domingo, 22 de setembro de 2019

A estranha paixão do presidente Bolsonaro por juízes e magistrados

O Presidente Jair Bolsonaro é famoso por usar a paixão como imagem para as mais variadas circunstâncias. Já disse publicamente que havia começado a se apaixonar pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, apesar de ter vários atritos com ele. Disse a mesma coisa sobre o presidente do Senado, Davi Alcolumbre. E não precisa confessar sua paixão pelo presidente do Supremo, Dias Toffoli. Entre eles são só elogios recíprocos.

Que ele se apaixonou, antes ainda de ser eleito Presidente, pelo juiz e principal nome da Lava Jato, Sérgio Moro, ficou claro quando o chamou para oferecer-lhe o importante Ministério da Justiça. Agora, na verdade, parece que esses amores estão em crise.

Em compensação, Bolsonaro abriu um novo caminho de paixão com o outro juiz mais famoso depois de Moro, Marcelo Bretas, juiz da Lava Jato do Rio, com fama de ser tão ou mais duro em suas condenações do que Moro. E com uma particularidade: confessou que, como evangélico devoto, sua grande conselheira é a Bíblia, que ocupa um lugar especial em sua mesa de trabalho. O ex-governador do Rio, Sérgio Cabral, que chegou a ser imaginado por Lula como candidato à Presidência da República, foi condenado por Bretas a 216 anos de prisão.

O primeiro vestígio de um início de paixão do presidente com o temido juiz Bretas apareceu na segunda-feira passada, quando o juiz descobriu que Jair Bolsonaro havia entrado em sua conta do Twitter. E não faltaram palavras ao rígido juiz da Lava Jato do Rio para mostrar em publico sua surpresa e seu agradecimento. Escreveu: “honrado por ter entre os seguidores dessa conta do Twitter o presidente da República do Brasil. Gratidão!”.

É possível, entretanto, que essa paixão tenha sido recíproca por interesse. O juiz savonarola do Rio não excluiu que, como seu amigo o ex-juiz Moro, poderia deixar a jurisprudência para tentar a sorte na política. E, principalmente, não descartou que gostaria de ocupar uma cadeira no Supremo.


Os dois sonhos de Bretas estão hoje nas mãos de Bolsonaro. O Presidente nesse primeiro mandato terá que mudar, de fato, dois ministros do Supremo, e já disse que gostaria de alguém “terrivelmente evangélico”. Quem mais evangélico do que Bretas que não esconde que sua grande conselheira ao emitir sentenças é a Bíblia, sempre em cima de sua mesa de trabalho? E pelo modo como andam as relações entre o Presidente e seu ministro Moro, logo o ministério da Justiça poderia ficar livre. Que melhor momento para o sonho de Bretas de entrar na política?

Talvez o juiz Bretas, que é um grande leitor da Bíblia, tenha visto que no Antigo Testamento os juízes não se diferenciavam dos governantes. No Livro dos Juízes fica claro, por exemplo, como em todo o mundo de Israel “julgar era sinônimo de reinar”. Os juízes acabaram sendo os caudilhos do povo de Israel. No discurso de São Paulo na Sinagoga de Antioquia da Pisídia (Atos,13,20) fica claro que os juízes haviam sido colocados por Deus “para que se abstivessem de condenar o que Deus havia disposto”. E foi o juiz, Samuel, o encarregado de ungir Davi como rei de Israel.

Não é estranho que evangélicos como Bolsonaro, Moro e Bretas, para quem a Bíblia é vista principalmente sobre o prisma do Antigo Testamento em que tudo gira ao redor dos desígnios de um Deus vingativo, não vejam uma separação clara entre a Justiça e a Política.

Há quem prefira ver também nessas paixões entre o presidente do Brasil e os juízes e magistrados com poder um interesse especial que é mais político do que religioso. Moro foi levado ao Governo por Bolsonaro porque ele sabia que tinha uma grande força popular. É possível que essa aproximação do Presidente com Bretas tenha a ver com os interesses que Bolsonaro e toda a sua família tiveram e têm na política do Rio, em que se formaram e cresceram e na qual estão envolvidos em litígios judiciais por suas estreitas relações com as milícias e com o assassinato, ainda sem mandantes, da vereadora Marielle Franco.

E Bretas não pode, além disso, deixar de ser cortejado por Bolsonaro já que existia uma foto dele que, ao mesmo tempo em que foi duramente criticada pela opinião pública democrática, não pôde deixar de ser aplaudida pelo Presidente da República mais apaixonado pelas armas que já existiu. Nessa foto, o juiz Bretas aparece com um moderno fuzil nas mãos. Precisou explicar que era para se formar em aulas de tiro para defesa própria, por ele sua família estarem gravemente ameaçados pelos que levou à cadeia.

É possível que sejam puras elucubrações de corredores políticos, mas não há dúvida de que se trata de um grande paradoxo. Bolsonaro, que em sua campanha enfatizou o fato de acabar com a velha política e reforçar a experiência da Lava Jato encarnada nos juízes Moro e Bretas, pode acabar, pelo contrário, arrancando-os da Justiça para colocá-los na política. Um, Moro, já está, e Bretas poderia chegar.

Para Bolsonaro, quando ao chegar à Presidência precisou constatar que seu filho, o senador Flávio, havia sido descoberto em práticas de corrupção política quando era deputado do Rio, sua maior preocupação não foi lutar contra a corrupção, eliminar a velha política dos conchavos e interesses pessoais, lutar por manter viva a separação entre os diferentes poderes para que uns não se contaminem com os outros. Sua paixão agora são os juízes e magistrados, principalmente os que podem ajudar seu filho e talvez parte de sua família a salvar-se da fogueira.

