domingo, 6 de maio de 2018
Marolas e tsunami
No entanto, não apenas os ministros Gilmar, Lewandowski e Toffoli tentam neutralizar as confissões da Odebrecht. Há uma dificuldade geral de reconhecer sua importância. Inicialmente, foi descrita como um tsunami. Mas não era. Ela apenas castiga com ondas fortes não só o PT, mas também outros partidos, entre eles, PSDB e PMDB.
A delação da Odebrecht cruzou fronteiras e devastou a política tradicional na América do Sul. No Peru, por exemplo, praticamente todos os ex-presidentes foram atingidos, um deles caiu, outro foi preso por um bom período. Talvez a dificuldade de avaliar como a delação da Odebrecht bateu fundo seja uma espécie de constrangimento nacional pelo fato de o Brasil ter se envolvido oficialmente no ataque às democracias latino-americanas.
O escritor peruano Vargas Llosa afirmou que a delação da Odebrecht fez um grande favor ao continente. E disse também que Lula era um elo entre a empresa e os governos corrompidos. Nesse ponto, discordo um pouco. O esquema de corrupção que cruzou fronteiras não era apenas algo da Odebrecht com a ajuda de Lula. Era algo articulado entre o governo petista e a empresa. A abertura de novas frentes no exterior não se destinava apenas a aumentar os lucros da Odebrecht, embora isto fosse um elemento essencial. Dentro dos planos conjuntos, buscava-se também projetar Lula como líder internacional, ampliar a influência do PT em todas as frentes de esquerda que disputavam eleições.
A ideia não era apenas ganhar dinheiro, embora fosse, em última análise, o que mais importava. O esquema brasileiro consistia em enviar marqueteiros para eleger aliados, com o mesmo tipo de financiamento consagrado aqui: propina da Odebrecht. Da mesma forma como tinha se viabilizado na esfera nacional, o PT exportava seus métodos com um objetivo bem claro de ampliar seu poder de influência no continente.
Portanto, Lula não era simples emissário da Odebrecht. A empresa estava consciente de seu projeto de influência. Não sei se ideologicamente acreditava numa América Latina em que todos os governos fossem como o do PT. Mas certamente a achava a mais lucrativa e confortável das estratégias e se dedicou profundamente a ela. Uma das hipóteses que levanto para que o tema não fosse visto com toda a transparência é o constrangimento em admitir que através de seu presidente e de uma política oficial de financiamento o Brasil se meteu até o pescoço na degradação das democracias latinas. Algum dia, teremos de oficialmente pedir desculpas. Nossas atenuantes, no entanto, são muito fortes: foi a Lava-Jato que desmontou o esquema, e o uso do dinheiro foi um golpe nos contribuintes nacionais.
Esta semana, o Congresso decidiu que vamos pagar o crédito de R$ 1,1 bilhão à Venezuela e a Moçambique.
Subestimamos o papel do Brasil e pagamos discretamente as despesas da aventura. Gente fina é outra coisa.
Igualdade alimenta mercado
Quanto mais iguais são as pessoas, mais aumenta a produção; essa é a lógica atual; o capital precisa que todos sejamos iguais, até mesmo os turistas; o neoliberalismo não funcionaria se as pessoas fossem diferentesByung-Chul Han
A corrupção revolucionaria do PT
O PT teria feito apenas o que todos fizeram, não merecendo o destaque que lhe é dado, de recordista mundial na categoria.
O destaque, no entanto, é indiscutível – e mede-se em números. Corrupção, de fato, sempre houve em toda parte, mas a do PT atingiu níveis tais que quebrou as finanças do país.
Desdobrou-se, basicamente, em duas frentes: numa, a convencional, enriquecia os seus agentes; noutra, sem precedentes, financiava uma revolução, que, no limite, poria fim à própria nação, em nome de outra, denominada Pátria Grande.
Uma nação ideologicamente forjada, a partir de manobras de cúpula, sem que as respectivas populações dos países que a integrariam – América do Sul e Caribe – fossem jamais consultadas ou sequer informadas. Um dia amanheceriam em outro país.
