quarta-feira, 12 de maio de 2021
Pequeno manual para a CPI
Uma sessão de CPI, em que parlamentares interrogam judicialmente um depoente, se parece com uma coletiva de imprensa, em que jornalistas fazem perguntas a uma pessoa. Em ambas, o objetivo é extrair informações. O entrevistado pode omitir ou mentir para os repórteres, porque sabe que nada lhe acontecerá. Já o inquirido pela CPI está sob juramento. É obrigado a responder a tudo e só dizer a verdade, ou sair dali preso. Mas, na prática, contando com a própria esperteza ou com o despreparo dos inquisidores, ele também omite ou mente à vontade e volta para casa assobiando.
Tanto o entrevistado como o inquirido percebem logo o que o espera. Repórteres e inquisidores vaidosos, adeptos de perguntas longas, em que uma questão vai saindo de dentro da outra —e, no fundo, respondendo-se mutuamente—, não oferecem perigo. Dão tempo para que o sujeito mastigue com calma o assunto e prepare uma resposta neutra. O que ele teme são perguntas curtas, diretas, objetivas, que não lhe deixem brecha para escapar. Ou responde e assume o risco ou mente e tenta fugir, mas isso será tão ostensivo que permitirá a quem pergunta um repique tão agudo quanto.
Nem todos os repórteres e parlamentares se dão conta de que o importante não é a pergunta, e sim a resposta. Mas, para isso, a pergunta, além de à queima-roupa, exige trabalho de casa. Perguntas sobre “o que o senhor acha” ou “sabe” sobre isso ou aquilo dão margem a vaguezas ou surtos de amnésia. A pergunta certa ainda é aquela que os antigos jornalistas aprendiam: a que começa com quem, quando, onde, como, por que e com quem —e termina por um mortífero ponto de interrogação.
Antes de perguntar, deve-se também prever uma possível resposta e preparar o repique. Nenhuma pergunta pode ficar sem resposta.
Se for para ficar, é melhor sair dali, entregar a chave ao porteiro e continuar o papo no botequim.
Tanto o entrevistado como o inquirido percebem logo o que o espera. Repórteres e inquisidores vaidosos, adeptos de perguntas longas, em que uma questão vai saindo de dentro da outra —e, no fundo, respondendo-se mutuamente—, não oferecem perigo. Dão tempo para que o sujeito mastigue com calma o assunto e prepare uma resposta neutra. O que ele teme são perguntas curtas, diretas, objetivas, que não lhe deixem brecha para escapar. Ou responde e assume o risco ou mente e tenta fugir, mas isso será tão ostensivo que permitirá a quem pergunta um repique tão agudo quanto.
Nem todos os repórteres e parlamentares se dão conta de que o importante não é a pergunta, e sim a resposta. Mas, para isso, a pergunta, além de à queima-roupa, exige trabalho de casa. Perguntas sobre “o que o senhor acha” ou “sabe” sobre isso ou aquilo dão margem a vaguezas ou surtos de amnésia. A pergunta certa ainda é aquela que os antigos jornalistas aprendiam: a que começa com quem, quando, onde, como, por que e com quem —e termina por um mortífero ponto de interrogação.
Antes de perguntar, deve-se também prever uma possível resposta e preparar o repique. Nenhuma pergunta pode ficar sem resposta.
Se for para ficar, é melhor sair dali, entregar a chave ao porteiro e continuar o papo no botequim.
Presidente-caô
E o tal decreto libertador do autocrata Jair Bolsonaro? Onde está? Aquele que já estaria pronto, mas que o presidente — numa ameaça cansada, covarde até para os padrões retóricos bolsonaristas — não sabe se usará. Cadê? (Talvez esteja guardado no mesmo cofre fantástico em que vão depositadas as provas de fraude contra a eleição de 2018.) Cadê? Aquele decreto por meio do qual o populista sustaria — sem contestação, como se imperador na República — decretos dos tiranos governadores-prefeitos, os cerceadores do trabalho, usurpadores do sagrado direito de ir e vir. Onde?
Quem sabe esteja na mesma gaveta imaginária em que avança o lockdown no Brasil? O decreto do amanhã: obra — bravata — de um governante fraco, isolado e acuado, cujo futuro, no mundo real, depende de Arthur Lira e Valdemar da Costa Neto; sem os quais não haveria “meu Exército” que acudisse. (O Exército do presidente forma com Pazuello, Ramos, Braga Netto e Heleno; tudo cobra fumante dentro das quatro linhas da Constituição.)
No mundo real: enquanto brinca de rolezinho de moto (e promete vídeo com ministros confessando o uso de cloroquina; cadê?), Bolsonaro expande a Codevasf — chegou mesmo ao Amapá — para abrigar toda a mamata que tinha acabado. (Quem dera se ele transpusesse águas assim.)
O decreto do valente do futuro: obra — bravata — de um governante que, desde sua condição de líder sectário, precisa, num terreno fantasioso a cada dia mais comprimido pelo mundo real, dar respostas, a cada vez mais histéricas, aos três quarteirões que foram às ruas autorizá-lo, pressioná-lo, ao golpe. E então: blá-blá-blá.
No mundo real: sobrepreço para aquisição de maquinário agrícola a partir de um orçamento secreto. (Afinal, mamata não vista, mamata não é.) No mundo dos patriotas contra o lockdown imaginário: a projeção de decreto — que tribunal nenhum contestará — para enquadrar entes destruidores da economia e supressores de empregos. Assim se equilibra o homem. Golpista, sim. Mas também empreendedor de sucesso, alguém que ergueu pujante empresa familiar nas bordas gordas do Estado.
A turma que foi às ruas bradou o #euautorizopresidente e o mito não sabia o que fazer. Ou melhor: sabia que só poderia produzir e difundir seus caôs. Um balanço delicado, com margens de operação muito apertadas. A resposta — satisfação e alimento aos seus — foi essa tosquice. A galera curtiu. O decreto destemido da gaveta quimérica. Contra o establishment que não o deixa agir (o mesmo que o banca), o próprio manifesto de frustração do golpista. O decreto prometido ao povo!, demandado pelo povo!; o povo, claro, segundo a compreensão totalitária de Bolsonaro — o povo sendo aquele que o apoia-autoriza.
No mundo real: Ciro Nogueira. No mundo real: o sistema que ora o sustenta sendo o mesmo que lhe reduz a natureza golpista a essas milongas. E dá-lhe aglomeração, e cloroquina, e China, e guerra química, e eleição auditável, e decreto "quem sabe um dia". O Centrão autoriza.
No mundo real: o tratorão; e o Bolsonaro sabedor de que não pode decretar seu delírio. Sabedor de que os decretos de governadores e prefeitos, submetidos a constante controle de constitucionalidade, têm o aval do Supremo. E de que, se decretasse para derrubá-los, passaria vergonha. Seria desmoralizado. O STF a lhe cassar a determinação. E então: o decreto pronto — que não sabe se usará.
No mundo real, pois, para enganar seu mundo da fantasia, o Bolsonaro bravateiro. Que, inconformado, sabe que não teria — ao contrário do que disse — apoio do Congresso para suas fanfarronices golpistas. O Brasil não é El Salvador, lá onde o Parlamento — para júbilo invejoso do bolsonarismo — destituiu a Suprema Corte. No mundo real: o Brasil é o MDB conforme Fernando Bezerra; o capaz de embarcar na canoa do Bolsonaro eleito, jamais na do Bolsonaro onipotente. Tratorão: sim. Tratorando: não.
No mundo real: seria o presidente investir contra o STF — e o faria caso decretasse sua bravura de gaveta — para perder a maioria parlamentar defensiva que cultiva terceirizando orçamento de ministério.
As chances de porvir para Bolsonaro derivam da mesma força que o limita. Os sócios do Centrão compõem curiosa modalidade de proteção à estabilidade institucional, habituados que estão — décadas já de máquina calibrada — a prosperar na democracia. Não estão a fim de mudanças. Mas são tolerantes. E autorizam: o presidente pode ser Ustra no cercadinho, desde que seja Rogério Marinho no Planalto.
Quem sabe esteja na mesma gaveta imaginária em que avança o lockdown no Brasil? O decreto do amanhã: obra — bravata — de um governante fraco, isolado e acuado, cujo futuro, no mundo real, depende de Arthur Lira e Valdemar da Costa Neto; sem os quais não haveria “meu Exército” que acudisse. (O Exército do presidente forma com Pazuello, Ramos, Braga Netto e Heleno; tudo cobra fumante dentro das quatro linhas da Constituição.)
