segunda-feira, 23 de março de 2020
Quarentena não evita tragédia
Ainda subindo, a taxa italiana de mortes por 100 mil habitantes pela epidemia é mais de 30 vezes a sul-coreana, já estável. A espanhola, também em alta, corresponde a quase 20 vezes a do tigre da Ásia. Algo deu bastante errado na forma como Itália e Espanha lidaram com a doença.
As pessoas ficam em casa, mas em até 85% dos casos, segundo dados da China, o contágio ocorre no próprio ambiente familiar. Ter dado atenção a esse fato talvez explique parte da eficácia da estratégia asiática.
Além de decretarem restrições à mobilidade, lá as autoridades localizaram depressa as regiões quentes do espalhamento da epidemia e, dentro delas, os indivíduos infectados, que foram isolados inclusive, notadamente na experiência da China, de outros familiares saudáveis.
Fora dessa ilha, o bicho vai pegar. Fechar escola de rico faz sentido, mas despejar milhões de crianças, sem acesso à educação a distância nem à alimentação que recebiam nas escolas, em bairros populares densamente povoados e débeis em saneamento arrisca aumentar o caldo de transmissão imediata do vírus e da ignorância a longo prazo.
Outra atitude recomendada, inspirada em iniciativas asiáticas, é fazer busca ativa de infectados nas comunidades e isolá-los de lá. Cruzar os braços enquanto a doença se espalha nas áreas populosas desprotegidas vai produzir um grande desastre.
O Brasil tem alguns dias para tentar evitar a repetição, aqui, de um cenário italiano, só que desproporcionalmente penoso para os pobres.
Bolsonaro cava sua própria sepultura
A pesquisa feita por telefone em todas as capitais e no Distrito Federal mostra que 55% dos brasileiros consideram ótimo ou bom o desempenho do ministro da Saúde.
O desempenho dos governadores no combate ao coronavírus é muito parecido – 54%. Quanto ao presidente que arrisca a própria viva em defesa do povo, só 35% aprovam a sua conduta.
Quase 70% dos entrevistados reprovaram o gesto de Bolsonaro de recepcionar seus devotos na rampa do Palácio do Planalto. Foi durante a manifestação convocada contra o Congresso e a Justiça.
Ali, Bolsonaro foi duplamente irresponsável. Primeiro porque participou de um ato que ele mesmo desaconselhara. Segundo porque pôs em risco a vida dos manifestantes.
Ele acabara de voltar dos Estados Unidos. Trouxera na sua comitiva um auxiliar contaminado. Mais de um. Até aqui, foram 27 contaminados. E tocou em 272 pessoas. Que tal?
A primeira parte da pesquisa, publicada, ontem, pela Folha de São Paulo, mostrara que Bolsonaro está na contramão dos brasileiros ao se preocupar com mais com a economia do que com vidas.
92% das pessoas concordam com a suspensão de aulas, 94% aprovam a proibição de viagens internacionais e 92% apoiam o fechamento de fronteiras. Bolsonaro era contra tudo isso.
Em entrevista, nesse domingo, à TV Record, nervoso, gaguejando muito, Bolsonaro afirmou que julga “exagerados” os números sobre a pandemia divulgados pelo Ministério da Saúde.
Ora, ele não havia feito questão de dizer que seu time “está ganhando” por governar bem? E de lembrar que o técnico do time era ele? Suplicava por reconhecimento.
Numa hora dessas, como ele ousa pôr em dúvida o que anuncia um ministro escolhido por ele mesmo? Se o que informa Luiz Henrique Medetta não merece fé, por que Bolsonaro não o demite?
Não manda Mandetta embora porque ele não seria tão maluco a esse ponto. Mas o ministro está convencido de que será mandado embora antes do fim do ano. Não se incomodará se for.
Pesquisa IBOPE, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, quis saber quanto valeria o apoio de Bolsonaro e de outros líderes políticos a um candidato a prefeito da capital paulista.
O apoio de Bolsonaro diminuiria em 41% a vontade do eleitor em votar no candidato que ele apoiasse. O apoio de Lula, em 36%. O de João Doria, em 40%. E o de Geraldo Alckmin em 34%.
O apoio de Bolsonaro aumentaria em 17% a vontade do eleitor em votar no candidato dele. No caso do apoio de Lula, aumentaria em 26%. No de Doria, 9%. No de Alckmin, 10%.
Pesquisa XP-Ipesp, da última sexta-feira, conferiu que a popularidade de Bolsonaro recuou quatro pontos percentuais se comparada com a pesquisa de fevereiro último.
