sábado, 15 de agosto de 2020

'Coisa' de elite

Vamos dar o livro de graça para o mais frágil, para o mais pobre, e não isentar o deputado Marcelo Freixo, que pode muito bem pagar um livro. Nós não precisamos de isentá-lo para ele comprar o livro dele

Paulo Guedes, ministro da Economia



Sedução populista ganha fácil do argumento difícil das reformas

A saída de Salim Mattar e Paulo Uebel não representa o fim da agenda liberal do governo, como li em alguns comentários, mas um atestado de que, na prática, ela andou muito pouco.

Sempre disse aqui que o governo Bolsonaro era produto de três pautas um tanto vagas. Na verdade, um conjunto de intenções no terreno do conservadorismo cultural, combate à corrupção e reformas liberais.

As duas primeiras se perderam há muito tempo. Barradas pelo Congresso e por sua própria inconsistência. A agenda liberal deu em quase nada. A lei da liberdade econômica talvez tenha sido seu único suspiro. A reforma da Previdência foi uma solução de compromisso e veio no embalo do governo anterior.

Agora caímos na real. Estamos a menos de dois meses da campanha eleitoral e a janela de oportunidades para aprovação de reformas vai se fechando. Vamos comemorar o ano novo com PIB negativo em 5,6% (última pesquisa Focus) e relação dívida/PIB acima de 96%, segundo a Instituição Fiscal Independente.

Diante desse cenário, o governo corre atrás de “espaço no orçamento” para esticar mais um pouquinho o auxílio emergencial e diz que irá aguardar até o ano que vem para enviar ao Congresso a reforma administrativa. Ainda nesta quarta-feira, naquele pronunciamento esquisito ao cair da tarde, imaginava-se que haveria algum anúncio objetivo sobre reformas, mas nada.

Nenhuma grande surpresa aí. Pra quem gosta de ler a política um pouco abaixo da histeria reinante, Bolsonaro sempre foi um político mais tradicional do que fez parecer. E está cada dia mais com a cara do centrão e da velha burocracia militar do que com a de Paulo Guedes. Nosso outsider é cada vez mais um insider.


O governo gostou dos efeitos políticos do auxílio emergencial. O apoio a Bolsonaro cresce nos setores de menor renda e a última pesquisa DataPoder mostra que a aprovação e a desaprovação ao governo andam empatadas em 45%.

Quanto à reforma administrativa, o entorno da Presidência parece ter descoberto o óbvio: há muita conversa, mas pouca gente de fato preocupada com o tema em meio à pandemia. A MP 922, das contratações temporárias, caducou, e a PEC emergencial, que entre outras coisas previa a possibilidade de redução de jornada e salários dos servidores, nunca andou no Congresso.

A verdade é que o governo Bolsonaro não tem convicção sobre temas de modernização do Estado. E não está sozinho nisso. Os sinais que vêm do Congresso são bastante claros.

Exemplo foi a votação do novo Fundeb. Ao invés da reforma que iria desbloquear o orçamento e dar autonomia a estados e municípios, sob a lógica do “mais Brasil, menos Brasília”, a Câmara aprovou, sob a batuta da pressão corporativa e com o apoio do governo, a vinculação constitucional de no mínimo 70% dos recursos do fundo para gasto com pessoal.

No Senado fomos ainda mais criativos. Ao invés de reformas para abrir o mercado e incentivar a competição, resolvemos tabelar juros. Limite de 30% de juros no cartão de crédito e cheque especial. Lendo o projeto me senti quase um argentino. Menos mal que se trata de uma ideia que não irá prosperar na outra Casa do Congresso.

Juntando tudo, novo Fundeb, volta da CPMF, malabarismos para esticar o auxílio emergencial, tentativas de driblar a regra do teto, reformas e privatizações em ponto morto, o governo Bolsonaro vai mostrando o que sempre foi: um governo errático, sem projeto, seduzido pela hipótese de um populismo morno capaz de conduzi-lo vivo até 2022.

No fim das contas, ao menos não teremos que escutar mais que o governo Bolsonaro é “ultraneoliberal”, como li tempos atrás, e outras bobagens. Bolsonaro fará cada vez mais um governo tradicional. Com alguma sorte preservará a regra do teto e conseguirá emplacar algumas reformas de médio alcance, como foi o novo marco do saneamento básico.

Um projeto mais ousado de modernização do Estado ainda está para ser construído. Por enquanto, como observou Salim Mattar na sua carta de despedida, os liberais são um bicho estranho na máquina pública. E cabem (diria que com alguma folga) num micro-ônibus.

Em busca de saídas para o Brasil

O Brasil está numa encruzilhada existencial de uma dimensão difícil de imaginar. É o país do mundo com um dos maiores desastres humanitários causados pela pandemia. O Brasil tem cerca de 2,8% da população mundial, mas tem 13,9% das mortes por covid-19. É o país que viveu dois graves atentados à democracia e ao primado do direito num curto espaço de tempo: o golpe jurídico-político contra a Presidente Dilma Rousseff, em 2016, e a grotesca manipulação judicial-política que levou à condenação sem provas do ex-presidente Lula da Silva, em 2018, até hoje o mais popular presidente da história do Brasil.

