quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Pensamento do Dia

 


Devaneios são permitidos

Não é que falte assunto de relevo neste final de ano — a Humanidade, mais uma vez, não caminhou rumo ao que dela era esperado. Ver a Terra como ela realmente é, um pálido e lindo ponto azul flutuando num eterno silêncio, deveria ter nos aproximado mais uns dos outros, estreitado nossa interdependência como passageiros de um mesmo mundo, confirmado a relação paradoxal entre distância espacial e proximidade emocional. Não foi bem isso que ocorreu em 2023. Mas é justamente em período de início de férias, com festejos a todo vapor e desatenção geral típica de véspera de Natal, que devaneios são permitidos — ótima oportunidade para poder divagar sobre algo impalpável, evanescente e atemporal, apenas bonito: a cor azul e nossos estados d’alma.

Wassily Kandinsky, William Gass (“On being blue”), Carl Sagan, Goethe, Maggie Nelson (“The colour blue as a lens on memory and loneliness...”), Maria Popova e Leonardo da Vinci são apenas alguns dos pintores e naturalistas, escritores, pensadores ou poetas que se debruçaram sobre essa que é chamada de “a cor da mente emprestada ao corpo, a cor da consciência quando a acariciamos”. Para a ensaísta americana Rebecca Solnit, autora de uma elegante reflexão sobre como encontrar a si mesmo no desconhecido (“Um guia para se perder”, Martins Fontes, 2022), a relação entre o azul, a melancolia e a solidão humanas está por toda parte onde há distância e desejo.


Percebido como azul nas suas bordas e profundezas quando observado no espaço sideral, nosso planetinha vai perdendo sua luz à medida que nos aproximamos dele. A cor dispersa-se entre as moléculas do ar, dispersa-se na água (incolor só quando rasa, azul quando o mar é profundo), dispersa-se no céu e na terra. “Há muitos anos que me emociono com o azul que está no limite do que se vê, aquela cor dos horizontes, das cadeias de montanhas remotas, de tudo o que está longe. A cor dessa distância é a cor de uma emoção, a cor da solidão e do desejo, a cor de lá visto daqui, a cor de onde você não está. É a cor de onde você nunca poderá ir. Pois o azul não está no lugar a quilômetros de distância no horizonte, mas na distância atmosférica entre você e as montanhas”, escreveu Solnit para relacionar desejo e distância. Tratamos o desejo como um problema a resolver, enquanto o que intriga a autora é algo distinto: e se, com um ligeiro ajuste de perspectiva, o desejo pudesse ser apreciado como uma sensação em seus próprios termos? Se conseguíssemos olhar para longe sem querer diminuir a distância, talvez pudéssemos dar conta de nossos desejos da mesma forma como amamos a beleza de um azul que nunca poderá ser alcançado. “Algo desse anseio será apenas realocado pela proximidade, jamais apaziguado, assim como as montanhas deixam de ser azuis quando chegamos perto delas. O azul tingirá algum outro além. E nisso reside o mistério de por que as tragédias são sempre mais belas que as comédias e de por que temos tanto prazer na tristeza de certas canções e histórias. Algo estará sempre fora do nosso alcance”, teoriza Solnit.

No mundo das espécies que vivem abaixo de nossa atmosfera avermelhada, o azul é raridade, assim como é inexistente um pigmento natural dessa cor. Como não se surpreender com a escassez de alimentos azuis produzidos pela terra, quando abundam os vermelhos, amarelos, marrons ou verdejantes? Poucas são, também, as plantas que florescem em azul. E os raros pássaros e borboletas dotados de plumagem azulada devem esse privilégio a uma singular refração da luz em suas penas, de forma a cancelar qualquer raio que não seja azul. Amamos contemplar o azul não porque ele vem até nós, mas porque ele nos leva longe, já observara Goethe em sua teoria de cor e emoção. Clarice Lispector concordaria. “O azul será uma cor em si, ou uma questão de distância? Ou uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul”, escreveu ela.

Se somos tantos a amar o azul, vale tentar o inalcançável — 2024 vem a galope.

O tempo da solidariedade

O dito segundo o qual todas as épocas estão a igual distância de Deus muito provavelmente já não nos serve pelo menos desde que se abriu a era atômica. Em linguagem secular, a ser verdade o dito, os tempos valem uns pelos outros, os males são aproximadamente os mesmos, as atribulações humanas essencialmente não se alteram – e beiram o absurdo. A partir de Hiroshima e Nagasaki, no entanto, passamos a carregar um peso infinitamente maior derivado da possibilidade de autodestruição do planeta e da espécie. E, agora, a aceleração vertiginosa inerente à condição pós-moderna, ou hipermoderna, acena para o fato de que a cada dia nos tornamos ainda mais perigosos para nós mesmos. Estaremos, pois, a uma distância maior de Deus.