Há quem me pergunte por que colocaram o nome Jair no Presidente Bolsonaro, descendente de imigrantes italianos e alemães. Dado sua paixão por juízes e magistrados, há quem imagine que foi simbólico, já que Jair é o nome de um dos 14 juízes de Israel. Na verdade foi algo mais prosaico. Quando o futuro Presidente do Brasil nasceu havia um famoso jogador de futebol chamado Jair que fazia aniversário nesse mesmo dia. Sua mãe acrescentou o segundo nome de Messias a Jair porque contou que o parto de seu filho foi tão difícil que somente um milagre o fez nascer.

É verdade, entretanto, que Jair, que significa em hebraico “homem que foi iluminado por Deus”, é também o nome de um dos juízes da Bíblia. Mas pertence ao grupo dos chamados “juízes menores”. Por isso recebe na Bíblia somente três versículos no capítulo X, do Livros dos Juízes, apesar de ter exercido a profissão de juiz por tantos anos. Tudo o que se diz dele é: “Após Tola, Jair de Galaad foi juiz durante 22 anos. Tinha 30 filhos que andavam de burro, e possuía 30 cidades, que ainda se chamam as aldeias de Jair”. Era uma para cada filho.

Eram os tempos em que a tribo de Israel, que era constituída por nômades à procura de terra para fixar sua moradia e reinar sobre ela, chegou à fértil Palestina e à base de guerras e batalhas e de recaídas nos ídolos pelas quais eram castigados, se transformou afinal no povo escolhido por Deus.

Uma vez que Bolsonaro sempre pareceu, como católico e evangélico, mais do Velho Testamento do que do Novo, do Deus da espada e dos trovões do que do Deus acolhedor e criador de paz, não é estranho que tenha ficado, herdado de seu nome de velho juiz de Israel, com seu espírito combativo e armado e que lhe seja tão difícil a linguagem do diálogo com os diferentes e tão longe do mandato do Novo Testamento do “Bem aventurados os semeadores da paz”.

Todo o reinado, ainda breve, do capitão reformado, o Presidente Jair Messias Bolsonaro, que recebeu milhões de votos daqueles a quem prometeu lutar sem trégua contra a corrupção, está se revelando de um paradoxo singular. Pode acabar sendo, pelo contrário, o reinado em que será realizado o funeral da velha Lava Jato. As revelações, de fato, do The Intercept Brasil publicadas por alguns jornais, entre eles o EL PAÍS Brasil, que revelaram o modo pouco constitucional que Moro e seus procuradores chegam às condenações de políticos e empresários, estão produzindo uma profunda crise ética e de identidade.

O paradoxo feliz é que isso poderia servir para que ressurja um modo novo e mais limpo de julgar e condenar que, sem deixar de ser severo como exigem certos pecados de corrupção, que são afinal pecados contra os mais pobres, possa mostrar sua cara de verdadeira justiça, sem mesclas espúrias entre juízes e políticos. O Brasil vive, de fato na Justiça, um dos momentos mais delicados e graves de sua história. Seu futuro em boa parte dependerá de como ele será capaz de resolver esse enigma. O Brasil joga tudo hoje na crise da política contaminada pela Justiça, ou o contrário.

Os tempos em que os juízes eram, no passado, caudilhos e políticos foram varridos pela moderna legislação mundial que, em nome da democracia, separou rigorosamente os diferentes poderes para evitar essa contaminação entre eles que o Brasil sofre nesse momento.

Alguns chegam a chamar de bíblico esse abraço bolsonarista de contaminação entre a Justiça e a política e para isso gostariam até de modificar a Constituição, essa sim a bíblia dos novos tempos, em que já não cabem livres e escravos, fiéis e infiéis. Na bíblia laica da Constituição deveríamos ser todos filhos da liberdade que salva, e não da violência. Essa, desde a antiguidade, serviu mais à morte do que à vida, usada principalmente contra os escravos e os mais desamparados, inermes diante dos que se apresentavam como justiceiros enviados por Deus.

Brasil a(r)mado


Jair precisa falar na ONU como anti-Bolsonaro

Nove meses de governo foram suficientes para Jair Bolsonaro mostrar que sabe criar crises. Na próxima terça-feira, ele terá 20 minutos para revelar que também sabe desfazê-las. Esse é o tempo de duração do discurso que o presidente fará na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas. Pode continuar soando como um problema para a floresta amazônica. Mas dispõe da opção de se exibir ao mundo pela primeira vez com uma solução ambiental.

Em condições normais, os representantes de 193 países, os chefes de organismos internacionais, os líderes de organizações sociais e os repórteres dos principais meios de comunicação do mundo não dariam muita bola para Bolsonaro. Mas o capitão desdenhou tanto do meio ambiente em tão pouco tempo que acabou chamando a atenção do ambiente inteiro. Será ouvido com grande aplicação e enorme desconfiança.



Sob Bolsonaro, o governo fez uma opção preferencial pela falta de nexo. Desmontou o frágil aparato fiscalizatório do Ibama, desossou o ICM-Bio, desmoralizou dados científicos do Inpe sobre desmatamento e queimadas, refugou verbas doadas por Noruega e Alemanha para programas de proteção ambiental. Foi como se a nova administração desejasse estimular o desmatamento, a grilagem, a queimada e toda sorte de crocodilagem.

O flerte do presidente com o caos foi plenamente correspondido. E as autoridades de Brasília assistiram à proliferação das queimadas na floresta como se não tivessem nada a ver com as chamas. Instado a reagir, Bolsonaro demonstrou que seu compromisso com a verdade é mais fugaz do que se imaginava. Culpou as ONGs pelo fogo. Como calúnia não apaga incêndio, as labaredas se alastraram, ganhando as manchetes da imprensa internacional.