A instância de planejamento estratégico e de execução de tal maracutaia era o Foro de São Paulo, criado em 1990, por Lula e Fidel Castro. Reunia partidos e entidades de esquerda do continente, nela incluídas organizações criminosas, ligadas ao narcotráfico, como as Farc (Colômbia) e o MIR (chileno). PCC e Comando Vermelho não lhe eram (e não lhe são) indiferentes, para dizer o mínimo.
O PT só chegaria ao poder federal doze anos depois, com Lula, mas, nesse período, amealhou gradualmente prefeituras e governos estaduais, que, em alguma medida, passaram a servir àquele projeto.
Uma vez na Presidência da República, o PT impôs-lhe um up grade, financiando-o por completo. Pôs a máquina governista a serviço da causa, depenando, entre outras estatais, Petrobrás, Eletrobrás, Caixa Econômica, Banco do Brasil e, sobretudo, BNDES.
Os desvios, somados, ultrapassam a casa dos trilhões. O TCU examina empréstimos irregulares ao exterior, pelo BNDES, em torno de R$ 1,3 trilhão. Nenhum deles cumpriu o imperativo constitucional de ser submetido à aprovação do Congresso.
Ao contrário, receberam tarja de ultrassecreto no BNDES, que captava esses recursos, não disponíveis em seus cofres, no mercado, pagando juros de 14,5% e cobrando do destinatário juros de 4%. A diferença, como de hábito, ficou por conta do contribuinte brasileiro.
Mesmo com essas facilidades, o país não se livrou do pior: o calote. Venezuela e Equador já avisaram que não irão pagar a conta, o que resultou em aumento da dívida interna nacional.
Além dos países do continente, a manobra beneficiou ditaduras africanas, contempladas com obras de infraestrutura empreendidas pelas empreiteiras nacionais que figuram no Petrolão (Odebrecht, OAS, Queiroz Galvão etc.), tendo Lula como lobista.
O resultado é a presente recessão, com mais de 14 milhões de desempregados e orçamento deficitário em mais de R$ 130 bilhões pelo terceiro ano consecutivo.
O PT quer pendurar essa conta no governo Temer que, no entanto, por mais que se esforçasse, não teria tempo de construir tal desastre. Aécio, Temer, Geddel, Eduardo Cunha são os corruptos convencionais, cuja escala é mensurável. Lula, José Dirceu et caterva são os corruptos revolucionários, sem limites e sem pátria.
Ruy Fabiano
Uma nação ideologicamente forjada, a partir de manobras de cúpula, sem que as respectivas populações dos países que a integrariam – América do Sul e Caribe – fossem jamais consultadas ou sequer informadas. Um dia amanheceriam em outro país.
A instância de planejamento estratégico e de execução de tal maracutaia era o Foro de São Paulo, criado em 1990, por Lula e Fidel Castro. Reunia partidos e entidades de esquerda do continente, nela incluídas organizações criminosas, ligadas ao narcotráfico, como as Farc (Colômbia) e o MIR (chileno). PCC e Comando Vermelho não lhe eram (e não lhe são) indiferentes, para dizer o mínimo.
O PT só chegaria ao poder federal doze anos depois, com Lula, mas, nesse período, amealhou gradualmente prefeituras e governos estaduais, que, em alguma medida, passaram a servir àquele projeto.
Uma vez na Presidência da República, o PT impôs-lhe um up grade, financiando-o por completo. Pôs a máquina governista a serviço da causa, depenando, entre outras estatais, Petrobrás, Eletrobrás, Caixa Econômica, Banco do Brasil e, sobretudo, BNDES.
Os desvios, somados, ultrapassam a casa dos trilhões. O TCU examina empréstimos irregulares ao exterior, pelo BNDES, em torno de R$ 1,3 trilhão. Nenhum deles cumpriu o imperativo constitucional de ser submetido à aprovação do Congresso.