O processo de derretimento da imagem do presidente da República está correndo mais rápido do que ele próprio imaginara. Daí o seu pânico.
Será que começamos a nos sentir mais iguais diante do medo de uma nova guerra viral?
O mundo está passando por uma prova global de medo diante da nova epidemia viral que ameaça a todos por igual e que nos mostra que, para ela, não existem muros nem fronteiras. É um inimigo que domina o espaço e o tempo, e a humanidade não será a mesma depois deste enigma que ninguém é capaz de resolver. Se será melhor ou pior, dependerá de nós e de como sejamos capazes de entender sua mensagem.
O que é certo é que, de repente, ninguém se sente seguro diante desse mal invisível. Todos nós estamos igualmente desarmados. Pessoas importantes e simples, famosas e anônimas se veem forçadas a lavar igualmente as mãos, a cobrir comicamente o rosto e a sofrer a quarentena até amorosa imposta pelo temor do contágio. Todos sentem medo. Descobrimos ser igualmente vulneráveis diante de um inimigo invisível que não pede nossa identidade de gênero, política ou religiosa para nos atacar ou nos salvar. O presidente de um banco importante morre e seu motorista se salva. Morrem o político e o pedreiro, o crente e o ateu. O mundo, as coisas, a vida e seus velhos paradigmas estão mudando vertiginosamente, para nosso assombro.
Será que esta guerra sem nome servirá para algo? Será que nos fará mais humanos, com menos ódio, ou endurecerá ainda mais nosso coração? Nestas horas de angústia global em que as crianças nos olham com estranhamento, fazem-nos perguntas sem respostas e não entendem por que não podemos mais beijá-las, prefiro apostar que o vírus diabólico que chega sem bater à porta nos trará o paradoxo de nos ajudar a refletir se vale a pena cultivar no coração tantos ódios políticos, tanta vontade de acumular. Ele nos obriga a repensar nosso moderno e cruel capitalismo, assim como nos obriga a olhar nos olhos as vítimas da pobreza e o abandono dos discriminados. Desta vez, todos nós, sem distinção de posição social, sentimos medo e vulnerabilidade.
Talvez seja uma miragem, mas parece que alguma coisa já está mudando. Estamos, por exemplo, mais sensíveis ao que possa acontecer com nossa família e amigos. De repente, nós os sentimos mais próximos enquanto somos obrigados a nos distanciar fisicamente deles. Nunca tínhamos nos comunicado tanto através das redes para saber como estão aqueles que amamos ou que havíamos esquecido. Nunca estivemos tão distantes e com tanta vontade de estar juntos, de poder voltar a nos abraçar e a nos beijar sem medo.
É como se descobríssemos que somos mais iguais diante do perigo e se despertasse em nós um sentimento de compaixão que tínhamos esquecido. Eu mesmo vejo agora com uma ternura especial, por exemplo, aqueles que passam para coletar o lixo, os médicos e enfermeiros que também estão morrendo, os que não podem parar de descer das favelas para o asfalto porque precisam trabalhar, e fazem isso utilizando um transporte coletivo abarrotado, expondo-se mais do que ninguém ao contágio. Eles, os mais pobres, o novo proletariado da modernidade, serão certamente os que terão de suportar o fardo mais pesado da dor. Ainda vêm por aí muito desemprego −que atinge os mais fracos da cadeia social− e muito sofrimento. Ainda mais em um país como o Brasil, com tantos bolsões de pobreza e miséria e com milhões de pessoas sem serviços básicos de higiene.
Mas, ao mesmo tempo, estou sentindo que, embora as vozes mais estridentes do ódio político e religioso que infectou o Brasil não tenham se calado, começa a ser percebida nas redes sociais, assim como nos comentários dos leitores na imprensa, uma agressividade menor, como uma tentação de escutar e entender que, diante do medo da nova praga, precisamos nos unir em vez de nos dividir. Começamos a distinguir melhor o essencial do inútil que vamos acumulando na vida, assim como a importância de defender nosso planeta dos ataques que ameaçam sua existência.
É como se, de repente, uma parte da sociedade estivesse mudando de registro, deixando de ser raivosa e ofensiva e abraçando um desejo mais forte de comunhão, como se o novo inimigo começasse a derrubar as trincheiras levantadas pelas ideologias.
Esta epidemia que nos atingiu como um lúgubre e imprevisível fantasma da morte terá consequências políticas e sociais tanto mundiais como locais. Inclusive aqui no Brasil, um país que, além disso, não tem um líder à altura da gravidade do momento. Uma tragédia que nos afetará a todos também no campo humano e emocional. Será que sairemos deste inferno melhores ou piores? Será que teremos menos rancores, mais consciência de que todos nascemos nus e iguais, mais vontade de lutar, de agora em diante, por uma vida melhor para todos, de mãos dadas como em uma festa, menos apegados às coisas inúteis e supérfluas, ou continuaremos olhando um para o outro com olhos de sangue?