No mundo real: enquanto brinca de rolezinho de moto (e promete vídeo com ministros confessando o uso de cloroquina; cadê?), Bolsonaro expande a Codevasf — chegou mesmo ao Amapá — para abrigar toda a mamata que tinha acabado. (Quem dera se ele transpusesse águas assim.)
O decreto do valente do futuro: obra — bravata — de um governante que, desde sua condição de líder sectário, precisa, num terreno fantasioso a cada dia mais comprimido pelo mundo real, dar respostas, a cada vez mais histéricas, aos três quarteirões que foram às ruas autorizá-lo, pressioná-lo, ao golpe. E então: blá-blá-blá.
Não que lhe falte o ímpeto golpista. Não que não teste brechas e embocaduras. E não que a pregação rompedora não imponha graves lacerações na musculatura republicana. No mundo real, contudo, sem apoio para ser Hugo Chávez, a ruptura é a possível, a que pode reelegê-lo em 2022: a de fronteiras, para que os vales do São Francisco e do Parnaíba se alargassem de modo a contemplar os tratores do sócio Centrão. No mundo real: sem apoio para ser Chávez, colhe o apoio de Eduardo Gomes e Wellington Roberto para ser Bolsonaro mesmo.
No mundo real: sobrepreço para aquisição de maquinário agrícola a partir de um orçamento secreto. (Afinal, mamata não vista, mamata não é.) No mundo dos patriotas contra o lockdown imaginário: a projeção de decreto — que tribunal nenhum contestará — para enquadrar entes destruidores da economia e supressores de empregos. Assim se equilibra o homem. Golpista, sim. Mas também empreendedor de sucesso, alguém que ergueu pujante empresa familiar nas bordas gordas do Estado.
A turma que foi às ruas bradou o #euautorizopresidente e o mito não sabia o que fazer. Ou melhor: sabia que só poderia produzir e difundir seus caôs. Um balanço delicado, com margens de operação muito apertadas. A resposta — satisfação e alimento aos seus — foi essa tosquice. A galera curtiu. O decreto destemido da gaveta quimérica. Contra o establishment que não o deixa agir (o mesmo que o banca), o próprio manifesto de frustração do golpista. O decreto prometido ao povo!, demandado pelo povo!; o povo, claro, segundo a compreensão totalitária de Bolsonaro — o povo sendo aquele que o apoia-autoriza.
No mundo real: Ciro Nogueira. No mundo real: o sistema que ora o sustenta sendo o mesmo que lhe reduz a natureza golpista a essas milongas. E dá-lhe aglomeração, e cloroquina, e China, e guerra química, e eleição auditável, e decreto "quem sabe um dia". O Centrão autoriza.
No mundo real: o tratorão; e o Bolsonaro sabedor de que não pode decretar seu delírio. Sabedor de que os decretos de governadores e prefeitos, submetidos a constante controle de constitucionalidade, têm o aval do Supremo. E de que, se decretasse para derrubá-los, passaria vergonha. Seria desmoralizado. O STF a lhe cassar a determinação. E então: o decreto pronto — que não sabe se usará.
No mundo real, pois, para enganar seu mundo da fantasia, o Bolsonaro bravateiro. Que, inconformado, sabe que não teria — ao contrário do que disse — apoio do Congresso para suas fanfarronices golpistas. O Brasil não é El Salvador, lá onde o Parlamento — para júbilo invejoso do bolsonarismo — destituiu a Suprema Corte. No mundo real: o Brasil é o MDB conforme Fernando Bezerra; o capaz de embarcar na canoa do Bolsonaro eleito, jamais na do Bolsonaro onipotente. Tratorão: sim. Tratorando: não.
No mundo real: seria o presidente investir contra o STF — e o faria caso decretasse sua bravura de gaveta — para perder a maioria parlamentar defensiva que cultiva terceirizando orçamento de ministério.
As chances de porvir para Bolsonaro derivam da mesma força que o limita. Os sócios do Centrão compõem curiosa modalidade de proteção à estabilidade institucional, habituados que estão — décadas já de máquina calibrada — a prosperar na democracia. Não estão a fim de mudanças. Mas são tolerantes. E autorizam: o presidente pode ser Ustra no cercadinho, desde que seja Rogério Marinho no Planalto.
Bolsonaro ostenta lema das milícias
Em 23 de abril, em atrasadíssima ida a Manaus, o presidente Jair Bolsonaro posou, sorridente, para fotografia segurando cartaz com os dizeres “CPF cancelado”. Fê-lo ao lado do apresentador do programa de TV Alerta Nacional, Sikêra Jr., e dos ministros da Saúde, Marcelo Queiroga, da Educação, Milton Ribeiro, e do Turismo, Gilson Machado Neto, líder da banda de forró Brucelose (infecção bacteriana que afeta milhares de pessoas no mundo). A expressão é usada por defensores de policiais que matam suspeitos em operações, como era, à época da ditadura militar, a caveira com ossos em xis usada pelo Esquadrão Le Coq, criado em 1965 para vingar a morte do detetive da Polícia Civil do Rio de Janeiro Milton Le Cocq. Essa scuderie inspirou grupos de extermínio de “bandidos” por policiais, entre os quais o delegado do Dops paulista Sérgio Fleury.
Fernando de Barros e Silva escreveu na revista Piauí o artigo País cancelado, que começa assim: “Jair Bolsonaro seguiu à risca o que se exige da mulher de César. Não basta ser miliciano, tem que parecer miliciano”. Este, segundo ele, seria o estilo “milícia ostentação”. Não que a famiglia presidencial omita que o deputado federal Jair Messias foi ao julgamento do chefe miliciano Adriano da Nóbrega e o homenageou em discurso na Câmara. Sob ordens dele, seu primogênito, Flávio, nomeou para próprio gabinete familiares do acusado de chefiar o Escritório do Crime, empreiteira de assassínios de aluguel. E entregou-lhe a Medalha Tiradentes na cela. Quando Nóbrega foi executado por policiais civis baianos e fluminenses, Flávio, já acusado de extorquir funcionários-fantasmas na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), lamentou a execução do criminoso em aparente queima de arquivo.
A chacina na favela do Jacarezinho, da qual as vítimas dos policiais só foram identificadas três dias depois, foi comemorada pelo presidente e por seu eventual sucessor, Hamilton Mourão. Este Estadão contou, assim que a lista foi revelada, que um terço das vítimas – nove em 27 – não era de réus na Justiça. A Polícia Civil do Rio, notória suspeita de corrupção, saiu pela tangente de que alguns eram por ela investigados. A desculpa – amarela como a cor da Bandeira Nacional, usada como manto protetor por fascistoides que elogiam assassinos e torturadores notórios, caso do coronel Brilhante Ustra – seria a de que eram, no mínimo, suspeitos. Não se sabe se são mesmo ou se passaram a sê-lo depois de fuzilados. Mas sabe-se algo que, ao que parece, presidente e vice desconhecem: o sistema judicial brasileiro não admite a pena de morte. Se nem pela Justiça, imagine por forças policiais.
O jornalista Edilson Martins anotou, em texto no Facebook: “Quem achaca as comunidades, tortura seus moradores, elimina os que se negam a pagar por seus serviços – luz, tv, gás, telefone, segurança, entre outros negócios – são as milícias. Estas são lideradas por policiais militares expulsos da corporação, ou ainda na ativa, bombeiros idem, além de policiais civis infratores, e têm parceria com políticos que ajudam a eleger: governadores, deputados federais e vereadores. O atual presidente teve ligações, juntamente com os filhos, com milicianos notórios”. E acrescentou: “Nunca houve megaoperação, em nenhum governo, contra as milícias. Na cidade do Rio elas ocupam e dominam 53% do município. O tráfico controla 15,14% do território da cidade. A favela de Jacarezinho não tem, ou pelo menos não tinha, a presença das milícias”.
Para ilustrar, o colega citou uma frase do patriarca esquerdista Lula a respeito de massacre similar perpetrado sob o comando do aliado Sérgio Cabral, do MDB, ao lado de quem comentou invasão da mesma polícia em 7 de abril de 2007 (há 14 anos): “Nessa ação de vocês no Complexo do Alemão, tem gente que acha que é possível enfrentar a bandidagem com pétalas de rosa ou jogando pó-de-arroz”. Sobre outro emedebista, Michel Temer, hoje conselheiro-mor de papai Jair Messias, Edilson registrou: “O atual ministro da Defesa, Braga Neto, já foi comandante de uma intervenção militar do Exército durante quase um ano no Estado do Rio. Nunca realizou incursão contra as milícias na cidade do Rio. Contra o tráfico as incursões foram cinematográficas”.