É o país governado por um presidente, Jair Bolsonaro, que ganhou as eleições depois de o seu rival ter sido ilegalmente neutralizado e, mesmo assim, com a ajuda de uma avassaladora avalanche de notícias falsas. É o país governado por um presidente não só manifestamente incompetente para exercer o cargo, como também pró-fascista (defensor da ditadura militar, que governou o país entre 1964 e 1985, e da tortura de opositores democráticos, e que chega a pôr sob vigilância defensores dos direitos humanos, por alegadas atividades…antifascistas); é ainda cúmplice ativo do genocídio em curso no Brasil contra a população indígena e contra a população em geral. É o único governante do mundo que continua a negar a gravidade da situação pandêmica e recusa declarar luto nacional pela morte de tantos milhares de brasileiros.

 


Um governante que faz propaganda de um produto sem comprovação científica da sua eficácia, a cloroquina, produzida por um empresário bolsonarista, a quem o governo adquiriu um estoque suficiente para abastecer o país durante 18 anos a um preço seis vezes superior ao preço por que comprou o mesmo medicamento no ano passado. É o país onde os grandes meios de comunicação mostraram ao longo dos anos um total desprezo pelas regras de convivência democrática. É o país onde os EUA puderam infiltrar o sistema judicial com mais facilidade e eficácia para fazer alinhar a política externa do país com os interesses norte-americanos no continente e para destruir o tecido econômico do país em algumas áreas concorrentes com as empresas norte-americanas (construção civil, aeronáutica e combustíveis fósseis). É, finalmente, o país onde, apesar de tudo isto, e no aparente funcionamento normal das instituições democráticas, a popularidade do presidente, que desceu bastante nos primeiros meses da pandemia, volta a crescer e o posiciona para um segundo mandato a partir de 2022.

Perante isto, a única saída possível para o Brasil é, o mais tardar em 2022, poder pôr fim democraticamente ao pesadelo infernal do bolsonarismo. Apesar de muito dano irreversível ter sido, entretanto, feito, a saída consistirá em os brasileiros e as brasileiras sentirem política e psiquicamente que acordaram de um pesadelo, que estão vivos apesar de tantos entes queridos perdidos e que um novo dia nasce e um novo começo volta a ser possível. Quais são as condições para isso?

Primeiro, o presidente e o seu clã devem ser investigados seriamente e, por tudo o que se conhece, se o forem, concluir-se-á que há indícios suficientes para serem acusados, julgados e presos. Aliás, no plano internacional, já foram apresentadas várias queixas-crime no Tribunal Penal Internacional da Haia contra a pessoa do Presidente Bolsonaro pelo modo como conduziu o país durante a crise pandêmica, queixas por crime contra a humanidade e, no caso dos povos indígenas, por genocídio, o mais grave deste tipo de crimes. Segundo, os artífices da grave degradação da democracia nos últimos anos, os juízes e procuradores do Ministério Público que conduziram as “investigações” a partir de Curitiba, cometeram tantos e tais atropelos que devem ser não só irradiados da função judicial que desonraram, como devem ser julgados, com respeito por todas as garantias processuais, as mesmas que eles negaram às vítimas da sua macabra manipulação.

Particularmente Sérgio Moro, o candidato dos EUA para as eleições presidenciais de 2022, deve ser definitivamente afastado da vida política. Como foi possível que um medíocre juiz federal de primeira instância assumisse jurisdição nacional e se arrogasse o poder de violar as mais elementares hierarquias do sistema judicial? Que ninguém tenha pena dele, pois os EUA encontrarão meio de o compensar pelos serviços prestados, nomeadamente com um cargo internacional. Terceiro, o ex-presidente Lula da Silva deve quanto antes recuperar em pleno os seus direitos políticos em face da diabólica armadilha judicial-política de que foi vítima e cujos mais grotescos traços começam a ser conhecidos. Quarto, as forças políticas de esquerda têm de se convencer de que estão perante uma situação política excepcional a exigir comportamentos excepcionais e que discutir neste momento se o PSB (Partido Socialista Brasileiro) ou o PDT (Partido Democrático Trabalhista) são ou não de esquerda ou furtar-se a articulações com um amplo leque de forças democráticas com vista às próximas lutas eleitorais são atos de suicídio político que o país se encarregará de lhes lembrar nos próximos anos. Quinto, os movimentos sociais e organizações da sociedade civil têm de acordar da sonolência inquietante que lhes foi incutida pela vida relativamente fácil que tiveram durante os governos de Lula da Silva. O país do Fórum Social Mundial é hoje um embaraço para todos os democratas e ativistas do mundo que viram no Brasil, no início da década de 2000, o país líder de uma nova época de mobilizações sociais incisivas e pacíficas guiadas pela ideia inaugural de que “um outro mundo é possível”.