Meu pressentimento é o de que, se o vírus nos perdoar, sairemos desta com mais vontade de construir um mundo menos cruel, mais feliz e mais de todos, onde, como afirma o profeta Isaías, “as espadas se transformem em arados e os lobos possam conviver com os cordeiros”. E onde “nenhuma nação se levantará contra outra e ninguém mais se preparará para a guerra”.
Mantenhamos a raiva contra tudo que nos oprime e tenta nos alienar. Gritemos nossa indignação e angústia contra os tiranos do momento, porque essa raiva e esse grito são justos e terapêuticos. Mas devemos nos despojar do ódio e da violência que atingem principalmente os mais desamparados, e ser capazes de nos olhar mais nos olhos, sem medo. Talvez acabemos descobrindo que somos todos filhos da mesma luz e vítimas da mesma cegueira.
Juan Arias
O que é certo é que, de repente, ninguém se sente seguro diante desse mal invisível. Todos nós estamos igualmente desarmados. Pessoas importantes e simples, famosas e anônimas se veem forçadas a lavar igualmente as mãos, a cobrir comicamente o rosto e a sofrer a quarentena até amorosa imposta pelo temor do contágio. Todos sentem medo. Descobrimos ser igualmente vulneráveis diante de um inimigo invisível que não pede nossa identidade de gênero, política ou religiosa para nos atacar ou nos salvar. O presidente de um banco importante morre e seu motorista se salva. Morrem o político e o pedreiro, o crente e o ateu. O mundo, as coisas, a vida e seus velhos paradigmas estão mudando vertiginosamente, para nosso assombro.
Talvez seja uma miragem, mas parece que alguma coisa já está mudando. Estamos, por exemplo, mais sensíveis ao que possa acontecer com nossa família e amigos. De repente, nós os sentimos mais próximos enquanto somos obrigados a nos distanciar fisicamente deles. Nunca tínhamos nos comunicado tanto através das redes para saber como estão aqueles que amamos ou que havíamos esquecido. Nunca estivemos tão distantes e com tanta vontade de estar juntos, de poder voltar a nos abraçar e a nos beijar sem medo.
É como se descobríssemos que somos mais iguais diante do perigo e se despertasse em nós um sentimento de compaixão que tínhamos esquecido. Eu mesmo vejo agora com uma ternura especial, por exemplo, aqueles que passam para coletar o lixo, os médicos e enfermeiros que também estão morrendo, os que não podem parar de descer das favelas para o asfalto porque precisam trabalhar, e fazem isso utilizando um transporte coletivo abarrotado, expondo-se mais do que ninguém ao contágio. Eles, os mais pobres, o novo proletariado da modernidade, serão certamente os que terão de suportar o fardo mais pesado da dor. Ainda vêm por aí muito desemprego −que atinge os mais fracos da cadeia social− e muito sofrimento. Ainda mais em um país como o Brasil, com tantos bolsões de pobreza e miséria e com milhões de pessoas sem serviços básicos de higiene.
Mas, ao mesmo tempo, estou sentindo que, embora as vozes mais estridentes do ódio político e religioso que infectou o Brasil não tenham se calado, começa a ser percebida nas redes sociais, assim como nos comentários dos leitores na imprensa, uma agressividade menor, como uma tentação de escutar e entender que, diante do medo da nova praga, precisamos nos unir em vez de nos dividir. Começamos a distinguir melhor o essencial do inútil que vamos acumulando na vida, assim como a importância de defender nosso planeta dos ataques que ameaçam sua existência.
É como se, de repente, uma parte da sociedade estivesse mudando de registro, deixando de ser raivosa e ofensiva e abraçando um desejo mais forte de comunhão, como se o novo inimigo começasse a derrubar as trincheiras levantadas pelas ideologias.
Esta epidemia que nos atingiu como um lúgubre e imprevisível fantasma da morte terá consequências políticas e sociais tanto mundiais como locais. Inclusive aqui no Brasil, um país que, além disso, não tem um líder à altura da gravidade do momento. Uma tragédia que nos afetará a todos também no campo humano e emocional. Será que sairemos deste inferno melhores ou piores? Será que teremos menos rancores, mais consciência de que todos nascemos nus e iguais, mais vontade de lutar, de agora em diante, por uma vida melhor para todos, de mãos dadas como em uma festa, menos apegados às coisas inúteis e supérfluas, ou continuaremos olhando um para o outro com olhos de sangue?