Não será inútil lembrar que, na véspera do massacre, Bolsonaro visitou o anspeçada do filho Flávio, Cláudio Castro, no Palácio Guanabara. Pode ter sido mera coincidência, mas não deve ser omitido. De vez que manchetes diversionistas serão sempre bem-vindas em momentos de tensão como os ora produzidos no Palácio do Planalto pela CPI da Covid no Senado.
O ex-secretário nacional de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares lembrou: “Com o Jacarezinho, a depender da reação do STF, se legitimará, preparando o próximo passo, o lance final contra a democracia: a institucionalização definitiva da autonomia policial, de que o excludente de ilicitude será um (funesto) detalhe”. A esse respeito, o fecho do editorial Com todas as palavras, deste jornal, vaticina “‘O recado está dado’, advertiu Bolsonaro. Seria imprudente ignorá-lo”. É isso aí.
Fernando de Barros e Silva escreveu na revista Piauí o artigo País cancelado, que começa assim: “Jair Bolsonaro seguiu à risca o que se exige da mulher de César. Não basta ser miliciano, tem que parecer miliciano”. Este, segundo ele, seria o estilo “milícia ostentação”. Não que a famiglia presidencial omita que o deputado federal Jair Messias foi ao julgamento do chefe miliciano Adriano da Nóbrega e o homenageou em discurso na Câmara. Sob ordens dele, seu primogênito, Flávio, nomeou para próprio gabinete familiares do acusado de chefiar o Escritório do Crime, empreiteira de assassínios de aluguel. E entregou-lhe a Medalha Tiradentes na cela. Quando Nóbrega foi executado por policiais civis baianos e fluminenses, Flávio, já acusado de extorquir funcionários-fantasmas na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), lamentou a execução do criminoso em aparente queima de arquivo.
A chacina na favela do Jacarezinho, da qual as vítimas dos policiais só foram identificadas três dias depois, foi comemorada pelo presidente e por seu eventual sucessor, Hamilton Mourão. Este Estadão contou, assim que a lista foi revelada, que um terço das vítimas – nove em 27 – não era de réus na Justiça. A Polícia Civil do Rio, notória suspeita de corrupção, saiu pela tangente de que alguns eram por ela investigados. A desculpa – amarela como a cor da Bandeira Nacional, usada como manto protetor por fascistoides que elogiam assassinos e torturadores notórios, caso do coronel Brilhante Ustra – seria a de que eram, no mínimo, suspeitos. Não se sabe se são mesmo ou se passaram a sê-lo depois de fuzilados. Mas sabe-se algo que, ao que parece, presidente e vice desconhecem: o sistema judicial brasileiro não admite a pena de morte. Se nem pela Justiça, imagine por forças policiais.
O jornalista Edilson Martins anotou, em texto no Facebook: “Quem achaca as comunidades, tortura seus moradores, elimina os que se negam a pagar por seus serviços – luz, tv, gás, telefone, segurança, entre outros negócios – são as milícias. Estas são lideradas por policiais militares expulsos da corporação, ou ainda na ativa, bombeiros idem, além de policiais civis infratores, e têm parceria com políticos que ajudam a eleger: governadores, deputados federais e vereadores. O atual presidente teve ligações, juntamente com os filhos, com milicianos notórios”. E acrescentou: “Nunca houve megaoperação, em nenhum governo, contra as milícias. Na cidade do Rio elas ocupam e dominam 53% do município. O tráfico controla 15,14% do território da cidade. A favela de Jacarezinho não tem, ou pelo menos não tinha, a presença das milícias”.
Para ilustrar, o colega citou uma frase do patriarca esquerdista Lula a respeito de massacre similar perpetrado sob o comando do aliado Sérgio Cabral, do MDB, ao lado de quem comentou invasão da mesma polícia em 7 de abril de 2007 (há 14 anos): “Nessa ação de vocês no Complexo do Alemão, tem gente que acha que é possível enfrentar a bandidagem com pétalas de rosa ou jogando pó-de-arroz”. Sobre outro emedebista, Michel Temer, hoje conselheiro-mor de papai Jair Messias, Edilson registrou: “O atual ministro da Defesa, Braga Neto, já foi comandante de uma intervenção militar do Exército durante quase um ano no Estado do Rio. Nunca realizou incursão contra as milícias na cidade do Rio. Contra o tráfico as incursões foram cinematográficas”.
Não será inútil lembrar que, na véspera do massacre, Bolsonaro visitou o anspeçada do filho Flávio, Cláudio Castro, no Palácio Guanabara. Pode ter sido mera coincidência, mas não deve ser omitido. De vez que manchetes diversionistas serão sempre bem-vindas em momentos de tensão como os ora produzidos no Palácio do Planalto pela CPI da Covid no Senado.
O ex-secretário nacional de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares lembrou: “Com o Jacarezinho, a depender da reação do STF, se legitimará, preparando o próximo passo, o lance final contra a democracia: a institucionalização definitiva da autonomia policial, de que o excludente de ilicitude será um (funesto) detalhe”. A esse respeito, o fecho do editorial Com todas as palavras, deste jornal, vaticina “‘O recado está dado’, advertiu Bolsonaro. Seria imprudente ignorá-lo”. É isso aí.
Silêncio ensurdecedor sobre a educação
Sou fruto de um Brasil que poderia ter dado certo. Estrangeiros enxergavam o País como uma terra de oportunidades. A julgar pelas amplas evidências empíricas sobre as razões para as diferentes performances dos países, nosso maior erro histórico foi a atenção tardia e insuficiente à educação básica. Universalizamos o ensino, mas insistimos no erro da baixa qualidade de gestão.
Meus avós eram quase analfabetos. Do lado materno, chegaram ao Brasil como mão de obra braçal no interior longínquo de São Paulo. Os imigrantes valorizavam o estudo mais do que os brasileiros de renda equivalente, além de muitos deles terem maior capital humano.
Assim contribuíram para o investimento estatal na educação, no Chile e na Argentina, e também em algumas regiões do Brasil, como São Paulo e Rio Grande do Sul.
Analisando as imigrações patrocinadas por São Paulo entre o final do século 18 e o início do 19, Rudi Rocha, Claudio Ferraz e Rodrigo Soares encontraram relação entre cidades que receberam estrangeiros e o maior avanço da escolaridade, com benefícios de longo prazo para suas economias.
Na Primeira República, São Paulo tornou-se um dos líderes da educação primária do país, aponta Renato Colistete. Houve reforma no ensino e criação de grupos escolares, favorecidos pela receita orçamentária gerada com a valorização do café – mas não na mesma proporção -, em meio a pressões sociais e ao reconhecimento entre políticos e intelectuais do atraso educacional e suas consequências.
Os indicadores de escolaridade evoluíram bastante, ainda que não o suficiente para equipará-los aos da Argentina, por exemplo, e a evasão era elevada, pois muitas crianças trabalhavam na lavoura de café.
Minha mãe beneficiou-se dos avanços no ensino e escapou da armadilha que reservava às classes populares o trabalho manual – visto ainda hoje com preconceito. Bem formada, pôde ingressar na Universidade de São Paulo (USP). Prestou concorrido concurso para o magistério na rede pública e tornou-se professora do ensino médio em 1961.
Professores eram relativamente bem remunerados, mas a cobrança era grande. Exigia-se dedicação e desempenho em sala. Atrasos, aulas e provas mal elaboradas ou turmas indisciplinadas, por exemplo, eram repreendidos e dificultavam promoções na carreira. Havia concorrência entre diretores de escolas por performance.
Ilustra o grau de engajamento dos docentes o grupo de professoras, do qual Dona Arminda participava, que voluntariamente se reuniu para estudar genética - matéria recém introduzida no ensino universitário com a descoberta e pesquisas do DNA -, e inseriu o tema no currículo do ensino médio nas escolas de Campinas.
O governo militar contribuiu para a extensão da escolaridade obrigatória de 4 para 8 anos e isso implicava a ampliação da rede, mas junto veio a piora paulatina na qualidade de ensino. Minha mãe lamentava as menores exigências a cada concurso público e sofreu o achatamento salarial ao longo dos anos, agravado pela crise econômica e facilitado pela inflação galopante.
Martelava a frase do governador Paulo Maluf, em 1981, “professora não é mal paga, é mal casada". As prioridades dos militares eram outras, não só o ensino universitário, que se revoltava, mas certamente o impulso artificial à economia. Duplo erro e grande oportunidade perdida.