O governo só começou a agir depois que a imagem do Brasil já estava estilhaçada. Bolsonaro mandou publicar no Diário Oficial despacho ordenando aos ministros que tomassem providências visando a "preservação e a defesa da Floresta Amazônica, patrimônio nacional". Acionou a Polícia Federal contra os desmatadores e transformou as Forças Armadas num corpo de bombeiros hipertrofiado. Só faltou se reconciliar com a verdade.

Bolsonaro passou a trombetear a tese segundo a qual a queimada é um fenômeno anual que chega junto com a seca. Só ganhou repercussão agora porque a mídia o persegue. O Ipam, Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, desfez a lorota com uma nota técnica. Nela, esmiuçou a encrenca. Comparando-se 2019 com a média dos três anos anteriores, há menos dias secos agora. A despeito disso, há agora uma quantidade maior de focos de mais focos de incêndio.

O relatório do Ipam anota a certa altura:"A ocorrência de incêndios em maior número, neste ano de estiagem mais suave, indica que o desmatamento é um fator de impulsionamento às chamas". Acrescenta noutro trecho: "Os dez municípios amazônicos que mais registraram focos de incêndio foram também os que tiveram maiores taxas de desmatamento".

Quer dizer: há mais queimadas em 2019 porque o abate de árvores cresceu. O desmatamento é maior porque o governo afrouxou a fiscalização. Vem daí o interesse generalizado pelo discurso que fará na ONU o presidente do país que possui em seu território 35% da floresta amazônica.

O discurso do presidente só será bem sucedido se o orador conseguir restaurar a imagem do Brasil, desarmando retaliações oportunistas às exportações do agronegócio brasileiro. Significa dizer que o êxito depende fundamentalmente da capacidade de Bolsonaro de se expressar durante 20 minutos como um anti-Bolsonaro. Tomado pelo que disse na última quinta-feira numa de suas transmissões ao vivo pelas redes sociais, Bolsonaro não estimula o otimismo.

"Estou me preparando para um discurso bastante objetivo, diferente de outros presidentes que me antecederam. Ninguém vai brigar com ninguém lá, pode ficar tranquilo. Vou apanhar da mídia, que sempre tem do que reclamar, e vou falar como anda o Brasil nesta questão. Eles querem desgastar a imagem do Brasil para ver se criam um caos aqui. Quem se dá bem? O pessoal lá de fora. Se a nossa agricultura cair, outros países que vivem disso vão se dar bem."

Apanhar da mídia? Tolice. Se Bolsonaro retirasse energia da crise, a imprensa mudaria de assunto instantaneamente. O "caos" só existe porque o presidente fabrica crises do nada. Para que "o pessoal lá de fora" não consiga "se dar bem", é preciso que o presidente brasileiro pare de fornecer a matéria-prima usada pelos que desejam ver "nossa agricultura cair".

Lucro não é tudo: a sociedade exige um novo contrato social das empresas

Há dois tipos de capitalismo: o que gera valor para a sociedade e o que o espolia. Durante as últimas décadas, milhões de pessoas notaram que, apesar de terem trabalho, este é insuficiente para permitir uma vida digna; que o elevador social se desacelerou; que a desigualdade é imensa; que a cobiça parece o verbo mais conjugado pelas finanças, e que a crise climática poderia deixar um futuro abrasado de cinzas para seus filhos e netos. Se a promessa de um amanhã melhor, de uma vida melhor, que tem sido a base do capitalismo, se desvanece, o pensamento do homem entra em um círculo vicioso. Por que me sacrificar? Por onde seguir? Elizabeth Warren, a senadora democrata que quer chegar à Casa Branca, resume esta angústia: “As pessoas sentem que o sistema está arranjado contra elas. E sabe qual é a parte mais dolorosa? Elas têm razão”.

Onde estão as grandes empresas quando esta pena em cumprimento atravessa o planeta? Muitas estão brincando em seu jardim de recreio particular. “A cobiça corporativa está governando este país. E essa cobiça está destruindo os sonhos e as esperanças de milhões de norte-americanos”, criticava Bernie Sanders, outro dos candidatos democratas ao Salão Oval.

Em um mundo (até agora) de fronteiras gélidas, os problemas são jogos de espelhos entre as nações, e fica descoberto esse relato neoliberal de que a desregulação traria prosperidade a todos. Nos Estados Unidos, não por acaso, ao mesmo tempo em que o peso dos sindicatos decaía, os lucros empresariais, segundo a revista The Economist, passavam de 5% do PIB em 1989 para 8% atualmente.


Esses números procedem do dogma estabelecido em 1970 pelo economista Milton Friedman. O prêmio Nobel sustentava que o executivo-chefe, por ser um “empregado” dos acionistas, deve defender seus interesses, dando-lhes os maiores dividendos possíveis. Esta ideia, que fere como caminhar descalço sobre vidros quebrados, foi amplificada nas últimas décadas por escolas de negócios e executivos. O sistema métrico é o curto prazo, o sentido diário da companhia é um gráfico da Bolsa, e a cobiça, um cassino global. Friedman respondia assim numa entrevista: “Há alguma sociedade que você conheça que não se guie pela avareza? Você acha que a Rússia e a China não se guiam pela avareza? O que é a cobiça? Certamente, nenhum de nós é ambicioso, só o outro. O mundo se guia através de indivíduos que perseguem interesses diferentes”. Esta é a linha editorial que hoje continua escrevendo o destino de centenas de milhões de seres humanos.