Meu pressentimento é o de que, se o vírus nos perdoar, sairemos desta com mais vontade de construir um mundo menos cruel, mais feliz e mais de todos, onde, como afirma o profeta Isaías, “as espadas se transformem em arados e os lobos possam conviver com os cordeiros”. E onde “nenhuma nação se levantará contra outra e ninguém mais se preparará para a guerra”.
Mantenhamos a raiva contra tudo que nos oprime e tenta nos alienar. Gritemos nossa indignação e angústia contra os tiranos do momento, porque essa raiva e esse grito são justos e terapêuticos. Mas devemos nos despojar do ódio e da violência que atingem principalmente os mais desamparados, e ser capazes de nos olhar mais nos olhos, sem medo. Talvez acabemos descobrindo que somos todos filhos da mesma luz e vítimas da mesma cegueira.
Juan Arias
Em quarentena
Temos visto de tudo nesses tempos de peste à solta. Gente sendo solidária à força. Gente doente só de se ver tolhida em suas vontades e vantagens. Também uns santos na linha de frente socorrendo os esquecidos pelas ruas. E ainda os consortes da peste, a postos para recrudescer o surto, como aquele assassino do poema de Carol Ann Duffy, que, estando farto de ser ignorado, enfim resolve mostrar seu poder de influir no mundo.
Em sacadas e janelas, as pessoas cantam, tocam sanfona, batem panela, gritam. Paralelamente à angústia humana, a natureza agradece, reverdece, leva peixes e cisnes para os canais de Veneza, abre o céu da China para um inominável azul. Ruminamos lições de comunidade experimentando a carne e o nervo de palavras tantas vezes manipuladas mal e porcamente. O amor em mínimos cuidados táteis. O respeito pelos outros ao nos tornarmos quase invisíveis para eles. A gentileza na suspensão de muitos gestos corriqueiros, a gentileza rompendo a casca da palavra gentileza.
No Egito, o medo desce o Nilo. Na Polônia, os velhos não são esperados nas missas de domingo. Em Bangladesh, o temor é mais espesso nos campos de refugiados rohingyas, que sobrevivem de orações e da misericórdia alheia. Na Tailândia, macacos se engalfinham por comida. Fecharam o Taj Mahal, o santuário de Lourdes, a Estátua da Liberdade. O papa abençoa a Praça de São Pedro vazia. Na Espanha, os touros permanecem vivos. Estão cancelados o abraço da paz, as mãos dadas no Pai Nosso, a hóstia na boca.
As campanhas de alento público aos isolados são pela leitura de bons livros, sessões domésticas de filme e música, mas o que fazer se a mente tem o olho cravado nos fatos se sucedendo a uma velocidade indomável, e o olho tem a alma posta nas dores possíveis dentro de cada casa, nos pequenos pesadelos pessoais impublicáveis dentro do grande pesadelo comum? Há gente que está rezando pela primeira vez depois de décadas. Gente que talvez desse tudo por um sorriso de Buda, ainda que fruto de loucura. Também loucos esperando normalmente. De fato, temos visto de tudo nesses tempos.
Mariana Ianelli
Crise coronavírus: prefeituras podem virar o jogo
O impacto da covid-19 em nossos hospitais será tremendo. O Brasil já não tem capacidade hospitalar suficiente para atender o quadro sanitário existente. Persistem em nosso território os desertos sanitários: são ao todo cento e vinte três regiões sanitárias sem nenhum leito em UTI. O aumento de demanda por leitos ocasionado pelo coronavírus agrava essa situação e exigirá um aumento significativo da produção hospitalar. O Instituto de Estudos de Políticas de Saúde (IEPS) estima que cada um por cento de população infectada corresponderá a um bilhão de reais de gastos em hospitalizações adicionais em unidades de tratamento intensivo. Com a declaração do estado de calamidade, o Tesouro está livre para fazer este investimento, sem dúvida de alto retorno social e humanitário.
Existem outras e rápidas medidas que podem contribuir para limitar os danos da pandemia. No topo da lista está o distanciamento social. Evidências demonstram que tal medida é capaz de achatar a curva de contágio da epidemia, o que minimizaria o número de casos graves desatendidos.