Na transição democrática, ela se preocupava com a politização nas escolas que comprometia o ensino. As sequelas do regime militar se estendiam à rede pública. Os ressentimentos por conta de perseguições políticas e a desvalorização da carreira alimentaram a sindicalização, enquanto desapareciam as cobranças por desempenho e a meritocracia nas promoções e nas indicações de postos mais elevados na hierarquia.
Salários têm sido recuperados nos últimos anos, mas seguem os problemas de qualidade de ensino, exposto na fraca performance dos alunos.
O desastre da educação está escancarado nos muitos Jacarezinhos espalhados pelo país e a pandemia agrava o quadro seriamente. É necessário corrigir o atraso no ensino e as sequelas da interrupção das aulas, e viabilizar o uso de novas tecnologias.
A adesão das empresas a princípios ESG – o S é de social - precisa se traduzir em oportunidades para a educação básica e para o treinamento e inserção produtiva dos jovens, com envolvimento da comunidade. Enquanto isso, nem uma palavra do governo federal.
Meus avós eram quase analfabetos. Do lado materno, chegaram ao Brasil como mão de obra braçal no interior longínquo de São Paulo. Os imigrantes valorizavam o estudo mais do que os brasileiros de renda equivalente, além de muitos deles terem maior capital humano.
Assim contribuíram para o investimento estatal na educação, no Chile e na Argentina, e também em algumas regiões do Brasil, como São Paulo e Rio Grande do Sul.
Analisando as imigrações patrocinadas por São Paulo entre o final do século 18 e o início do 19, Rudi Rocha, Claudio Ferraz e Rodrigo Soares encontraram relação entre cidades que receberam estrangeiros e o maior avanço da escolaridade, com benefícios de longo prazo para suas economias.
Na Primeira República, São Paulo tornou-se um dos líderes da educação primária do país, aponta Renato Colistete. Houve reforma no ensino e criação de grupos escolares, favorecidos pela receita orçamentária gerada com a valorização do café – mas não na mesma proporção -, em meio a pressões sociais e ao reconhecimento entre políticos e intelectuais do atraso educacional e suas consequências.
Os indicadores de escolaridade evoluíram bastante, ainda que não o suficiente para equipará-los aos da Argentina, por exemplo, e a evasão era elevada, pois muitas crianças trabalhavam na lavoura de café.
Minha mãe beneficiou-se dos avanços no ensino e escapou da armadilha que reservava às classes populares o trabalho manual – visto ainda hoje com preconceito. Bem formada, pôde ingressar na Universidade de São Paulo (USP). Prestou concorrido concurso para o magistério na rede pública e tornou-se professora do ensino médio em 1961.
Professores eram relativamente bem remunerados, mas a cobrança era grande. Exigia-se dedicação e desempenho em sala. Atrasos, aulas e provas mal elaboradas ou turmas indisciplinadas, por exemplo, eram repreendidos e dificultavam promoções na carreira. Havia concorrência entre diretores de escolas por performance.
Ilustra o grau de engajamento dos docentes o grupo de professoras, do qual Dona Arminda participava, que voluntariamente se reuniu para estudar genética - matéria recém introduzida no ensino universitário com a descoberta e pesquisas do DNA -, e inseriu o tema no currículo do ensino médio nas escolas de Campinas.
O governo militar contribuiu para a extensão da escolaridade obrigatória de 4 para 8 anos e isso implicava a ampliação da rede, mas junto veio a piora paulatina na qualidade de ensino. Minha mãe lamentava as menores exigências a cada concurso público e sofreu o achatamento salarial ao longo dos anos, agravado pela crise econômica e facilitado pela inflação galopante.
Martelava a frase do governador Paulo Maluf, em 1981, “professora não é mal paga, é mal casada". As prioridades dos militares eram outras, não só o ensino universitário, que se revoltava, mas certamente o impulso artificial à economia. Duplo erro e grande oportunidade perdida.
Na transição democrática, ela se preocupava com a politização nas escolas que comprometia o ensino. As sequelas do regime militar se estendiam à rede pública. Os ressentimentos por conta de perseguições políticas e a desvalorização da carreira alimentaram a sindicalização, enquanto desapareciam as cobranças por desempenho e a meritocracia nas promoções e nas indicações de postos mais elevados na hierarquia.
Salários têm sido recuperados nos últimos anos, mas seguem os problemas de qualidade de ensino, exposto na fraca performance dos alunos.
O desastre da educação está escancarado nos muitos Jacarezinhos espalhados pelo país e a pandemia agrava o quadro seriamente. É necessário corrigir o atraso no ensino e as sequelas da interrupção das aulas, e viabilizar o uso de novas tecnologias.
A adesão das empresas a princípios ESG – o S é de social - precisa se traduzir em oportunidades para a educação básica e para o treinamento e inserção produtiva dos jovens, com envolvimento da comunidade. Enquanto isso, nem uma palavra do governo federal.
Milícia, chacina, samba: o Rio de Bolsonaro e Paes
Na semana em que o mundo assistiu à chacina mais letal da nossa história, na semana em que perdemos Paulo Gustavo, o humorista mais talentoso de sua geração, aos 42 anos, literalmente por falta de vacina, na semana em que a pandemia continua matando brasileiros sem dó nem piedade, o prefeito da Cidade Maravilhosa foi para o samba.
A repercussão de Paes “cariocando” teve gosto de vingança. É do prefeito a proibição de rodas de samba no Rio de Janeiro. Ele estava sem máscara, aglomerado, cantando. Comemorando exatamente o que? Não há o que comemorar, prefeito. Estamos tristes. A cidade está triste. O País está triste.
O pedido de desculpas – dispensável diante do desaforo – não apaga a cena. Perdemos, Eduardo Paes, o respeito pela autoridade. Perdemos a alegria de levantar todos os dias num Pais ensolarado e generoso para ver o seu povo adoecendo e morrendo nas mãos dos senhores governantes.
Não perdemos a capacidade de indignação, de entender a dor do outro. A chacina do Jacarezinho é um soco na alma. Ainda que se passem anos, décadas, nunca vamos superar a atrocidade cometida pela policia do Rio de Janeiro, sob o comando de Claudio Castro, governador por acaso, desconhecido até pouco tempo. Bolsonarista de carteirinha.
conteudo patrocinado
Castro mantém vinculo estreito com a família Bolsonaro. Na véspera da chacina, por coincidência, o Capitão esteve com o governador, no Rio, em inusitada visita para discutir investimentos no Estado. Tema relevante, tomou 50 minutos de sua agenda. Bolsonaro chegou às 16h40 e saiu do Palácio Laranjeiras às 17h30.
No dia seguinte à tragédia, desafiando ordens do STF, nem Castro nem Bolsonaro se mostraram indignados com a matança no Jacarezinho. Não se compadeceram da dor que tomou conta do Brasil. Ao contrario. A “operação” foi resultado de trabalho de “inteligência”, disse Castro. Dizimaram 29 vidas, comemoraram Castro e Bolsonaro.
Números frios dão a dimensão do que a policia teima em chamar de operação, e nós chamamos de massacre, fuzilamento, matança, carnificina: das 29 pessoas assassinadas, apenas quatro eram alvo de prisão. Nunca execução. E mais: dois dos homens executados pela policia não tinham sequer antecedentes criminais.
Em nome da lei, o Estado não tem autorização para invadir comunidades e fuzilar pessoas. Relatórios “secretos” da policia insiste em dizer que houve confronto. Não é verdade. Um dos homens assassinados foi encontrado com o corpo cravado de balas sentado numa cadeira de plástico. Impossível não lembrar práticas milicianas que aterrorizam nossa população.
Os pecados de Claudio Castro – e de Bolsonaro – não se resumem à ausência do espirito cristão – o Governador canta e reza todos os domingos numa igreja católica da Barra da Tijuca. Vão além. Castro é traíra. Quando o impeachment de Witzel começou a ser articulado, Castro acenou para a bancada do PSOL, prometendo romper com a política de confronto defendida pelo governador cassado.
Castro faltou com a palavra. Preferiu a matança, o “tiro na cabecinha”. Escolheu o lado mais funesto da política, mergulhou fundo no bolsonarismo. Mais um governador com destino certo: o desprezo do eleitor. Desafortunado Estado do Rio de Janeiro. Desventurada Cidade Maravilhosa. Sua gente não merece esse mórbido triunvirato.
