra os inimigos é algo que Bolsonaro faz desde o início do seu mandato - como Chávez também o fizera. Neste sentido, os atentados políticos, como o de Foz de Iguaçu, uma tragédia terrível, não é a consequência mais grave. O pior pode vir não com lobos solitários, mas com milícias organizadas que sigam as ordens do líder máximo. Tais grupos provavelmente terão em suas camisas uma imagem do presidente fazendo a arminha com a mão.
A rota venezuelana vai além da lógica da violência e tem como segundo passo estratégico o enfraquecimento e a desmoralização dos controles democráticos dos governantes. Bolsonaro já conseguiu dominar completamente ou em boa medida algumas das instituições de fiscalização, como o Ministério Público Federal. Ainda não chegamos ao modelo autocrático chavista que hoje vigora sob a regência do presidente Maduro. Isso se deve principalmente a dois obstáculos: o controle judicial e o social.
No primeiro caso, a grande barreira à expansão do poder autocrático bolsonarista são o STF e o TSE. Não por acaso, o presidente brasileiro semanalmente mobiliza seu eleitorado pelas redes sociais contra os ministros da Suprema Corte. O objetivo é emparedá-los, para que não tomem nenhuma decisão que possa atrapalhar a reeleição ou adotem um comportamento neutro frente ao resultado eleitoral. Se houver reação dos juízes, há a ameaça de ações dos bolsonaristas ou das Forças Armadas contra o sistema eleitoral. Mesmo que não ocorra efetivamente, essa espada estará sobre a cabeça da cúpula do Judiciário brasileiro nos próximos meses.
Se conseguir vencer ou dar um golpe contra o sistema eleitoral, Bolsonaro vai repetir o modelo chavista: irá mudar o perfil majoritário dos ministros da Suprema Corte. Para construir um modelo autocrático populista, é preciso que não haja uma maioria de juízes independentes. Caso seja necessário, será mudado inclusive o tamanho do STF para gerar uma nova maioria.
O outro controle que é um obstáculo ao projeto estratégico do bolsonarismo é a sociedade civil independente. Tal como Chávez, desde o início do mandato há uma guerra aberta entre Bolsonaro e a imprensa. Para enfrentar isso, em parte apostou-se nas redes sociais, mas houve também uma cooptação, maior ou menor, de parte dos órgãos de comunicação. De todo modo, uma parcela importante da mídia não se curvou, e talvez a saída seja, pela ótica bolsonarista, formas mais severas de intervenção, que sempre aparecem como ameaças em discursos do próprio presidente da República. Além disso, há várias outras organizações sociais que são a maior barreira ao projeto autoritário populista, algumas inclusive com forte conexão internacional. Qualquer ação mais violenta nesse campo poderá gerar um enorme isolamento do país, com fortes impactos econômicos.
Dois outros passos estratégicos para a adoção do modelo chavista são criar uma nova Constituição e obter algum apoio externo para viabilizar a rota venezuelana. A revisão constitucional já aparece nas discussões dos grupos bolsonaristas do Telegram e de forma sub-reptícia nos próprios discursos do presidente. Afinal, o grande inimigo institucional do atual governo é o pacto social-democrata representado pela Constituição de 1988, que busca evitar a concentração de poderes.
Já o front externo é uma enorme preocupação dessa via populista autoritária, pois com certeza haverá pressões contra um golpe institucional no Brasil vindas da Europa e especialmente dos EUA, porque seria uma enorme derrota para a política externa americana ter uma segunda Venezuela no continente. Antecipando-se a isso, e percebendo uma possível mudança geopolítica no mundo, Bolsonaro já escolheu seu protetor: a Rússia de Putin. Já se ensaiam, inclusive, alguns discursos de cunho antiamericano.
Mas o passo decisivo é o de manter o poder presidencial a qualquer custo, usando os ensinamentos de Chávez. Há várias ações possíveis aqui: multiplicar o populismo eleitoral de maneira nunca vista, gerar uma enorme balbúrdia nas eleições (inclusive com atentados) e, no limite, usar algum tipo de golpismo para evitar a vitória da oposição. Bolsonaro não seguirá os manuais democráticos, e embora ele possa fracassar em suas ações, uma coisa precisa ser dita: o bolsonarismo só perde o controle do poder se houver um contra-ataque democrático.
O projeto de venezuelização do Brasil não são favas contadas. Ao contrário, muita coisa pode ser feita para evitá-lo, unindo partidos, juízes, militares, líderes da sociedade civil, a mídia, a comunidade internacional e o eleitorado mais pobre do país contra esse projeto autoritário populista de Bolsonaro. Contudo, é preciso mobilização desde já contra o golpismo, pois quem acredita que as instituições resolverão por inércia a situação política não entendeu o momento do país. Afinal, o que vem por aí será pior do que o atentado político de Foz do Iguaçu.
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