sexta-feira, 8 de julho de 2022

Pensamento do Dia

 


Bolsonaro e o general Tiranolira Rex operam por ora o golpe da ilegalidade

Tivéssemos tradição na literatura surrealista —há bons autores, não uma escola—, seria a hora de lançar mãos à obra. Jair Bolsonaro, sob a sombra do seu "esquema militar" e ameaçando arregimentar outros arruaceiros como ele próprio, decidiu jogar o governo, o sistema político e as eleições na mais escancarada ilegalidade. Há um golpe em curso, que não depende dos soldados de Paulo Sérgio Nogueira, ministro da Defesa. Seu palco de operações é o Congresso Nacional, e o general atende pelo nome de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, que apelidei, em razão de suas artimanhas carnívoras, não da má vontade do escriba, de Tiranolira Rex.

A PEC que impôs o teto da alíquota de ICMS para combustíveis, energia, telecomunicação e transporte público é ilegal. Fere o pacto federativo, além de determinar perda permanente de receita para estados e municípios. Definir produtos ou serviços como essenciais para violar a Constituição é patranha amadora. Mas triunfou. Tiranolira tem as emendas do relator. E elas lhe facultam, em companhia de Bolsonaro, o comando do governo mais corrupto da história.


Até o chilique monocrático e "liberaloide" de Paulo Guedes ao reduzir por decreto o IPI, sob o pretexto de incentivar a produção, poderia ser questionado na Justiça. A decisão ignora que o governo renuncia a uma arrecadação que não é sua. Mais de metade desse dinheiro iria para estados e municípios por intermédio dos fundos de participação. Eis a turma que prometia mais Brasil e menos Brasília. É uma gente que seria apenas debochada não fosse também a incultura em sentido amplo, muito especialmente a democrática.

A PEC "Ai, que Medo de Lula" —pronuncia-se a expressão com acento à Narcisa Tamborindeguy— representa um momento único do Legislativo Brasileiro. Jamais um só texto violou tantos códigos legais ao mesmo tempo: a Lei Eleitoral, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Constituição. Essa gente escarnece das instituições e prepara uma armadilha para a oposição. Se esta se opusesse de peito aberto às "generosidades", Bolsonaro moveria a máquina de difamação para acusar os adversários de prejudicar os mais pobres, os caminhoneiros, os taxistas, os idosos... Deve-se, nesse caso, fazer o oposto de certo poeta: não perder a vida por delicadeza...

Também é inconstitucional a manobra para não instalar a CPI do MEC, que foi transformado em templo da ignomínia e da indecência. Por lá se falavam línguas estranhas, mas não por obra do Espírito Santo. Era só o argentário capiroto da estupidez, da cupidez e da ignorância se manifestando e punindo os mais pobres. Rodrigo Pacheco (PSD), presidente do Senado, que já elogiei aqui, cedeu ao desbunde reacionário e ilegalista.

O presidente da República e a cúpula do centrão —convertida ao golpismo legiferante, com as emendas do relator nas mãos— estão chamando para a briga o STF, que não deve ceder à provocação. Se o fizesse, o caos poderia se sobrepor à desordem. Bolsonaro atinge o estado da arte das manobras a que se dedica a extrema direita mundo afora: manieta o Poder Judiciário na certeza de que, se este exercesse suas prerrogativas, criar-se-iam as circunstâncias para a disrupção que chamam "libertadora". Não por acaso, continua a incentivar o ataque dos cães contra os tribunais.

Eis aí a resposta que o próprio presidente dá àqueles que, em 2018, o escolheram como instrumento possível contra o PT, na esperança de que o estado de direito se encarregaria de mudar os hábitos alimentares do lobo, tornando-o vegetariano. Tratou-se de uma leitura verdadeiramente herbívora da realidade e do futuro. E há os que já esqueceram tudo sem aprender nada.

Uma nota de rodapé: é evidente que nem todo mundo que vota no "capitão" é fascista —eu emprego o termo "fascistoide". Mas não é menos evidente que todos os fascistoides votam no "capitão". Isso significa alguma coisa? Significa.

Outra nota de rodapé: é absolutamente legítimo não gostar de Bolsonaro, de Lula, de Ciro Gomes, de Simone Tebet ou de J. Pinto Fernandes. Ocorre que há os que dão de ombros também para a incitação golpista em nome de sua "radical independência intelectual".

E isso também significa.

Murar o medo

O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já eram para me guardarem, servindo como agentes da segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos.

Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.

O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.

No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência do país, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.

O preço dessa construção [narrativa] de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no Poder alguns dos ditadores mais sanguinários de que há memória. A mais grave herança dessa longa intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.


A Guerra-Fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo, a Oriente e a Ocidente. E porque se trata de novas entidades demoníacas não bastam os seculares meios de governação… Precisamos de intervenção com legitimidade divina… O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder.

Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentar as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho começaria pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e do outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.

Aos adversários políticos e militares, juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente situação de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.

Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas [incomodas] como, por exemplo, estas: porque motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento? Porque motivo se gastou, apenas o ano passado, um trilhão e meio de dólares com armamento militar? Porque razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadaffi? Porque motivos se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?