Ao contrário, receberam tarja de ultrassecreto no BNDES, que captava esses recursos, não disponíveis em seus cofres, no mercado, pagando juros de 14,5% e cobrando do destinatário juros de 4%. A diferença, como de hábito, ficou por conta do contribuinte brasileiro.
Mesmo com essas facilidades, o país não se livrou do pior: o calote. Venezuela e Equador já avisaram que não irão pagar a conta, o que resultou em aumento da dívida interna nacional.
Além dos países do continente, a manobra beneficiou ditaduras africanas, contempladas com obras de infraestrutura empreendidas pelas empreiteiras nacionais que figuram no Petrolão (Odebrecht, OAS, Queiroz Galvão etc.), tendo Lula como lobista.
O resultado é a presente recessão, com mais de 14 milhões de desempregados e orçamento deficitário em mais de R$ 130 bilhões pelo terceiro ano consecutivo.
O PT quer pendurar essa conta no governo Temer que, no entanto, por mais que se esforçasse, não teria tempo de construir tal desastre. Aécio, Temer, Geddel, Eduardo Cunha são os corruptos convencionais, cuja escala é mensurável. Lula, José Dirceu et caterva são os corruptos revolucionários, sem limites e sem pátria.
Ruy Fabiano
Existe magistrado exemplar?
Não só existe, como conheci essa rara figura. Aliás, raríssima, de dar inveja (data venia) aos mais nobres magistrados. Não sei se era religioso; talvez sim, mas com uma generosa pitada de agnosticismo, que é o sal do niilismo moderno.
Sei que era francês. Eu o conheci nos meus primeiros dias de Paris, no inverno tenebroso de 1978. Passamos uma tarde inteira e uma parte da noite num café da rue Fouarre. Que magistrado incrível! Que exemplo de juiz de instrução, ainda mais neste tempo de privilégios, que há séculos é o tempo brasileiro.
Morávamos no mesmo bairro, onde ele nascera no século 19, quando a miséria em Paris saltava aos olhos, e os salteadores não davam trégua a ninguém: aristocratas decadentes, pequeno-burgueses e novos-ricos da burguesia.
Mal tomei o primeiro gole de café, percebi que a vaidade não era a paixão dominante do juiz. Mas essa modéstia é apenas uma entre muitas grandezas morais do velho senhor. Numa época remota, de guerras e extrema penúria, ele fora nomeado presidente de uma comissão para socorrer os indigentes e inválidos do nosso bairro. E então, o grande jurisconsulto, o percuciente criminalista cuja superioridade moral e profissional parecia aos colegas uma aberração, percebeu as verdadeiras causas dos resultados judiciários.
Contou que depois de ver tanta miséria e refletir sobre as cruéis necessidades que conduzem gradualmente os pobres a ações reprováveis, avaliou a longa luta pela sobrevivência de seus conterrâneos. Foi, enfim, acometido pela compaixão. Tornou-se uma espécie de São Vicente de Paula de crianças órfãs, de homens e mulheres que esmolavam e dormiam em calçadas, de famílias que procuravam abrigo ou um prato de sopa. Não entendia por que alguns colegas mandavam prender mães paupérrimas que furtavam ovos e pães para dar aos filhos famintos.
“Um juiz pode ser inflexível e, ao mesmo tempo, caridoso”, sentenciou. “Em alguns casos, a caridade deve contrariar a letra da lei, que é sempre fria, e não raramente ambígua, senão estúpida. De tanto confrontar a letra da lei com o espírito dos fatos, acabei percebendo o desacerto de aplicações violentas e espontâneas.”
Jean-Jules começou a exercer funções gratuitamente, sem qualquer ostentação. Agia em várias frentes: prevenia o crime, arranjava trabalho aos desempregados, distribuía com discernimento uma parte de seus próprios recursos. Dedicava o período matutino aos pobres, o vespertino aos criminosos, e o noturno aos trabalhos judiciários. Ninguém, no Tribunal do Sena nem em Paris, conhecia essa vida secreta do juiz Jean-Jules. Por não ser intrigante, muito menos bajulador e carreirista, era alheio às lutas internas do tribunal e ao “esprit de corps”, que ele julgava um mal maior.