Este é o vasto contexto no qual as chamadas grandes narrativas entraram em crise irreversível. Não há mais a ilusão de um único pensamento totalizante capaz de apreender, ainda que tendencialmente, o conjunto das determinações da realidade. O marxismo – mesmo tendo sido uma dessas extraordinárias construções totais que buscaram seguir, como sombra incômoda, a mercantilização do mundo – não existe mais como a filosofia insuperável do nosso tempo, na famosa observação de Sartre. E, apesar de ter se afirmado como potente crítica da economia, desde o princípio terá tido a lacuna de uma incompreensão substantiva da política e do Estado. Uma lacuna cheia de consequências, como se sabe.

Por certo, as sociais-democracias clássicas, ainda em vida dos pais fundadores – Karl Marx e Friedrich Engels –, contribuíram para tornar mais complexa a vida política das sociedades em que atuaram, mas àquelas forças de vanguarda faltou a plena consciência do que faziam. Trouxeram os subalternos para a esfera pública, ajudaram a configurar a nova subjetividade de massas e a integrá-la socialmente, mas, ao mesmo tempo, o mito persistente da revolução proletária fazia o papel de uma bola de chumbo atada aos pés.

É que os operários industriais nunca foram a maioria da população, como em algum momento se esperava que fossem. O movimento socialista, no seu todo, revestiu o mundo do trabalho de uma inédita dignidade, mas os operários, como tais, mesmo civilizando com lutas e sacrifícios a sociedade do capital, não podiam ser uma classe dotada de universalidade. E por um motivo simples: classes e partidos são intrinsecamente realidades parciais e não portam em si a redenção humana.

Deixemos de lado o marxismo tornado ideologia de Estado nos países que, entre 1917 e 1989, constituíram o “socialismo real”. Seu valor teórico é irrelevante ou, para falar a verdade, inexistente. Descrevendo uma realidade peculiaríssima, em que católicos e socialistas (comunistas), religiosos e leigos se entenderam e desentenderam por décadas, o filósofo italiano Giuseppe Vacca tem apontado outro déficit da explicação marxista do mundo moderno. No segundo pós-guerra, só e unicamente na tradição da esquerda do seu país é que teria emergido a consciência embrionária, mas explosiva, da subestimação do fenômeno religioso. Esta consciência, presente destacadamente em Palmiro Togliatti, dirigente histórico do Partido Comunista Italiano e protagonista do “diálogo” estimulado pelo Concílio Vaticano 2.º, traria consigo a exigência de uma refundação radical do marxismo, até hoje por fazer.

Ao contrário do que supuseram os pais fundadores, nenhuma reconciliação harmoniosa dos homens, entre si e com a natureza, teria o condão de suprimir não só o comportamento religioso, como também, por óbvio, o limite da existência humana. Este limite, de resto, está na base de tal comportamento e, mais em geral, de toda inquietação humana, filosófica ou não. Em outras palavras, as religiões são uma constante antropológica, não uma forma transitória de alienação; uma objetivação essencial, não um acidente histórico circunscrito às sociedades de classe.

Para Togliatti, a cegueira do marxismo – da maior parte do imenso e contraditório corpus teórico que esta expressão recobre – decorre de uma assimilação apressada do iluminismo do século 18 e do materialismo do século 19, com suas respostas unívocas e, por isso, falsas para o problema do sentido, ou sentidos, da vida. Aqui, as respostas só podem ser múltiplas e diversificadas, desafiando-se naturalmente umas às outras. E a verdade está rigorosamente entre os homens – e com ninguém em particular, seja crente ou não.

Se isso for razoável, então o que há de socialismo no mundo – a social-democracia, o socialismo liberal, o trabalhismo, etc. –, para sair da atual posição defensiva, deve ir além da democracia política (que só os radicais chamam de “burguesa”). Trata-se também de evitar a armadilha estendida pelo “paradigma tecnocrático” – termo de uma recente exortação do papa Francisco para indicar uma democracia sem raízes entre os “de baixo” – e reelaborar, de modo laico, os valores da solidariedade próprios de todas as religiões. Valores cuja vitalidade se acentua ainda mais nesta época do ano, propícia à generosidade e à fraternidade.

A força moral do perdão

Nossas famílias estão dilaceradas por disputas pessoais e divergências políticas. Que tal aproveitar o encontro de Natal e resgatar o espírito cristão?

Sempre me surpreendo como a mensagem cristã mais basilar, de amor ao próximo e perdão aos inimigos, pode ser soterrada e obliterada no discurso de alguns pregadores por cobranças prepotentes. O cristianismo do nosso dia a dia está muito mais preocupado em policiar e condenar condutas —sobretudo as sexuais —do que em compreender, amar e perdoar.