Mirian Guaraciaba
A repercussão de Paes “cariocando” teve gosto de vingança. É do prefeito a proibição de rodas de samba no Rio de Janeiro. Ele estava sem máscara, aglomerado, cantando. Comemorando exatamente o que? Não há o que comemorar, prefeito. Estamos tristes. A cidade está triste. O País está triste.
O pedido de desculpas – dispensável diante do desaforo – não apaga a cena. Perdemos, Eduardo Paes, o respeito pela autoridade. Perdemos a alegria de levantar todos os dias num Pais ensolarado e generoso para ver o seu povo adoecendo e morrendo nas mãos dos senhores governantes.
Não perdemos a capacidade de indignação, de entender a dor do outro. A chacina do Jacarezinho é um soco na alma. Ainda que se passem anos, décadas, nunca vamos superar a atrocidade cometida pela policia do Rio de Janeiro, sob o comando de Claudio Castro, governador por acaso, desconhecido até pouco tempo. Bolsonarista de carteirinha.
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Castro mantém vinculo estreito com a família Bolsonaro. Na véspera da chacina, por coincidência, o Capitão esteve com o governador, no Rio, em inusitada visita para discutir investimentos no Estado. Tema relevante, tomou 50 minutos de sua agenda. Bolsonaro chegou às 16h40 e saiu do Palácio Laranjeiras às 17h30.
No dia seguinte à tragédia, desafiando ordens do STF, nem Castro nem Bolsonaro se mostraram indignados com a matança no Jacarezinho. Não se compadeceram da dor que tomou conta do Brasil. Ao contrario. A “operação” foi resultado de trabalho de “inteligência”, disse Castro. Dizimaram 29 vidas, comemoraram Castro e Bolsonaro.
Números frios dão a dimensão do que a policia teima em chamar de operação, e nós chamamos de massacre, fuzilamento, matança, carnificina: das 29 pessoas assassinadas, apenas quatro eram alvo de prisão. Nunca execução. E mais: dois dos homens executados pela policia não tinham sequer antecedentes criminais.
Em nome da lei, o Estado não tem autorização para invadir comunidades e fuzilar pessoas. Relatórios “secretos” da policia insiste em dizer que houve confronto. Não é verdade. Um dos homens assassinados foi encontrado com o corpo cravado de balas sentado numa cadeira de plástico. Impossível não lembrar práticas milicianas que aterrorizam nossa população.
Os pecados de Claudio Castro – e de Bolsonaro – não se resumem à ausência do espirito cristão – o Governador canta e reza todos os domingos numa igreja católica da Barra da Tijuca. Vão além. Castro é traíra. Quando o impeachment de Witzel começou a ser articulado, Castro acenou para a bancada do PSOL, prometendo romper com a política de confronto defendida pelo governador cassado.
Castro faltou com a palavra. Preferiu a matança, o “tiro na cabecinha”. Escolheu o lado mais funesto da política, mergulhou fundo no bolsonarismo. Mais um governador com destino certo: o desprezo do eleitor. Desafortunado Estado do Rio de Janeiro. Desventurada Cidade Maravilhosa. Sua gente não merece esse mórbido triunvirato.
Mirian Guaraciaba
Raiva, o antídoto
A raiva vai continuar enquanto o mal permanecer. Enquanto a vida for tratada como número. Enquanto tiverem pessoas defendendo o indefensável. É isso que nos torna humanos. Não terão ido em vãoÉrika Frazão
Uma rota de saída do inferno
Recebemos como herança maldita uma sociedade saída do ventre do latifúndio e da escravidão e fomos em nossa história lenientes em recusá-la. Ao contrário, seguimos em frente na ilusão de estarmos realizando obra civilizatória sem remover esse lastro pestilencial e até se aproveitando dele no que propiciava o ingresso na moderna ordem burguesa. Pagamos agora, gregos e troianos, nossos vícios de origem com as pragas que emulam com as das cenas bíblicas como as do bolsonarismo, da pandemia descontrolada, com a carnificina exercida sobre jovens pretos favelados e sob ameaça de que a fome venha ainda mais a afligir nossas populações desvalidas. Isolados do resto do mundo, não temos para onde fugir. As portas do êxodo estão fechadas para nós, que temos de ficar aqui e encontrar as vias de saída do inferno que nosso país se tornou.
O caminho para esta jornada é o da política que na aparência se mostra fértil para as incursões redentoras, mas basta que elas se iniciem para que se encontrem com os muros das nossas taras congênitas como as do patrimonialismo e do patriarcalismo que sempre o acompanha, engrenagens poderosas treinadas em barrar os processos de mudança, presentes em número expressivo na nossa representação parlamentar. Pois é preciso que se atente para o fato de que o atual governo não deve sua existência apenas à desastrada ação na política dos partidos democráticos, mas a uma concertação – elaborada sem dúvida açodadamente – de setores das elites cujas raízes se vinculam à formula reacionária com que o país veio ao mundo, tal como no caso exemplar das relações entre o secular latifúndio e o moderno agronegócio, uma das peças de sustentação do estado de coisas reinantes.
Tal circunstância, do ponto de vista do operador político democrático, deve ser levada em conta a fim de reparar na distância mantida entre as dimensões da política, em que o governo Bolsonaro mingua com as do social – entendidas aí restritivamente como a malha de interesses estruturadas a partir das ações das elites econômicas dominantes – até então confortáveis, em que pesem os desatinos presidenciais, com o terreno seguro que têm encontrado para a expansão dos seus negócios. Atuar nesse cenário, no contexto de uma pandemia que imobiliza a sociedade, reclama pela presença de personagens à altura do desafio de nos reconduzir à plenitude dos meios democráticos na condução da administração pública, objetivo ao alcance das mãos se tivermos a sabedoria de alguns dos nossos maiores como Ulisses Guimarães e Tancredo Neves na articulação de uma ampla coalizão democrática para a próxima sucessão presidencial, ou antes dela, na melhor das hipóteses.
Faz-se necessário compreender que a coalizão reacionária no poder, apesar da sua aparência caótica, nasce e persiste – como se evidencia no comportamento dos senadores governistas na atual CPI – como um projeto orientado para malbaratar o marco democrático fixado pala Carta de 1988 com os direitos sociais que consagrou e com seus procedimentos de controle do poder político. Imprimir um movimento de marcha à ré nas conquistas acumuladas por parte da sociedade em todas as suas esferas, das institucionais às culturais e comportamentais, tem sido o leit motiv do governo que aí está.
Com essa direção enviesada Bolsonaro arremedou a política retrô em questões internacionais e sobretudo ambientais de Donald Trump, fragorosamente derrotada nas últimas eleições americanas pela candidatura de Joe Biden cujo programa defendeu o retorno do seu país ao cultivo dos seus valores fundacionais. Essa metamorfose da cena internacional, de óbvio impacto em nosso continente, soma-se às dificuldades internas para que o “regime” Bolsonaro se reproduza, uma tentativa anacrônica de nos devolver aos idos do AI-5, especialmente vistas da perspectiva das questões ambientais e direitos humanos, em maré montante nos EUA e na União Européia, com a força gravitacional que suas políticas exercem sobre a cena brasileira.
Por dentro e por fora, as pretensões de continuidade do atual governo se confrontam com o mundo das coisas reais. Bolsonaro demonstra conhecer as dificuldades à sua frente, e, tal como Trump, de que é patética caricatura, envereda pelo atalho sinistro da conspiração contra o processo eleitoral, investindo contra o voto eletrônico, de notória lisura, atestada por várias investigações especializadas. Ainda como Trump, Bolsonaro visa melar o processo eleitoral, e, desde agora inicia esse movimento aliciando a ralé de camadas médias que o acompanha em ridículas passeatas de motocicletas, quando confessa sem rebuços, como Bonaparte às vésperas do golpe de 18 Brumário que leva seu nome, que a legalidade é o que nos mata.
Não será sem atropelos que teremos de volta a democracia livre dessa permanente conspiração que a assedia, para tanto, contamos com a vacinação massiva da população, agora alavancada pelos debates suscitados na CPI que esclarecem os motivos obscuros da inação do governo na obtenção de vacinas e destrancam as vias pelas quais elas podem ser melhor negociadas, a fim de que afinal, como já acontece em vários países, as ruas se abram às manifestações populares, que é o que nos falta para nos livrarmos da tormenta desse pesadelo.