“O esprit de corps dos três poderes republicanos é a desgraça do povo, meu jovem. Se você for advogado, lembre-se disso. Se for apenas cidadão, jamais se esqueça disso.”
Memorizei outras frases notáveis da nossa longa conversa, na verdade um monólogo. “Há ingratidões forçadas, jovem. Mas nenhum coração pode considerar-se grande semeando o bem para colher a gratidão.”
Ele falou durante mais de três horas, sem sucumbir à meia garrafa de poire gelado. Anoitecia no La Ruse, um café silencioso do quinto distrito. Talvez nem exista mais. A memória da voz, sim, sobreviveu. Citou um punhado de moralistas franceses, depois exaltou os iluministas, Rousseau à frente, e não sei quantos outros atrás.
Na luz baça do La Ruse via seus olhos acesos, suas imensas orelhas de abano, seu rosto sacerdotal, seu pescoço taurino que sustentava uma cabeça de bezerro, insípida de tão terna. A solidão no La Ruse e na vida nos deixara tête-à-tête. Ele parecia um fantasma vestido à moda antiga, olhando o poire na taça de cristal. E eu era apenas um jovem arquiteto expatriado, com poucas ilusões, e sem cinco francos para pagar uma dose de conhaque. Ah, grande e nobre magistrado: não fosse minha timidez, terias pago três, cinco, dez doses de conhaque. Uma garrafa inteira! Pagaste o café e um croissant, e eu ainda recebi de graça uma inesquecível aula de ética.
Na semana passada, quando bateu uma saudade do velho juiz Jean-Jules Popinot, reli a história dele na novela escrita por Balzac: A Interdição.
Um magistrado assim, tão exemplar, compassivo, só existe na ficção?
Em todo caso, leiam A Interdição, moços e moças de direito! Leiam vocês também, jovens e velhos juízes e procuradores. Há ficções, como O Processo, que valem mais do que mil códigos e tratados nesse mar de misérias e crueldades. Mas se lerem a noveleta de Balzac, já será alguma coisa. E se não apreciarem o livrinho, direi, como o Bruxo do Cosme Velho: “Pago-lhes com um piparote, e adeus”.
Sei que era francês. Eu o conheci nos meus primeiros dias de Paris, no inverno tenebroso de 1978. Passamos uma tarde inteira e uma parte da noite num café da rue Fouarre. Que magistrado incrível! Que exemplo de juiz de instrução, ainda mais neste tempo de privilégios, que há séculos é o tempo brasileiro.
Morávamos no mesmo bairro, onde ele nascera no século 19, quando a miséria em Paris saltava aos olhos, e os salteadores não davam trégua a ninguém: aristocratas decadentes, pequeno-burgueses e novos-ricos da burguesia.
Mal tomei o primeiro gole de café, percebi que a vaidade não era a paixão dominante do juiz. Mas essa modéstia é apenas uma entre muitas grandezas morais do velho senhor. Numa época remota, de guerras e extrema penúria, ele fora nomeado presidente de uma comissão para socorrer os indigentes e inválidos do nosso bairro. E então, o grande jurisconsulto, o percuciente criminalista cuja superioridade moral e profissional parecia aos colegas uma aberração, percebeu as verdadeiras causas dos resultados judiciários.
Contou que depois de ver tanta miséria e refletir sobre as cruéis necessidades que conduzem gradualmente os pobres a ações reprováveis, avaliou a longa luta pela sobrevivência de seus conterrâneos. Foi, enfim, acometido pela compaixão. Tornou-se uma espécie de São Vicente de Paula de crianças órfãs, de homens e mulheres que esmolavam e dormiam em calçadas, de famílias que procuravam abrigo ou um prato de sopa. Não entendia por que alguns colegas mandavam prender mães paupérrimas que furtavam ovos e pães para dar aos filhos famintos.