Isso, para mim, é o avesso da mensagem cristã. Tendemos a ser duros com quem nos ofende e complacentes com nossos erros. O amor aos inimigos e o perdão às ofensas exigem atuar em sentido contrário: evitar julgar o próximo e ser mais severo com nossos próprios equívocos.


Jesus não escondeu a essência de sua mensagem. Disse para perdoar não apenas sete vezes, como já não conseguia o impaciente Pedro, mas 70 vezes sete. Disse para fazermos o bem a quem nos odeia e que se alguém nos ferir a face ofereçamos a outra. Disse para não respondermos ao mal com o mal e nem a ofensa com ofensa. A mensagem dos evangelhos é muito clara: devemos perdoar, compreender e não responder o mal com o mal. É uma exigência moral elevada, difícil de sustentar, mas é um norte que deveríamos nos esforçar por perseguir.

O perdão é uma força moral pujante. Desorganiza e reorienta as relações viciadas. Muitas vezes estamos presos em ciclos de ódio em nossas relações pessoais —e na política também. Vivemos respondendo com cotoveladas às cotoveladas que recebemos, num ciclo longo de ofensa e resposta, cuja origem se perde no tempo. Cada lado acha que há uma ofensa primordial justificando as respostas, assim o ciclo se sustenta envolvendo os dois lados numa espiral crescente que faz mal a todos. Sempre que respondemos ao mal com o mal, aumentamos a quantidade de mal no mundo. O perdão interrompe unilateralmente esse ciclo. Não quer nada em troca, não pede reciprocidade, não exige reparação ou desculpas. É um ato de generosidade, uma grandeza d’alma que, pela força moral, desconcerta e reorganiza a relação entre as partes. O perdão cura. E o perdão transforma.

Quem já perdoou ou recebeu perdão, o perdão genuíno, sabe como ele desarranja, depois reorganiza, recupera. Quem conhece a história da independência da Índia ou do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos sabe como o princípio de não responder ao mal com o mal pode ser revolucionário —pode desfazer estruturas que toneladas de bombas seriam incapazes de demolir.

Quando era mais jovem, não conseguia compreender a mensagem cristã. Acreditava que o cristianismo celebrava a apatia e cultivava a submissão. Esses preceitos me pareciam simplesmente execráveis. Eu odiava aquela mensagem e não conseguia entender seu apelo.

Só muito tempo depois pude perceber que, onde achava que havia celebração da apatia, havia na verdade um compromisso moral inabalável, uma firmeza de caráter a toda prova. Onde enxergava submissão, opressão e humilhação vergonhosa, havia na verdade grandeza, generosidade e altivez. Às vezes a pressa da juventude nos faz surdos e só com a paciência do tempo aprendemos a escutar.

Epicuro na veia

"A morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e, quando existe a morte, não existimos mais." A frase, de Epicuro, captura o que há de mais essencial sobre a morte. Seu corolário é que precisamos aproveitar a vida, buscando prazeres, cultivando amizades e tentando sempre agir de forma virtuosa. É preciso também evitar a dor e o sofrimento.

Nesse último item, o Brasil fracassa miseravelmente. No ranking de qualidade de morte da Universidade Duke, o Brasil ocupou, em 2022, a 79ª posição entre os 81 países estudados. O índice é bem ecumênico. O item que mais pesa é o controle da dor, mas também entram acesso a tratamentos, gentileza da equipe de saúde e até conforto espiritual para quem deseja. O Reino Unido, primeiro colocado na lista, obteve 93,1 pontos. O Brasil fez míseros 38,7, ficando à frente apenas do Líbano e do Paraguai.


Não quero, porém, soar mórbido. Depois de três anos de trevas no Ministério da Saúde, o governo Lula está lançando a Política Nacional de Cuidados Paliativos, um programa no qual pretende investir até R$ 851 milhões em 2024 para criar equipes multidisciplinares que disseminariam e dariam suporte técnico ao paliativismo em toda a rede assistencial do país.

Esse é um passo importante, mas a estrutura material não é a única frente de batalha. A questão cultural não é menos significativa. Ainda existe uma boa dose de preconceito desinformado contra o paliativismo. Os próprios pacientes que dele se beneficiariam não raro o veem com um pé atrás, identificando-o a uma espécie de desistência. Na verdade, existem várias fases e modalidades de cuidados paliativos, que idealmente começam com o diagnóstico de uma moléstia grave e vão até o último suspiro, que pode até se dar por outra causa que não a doença original. A meta é sempre poupar sofrimento e ampliar a qualidade de vida, em todas suas dimensões. É Epicuro na veia.