Entretanto, as grandes empresas, sobretudo norte-americanas, sentiram que a mudança nos dias de hoje é trazida pela ira e pelo descontentamento, porque a sociedade exige companhias que melhorem suas vidas. Há algumas semanas, o Business Roundtable (BRT), um dos principais lobbies empresariais norte-americanos —que agrupa 181 grandes corporações como ExxonMobil, JPMorgan Chase, Apple e Walmart— lançou uma nota (que aliás não foi assinada por Blackstone, General Electric e Alcoa) em que redefinia o “propósito de uma empresa”. Os lucros dos acionistas passam a ser um objetivo a mais, e fala-se em “proteger o meio ambiente, fomentar a diversidade, a inclusão, a dignidade e o respeito”. O sentido, agora, é “criar valor para todos os grupos de interesse”. “Tudo isto terá como resultado um capitalismo mais sustentável e inclusivo”, afirma María Luisa Martínez Gistau, diretora de responsabilidade social corporativa do CaixaBank, da Espanha. O BRT só não explica como conseguirá tão bons propósitos.

Apesar de tudo, há esperança de que algo mude na CEOlândia. “É um sinal alentador. Mas só porque demonstra que os executivos-chefes entenderam a advertência: o pêndulo ameaça oscilar em direção contrária, e estão tentando controlar sua velocidade”, reflete Jeremy Lent, talvez um dos grandes pensadores de nossa era. Resta ver se a sociedade acredita na preocupação verde de uma petroleira como a Exxon ou do JPMorgan Chase, um banco que se tornou, segundo o BankTrack, uma rede de ONGs que vigia o comportamento financeiro, um dos maiores financiadores dos combustíveis fósseis do mundo, ao destinar mais de 196 bilhões de dólares (805 bilhões de reais) entre 2016 e 2018. “Porque a verdade é que o lobby não se compromete com nada extraordinário, apenas com o que deveria ser o comportamento básico de uma empresa”, critica Carlos Martín, diretor do Gabinete Econômico da central sindical espanhola Centrales Obreras. E acrescenta: “Os membros da BRT têm três características: são ambiciosos, querem deter o poder e são muito inteligentes. Viram o que se pode vir por aí com Sanders e Warren na esquerda do Partido Democrata e reagiram”. E as pesquisas lhes mostram que é um bom negócio mudar a forma de fazer negócios.
Confiança social

Pode ser, porque as corporações arrastaram a confiança social para a beira do precipício. Aí está o escândalo da Volkswagen, o comportamento do Facebook, a desonestidade do Wells Fargo e a atitude da Novartis. A farmacêutica acaba de apresentar um tratamento genético (Zolgensma) que poderia salvar crianças com atrofia muscular espinhal. Mas o preço, segundo o The New York Times, é de 2,1 milhões de dólares por paciente. Acredita-se que seja o medicamento mais caro da história. Nem sequer os gastos de pesquisa podem esconder a insensibilidade de uma empresa que recebe ajudas públicas. Estas são as empresas que guiarão o século XXI? Essa linha temporal é um pedestal manchado de vermelho. “O comunicado surge como uma resposta ao que se viveu nas últimas décadas. Os vícios do sistema econômico foram tais que os problemas de reputação ameaçam o próprio valor da companhia”, adverte Emilio Ontiveros, presidente da consultoria Analistas Financeiros Internacionais (AFI).

A sociedade ocidental sente que a democracia do acionista falhou. Existem vozes, é claro, que falam em outro registro e criticam alguns desses “vícios”. “Há rendimentos decrescentes despedindo as pessoas repetidamente”, reclama Jeff Ubben, fundador da firma ativista ValueAct Capital, na The Economist. “Não é a estratégia certa para o futuro”, acrescenta. Essas vozes, porém, são escassas, e o passado é outro país.

Logo após da divulgação da nota do Business Roundtable, outra associação, o Council of Institutional Investors —que representa muitas das companhias que estão no BRT e alguns dos maiores fundos de pensão dos EUA—, respondeu com contundência. “Responsabilização de todos significa responsabilização de ninguém. É o Governo, não as empresas, quem deve assumir a responsabilidade de definir e abordar os objetivos sociais com uma conexão limitada ou inexistente com o valor do acionista de longo prazo.”

As posições estão escritas em pedra. As empresas fogem, a declaração do BRT não deixa de ser palavras sobre um papel, a indústria do investimento se fecha no curto prazo, e qualquer CEO sabe que sem lucros será demitido. Então, o que fazer em um momento que exige redefinir o sentido das empresas? “Do meu ponto de vista”, diz Jeremy Lent, “as transformações que a nossa sociedade precisa só acontecerão quando os Governos forçarem as companhias a terem obrigatoriamente seus princípios sociais, ambientais e financeiros em seus estatutos”. Essa “afronta” ao cânone, que Elizabeth Warren também defende, tem resposta nas páginas conservadoras da economia. “As empresas não podem —e não devem— assumir responsabilidades sociais próprias do Estado, como educação, apoio ao bem-estar ou proteção ambiental. Além disso, a prática demonstra que as companhias são as instituições erradas para prestar assistência médica e apoio às pensões”, diz Martin Wolf, escritor e colunista do Financial Times.

Aqui a realidade se choca com esse Lego de vidro que é a natureza humana. “Propósito é o sabor do mês”, ironiza na The Economist Stephen Bainbridge, professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). E pergunta: “Mas as empresas vão realmente impor um corte de 10% aos seus acionistas pelo bem dos grupos de interesse?”. E quando a empresa decidir que o lucro não é mais o seu principal objetivo, a quem prestará contas? Aos ativistas? Aos políticos? Questões não resolvidas, mas que revelam as dúvidas de um mundo em trânsito para outro tipo de sociedade.