“Um juiz pode ser inflexível e, ao mesmo tempo, caridoso”, sentenciou. “Em alguns casos, a caridade deve contrariar a letra da lei, que é sempre fria, e não raramente ambígua, senão estúpida. De tanto confrontar a letra da lei com o espírito dos fatos, acabei percebendo o desacerto de aplicações violentas e espontâneas.”
Jean-Jules começou a exercer funções gratuitamente, sem qualquer ostentação. Agia em várias frentes: prevenia o crime, arranjava trabalho aos desempregados, distribuía com discernimento uma parte de seus próprios recursos. Dedicava o período matutino aos pobres, o vespertino aos criminosos, e o noturno aos trabalhos judiciários. Ninguém, no Tribunal do Sena nem em Paris, conhecia essa vida secreta do juiz Jean-Jules. Por não ser intrigante, muito menos bajulador e carreirista, era alheio às lutas internas do tribunal e ao “esprit de corps”, que ele julgava um mal maior.
“O esprit de corps dos três poderes republicanos é a desgraça do povo, meu jovem. Se você for advogado, lembre-se disso. Se for apenas cidadão, jamais se esqueça disso.”
Memorizei outras frases notáveis da nossa longa conversa, na verdade um monólogo. “Há ingratidões forçadas, jovem. Mas nenhum coração pode considerar-se grande semeando o bem para colher a gratidão.”
Ele falou durante mais de três horas, sem sucumbir à meia garrafa de poire gelado. Anoitecia no La Ruse, um café silencioso do quinto distrito. Talvez nem exista mais. A memória da voz, sim, sobreviveu. Citou um punhado de moralistas franceses, depois exaltou os iluministas, Rousseau à frente, e não sei quantos outros atrás.
Na luz baça do La Ruse via seus olhos acesos, suas imensas orelhas de abano, seu rosto sacerdotal, seu pescoço taurino que sustentava uma cabeça de bezerro, insípida de tão terna. A solidão no La Ruse e na vida nos deixara tête-à-tête. Ele parecia um fantasma vestido à moda antiga, olhando o poire na taça de cristal. E eu era apenas um jovem arquiteto expatriado, com poucas ilusões, e sem cinco francos para pagar uma dose de conhaque. Ah, grande e nobre magistrado: não fosse minha timidez, terias pago três, cinco, dez doses de conhaque. Uma garrafa inteira! Pagaste o café e um croissant, e eu ainda recebi de graça uma inesquecível aula de ética.
Na semana passada, quando bateu uma saudade do velho juiz Jean-Jules Popinot, reli a história dele na novela escrita por Balzac: A Interdição.
Um magistrado assim, tão exemplar, compassivo, só existe na ficção?
Em todo caso, leiam A Interdição, moços e moças de direito! Leiam vocês também, jovens e velhos juízes e procuradores. Há ficções, como O Processo, que valem mais do que mil códigos e tratados nesse mar de misérias e crueldades. Mas se lerem a noveleta de Balzac, já será alguma coisa. E se não apreciarem o livrinho, direi, como o Bruxo do Cosme Velho: “Pago-lhes com um piparote, e adeus”.
Um bico de pena para corações fortes
Quando digo “as pessoas” não me refiro a toda a sociedade e certamente não às camadas de menor renda e escolaridade. Estas padecem de severas limitações no tocante à compreensão das informações que recebem. Desse ponto de vista, não existe e nunca existiu uma sociedade homogênea e é por isso que as camadas médias e altas têm de arcar com uma parcela maior de responsabilidade no que diz respeito à manutenção de padrões razoáveis de racionalidade social. Afirmar o contrário, como diuturnamente fazem aqueles que se arvoram em críticos do “elitismo”, é mera demagogia. Mesmo os cidadãos mais informados e lúcidos às vezes se esquecem de que a destruição do que acabamos de construir pode ser rápida, mormente quando causada por erros palmares na condução da economia e dos negócios do Estado, como ocorreu no período de governo da sra. Dilma Rousseff.