No entanto, é ilusório acreditar que o terço mais pobre do Brasil, composto de pessoas que ganham menos de meio salário mínimo, deixará de circular nas cidades só com decretos impositivos, toques de recolher e outras medidas de vigilância. É necessário garantir um mínimo de assistência para compensar a extraordinária perda de renda causada pelo distanciamento social. E é necessário fazer isso já. O governo federal tem as condições de injetar recursos na economia ainda nesta semana, diretamente a mais de setenta milhões de brasileiros. O Brasil dispõe de uma base de dados organizada com informações que identificam esses indivíduos – o Cadastro Único, que lista beneficiários de todos os programas sociais focados nas famílias de baixa renda. Ao abarcar os indivíduos listados no Cadastro Único, sem necessidade de triagem adicional, o governo federal poderá evitar importantes custos e demoras de implementação.
Essas medidas de apoio socioeconômico contribuirão imediatamente ao controle do contágio. Mas elas não são suficientes: é fundamental que sejam complementadas com esforços na triagem e organização do atendimento hospitalar. Nesse sentido o SUS é fundamental, com sua rede de Atenção Básica resolutiva, cuja responsabilidade compete aos municípios. No momento, existe grande disparidade na capacidade de resposta por parte das prefeituras.
É fundamental que elas comecem a trabalhar de maneira coordenada, cumprindo um mínimo de repertório de ações. O IEPS preparou um check list de enfrentamento à covid-19 direcionado aos municípios, prevendo ações de rápida implementação em quatro dimensões essenciais. O protocolo indica como as prefeituras podem orientar suas ações a partir dos dados e evidências existentes; adaptar a organização dos serviços de saúde; fortalecer a prevenção através da comunicação com a população; e, por fim, reformular estratégias de gestão instaurando uma cadeia de comando e controle eficiente durante o período de crise. Não há tempo a perder: se quisermos evitar o total colapso do sistema hospitalar do país dentro de um mês, é necessário que governo federal e as prefeituras implementem essas ações esta semana.
Armínio Fraga, Miguel Lago e Rudi Rocha, respectivamente presidente do Conselho, diretor-executivo e diretor de pesquisa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde
#ForaPopulismo
Populismo é uma praga. Devasta países, asfixia a democracia, escraviza povos. Uma peste indomável, disseminada igualmente pela direita e pela esquerda. Nas crises, a capacidade destrutiva dos populistas fica ainda mais escancarada. Indisfarçável, explode diante da mais grave pandemia global dos tempos modernos.
“Estão fazendo uso político do vírus porque temos eleições”, diz o esquerdista Andrés Manuel López Obrador, presidente do México, que, assim como o ultradireitista Jair Bolsonaro, se lançou nos braços da galera no último domingo, descumprindo os alertas sanitários de seu próprio governo. Autoproclamando-se como corajosos e homens “do povo”, ambos colocaram em risco a rede de proteção tão difícil de tecer quando o vírus terrível e desconhecido ataca.
Duas frases, a de López Obrador, “Insisto que vamos muy bien e que tenemos fortaleza”, e a de Bolsonaro, “Nosso time está ganhando de goleada”, bastam para demonstrar o quanto a fé populista ultrapassa a montanha ideológica. Um e outro creem que darão conta do recado com mensagens ufanistas, animadoras para a torcida, mas insuficientes para inspirar segurança aos seus compatriotas temerosos de perder empregos, amigos, familiares e a própria vida.
A desidratação do apoio nas redes sociais de ambos, uma morte, a primeira no México, e panelaços espontâneos em várias capitais brasileiras uma noite antes da data convocada mudaram o tom. López Obrador correu a assinar um acordo de fechamento parcial de fronteira com Donald Trump, um ex-cético quanto os danos do vírus que se converteu depois de contabilizar perdas eleitorais, e, como faz todo populista, começou a desdizer o que dissera dias antes.
A primeira delas foi um desastre. À lida errática de máscaras de proteção que proporcionou a cena emblemática do presidente colocando-a sobre os olhos e depois pendurando-a na orelha, à completa ausência de assepsia, tudo traduzia a dimensão da desordem, da incompetência. Coube questionar: se nem mesmo uma mesa para uma entrevista (que deveria ter sido online) eles sabem organizar, como crer que conseguirão enfrentar o que está por vir?
Mesmo com anúncio de medidas importantes, várias delas de alívio imediato para pequenos e médios empreendedores e para o trabalhador informal, a entrevista mais fragilizou do que fortificou o governo. Bolsonaro, que vira e mexe critica todos por politizar a pandemia, só fez politizá-la, chegando até mesmo a convocar um panelaço em sua defesa. Como se panelas, símbolos do contra, batessem em favor de algo.
Pior: o ministro Mandetta, reconhecido pela competência na proa de combate ao surto, perdeu tamanho e firmeza. Teve, por vezes, de defender o indefensável, contrariando suas próprias recomendações, para atender ao chefe, como no episódio das máscaras.