Se queremos resolver (e não apenas discutir) a segurança mundial – teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que sejam precisos pretextos de guerra. Essa arma chama-se fome. Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida… A verdade é que… pesa uma condenação antecipada pelo simples fato de serem mulheres.

A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome, e como militares sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e de discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos outros. E porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência nem de ética nem de legalidade.

É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A chamada Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente, morreram mais chineses construindo a Muralha do que vítimas das invasões do Norte. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar.

Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje no mundo muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente… Citarei Eduardo Galeano acerca disso que é o medo global:

“Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quem não tem medo da fome, tem medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.”

E, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.

Mia Couto, in Conferências do Estoril (2011)

Tempo de águas turvas

Desde a posse do presidente da República, ele próprio e membros de seu governo, com alguma frequência, agitam as águas da política brasileira para turvá-las e nelas pescar de modo politicamente impróprio.

Por trás desses procedimentos está uma compreensão do processo político que não é deles, nem têm eles demonstrado ter o discernimento que lhes permita saber o que estão fazendo. Embora gostem do que fazem. Sabem de uma coisa: foram eficazes as manipulações extraeleitorais das eleições de 2018, a falsa defesa dos costumes, o falso fortalecimento da segurança. Candidatos evangélicos e candidatos fardados foram beneficiados por essas máscaras ideológicas.

Tudo foi e tem sido instrumento de uma cultura de suspeição que torna fácil, na campanha eleitoral, manipular consciências e colocar entre parênteses a consciência crítica e democrática do eleitor para induzi-lo a votar em quem normalmente não votaria. Desde a ruinzinha cinematografia americana da Guerra Fria, o mundo por ela influenciado tem sido induzido a temer fantasmas ideológicos para eleger quem supostamente os combate.


Em dias passados, a colunista Malu Gaspar divulgou no jornal “O Globo” que o general Braga Netto, candidato provável a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro, em encontro com empresários da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro, teria dito que não haverá eleição se não for feita a auditoria dos votos defendida pelo mandatário da República. Foi ouvido em silêncio. A assessoria de imprensa do general esclareceu que não houve ameaça e que a fala foi tirada de contexto.

No entanto, afirmações como essa, de ameaças às instituições e ao processo democrático, têm sido feitas, logo cercadas de interpretações e correções que desdizem o já dito. Desmentidos não têm o poder de desfazer os efeitos subjetivos da mensagem já enviada. Eles apenas criam incerteza quanto à afirmação original e primária do disseminador de uma afirmação perturbadora.

A fala de campanha do general não está isolada. Repete Bolsonaro de meses atrás. Portanto, a frágil incerteza do desmentido de agora alenta a desconfiança de que está em andamento um processo de gestação da dúvida quanto à eleição.

O que tem sido interpretado de que estamos em face de preparação de um golpe de Estado e que o golpe tem o aval das Forças Armadas. Sabemos que institucionalmente isso não pode ocorrer. E sabemos que autores de golpe são candidatos a processo e prisão.

Esse tipo de conduta destina-se a naturalizar a possibilidade do golpe. Já se difundiu na sociedade inteira a pergunta “haverá golpe?” ou, para os conformistas, “vai ter golpe”.

De certo modo, está se preparando um substrato de consciência política e eleitoral destinado a frustrar os eleitores se não houver golpe. Ou seja, trata-se de uma técnica de manipulação da opinião eleitoral de modo a envenenar a legitimidade do processo político no caso, nesta altura muito provável, de que um candidato de oposição vença a eleição.

Um filho do presidente, na esteira desse jogo, declarou que não sabe como os eleitores de Bolsonaro reagirão no caso dele não vencer as eleições. Nos países normais, as pessoas normais sabem o que acontece com os que perdem eleição: vão para casa ou, quem não está acostumado a trabalhar, vai procurar emprego.

Diferentemente do que ocorreu em todas as eleições anteriores à de 2018, o bolsonarismo empenha-se em criar a anomalia política de que aquela eleição não foi para confirmar a natureza democrática do processo eleitoral, com a alternação doutrinária e ideológica dos governantes, mas para pôr-lhe fim. O eleitorado teria votado no sentido de instituir uma ditadura. O que não é estranho.

A vocação totalitária de uma parte do eleitorado brasileiro é antiga. Foi difundida nas revoltas tenentistas. Num documento dos militares revoltosos de 1924, em São Paulo, há um programa de reproclamação da República após o governo de Floriano Peixoto, usurpada e aparelhada pelas oligarquias dos “coronéis” de roça. Basicamente uma ditadura para educar os brasileiros à conduta própria de um regime político antirrepublicano, nascido nos quartéis.

A realidade mostrou que isso era impossível. A ditadura de 1964 teve que conciliar com as oligarquias, especialmente suas facções de bajuladores, os que trocam favor por voto, por verbas de orçamento secreto, como se viu agora, o país reduzido a uma republiqueta na pressuposição de que democracia é a do bando de eleitores com mentalidade carneiril. Costa e Silva, ministro da Guerra do governo de Castelo Branco, chegou a dizer na TV que não conseguia entender os civis. No quartel, ele dava uma ordem, e a ordem era cumprida. No governo, não.