Nas ciências humanas, uma constatação central na evolução do conhecimento histórico durante o século 20 foi a de que qualquer país, mesmo os mais adiantados, pode sucumbir a retrocessos gravíssimos (preciso lembrar o caso alemão?). Nos países que ainda se debatem com o desafio de criar condições aceitáveis de renda para a maioria da população, essa constatação assumiu um sentido simétrico: nada garante que progrediremos de forma natural e indefinida. Não chegaremos ao patamar social que almejamos nem mediante um sistema de planificação macroeconômico nem por obra e graça de uma mão invisível infinitamente benigna. Não há um bom porto previamente construído, pronto para nos dar as boas-vindas; haverá, talvez, se o soubermos construir, passo a passo, ou seja, operando para que a sociedade em que vivemos não se afaste demasiadamente de um padrão médio de racionalidade. Para nos convencermos disso, como antecipei, precisamos não só aspirar a um futuro melhor, mas também a aprender a temê-lo, quando começamos a perder até os elementos básicos da comunicação social, a linguagem da política, e todo senso de realidade.
Nosso poeta maior, Carlos Drummond, escreveu que no meio do caminho havia uma pedra. O Brasil não tem uma, tem muitas pedras, e pelo menos três delas deveriam estar bem nítidas em nosso radar coletivo: o impacto da corrupção no sistema político e os consequentes embates entre a Lava Jato e o STF; a natureza do PT e do lulismo como entidades políticas, responsáveis principais pelo rancor que vem corroendo até os fundamentos linguísticos do debate público; e, não menos importante, os ventos malignos que a caixa de Pandora da eleição presidencial tem o potencial de liberar.
Além de sua escala espantosa, a teia de corrupção desvendada nos últimos anos evidenciou, acima de qualquer dúvida, dois aspectos de nossa estrutura institucional que percebíamos, mas talvez não quiséssemos identificar em toda a sua crueza. De um lado, a desagregação praticamente total da organização partidária, que a esta altura não cumpre papel algum, nem mesmo o de prover ao público uma elementar sinalização das posições que se manifestarão na eleição de outubro. Há pesquisas indicando que metade do eleitorado não se dispõe a votar e a outra metade votará muito mais com os pés que com a cabeça, procurando o candidato ou candidata que melhor expresse sua cólera sobre tudo o que tem acontecido. E dado que a política abomina o vácuo, a “judicialização da política” atingiu níveis virtualmente impensáveis. Não só pela debilidade dos partidos e do Legislativo, claro, também pelo impacto da Lava Jato; mas como desgraça pouca é bobagem, o que estamos a presenciar diariamente é um STF ao mesmo tempo intervencionista e causticamente dividido internamente. Quatro ou cinco ministros parecem menos interessados em colocar a instituição na altitude arbitral que a Constituição lhe atribui do que em bloquear os avanços logrados no combate à corrupção.
O segundo ponto a considerar é a natureza do PT e do lulismo dentro de nossa história democrática e de nossa presente engrenagem institucional. Não se requer mais que um simples retrospecto dos 37 anos de existência do partido para concluir que ele se alimenta de uma ambiguidade constitutiva em relação à democracia representativa. Põe um pé dentro dela e outro fora, trocando-os conforme suas táticas e conveniências. Carece por completo de uma fundamentação doutrinária inteligível: tanto podemos qualificá-lo de marxista como de anarcossindicalista (segundo as Reflexões sobre a Violência, de Georges Sorel), como de uma agremiação que cultiva a política na forma dual recomendada pelo teórico pré-nazista Carl Schmitt: o “nós” contra “eles”, ou o amigo contra o inimigo. Esses traços já seriam graves, mas é preciso acrescentar que a inspiração soreliana implica uma paixão incontível pela ação direta, pelo desrespeito às instituições, na contestação das normas constitucionais vigentes, como temos visto seguidamente nos bloqueios de vias públicas e estradas e num persistente esforço de erosão das normas do convívio social.