Na sexta-feira, Bolsonaro quase conseguiu parecer levar tudo a sério. Mas como populista que é, se traiu no final: “Depois de uma facada não há de ser uma gripezinha que vai me derrubar”. Com uma frase, uma única frase, jogou no lixo todo o árduo trabalho de prevenção, minimizando a gravidade da pandemia que, segundo Mandetta, só será domada a partir de julho com estabilização em setembro.
“Estão fazendo uso político do vírus porque temos eleições”, diz o esquerdista Andrés Manuel López Obrador, presidente do México, que, assim como o ultradireitista Jair Bolsonaro, se lançou nos braços da galera no último domingo, descumprindo os alertas sanitários de seu próprio governo. Autoproclamando-se como corajosos e homens “do povo”, ambos colocaram em risco a rede de proteção tão difícil de tecer quando o vírus terrível e desconhecido ataca.
Duas frases, a de López Obrador, “Insisto que vamos muy bien e que tenemos fortaleza”, e a de Bolsonaro, “Nosso time está ganhando de goleada”, bastam para demonstrar o quanto a fé populista ultrapassa a montanha ideológica. Um e outro creem que darão conta do recado com mensagens ufanistas, animadoras para a torcida, mas insuficientes para inspirar segurança aos seus compatriotas temerosos de perder empregos, amigos, familiares e a própria vida.
Únicos presidentes a desdenhar do perigo, Bolsonaro e López Obrador passaram dias desfiando besteiras sobre o novo coronavírus. Histeria virou palavra-chave de Bolsonaro ao fazer pouco das medidas restritivas indicadas por seu ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, e praticadas por governadores e prefeitos cientes da velocidade e dos danos do surto.
O mexicano também não quis saber dos seus técnicos. Incentivou a participação popular em um plebiscito que ocorre neste fim de semana – o que agora diz que não fez -, garantiu que não vai impedir o turismo, muito menos cancelar eventos. Criticou políticos e, claro, jornalistas e “colunistas de TV”. Não é fácil viver em um país com um presidente assim.
A desidratação do apoio nas redes sociais de ambos, uma morte, a primeira no México, e panelaços espontâneos em várias capitais brasileiras uma noite antes da data convocada mudaram o tom. López Obrador correu a assinar um acordo de fechamento parcial de fronteira com Donald Trump, um ex-cético quanto os danos do vírus que se converteu depois de contabilizar perdas eleitorais, e, como faz todo populista, começou a desdizer o que dissera dias antes.
Bolsonaro também tentou firmar pé. Depois de ver seu desafeto João Doria falar diariamente com a imprensa - o primeiro desses encontros ao lado do ministro Mandetta provocou um misto de ciúme e ódio no presidente -, ele decidiu organizar coletivas diárias com os jornalistas, representantes da mesma mídia que ele execra dia sim, outro também.
A primeira delas foi um desastre. À lida errática de máscaras de proteção que proporcionou a cena emblemática do presidente colocando-a sobre os olhos e depois pendurando-a na orelha, à completa ausência de assepsia, tudo traduzia a dimensão da desordem, da incompetência. Coube questionar: se nem mesmo uma mesa para uma entrevista (que deveria ter sido online) eles sabem organizar, como crer que conseguirão enfrentar o que está por vir?
Mesmo com anúncio de medidas importantes, várias delas de alívio imediato para pequenos e médios empreendedores e para o trabalhador informal, a entrevista mais fragilizou do que fortificou o governo. Bolsonaro, que vira e mexe critica todos por politizar a pandemia, só fez politizá-la, chegando até mesmo a convocar um panelaço em sua defesa. Como se panelas, símbolos do contra, batessem em favor de algo.
Pior: o ministro Mandetta, reconhecido pela competência na proa de combate ao surto, perdeu tamanho e firmeza. Teve, por vezes, de defender o indefensável, contrariando suas próprias recomendações, para atender ao chefe, como no episódio das máscaras.
Na sexta-feira, Bolsonaro quase conseguiu parecer levar tudo a sério. Mas como populista que é, se traiu no final: “Depois de uma facada não há de ser uma gripezinha que vai me derrubar”. Com uma frase, uma única frase, jogou no lixo todo o árduo trabalho de prevenção, minimizando a gravidade da pandemia que, segundo Mandetta, só será domada a partir de julho com estabilização em setembro.