Não é de ciência certa, em política nada é, mas se conseguirmos a lucidez que nos propicie, por cima dos pequenos apetites e das idiossincrasias que infestam a nossa política, articular o maior arco de alianças possível, está ao alcance das mãos trazer de volta a sanidade na administração pública e uma nova possibilidade para um ajuste necessário com o que subsiste em nós da herança maldita que recebemos ao vir ao mundo.
O caminho para esta jornada é o da política que na aparência se mostra fértil para as incursões redentoras, mas basta que elas se iniciem para que se encontrem com os muros das nossas taras congênitas como as do patrimonialismo e do patriarcalismo que sempre o acompanha, engrenagens poderosas treinadas em barrar os processos de mudança, presentes em número expressivo na nossa representação parlamentar. Pois é preciso que se atente para o fato de que o atual governo não deve sua existência apenas à desastrada ação na política dos partidos democráticos, mas a uma concertação – elaborada sem dúvida açodadamente – de setores das elites cujas raízes se vinculam à formula reacionária com que o país veio ao mundo, tal como no caso exemplar das relações entre o secular latifúndio e o moderno agronegócio, uma das peças de sustentação do estado de coisas reinantes.
Tal circunstância, do ponto de vista do operador político democrático, deve ser levada em conta a fim de reparar na distância mantida entre as dimensões da política, em que o governo Bolsonaro mingua com as do social – entendidas aí restritivamente como a malha de interesses estruturadas a partir das ações das elites econômicas dominantes – até então confortáveis, em que pesem os desatinos presidenciais, com o terreno seguro que têm encontrado para a expansão dos seus negócios. Atuar nesse cenário, no contexto de uma pandemia que imobiliza a sociedade, reclama pela presença de personagens à altura do desafio de nos reconduzir à plenitude dos meios democráticos na condução da administração pública, objetivo ao alcance das mãos se tivermos a sabedoria de alguns dos nossos maiores como Ulisses Guimarães e Tancredo Neves na articulação de uma ampla coalizão democrática para a próxima sucessão presidencial, ou antes dela, na melhor das hipóteses.
Faz-se necessário compreender que a coalizão reacionária no poder, apesar da sua aparência caótica, nasce e persiste – como se evidencia no comportamento dos senadores governistas na atual CPI – como um projeto orientado para malbaratar o marco democrático fixado pala Carta de 1988 com os direitos sociais que consagrou e com seus procedimentos de controle do poder político. Imprimir um movimento de marcha à ré nas conquistas acumuladas por parte da sociedade em todas as suas esferas, das institucionais às culturais e comportamentais, tem sido o leit motiv do governo que aí está.
Com essa direção enviesada Bolsonaro arremedou a política retrô em questões internacionais e sobretudo ambientais de Donald Trump, fragorosamente derrotada nas últimas eleições americanas pela candidatura de Joe Biden cujo programa defendeu o retorno do seu país ao cultivo dos seus valores fundacionais. Essa metamorfose da cena internacional, de óbvio impacto em nosso continente, soma-se às dificuldades internas para que o “regime” Bolsonaro se reproduza, uma tentativa anacrônica de nos devolver aos idos do AI-5, especialmente vistas da perspectiva das questões ambientais e direitos humanos, em maré montante nos EUA e na União Européia, com a força gravitacional que suas políticas exercem sobre a cena brasileira.
Por dentro e por fora, as pretensões de continuidade do atual governo se confrontam com o mundo das coisas reais. Bolsonaro demonstra conhecer as dificuldades à sua frente, e, tal como Trump, de que é patética caricatura, envereda pelo atalho sinistro da conspiração contra o processo eleitoral, investindo contra o voto eletrônico, de notória lisura, atestada por várias investigações especializadas. Ainda como Trump, Bolsonaro visa melar o processo eleitoral, e, desde agora inicia esse movimento aliciando a ralé de camadas médias que o acompanha em ridículas passeatas de motocicletas, quando confessa sem rebuços, como Bonaparte às vésperas do golpe de 18 Brumário que leva seu nome, que a legalidade é o que nos mata.
Não será sem atropelos que teremos de volta a democracia livre dessa permanente conspiração que a assedia, para tanto, contamos com a vacinação massiva da população, agora alavancada pelos debates suscitados na CPI que esclarecem os motivos obscuros da inação do governo na obtenção de vacinas e destrancam as vias pelas quais elas podem ser melhor negociadas, a fim de que afinal, como já acontece em vários países, as ruas se abram às manifestações populares, que é o que nos falta para nos livrarmos da tormenta desse pesadelo.
Não é de ciência certa, em política nada é, mas se conseguirmos a lucidez que nos propicie, por cima dos pequenos apetites e das idiossincrasias que infestam a nossa política, articular o maior arco de alianças possível, está ao alcance das mãos trazer de volta a sanidade na administração pública e uma nova possibilidade para um ajuste necessário com o que subsiste em nós da herança maldita que recebemos ao vir ao mundo.
Violência e corrupção: aliadas de político miliciano
A chacina de Jacarezinho é a maior de todas na cidade do Rio de Janeiro. Mas, infelizmente, não surpreende. Choca, mas não surpreende. O quarto da menina de nove anos sendo limpo porque um policial executou uma pessoa ali não parece ser uma imagem forte o suficiente para reverter cenas que são cotidianas.
E como é possível que a escala, absolutamente única, da violência da polícia fluminense se mantenha de forma tão persistente? Uma das hipóteses seria dizer que a sociedade está assustada com a criminalidade e aceita conviver com uma polícia tão violenta como um custo para que o problema seja resolvido.
Mas o problema está sendo resolvido? A letalidade policial no Rio de Janeiro nunca conseguiu baixar a criminalidade. Ao contrário, a violência da polícia tem sido um elemento de piora da segurança pública no Estado. E os apoiadores dessa violência como solução são —conscientemente ou não— cúmplices da crise de segurança no Rio.
O filme Tropa de Elite prestou um grande desserviço ao debate sobre polícia no Brasil. Não vou discutir se essa foi ou não a intenção do seu diretor. Mas uma leitura corrente do filme, um dos mais vistos da história do cinema nacional, foi a de que duas polícias distintas eram apresentadas. Uma corrupta e outra violenta. Uma má e outra boa. Como quase tudo que é tão maniqueísta, tratava-se de ficção. Há apenas uma polícia. Com corrupção, violência, com gente séria e gente incompetente.
A dicotomia entre corrupção e violência é particularmente perversa. E particularmente enganosa. É perversa porque autoriza a violência, justifica a violência e coloca quem está contra a violência como aliado da corrupção. E é enganosa porque nada mais próximo da corrupção policial do que a violência policial. São fenômenos que se alimentam.
A corrupção necessita da violência. A corrupção policial —e aí falando especificamente do Rio de Janeiro— se constrói em uma rede de extorsão e cumplicidade que setores da polícia montam com a criminalidade. A polícia é violenta em algumas comunidades e isso permite que bandas podres da polícia possam extorquir, participar da venda de armas, ameaçar.
A violência autorizada é, na verdade, um cheque em branco para que a polícia aja fora da lei. Para que as corregedorias não investiguem a relação entre o crime organizado e a polícia. Afinal, investigar a polícia é romper o pacto de impunidade que os agentes da lei criam. Esse pacto se utiliza de um discurso de guerra no qual as leis, a Constituição e seus defensores seriam apenas entraves para que a polícia possa cumprir o papel que a sociedade quer que ela exerça nessa guerra. E é a partir desse pacto de impunidade, de uma certeza de que a polícia não será investigada, que floresce a polícia corrupta. A polícia que se alia à milícia. A polícia que é instrumento de setores políticos que vendem violência e embolsam corrupção.
O segundo filme do Tropa de Elite tenta desenhar um pouco essa relação. O inimigo agora é outro? Mas era tarde demais. A imagem da polícia violenta como honesta era poderosa demais. E útil demais para a máquina política criminosa. É o desenho perfeito. A população tem medo. O medo não pede uma solução de políticas públicas a longo prazo. O medo pede respostas fortes, imediatas. A violência é essa resposta. E a violência policial tem o duplo condão de abrir novos mercados para as bandas criminosas e milicianas dentro do Estado, escolhendo qual facção controlará determinado território, recebendo seu quinhão —via corrupção— no lucro dos mercados ilegais do Rio de Janeiro e, também, de criar o discurso político que entrega sangue para receber votos.
Os políticos que defendem os milicianos, que defendem a violência policial como política, constroem sua base política explorando o medo da população, usando o espetáculo da violência como propaganda política e garantem a impunidade para os setores da polícia que se infiltram, controlam e se aproveitam do domínio de território exercido pelo crime.