Por último, mas não menos importante, a eleição de outubro, cujos contornos se apresentam nebulosos. O resultado, qualquer que seja o presidente escolhido, afetará profundamente o processo de recuperação econômica, podendo mesmo (queira Deus que não!) revertê-lo. Os melhores prognósticos que os economistas têm aventado para o quatriênio indicam um crescimento anual medíocre do PIB (2% talvez) e a dívida bruta do setor público chegando a 90% do PIB em 2021. E esse, entendamo-nos, é o mínimo necessário para podermos pensar num desempenho aceitável a partir daquela data.
Bolívar Lamounier
Além de sua escala espantosa, a teia de corrupção desvendada nos últimos anos evidenciou, acima de qualquer dúvida, dois aspectos de nossa estrutura institucional que percebíamos, mas talvez não quiséssemos identificar em toda a sua crueza. De um lado, a desagregação praticamente total da organização partidária, que a esta altura não cumpre papel algum, nem mesmo o de prover ao público uma elementar sinalização das posições que se manifestarão na eleição de outubro. Há pesquisas indicando que metade do eleitorado não se dispõe a votar e a outra metade votará muito mais com os pés que com a cabeça, procurando o candidato ou candidata que melhor expresse sua cólera sobre tudo o que tem acontecido. E dado que a política abomina o vácuo, a “judicialização da política” atingiu níveis virtualmente impensáveis. Não só pela debilidade dos partidos e do Legislativo, claro, também pelo impacto da Lava Jato; mas como desgraça pouca é bobagem, o que estamos a presenciar diariamente é um STF ao mesmo tempo intervencionista e causticamente dividido internamente. Quatro ou cinco ministros parecem menos interessados em colocar a instituição na altitude arbitral que a Constituição lhe atribui do que em bloquear os avanços logrados no combate à corrupção.
O segundo ponto a considerar é a natureza do PT e do lulismo dentro de nossa história democrática e de nossa presente engrenagem institucional. Não se requer mais que um simples retrospecto dos 37 anos de existência do partido para concluir que ele se alimenta de uma ambiguidade constitutiva em relação à democracia representativa. Põe um pé dentro dela e outro fora, trocando-os conforme suas táticas e conveniências. Carece por completo de uma fundamentação doutrinária inteligível: tanto podemos qualificá-lo de marxista como de anarcossindicalista (segundo as Reflexões sobre a Violência, de Georges Sorel), como de uma agremiação que cultiva a política na forma dual recomendada pelo teórico pré-nazista Carl Schmitt: o “nós” contra “eles”, ou o amigo contra o inimigo. Esses traços já seriam graves, mas é preciso acrescentar que a inspiração soreliana implica uma paixão incontível pela ação direta, pelo desrespeito às instituições, na contestação das normas constitucionais vigentes, como temos visto seguidamente nos bloqueios de vias públicas e estradas e num persistente esforço de erosão das normas do convívio social.
Por último, mas não menos importante, a eleição de outubro, cujos contornos se apresentam nebulosos. O resultado, qualquer que seja o presidente escolhido, afetará profundamente o processo de recuperação econômica, podendo mesmo (queira Deus que não!) revertê-lo. Os melhores prognósticos que os economistas têm aventado para o quatriênio indicam um crescimento anual medíocre do PIB (2% talvez) e a dívida bruta do setor público chegando a 90% do PIB em 2021. E esse, entendamo-nos, é o mínimo necessário para podermos pensar num desempenho aceitável a partir daquela data.
Bolívar Lamounier
Os pobres ricos
Do outro lado do Oceano Atlântico, na sisuda Alemanha, autoridades policiais divulgaram a ocorrência de 391.000 casos de furtos praticados em lojas ao longo de 2014, totalizando US$ 2,4 bilhões em prejuízos. Apurou-se, segundo as autoridades, que este é o perfil médio dos culpados: "crianças, adultos, idosos ou quem você quiser".