Talvez este período esconda uma terceira via. Os ativos gerenciados sob critérios ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês) na Europa, Canadá, Japão, Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia cresceram de 22,9 para 30,7 trilhões de dólares (de 94,1 para 126,2 trilhões de reais) entre 2016 e o ano passado. “Se os executivos continuarem agindo em nome dos acionistas, mas estiverem cientes de que estão preocupados com questões sociais – o meio ambiente, por exemplo – assim como com os lucros, isso melhorará as coisas”, admite Oliver Hart, prêmio Nobel de Economia de 2016. “Se, pelo contrário, os gestores dirigem as empresas em função de seus próprios pontos de vista sobre questões sociais ou a importância dos grupos de interesse, isso poderia ser um passo na direção errada.”

Outra opção (já que a autorregulação nunca funcionou) seria criar uma estrutura que vigiasse e obrigasse os diretores a fazerem algo mais do que superalimentar os dividendos do acionista. Na última década, cerca de 3.000 empresas tiveram a classificação de B corporations. Isso significa que seu comportamento ético, social e ambiental foi certificado pela B-Lab, uma organização não governamental norte-americana. “A declaração do BRT é uma mostra de que a cultura empresarial mudou. Mas agora é hora de uma ação coletiva por meio da comunidade empresarial e dos políticos para trabalhar juntos e superar a primazia do acionista”, diz Andrew Kassoy, cofundador da B-Lab. O problema é que poucas grandes empresas assinaram esse protocolo, e a maioria é de marcas de consumo.

Apesar dos inúmeros pecados de muitas corporações, mudanças acontecem. Em 25 de agosto, cerca de trinta grandes companhias (Apple, Amazon, Unilever) deram o surpreendente passo de publicar uma página no suplemento dominical do The New York Times comprometendo-se a colocar o planeta à frente dos lucros. “É uma mudança que vem para ficar e surge de várias formas: a principal é que o contrato das empresas com a sociedade está sendo reformulado”, analisa Antoni Ballabriga, diretor global de Negócios Responsáveis do BBVA. E avança: “As empresas precisam se molhar mais e ver onde podem aportar maiores capacidades e gerar mudanças sistêmicas; precisamos passar das declarações para a ação”.

O executivo sabe o preço de decepcionar. O caso Villarejo —um escândalo de espionagem comercial envolvendo o BBVA na Espanha— teve impacto na reputação da sua instituição, que agora “enfrenta a necessidade de uma mudança radical em sua política de geração de lucro e, principalmente, de uma limpeza de imagem para aliviar os efeitos prejudiciais de sua imputação”, segundo Miguel Momobela, analista da corretora XTB. A colisão entre a ética e os lucros talvez seja o que o mundo precisa. Que ecloda a faísca, que o fogo se acenda; que escutem. “Dar rentabilidade aos acionistas é uma condição necessária para ter sucesso nos negócios no século XXI, mas não suficiente”, indica o economista José Carlos Diez, lembrando que “as empresas devem incorporar à sua estratégia cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas e isso deve ser liderado pelo presidente e seu conselho de administração”.

O mundo acordou

As duas greves foram mera coincidência — uma local/nacional, a outra global/universal. Elas são tão díspares que poderiam ter ocorrido em planetas diferentes. Ainda assim (ou por isso mesmo), somadas em suas diferenças, produziram o retrato mais eloquente do nosso mundo à deriva.

A primeira foi convocada pelo Sindicato dos Metalúrgicos dos Estados Unidos, a outrora poderosa UAW, na sigla em inglês, e brotou na última unidade da GM em Flint (Michigan), histórico berço da paralisação trabalhista que em 1936 deu fama e força ao movimento sindical automotivo. Só que os tempos são outros, e hoje restam apenas 600 empregados naquela unidade. A UAW não recorria a paralisações há mais de uma década e conseguiu a adesão de 49 mil sindicalizados. E endureceu agora porque a GM decidira repassar ao sindicato a conta do seguro-saúde de seus trabalhadores. Mais: a empresa registrara um lucro de US$ 25 bilhões nos dois últimos anos, e sua CEO, Mary Berra, recebera um salário de US$ 22 milhões em 2018, 281 vezes superior ao do operário médio da empresa. Um deles resumiu assim o seu mundo em extinção: “Estamos lutando não só por nós, mas por nossos filhos e pelo futuro dos nossos filhos”.


A segunda greve repetiu mantra semelhante ao derramar por ruas e praças do planeta um mar de jovens de 150 países. Chamada de Greve Global pelo Clima, o movimento da garotada foi maximalista em tudo — ambição, propósito, participação, desdobramento. Turbinado pelo ativismo monotemático da adolescente sueca Greta Thunberg, que desde o início do ano contagia o mundo como porta-voz de sua geração contra a degradação ambiental do planeta, o movimento virou arrastão. Foi acolhido por empresários e sindicatos, ONGs e lideranças mundiais; cruzou gerações, classes sociais, raças e gêneros, e atravessou idiomas para dar um mesmo recado: a Terra arde. Um comunicado conjunto dos prefeitos de Nova York, Los Angeles e Paris informava: “Quando sua casa está pegando fogo, você soa o alarme”. A prefeitura de Nova York chegou a liberar 1,1 milhão de estudantes de suas escolas públicas para participar do ato.

À mesma época em que Greta emergia nas ruas de Estocolmo com protestos solitários que se transformaram em corrente mundial, decanos do bom jornalismo americano constataram a falência da grande mídia mundial na cobertura do estado de saúde do planeta. Exceto por alguns rompantes luminosos como os alertas de Rachel Carson nos anos 1960, e de Bill McKibben 20 anos depois, ambos na revista “New Yorker”, as coberturas ambientais não encontravam foco nem rumo, consistência nem equilíbrio. Daí o nascimento do projeto Covering Climate Now, iniciado pela “Columbia Journalism Review” e pela revista “The Nation”, de incentivo a coberturas ambientais. Passados cinco meses, mais de 250 publicações, instituições, jornalistas independentes e meios digitais mundo afora se juntaram à empreitada, somando uma audiência global de mais de 1 bilhão de pessoas.