Estas são as principais condições. As três primeiras estão nas mãos do poder judicial do Brasil. Há indícios de que os tribunais superiores se deram conta de que o futuro da democracia depende em boa medida deles. Cometeram muitos erros no passado recente, foram lassos, se não mesmo cúmplices, ante flagrantes violações do garantismo processual que é a razão de ser do sistema judicial numa democracia. Mas há sinais de que serão a primeira instituição a acordar do pesadelo bolsonarista, e não há neste momento razões para duvidar de que estarão à altura do encargo histórico que lhes cabe. Certamente já se deram conta de que serão as próximas vítimas, se a ilegalidade continuar à solta e impune. Não devem deixar-se intimidar por grupelhos extremistas nem pelo gabinete do ódio. Têm alguns bons exemplos no continente de que os tribunais sabem por vezes assumir a responsabilidade que lhes cabe num dado momento histórico. Afinal, quem poderia imaginar que o mais poderoso político da Colômbia, Álvaro Uribe, senador, ex-presidente do país, responsável impune por muitos crimes e pela destruição dos acordos de paz com a guerrilha, fosse posto em detenção domiciliária para não obstruir a justiça que o vai julgar por uma decisão unânime do tribunal supremo?

De novo, o sanatório geral

Não esqueço nunca o dia em que ouvi, pela primeira vez, o magistral “Vai Passar” de Chico Buarque. O ano: 1984. O Brasil nas mãos do último general-presidente, João Batista de Figueiredo. A emoção que a música despertou em mim foi imensa. Chorei muito. E sonhei muito. Tinha 46 anos, e até então nunca votara para presidente da República. Não que não tivesse idade para isso na eleição em que venceu Jânio Quadros, mas estava fora do Brasil e naquele tempo não votávamos quando no exterior.

Acreditava piamente que “dormia nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações”, os versos iniciais dessa linda música, eram a mais pura verdade.

Vem o Collor e foi aquele horror. Vem o Fernando Henrique, excelente Ministro e depois Presidente da República e, em seu primeiro mandato, renova minha fé. Já no segundo, começa tudo a desandar. Nas eleições seguintes, ouço pessoas a quem respeitava, e outras a quem respeito muito ainda hoje, a declarar o voto abertamente: Lula.

Revi minha posição e percebi que o que me colocava contra o Lula era um preconceito. Julgava que sendo alguém sem instrução formal, ele não saberia governar o Brasil. Mas me convenci que isso, no fundo, era uma bênção, pois ele, mais do que qualquer outro, iria compreender e encaminhar o Brasil de modo a afastar de vez as injustiças e a fazer de nosso povo um povo finalmente feliz, educado, saudável, bem cuidado.


Entretanto, eu não contava com um dos versos mais terríveis de “Vai Passar”: “palmas pra ala dos barões famintos”. E eles chegaram, os barões, famintos, sedentos, alucinadamente ansiosos para recuperar o tempo perdido. O tempo deles, e não o tempo do Brasil. A fome e a sede dos senhores barões, e não a fome e a sede dos brasileiros. E começou a mais tremenda das desilusões.

Estamos vendo, nestes dias, fatos quase que inacreditáveis: as filas de gente sofrendo, horas a fio, nos hospitais; a dor, o sofrimento de uma nação. E o governo querendo convencer o mundo que o Brasil venceu a pandemia.

Do presidente, nem falo. Esse vive em outra galáxia: no mundo dos palanques. Recorro outra vez aos versos de Chico Buarque: “O estandarte do sanatório geral vai passar”.

Está passando, Chico. E repara que os homens que o carregam são, em sua maioria, aqueles filhos que “erravam cegos pelo continente, levando pedras feito penitentes”. Quem poderia imaginar que ao assumir o controle do Brasil, esses penitentes fossem aceitar de vez sua condição de membros do sanatório geral?

O sanatório geral que está a pleno vapor. Um dossier montado no seio do Governo Federal assusta muita gente. Pretende servir como arma de defesa caso a oposição adquira força para mostrar à pátria ainda tão distraída, que as tenebrosas transações continuam. O sanatório se agita. Como? Quem vai entregar o ouro ao bandido? Você sabe?

Será o presidente? Ele que tem uma imensa desinibição para falar besteira? Ainda mais se tratando de uma pessoa que passou quase 30 anos perseguindo o objetivo de chegar à Presidência da República? Não lhe faltaram condições para estudar mas o que lhe sobrou foi preguiça, desinteresse, malandragem e esperteza. E ainda por cima só pensa numa coisa: na reeleição!

Pobre Brasil! E que ninguém se iluda. A força do sanatório geral é imensa. Tudo vai continuar como dantes neste quartel d’Abrantes. Infelizmente.