No Reino Unido, inicio pelo caso de David Davies. Aos 68 anos de idade, este senhor teve um ataque cardíaco. Foi carregado às pressas para um hospital. Enquanto as equipes de emergência tentavam ressuscitá-lo, seu relógio foi furtado! Vem daquele país, também, o caso de Harry Hankinson, sentenciado a 16 meses de prisão após ter cometido seu furto de número 521! Sim, foram 521 furtos cometidos em estabelecimentos os mais diversos. Há também o registro de duas crianças de três anos de idade surpreendidas furtando em lojas - uma prática que, no total, sangra a economia em robustos US$ 4 bilhões a cada ano.
Na Noruega, o padre John Olav Hodne teve sua carteira e celular furtados dentro da igreja de Melhus, enquanto lá realizava uma missa. Algo parecido aconteceu em Portugal, onde uma jovem fiel foi surpreendida afanando a caixa de doações de uma igreja. Em outro templo, no Japão, a vítima foi uma imagem de Buda. Na Bulgária furtaram um banheiro de uma rodovia - enquanto que na Rússia carregaram toda a pavimentação de outra. Na Turquia, uma ponte inteira. Na Jamaica, toda uma praia.
Vejam que só citei sociedades educadas e de bom nível econômico - estão fora os "furtos famélicos" praticados em comunidades miseráveis. No entanto, os números e exemplos chocam! Como explicá-los, em um mundo no qual é politicamente correto dizer-se que "o crime é fruto da pobreza"? Sim, como explicá-los diante destes pobre ricos?
Pedro Valls Feu Rosa
A morte dos invisíveis
Penso nisto enquanto acompanho a tragédia que se abateu sobre os sem-teto no centro de São Paulo. O incêndio, que começou na madrugada de terça (1/5), levou à implosão do prédio e de vidas.
O fogo durou algumas horas, de maneira tão avassaladora que comprometeu a estrutura do edifício. Em poucos segundos, tudo foi ao chão. Paredes e sonhos. Tijolos e histórias. Moradias e memórias.
Ninguém sabe, ao certo, quantas vidas foram perdidas.
É a tragédia dos invisíveis.
O drama daqueles que sobrevivem com o mínimo – de moradia, de alimento e de dignidade. São aqueles que queremos esquecer que existem.
Não aparecem em nossa realidade virtual, nas nossas páginas do Facebook e Instagram, porque queremos mesmo que sejam imperceptíveis. Queremos que não poluam nossas fotos porque, assim, só mostramos o que é lindo, agradável e harmonioso.
Daí, em um dia de maio qualquer, eles surgem. Escancaram a nossa realidade. Mostram nosso lado feio, egoísta, indiferente. Mostram a vida como ela é. A vida real.
Mais de 140 famílias viviam no prédio paulistano que pertencia à União. Apesar de ter sido invadido, pagavam aluguel a um sujeito responsável por manter o imóvel em ordem. Óbvio que nada era feito.
Imagine o estado de degradação do prédio para implodir em segundos. Imagine o estado de vida precário dos moradores diante dos possíveis problemas que lá havia. O lixo excessivo, por exemplo, é considerado um dos fatores para o alastramento do fogo.
Mas eles seguiam suas vidas anônimas, sobrevivendo diante do impensável, até que viraram notícia para mostrar quem somos. A tragédia fala dos sem-teto. Isso é óbvio. Mas fala também de nós.
A catástrofe aconteceu em São Paulo. Poderia ser Minas Gerais, no Rio de Janeiro, em Mato Grosso. Cerca de 6 milhões de brasileiros não têm onde morar, espalhados por todos os estados do Brasil. Certamente, vivem expostos ao perigo, em situação tão ou mais precária que os sem-teto da capital paulista.
Num dia qualquer de outono, os invisíveis surgem. De invisíveis, viram apenas números, estatísticas. Continuam sem identidade nem dignidade. Continuam sem rosto nem afeto. Continuam não sendo gente.
E nós, quando vamos olhar para o tipo de gente que somos?
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