O presidente que exortou as pessoas a encher a sua bola – “o time está ganhando, vamos fazer justiça, vamos elogiar seu técnico, e seu técnico se chama Jair Bolsonaro” – convocou vaias para si. Oxalá os panelaços destas noites sejam ouvidos por ele e por todos os que em nome do povo desprezam o povo. #ForaPopulismo.
A doença como metáfora
Os maiores inimigos da cura são a ignorância e a irracionalidade. No inicio da Aids, não foram poucos os que a atribuíram a um castigo divino pelos pecados dos homens. Era como uma praga, que, além da condenação à morte, transformava as vítimas em culpados. A luta contra o preconceito foi ainda mais dura do que contra o vírus, que, ao longo do tempo, foi sendo vencido pela ciência, e hoje os soropositivos podem levar uma vida (quase) normal. Mas o preconceito continua vivo, estimulado pelo conservadorismo, pelas igrejas e pela ignorância.
Não por acaso, o bispo Macedo atribuiu ao demônio a pandemia da Covid-19, mas até ele achou demais uma “pandemonia” e apagou o post, não porque mudou de ideia, mas porque pegou mal. Seu sobrinho Crivella certamente acredita nisso. E Bolsonaro está crente que é uma conspiração chinesa para dominar o mundo, mesmo que o maior prejudicado final seja a própria China, no que seria um tiro em três bilhões de pés.
Não por acaso, o bispo Macedo atribuiu ao demônio a pandemia da Covid-19, mas até ele achou demais uma “pandemonia” e apagou o post, não porque mudou de ideia, mas porque pegou mal. Seu sobrinho Crivella certamente acredita nisso. E Bolsonaro está crente que é uma conspiração chinesa para dominar o mundo, mesmo que o maior prejudicado final seja a própria China, no que seria um tiro em três bilhões de pés.
Ficar isolado em casa, sorte de quem tem família e comida, é um bom momento para refletir sobre valores além das cifras. A solidariedade, a compaixão, a tolerância, a generosidade, o desapego, a paciência e, sim, o amor que os inspira. Bom tempo para aprender a conviver consigo mesmo, a gostar de sua companhia, a não confundir solidão com abandono. Ligar as pessoas é o mais nobre dos serviços da era digital.
A grande lição da doença é a humildade. Com todo o seu poderio, seu dinheiro, suas armas, seus exércitos, sua ciência, seus deuses, a civilização foi ameaçada por um viruzinho vagabundo em um ataque aleatório de alto poder destrutivo.
O lado bom é que, no pior momento, a humanidade está mostrando o seu melhor. Na era da intolerância, até as guerras digitais parecem ter dado uma trégua. Mas Bolsonaro se acha imune a qualquer vírus e, mesmo se for contaminado, dará uma banana para a doença porque sobreviveu a uma facada e se tornou imortal. O maior perigo é que o vírus seja infectado por Bolsonaro e se torne um #bolsovirus altamente contagioso.
Vamos vencer a batalha? Depende
Deu a louca no presidente Bolsonaro. A entrevista coletiva ao lado de nove ministros foi apenas mais uma tentativa de transmitir a ideia de que o país tem piloto e que é ele quem comanda o ataque à Covid-19, não o ministro Luiz Henrique Mandetta. Foram hilariantes as cenas do tira e põe máscara na orelha – não convence ninguém de que sabe se precaver.
A entrevista foi pífia, fora algumas informações de Paulo Guedes. Uma peça circense mal-ensaiada e que não contribuiu para a maré de improvisação que assola o país, carente de equipamentos essenciais para enfrentar o coronavírus. O ministro Mandetta se esforça para pôr ordem na estrutura, mas ela é insuficiente diante da velocidade da propagação do vírus.
A mensagem desesperadora de uma brasileira chegando ao aeroporto de Guarulhos, vinda de Verona, resume a situação: “Guarda, acabo de chegar da Itália, que é o centro da epidemia na Europa, e vocês nem medem nossa temperatura”? “Não, senhora, não temos equipamento para fazer isso”. Projeções de consultorias apontam que o Brasil chegará em meados de abril aos 20 mil contaminados.
Temos de considerar as carências das margens sociais, sem saneamento básico, proximidade de barracos e favelas, transportes abarrotados, hospitais sem equipamentos e condições de atendimento, entre outros fatores. Mas a questão de fundo é o "ethos" nacional, a maneira de ser do brasileiro.
Neste país grassa a desconfiança, estiola-se a crença nas autoridades, quebram-se os elos da cadeia normativa. “É para fazer isso conforme prescreve a lei?”. De olho no malfeito, o transgressor não quer saber. Pratica o mais conveniente. Por isso mesmo, o advérbio "talvez" é mais apreciado do que a certeza da cultura anglo-saxã: sim ou não. (Pergunte a um brasileiro quantas horas trabalha por semana. Ele responderá “mais ou menos 40 horas”.)