Embora a defesa do meio ambiente pipoque por todos os poros do planeta — com direito até mesmo a citação do poeta bengali Daulat Qazi, que no século 17 escreveu “A terra é nossa existência, e nosso corpo a ela está atrelado” —, a causa tem carga política explosiva. Há quem veja na própria Greta a semente de um movimento irracional, um culto fundamentalista. “Ela parece uma personagem messiânica que veio nos salvar de nossos pecados”, alerta o editor Brendan O’Neill, da revista britânica “Spiked”. “O que leva o mundo adulto, ou uma parte dele, a se prostrar aos pés de uma criança sueca, em adoração sacrílega, como se estivesse na presença de um messias renascido?”, indaga em coluna na “Folha” o escritor João Pereira Coutinho.

Ou, como diria o presidente Jair Bolsonaro, o mundo entrou “em psicose ambientalista”. E o Brasil por ele governado não deverá estar entre os 60 países que, a partir de amanhã, participarão da Cúpula de Ação Climática da ONU para anunciar seus projetos de redução de gases de efeito estufa.

Pena, porque, como escreveu o editor da refinadíssima trimestral Lapham’s Quarterly, chegou a hora de saber se o capitalismo sobreviverá à mudança climática, ou se o clima alterado vai acabar com o capitalismo. E por trás das duas greves aqui citadas o relógio está ticando. Ele marca tempos distintos. No caso dos grevistas da indústria automobilística que emite CO2, o relógio marca o fim do mês, hora de pagar as contas. No ato dos ambientalistas, o relógio aponta para o fim do mundo, ou o tempo de adiá-lo. Urge acertar os dois ponteiros.
Dorrit Harazim

Pensamento do Dia


O culto personalista a Messias

O guru da Virgínia, Olavo de Carvalho, acaba de dar um novo tom, com ares de desespero, à militância bolsonarista. Diante do desembarque acelerado de aliados e apoiadores, ele estabeleceu a ordem unida: Messias, no Planalto, precisa de um exército de simpatizantes que seja só dele, e não de pautas. Sugeriu a montagem de uma espécie de banco de dados dos convertidos, cadastrando esses aspirantes a recrutas, que devem assumir a trincheira de defesa do presidente a qualquer custo. Se antes o mantra de convocação era “Deus acima de todos”, agora virou para “Bolsonaro acima de tudo”, em um culto personalista digno das maiores tiranias e que tem assombrado inclusive a base partidária, provocando rupturas e guerras abertas. Formulário com pedido de email, nome completo, celular e outros dados será distribuído entre ativistas da causa. Processar adversários, veicular louvações ao chefe, fazer o diabo pela celebração do Mito entraram no rol de artilharia. Os defensores do movimento agem como fanáticos sem noção, verdadeiros adoradores de uma seita que vai perdendo o senso do certo e do errado. Qualquer dia pregam gigantescos cartazes pelas ruas e nos prédios com a imagem de seu foco de idolatria. Para veneração geral, quem sabe! O rebanho não tolera resistências, críticas, reparos. Se o líder quer acobertar os erros dos filhos, distribuir benefícios à família, praticar nepotismo, desbaratar estruturas de fiscalização que o incomodaram, maquiar estatísticas, espalhar fake news, atacar parceiros internacionais gerando prejuízos em retaliações, ok. E daí? O Mito pode. Ele manda, ele sabe, ele quer o melhor (para quem?). Que ninguém venha questionar. Não importa a interlocução, não valem contra-argumentos, mesmo que legítimos. Meras futricas. A dialética para essa tropa de choque inexiste e quem insiste nela está a serviço de interesses do inimigo. Incrível aceitar como alguém pode se engajar numa presepada dessas. Típico de torcida organizada que parte ao quebra pau como solução de seus recalques. Olavo, no comando, prega daqui para frente um radicalismo ainda mais extremado e, a julgar pela predisposição da Primeira Família, está logrando o endosso dela à cruzada. Antes na pauta de prioridades, o combate à corrupção virou quimera e deve ser esquecido, abandonado, engavetado. O que importa, meta número um, é trucidar “o comunismo, seus idiotas!”. A invocação do guru vai com o xingamento incluído. O mandatário em pessoa adora o jeitão e os conselhos do alterego da Virgínia. Os filhotes Flávio, Carlos e Edu também não escondem a admiração. Na tática do clã e do general desbocado, o núcleo duro dessa república de desatinos, está traçada uma ofensiva implacável nos tribunais, entuchando a Justiça com processos aos montes contra os “esquerdistas” para que eles não tenham tempo de revidar. Na busca de respaldo dos oligarcas do magistrado, os bolsonaristas querem enterrar de vez a CPI da Lava Toga, sugerida no Congresso para desbaratar abusos do alto comissariado legal. Pode-se dizer que bolsonaristas e anti-lavajistas firmaram um acordo de interesses, um bem bolado de abafa geral, quase conluio, pela proteção comum da patota. O mandatário em pessoa não desejava o avanço de investigações na Receita Federal, no Coaf e na PF – responsáveis pelo que classificou de “devassa” a sua família – e conseguiu se acertar com o presidente do STF, Dias Toffoli, que emitiu um veto às averiguações sobre o filho Flávio. Toffoli assentiu com gosto ao desejo da Primeira Família e, por tabela, evitou que ele mesmo e colegas do Supremo passassem pelo mesmo constrangimento. O País que fique a ver navios sobre eventos obscuros do poder constituído. A Casa Grande, como sempre, vai mandando e governando na base de motivações pessoais. A Operação Lava Jato, que desbaratou o maior escândalo de desvio de dinheiro público da história, encontra-se no momento à míngua, com poucas ferramentas para seguir adiante. Afinal, procuradores, auditores e delegados ficaram sem acesso a informações estratégicas dos órgãos competentes. Investigações patinam por que o presidente, na base do demite e intimida, tem inibido o compartilhamento de dados. Quer, ao que tudo indica, centralizar em mãos quem, quando e como será inspecionado. Quadros de confiança, fiéis à ideologia do capitão, são conduzidos à PGR, ao novo Coaf, à Receita e à PF para a garantia do controle. Orientação clara e direta: aos amigos, a proteção. Os inimigos que se cuidem. Bolsonaro acima de tudo e de todos entrou em ação, buscando se perpetuar no poder para além de 2022. O resto, mero detalhe.