Para quem se interessa por essa discussão, é urgente ler A República das Milícias – dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro, de Bruno Paes Manso. Neste livro fica cristalina essa relação tão forte entre o discurso de apoio à violência policial, o crescimento da polícia corrupta e o grupo político que floresce do poder criminoso e lhe garante impunidade.
É esse ciclo vicioso no qual a violência e a corrupção se alimentam por meio da política que permite compreender como algo que vem dando errado há tanto tempo continua sendo levantado como bandeira para a segurança pública. Há interesses poderosos demais que sobrevivem politicamente desse ciclo.
Mas claro que não é só isso. A relação entre corrupção e violência, abraçadas pelo pacto da impunidade, só pode existir em uma sociedade que aceita a violência contra determinados grupos e em determinadas regiões. O racismo tão forte da nossa sociedade funciona como a grande benção a esse sistema corrupto. As vidas negras nas favelas são descartáveis. Todos são suspeitos. O Estado de Direito não deve existir para negros em favelas. O racismo é tão forte que é possível construir um discurso falso de que a violência traz segurança (mesmo com o fracasso tão retumbante do modelo) e gerar um pacto para proteger milicianos corruptos, assassinos, desde que essa violência recaia exclusivamente sobre negros moradores de favela.
A construção de uma política de segurança efetiva e para todos no Estado do Rio de Janeiro passa, em primeiro lugar, por quebrar esse ciclo vicioso de corrupção, violência, política e racismo. Para isso é necessário ser firme na defesa de um sistema de combate às ilegalidades cometidas pela polícia, no fortalecimento de uma polícia cumpridora da lei e intolerante com abusos de violência e de corrupção. É necessário que se desmascare a política que se constrói a partir da lógica miliciana de valorizar a violência para lucrar a corrupção. E é necessário o enfrentamento cotidiano e incansável ao racismo que é o verdadeiro óleo dessa engrenagem violenta e corrupta.
E como é possível que a escala, absolutamente única, da violência da polícia fluminense se mantenha de forma tão persistente? Uma das hipóteses seria dizer que a sociedade está assustada com a criminalidade e aceita conviver com uma polícia tão violenta como um custo para que o problema seja resolvido.
Mas o problema está sendo resolvido? A letalidade policial no Rio de Janeiro nunca conseguiu baixar a criminalidade. Ao contrário, a violência da polícia tem sido um elemento de piora da segurança pública no Estado. E os apoiadores dessa violência como solução são —conscientemente ou não— cúmplices da crise de segurança no Rio.
O filme Tropa de Elite prestou um grande desserviço ao debate sobre polícia no Brasil. Não vou discutir se essa foi ou não a intenção do seu diretor. Mas uma leitura corrente do filme, um dos mais vistos da história do cinema nacional, foi a de que duas polícias distintas eram apresentadas. Uma corrupta e outra violenta. Uma má e outra boa. Como quase tudo que é tão maniqueísta, tratava-se de ficção. Há apenas uma polícia. Com corrupção, violência, com gente séria e gente incompetente.
A dicotomia entre corrupção e violência é particularmente perversa. E particularmente enganosa. É perversa porque autoriza a violência, justifica a violência e coloca quem está contra a violência como aliado da corrupção. E é enganosa porque nada mais próximo da corrupção policial do que a violência policial. São fenômenos que se alimentam.
A corrupção necessita da violência. A corrupção policial —e aí falando especificamente do Rio de Janeiro— se constrói em uma rede de extorsão e cumplicidade que setores da polícia montam com a criminalidade. A polícia é violenta em algumas comunidades e isso permite que bandas podres da polícia possam extorquir, participar da venda de armas, ameaçar.
A violência autorizada é, na verdade, um cheque em branco para que a polícia aja fora da lei. Para que as corregedorias não investiguem a relação entre o crime organizado e a polícia. Afinal, investigar a polícia é romper o pacto de impunidade que os agentes da lei criam. Esse pacto se utiliza de um discurso de guerra no qual as leis, a Constituição e seus defensores seriam apenas entraves para que a polícia possa cumprir o papel que a sociedade quer que ela exerça nessa guerra. E é a partir desse pacto de impunidade, de uma certeza de que a polícia não será investigada, que floresce a polícia corrupta. A polícia que se alia à milícia. A polícia que é instrumento de setores políticos que vendem violência e embolsam corrupção.
O segundo filme do Tropa de Elite tenta desenhar um pouco essa relação. O inimigo agora é outro? Mas era tarde demais. A imagem da polícia violenta como honesta era poderosa demais. E útil demais para a máquina política criminosa. É o desenho perfeito. A população tem medo. O medo não pede uma solução de políticas públicas a longo prazo. O medo pede respostas fortes, imediatas. A violência é essa resposta. E a violência policial tem o duplo condão de abrir novos mercados para as bandas criminosas e milicianas dentro do Estado, escolhendo qual facção controlará determinado território, recebendo seu quinhão —via corrupção— no lucro dos mercados ilegais do Rio de Janeiro e, também, de criar o discurso político que entrega sangue para receber votos.
Os políticos que defendem os milicianos, que defendem a violência policial como política, constroem sua base política explorando o medo da população, usando o espetáculo da violência como propaganda política e garantem a impunidade para os setores da polícia que se infiltram, controlam e se aproveitam do domínio de território exercido pelo crime.
Para quem se interessa por essa discussão, é urgente ler A República das Milícias – dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro, de Bruno Paes Manso. Neste livro fica cristalina essa relação tão forte entre o discurso de apoio à violência policial, o crescimento da polícia corrupta e o grupo político que floresce do poder criminoso e lhe garante impunidade.
É esse ciclo vicioso no qual a violência e a corrupção se alimentam por meio da política que permite compreender como algo que vem dando errado há tanto tempo continua sendo levantado como bandeira para a segurança pública. Há interesses poderosos demais que sobrevivem politicamente desse ciclo.
Mas claro que não é só isso. A relação entre corrupção e violência, abraçadas pelo pacto da impunidade, só pode existir em uma sociedade que aceita a violência contra determinados grupos e em determinadas regiões. O racismo tão forte da nossa sociedade funciona como a grande benção a esse sistema corrupto. As vidas negras nas favelas são descartáveis. Todos são suspeitos. O Estado de Direito não deve existir para negros em favelas. O racismo é tão forte que é possível construir um discurso falso de que a violência traz segurança (mesmo com o fracasso tão retumbante do modelo) e gerar um pacto para proteger milicianos corruptos, assassinos, desde que essa violência recaia exclusivamente sobre negros moradores de favela.
A construção de uma política de segurança efetiva e para todos no Estado do Rio de Janeiro passa, em primeiro lugar, por quebrar esse ciclo vicioso de corrupção, violência, política e racismo. Para isso é necessário ser firme na defesa de um sistema de combate às ilegalidades cometidas pela polícia, no fortalecimento de uma polícia cumpridora da lei e intolerante com abusos de violência e de corrupção. É necessário que se desmascare a política que se constrói a partir da lógica miliciana de valorizar a violência para lucrar a corrupção. E é necessário o enfrentamento cotidiano e incansável ao racismo que é o verdadeiro óleo dessa engrenagem violenta e corrupta.
Entrementes, a morte
Num tempo de pandemia negada pela danação do primeiro mandatário, a convivência com a morte transformou-se em rotina. A virose desmoraliza a intencionalidade ligada ao conviver. Esse viver que nem sempre tem sintonia com alegria e hoje, lamentavelmente, encaixa-se como uma luva no sofrer.
Devidamente mascarado, passei pelo Bar do Soares e encontrei meu amigo Mario Batalha desolado com a morte do Paulo Gustavo. A máscara que abafava sua voz, mas não seu sentimento, lhe fazia lembrar que “viver é sofrer”. Essa harmonia desarranjada e escondida em outros lugares, mas que é muito nossa.
— Com tanta gente boa pra ir — falou Mario Batalha. — Por que a morte pandêmica pega justamente o nosso conterrâneo, esse jovem cheio de graça que nos palcos, como uma senhora-mãe de si mesma, fazia rir da rigidez entre masculino e feminino e entre gerações? Esse mestre da esperança, que demonstrava o poder do riso contra ódios e preconceitos.
— Seu humor era niteroiense — observava meu triste companheiro.
Quis saber por quê, e Mario discorreu sobre a índole da cidade, que jamais é vista por um Rio aristocrático e maravilhoso, corado por um Pão de Açúcar com bondinho e pelo abençoante Cristo Redentor. De fato, relembrei, dizem que o melhor de Niterói é a vista do Rio; todavia, nós, enraizados niteroienses, sabemos que a vista é — quem sabe? — a derradeira graça do Rio.