Em suma, há um mais ou menos induzindo as orientações sobre o coronavírus. A margem de manobra exibe uma curva entre 30% e 50% do que deve ser feito. Se o presidente da República, de seu pedestal, é o primeiro a descumprir regras, por que o simples cidadão deve cumpri-las? Esse argumento circula no sistema cognitivo nacional. (Lembrando: Bolsonaro se referiu ao coronavírus como “histeria”, “exagero da mídia”, “fantasia” e enxergou até uma luta clandestina de grupos que querem desestabilizar seu governo.)
Dessa forma, a flexibilidade, nata no "ethos" nacional, poderá ser um empecilho para o governo Bolsonaro chegar a bom termo. As relações com o Congresso continuam tensas. O entorno presidencial foi acometido da onisciência das cortes. Tudo que emana do pensamento do soberano vem adornado com o véu divino, sem contestação.
Pergunta de pé de página: “Mas o Brasil poderá ser eficaz no combate ao coronavírus, apesar do presidente?” Resposta: depende do grau de conscientização da população. Para tanto, devemos nos livrar do enquadramento a que fomos jogados na moldura dos quatro tipos de sociedade no mundo: na inglesa, tudo é permitido, salvo o que for proibido; na alemã, tudo é proibido, salvo o que for permitido; na totalitária, ditatorial, tudo é proibido, mesmo o que for permitido; na brasileira, tudo é permitido, mesmo o que for proibido.
A entrevista foi pífia, fora algumas informações de Paulo Guedes. Uma peça circense mal-ensaiada e que não contribuiu para a maré de improvisação que assola o país, carente de equipamentos essenciais para enfrentar o coronavírus. O ministro Mandetta se esforça para pôr ordem na estrutura, mas ela é insuficiente diante da velocidade da propagação do vírus.
A mensagem desesperadora de uma brasileira chegando ao aeroporto de Guarulhos, vinda de Verona, resume a situação: “Guarda, acabo de chegar da Itália, que é o centro da epidemia na Europa, e vocês nem medem nossa temperatura”? “Não, senhora, não temos equipamento para fazer isso”. Projeções de consultorias apontam que o Brasil chegará em meados de abril aos 20 mil contaminados.
Temos de considerar as carências das margens sociais, sem saneamento básico, proximidade de barracos e favelas, transportes abarrotados, hospitais sem equipamentos e condições de atendimento, entre outros fatores. Mas a questão de fundo é o "ethos" nacional, a maneira de ser do brasileiro.
Neste país grassa a desconfiança, estiola-se a crença nas autoridades, quebram-se os elos da cadeia normativa. “É para fazer isso conforme prescreve a lei?”. De olho no malfeito, o transgressor não quer saber. Pratica o mais conveniente. Por isso mesmo, o advérbio "talvez" é mais apreciado do que a certeza da cultura anglo-saxã: sim ou não. (Pergunte a um brasileiro quantas horas trabalha por semana. Ele responderá “mais ou menos 40 horas”.)
Em suma, há um mais ou menos induzindo as orientações sobre o coronavírus. A margem de manobra exibe uma curva entre 30% e 50% do que deve ser feito. Se o presidente da República, de seu pedestal, é o primeiro a descumprir regras, por que o simples cidadão deve cumpri-las? Esse argumento circula no sistema cognitivo nacional. (Lembrando: Bolsonaro se referiu ao coronavírus como “histeria”, “exagero da mídia”, “fantasia” e enxergou até uma luta clandestina de grupos que querem desestabilizar seu governo.)
Dessa forma, a flexibilidade, nata no "ethos" nacional, poderá ser um empecilho para o governo Bolsonaro chegar a bom termo. As relações com o Congresso continuam tensas. O entorno presidencial foi acometido da onisciência das cortes. Tudo que emana do pensamento do soberano vem adornado com o véu divino, sem contestação.
Pergunta de pé de página: “Mas o Brasil poderá ser eficaz no combate ao coronavírus, apesar do presidente?” Resposta: depende do grau de conscientização da população. Para tanto, devemos nos livrar do enquadramento a que fomos jogados na moldura dos quatro tipos de sociedade no mundo: na inglesa, tudo é permitido, salvo o que for proibido; na alemã, tudo é proibido, salvo o que for permitido; na totalitária, ditatorial, tudo é proibido, mesmo o que for permitido; na brasileira, tudo é permitido, mesmo o que for proibido.
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