Justificativa de morte

Quando a gente vê imagens das crianças deitadas nas escolas, a gente esquece que, durante a Segunda Guerra Mundial, se não fosse o inglês ir para baixo da terra, no bombardeio dos nazistas, e Winston Churchill ter enfrentado, com sangue suor e lágrimas, o nazismo, o que seria da humanidade hoje? O que seria do mundo, se Napoleão, Victor, tivessem vencido as batalhas? Porque hoje, guardadas as proporções, é o mesmo que acontece com o crime organizado. E nós vamos nos abater? Não. Nós vamos, hoje, fazer com que nossas crianças, elas se recuperem de todo esse trauma. Vamos ajudar as famílias
Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro

'Não' da Áustria ameaça acordo Mercosul-UE

A União Europeia negociou com os quatro países do Mercosul por 20 anos para finalizar um acordo bilateral de livre-comércio. E aí veio o presidente Jair Bolsonaro, que não é conhecido exatamente como um defensor do meio ambiente. Sob seu governo, a floresta amazônica está queimando a um ritmo sem precedentes. Agora membros de quase todos os partidos do Parlamento da Áustria tiraram suas conclusões deste fato.

Quatro das cinco legendas votaram contra o acordo entre os blocos europeu e sul-americano numa votação no Parlamento da Áustria, em Viena, nesta quarta-feira. A ex-ministra austríaca da Agricultura, Elisabeth Köstinger, declarou após a votação que há "um mandato claro para os ministros responsáveis" para rejeitar o acordo em nível europeu.

O chefe da bancada do Partido Social-Democrata (SPÖ) no Parlamento, Jörg Leichtfried, descreveu a votação numa nota como "um grande sucesso para a proteção dos consumidores, do meio ambiente e dos animais, bem como dos direitos humanos".


De fato, o acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a UE só pode entrar em vigor se todos os países envolvidos concordarem, ou seja: todos os parlamentos nacionais dos Estados-membros devem aprová-lo. É igualmente necessária a aprovação do Parlamento Europeu e, ainda, uma ratificação unânime pelos chefes de Estado e de Governo da União Europeia.

As negociações sobre o tratado comercial estão em curso desde 2000. Atualmente transcorre sua revisão jurídica, e no terceiro trimestre de 2020 o acordo poderá estar pronto para ser assinado, prevê a UE. O Mercosul – que inclui Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai – tem uma população de mais de 260 milhões de habitantes e é um dos principais blocos econômicos do mundo, enquanto a União Europeia totaliza mais de 512 milhões de habitantes.

Não é de admirar que os líderes europeus se esforcem tanto para defender o tratado. "O acordo é muito importante para a Europa, tanto do ponto de vista econômico como geoestratégico", declarou Sabine Weyand, diretora-geral de Comércio da Comissão Europeia, ao jornal Handelsblatt.

O acordo visa reduzir gradualmente ou eliminar tarifas e impostos entre os dois blocos econômicos, mas, ao mesmo tempo, harmonizar normas – incluindo disposições como as do Acordo de Paris sobre Mudanças Climáticas, que se tornariam obrigatórias para os países sul-americanos.

Ao mesmo tempo, porém, a floresta tropical está ardendo apesar de todas as garantias, especialmente no Brasil. O presidente da França, Emmanuel Macron, já ameaçara opor-se ao acordo comercial, e ouviram-se ameaças semelhantes por parte da Irlanda e Luxemburgo. Os deputados do Parlamento em Viena transformam as palavras em ação.

A eurodeputada austríaca Monika Vana, do Partido Verde, convidou um representante indígena brasileiro para falar em Bruxelas. Mapu Huni Kuin, da etnia Huni Kuin, pediu que a UE sustasse o pacto. "Por favor, não assinem o acordo com o Mercosul", pediu o indígena perante o Parlamento Europeu. Se o acordo for assinado, mais terras na floresta tropical serão desmatadas para a produção agrícola, afirmou.

Para a Europa, o acordo de livre-comércio significaria, acima de tudo, a abolição de taxas alfandegárias elevadas sobre seus produtos industrializados exportados para a América do Sul. Em contrapartida, os produtos agrícolas provenientes dos quatro países sul-americanos teriam acesso mais fácil ao mercado europeu.

Ainda hoje, segundo a organização ambiental alemã WWF Deutschland, a produção de forragem para suínos, bovinos e aves na Alemanha exige uma enorme quantidade de terras. "Uma das causas dos incêndios devastadores na Amazônia pode ser encontrada nos comedouros alemães: a soja", acusa Eberhard Brandes, diretor do WWF, e grande parte deste produto vem da América do Sul.