Um Rio hoje perdido entre administradores presos, filicídios, chacinas, balas perdidas, transporte público em colapso e seus pouco estudados traumas sociopolíticos. O de deixar de ser a capital do Reino, do Império, da República e uma grandiosa cidade-estado; para virar mera capital de um estado, como sempre foi a Niterói que buscava no Rio sua eventual grandeza.
“Numa aldeia, todo mundo é famoso”, dizia o famoso sociólogo Erving Goffman. Paulo Gustavo surgiu na aldeia da Rua Moreira César, em Icaraí, e, muito antes de se imaginar Dona Hermínia, uma jovem Déa Lúcia frequentava nossa casa iluminada pelo piano de minha mãe. Naquele tempo, em aldeia, éramos famosos, mas nem todo mundo virou uma “peça” que arrebatou tanta gente, transformando o futuro de sua mãe, Déa Lúcia, quando o filho ficou famoso no país.
Como se vira famoso fora de uma aldeia? Não sei, mas suspeito que a fama — o êxito ou a saída para o mundo do sucesso — tem a ver com talento e “graça” nas artes e esportes e “carisma” na vida pública.
A “graça” desse niteroiense ator-diretor-autor era fabricar riso. Suas impagáveis improvisações eram o entrementes do ato — o “caco” fora do texto. O gesto e a fala não previstas que animam a cena com o brilho, o talento que, após o suspense cênico, leva à explosão do riso. O improviso denuncia o real na representação e a teatralidade no real. Esses deslocamentos — que surgem no vagabundo solitário e desamparado de Chaplin e na figura materna brasileira desenhada por Paulo Gustavo — têm uma profunda relação com o imperativo humano de viver muitos papéis e — entrementes — ter uma só vida. Os papéis continuam, mas a vida termina...
As portas arrombadas por Paulo Gustavo desnudam os péssimos atores dos nossos palcos políticos. A graça que desmoraliza e sublima os preconceitos é básica neste Brasil formalista, repleto de “vossas excelências”.
Num Brasil hoje presidido por um ator que recusa, sabota e desonra o seu papel, as graças das comédias onde surge o carnavalesco são porradas de ar puro.
Se sabemos que não é fácil mudar, pelo menos podemos rir da nossa densa ignorância de nós mesmos. Essa negação da negação, como insistia Hegel. Perdemos, reitero, quem ajudava a lembrar crítica e alegremente um Brasil que se recusa a ver a si mesmo como autoritário, preconceituoso e hierárquico.
A palavra “graça” significa — como sua irmã “carisma” — um dom espiritual doado pelos poderes superiores. No mundo diário, falamos em talento ou virtuosidade. A grande graça da “graça” é o riso que sincroniza e contagia, criando uma solidariedade especial. Rir é uma questão sociopsicológica intrigante, investigada por filósofos, psicólogos e antropólogos; e também por Charles Chaplin (o Carlitos inglês que jaz dentro de cada um de nós). Pois o riso que faz chorar, e até mesmo morrer, tira a alma do corpo. Ele descobre as muitas almas divergentes num mesmo corpo.
A genialidade de Paulo Gustavo consistia precisamente nessa rara capacidade de reviver o riso. Esse rir inventado, diz um mito, pelo diabo. Gargalhada que os poderosos — com seus títulos, roubalheiras, ignorâncias e hipocrisia — não suportam.
Minha irmã, Ana Maria, e este escrevinhador enviamos nossos sentimentos a Déa Lúcia — ou melhor, a Dona Hermínia — e família.
Devidamente mascarado, passei pelo Bar do Soares e encontrei meu amigo Mario Batalha desolado com a morte do Paulo Gustavo. A máscara que abafava sua voz, mas não seu sentimento, lhe fazia lembrar que “viver é sofrer”. Essa harmonia desarranjada e escondida em outros lugares, mas que é muito nossa.
— Com tanta gente boa pra ir — falou Mario Batalha. — Por que a morte pandêmica pega justamente o nosso conterrâneo, esse jovem cheio de graça que nos palcos, como uma senhora-mãe de si mesma, fazia rir da rigidez entre masculino e feminino e entre gerações? Esse mestre da esperança, que demonstrava o poder do riso contra ódios e preconceitos.
Aderi e filosofei: a morte chega nos entrementes e todavia... Enquanto dávamos aula, na véspera de um aniversário, um pouco antes do baile, enquanto íamos à praia, ela surge enterrando e suspendendo todos os projetos.
— Seu humor era niteroiense — observava meu triste companheiro.
Quis saber por quê, e Mario discorreu sobre a índole da cidade, que jamais é vista por um Rio aristocrático e maravilhoso, corado por um Pão de Açúcar com bondinho e pelo abençoante Cristo Redentor. De fato, relembrei, dizem que o melhor de Niterói é a vista do Rio; todavia, nós, enraizados niteroienses, sabemos que a vista é — quem sabe? — a derradeira graça do Rio.
Um Rio hoje perdido entre administradores presos, filicídios, chacinas, balas perdidas, transporte público em colapso e seus pouco estudados traumas sociopolíticos. O de deixar de ser a capital do Reino, do Império, da República e uma grandiosa cidade-estado; para virar mera capital de um estado, como sempre foi a Niterói que buscava no Rio sua eventual grandeza.
“Numa aldeia, todo mundo é famoso”, dizia o famoso sociólogo Erving Goffman. Paulo Gustavo surgiu na aldeia da Rua Moreira César, em Icaraí, e, muito antes de se imaginar Dona Hermínia, uma jovem Déa Lúcia frequentava nossa casa iluminada pelo piano de minha mãe. Naquele tempo, em aldeia, éramos famosos, mas nem todo mundo virou uma “peça” que arrebatou tanta gente, transformando o futuro de sua mãe, Déa Lúcia, quando o filho ficou famoso no país.
Como se vira famoso fora de uma aldeia? Não sei, mas suspeito que a fama — o êxito ou a saída para o mundo do sucesso — tem a ver com talento e “graça” nas artes e esportes e “carisma” na vida pública.
A “graça” desse niteroiense ator-diretor-autor era fabricar riso. Suas impagáveis improvisações eram o entrementes do ato — o “caco” fora do texto. O gesto e a fala não previstas que animam a cena com o brilho, o talento que, após o suspense cênico, leva à explosão do riso. O improviso denuncia o real na representação e a teatralidade no real. Esses deslocamentos — que surgem no vagabundo solitário e desamparado de Chaplin e na figura materna brasileira desenhada por Paulo Gustavo — têm uma profunda relação com o imperativo humano de viver muitos papéis e — entrementes — ter uma só vida. Os papéis continuam, mas a vida termina...
As portas arrombadas por Paulo Gustavo desnudam os péssimos atores dos nossos palcos políticos. A graça que desmoraliza e sublima os preconceitos é básica neste Brasil formalista, repleto de “vossas excelências”.
Num Brasil hoje presidido por um ator que recusa, sabota e desonra o seu papel, as graças das comédias onde surge o carnavalesco são porradas de ar puro.
Se sabemos que não é fácil mudar, pelo menos podemos rir da nossa densa ignorância de nós mesmos. Essa negação da negação, como insistia Hegel. Perdemos, reitero, quem ajudava a lembrar crítica e alegremente um Brasil que se recusa a ver a si mesmo como autoritário, preconceituoso e hierárquico.
A palavra “graça” significa — como sua irmã “carisma” — um dom espiritual doado pelos poderes superiores. No mundo diário, falamos em talento ou virtuosidade. A grande graça da “graça” é o riso que sincroniza e contagia, criando uma solidariedade especial. Rir é uma questão sociopsicológica intrigante, investigada por filósofos, psicólogos e antropólogos; e também por Charles Chaplin (o Carlitos inglês que jaz dentro de cada um de nós). Pois o riso que faz chorar, e até mesmo morrer, tira a alma do corpo. Ele descobre as muitas almas divergentes num mesmo corpo.
A genialidade de Paulo Gustavo consistia precisamente nessa rara capacidade de reviver o riso. Esse rir inventado, diz um mito, pelo diabo. Gargalhada que os poderosos — com seus títulos, roubalheiras, ignorâncias e hipocrisia — não suportam.
Minha irmã, Ana Maria, e este escrevinhador enviamos nossos sentimentos a Déa Lúcia — ou melhor, a Dona Hermínia — e família.
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