A Comissão Europeia rebate que o acordo contém regulamentos vinculativos para a proteção da floresta tropical. De acordo com o resumo conhecido até agora, um artigo especial obriga ambas as partes a "implementar efetivamente" o Acordo de Paris sobre Mudanças Climáticas.

Além disso, o tratado contém compromissos em matéria de luta contra o desmatamento. Sobre essa questão, o resumo menciona iniciativas do setor privado que "fortalecem esses compromissos", como, por exemplo, de não comprar carne de fazendas "em áreas recentemente desmatadas". Os críticos, contudo, consideram tais disposições demasiado vagas.

Também falta a previsão de sanções, caso a floresta tropical e o clima não forem efetivamente protegidos, como foi recentemente confirmado pelo governo alemão em resposta a uma pergunta parlamentar. No entanto, há um "mecanismo de aplicação gradual e orientado para o diálogo", consta da resposta.

Enquanto isso a ministra do Meio Ambiente da Alemanha, Svenja Schulze, propôs a certificação da carne brasileira: "A soja e a carne bovina só podem ser importadas se for possível provar que a produção não prejudica a floresta tropical", disse à revista Spiegel.

Atualmente os países do Mercosul não são realmente importantes para a Alemanha, do ponto de vista econômico: apenas 2,6% dos investimentos alemães no mundo são direcionados às quatro nações, e nem mesmo 3% das mercadorias alemãs são vendidas na região.

No entanto, Andreas Renschler, presidente do Conselho da Indústria Alemã para a América Latina (LADW), lembra que só no Brasil estão presentes 1.600 empresas alemãs: "A preservação da floresta tropical faz parte dos nossos esforços para proteger o clima global", conclui.
Deutsche Welle

Adeus aos superpoderes

O presidente Jair Bolsonaro costuma dizer que a cadeira de presidente da República é como a criptonita para o Superman. A metáfora não é a mais precisa. Nos quadrinhos do “homem de aço” a criptonita tira-lhe a invulnerabilidade, a força descomunal, a visão de raio X e outros atributos do super-herói, tornando-o um homem comum. A melhor definição da cadeira do presidente da República talvez seja a de que ela não é eterna. Mesmo que feita do couro mais legítimo, com o tempo se desgasta.

Se a metáfora de Bolsonaro não se encaixa bem para a cadeira presidencial, ela acaba por ser perfeita para os superministros. Com o detalhe de que a criptonita deles é Jair Bolsonaro.


O economista Paulo Guedes sabia, ainda na eleição, que a vitória de Bolsonaro o transformaria no superministro da Economia, aquele que teria carta-branca para fazer o que quisesse na economia. Tanto era verdade que Bolsonaro quase nunca respondia sobre questões relacionadas a crescimento econômico, reformas estruturais, busca do equilíbrio fiscal. “Pergunta lá para o meu Posto Ipiranga”, costumava dizer. E acrescentava: “Não entendo nada de economia. Não tenho vergonha de dizer”.

Na campanha eleitoral, o juiz Sérgio Moro tinha a informação de que seria ministro da Justiça. Não de Bolsonaro, mas do candidato do Podemos, Alvaro Dias. “Sérgio Moro será meu ministro da Justiça”, repetia o candidato, sem cessar. Trunfo tão poderoso, dada a popularidade de Moro, não serviu de nada para Dias, que obteve apenas 0,8% dos votos.

Vencedor, Bolsonaro confirmou Paulo Guedes na Economia. O convite a Moro veio logo depois da eleição, no início de novembro. Assim como fez com Guedes, o então presidente eleito disse ao ainda juiz da Lava Jato que, na Justiça, ganharia também a Segurança Pública, seria autônomo para fazer o que quisesse. De cara, garantiu a Moro que lhe daria o Coaf. Cumpriu a palavra. A medida provisória da reforma administrativa, que reduziu o número de ministérios, fundindo alguns e extinguindo outros, tirou o Coaf da Economia, passando-o para a Justiça. Moro montou lá uma estrutura de investigação e pôs na chefia do órgão Roberto Leonel, de sua absoluta confiança.

Nasciam, com a MP, dois superministros. Um para fazer tudo na economia; outro, para tudo fazer na área da Justiça, combate ao crime organizado, à corrupção e ao crime violento. Já postos em suas funções, e derramando poderes, os dois logo começaram a trabalhar. Guedes convidou aqueles que melhor achou que poderiam ajudá-lo; Moro também, principalmente aqueles com os quais trabalhara na Lava Jato.

Acontece que um relatório do Coaf, feito em conjunto com o Ministério Público, alcançou o ex-policial Fabrício Queiroz, que fora assessor do então deputado Flávio Bolsonaro, filho do presidente. Logo vazou a notícia de que a investigação chegara a Flávio, agora senador. Ao mesmo tempo, o Congresso tirava o Coaf de Moro, sem que Bolsonaro fizesse nenhum esforço para reverter a situação. Depois, o presidente tornou público seu descontentamento com a superintendência da PF do Rio e ameaçou demitir o diretor da corporação, Maurício Valeixo, escolhido por Moro.

Em relação a Guedes, o problema ocorreu primeiro com Joaquim Levy, escolhido para o BNDES. Bolsonaro ordenou sua demissão. Depois, com o economista Marcos Cintra, chefe da Receita, encarregado de comandar a proposta de reforma tributária. Bolsonaro não gostou da forma como insistiu em criar um imposto parecido com a CPMF. Mandou que fosse demitido.

Se não têm autonomia para comandar seus ministérios, escolher seus auxiliares, os dois ministros não podem mais ser chamados de super. A criptonita Bolsonaro tirou-lhes os poderes.