quinta-feira, 8 de maio de 2025
Quando os remédios acabam
Marwa e muitas outras como ela estão esperando — por justiça, por liberdade, pelo fim da guerra genocida e pela volta da vida a ser como deveria ser.
Minha irmã, Marwa Eid, tem 28 anos. Assim como eu, ela foi deslocada à força duas vezes desde 13 de outubro de 2023, quando tivemos que deixar nossa casa no norte de Gaza pela primeira vez para escapar da devastadora guerra israelense.
Durante o nosso deslocamento, Marwa começou a sofrer de um problema de saúde doloroso que transformou a sua vida num pesadelo. As suas mãos, antes uma ferramenta para a criatividade e o trabalho árduo, tornaram-se agora uma fonte constante de dor e sofrimento.
Marwa sofre de eczema grave nas mãos, causado por uma combinação de condições adversas e desumanas. Ela é forçada a usar detergentes produzidos localmente porque Israel não permite a entrada de materiais de limpeza adequados na Faixa de Gaza.
Marwa sofre de desnutrição devido à escassez de alimentos e à dependência de alimentos enlatados cheios de conservantes. Ela não tem acesso aos medicamentos de que necessita devido ao cerco e à guerra em curso.
Em 12 de maio de 2024, a história de Marwa tomou um rumo difícil. Naquele dia, ela notou uma ligeira mudança em suas mãos. Pequenas manchas vermelhas apareceram em sua pele, acompanhadas de coceira constante. A princípio, ela pensou que fosse uma alergia leve que passaria. Ela não tinha ideia de que o que havia aparecido em sua pele logo se tornaria uma longa e dolorosa batalha.
Sem acesso a produtos seguros, Marwa teve que recorrer a detergentes caseiros, cuja fabricação não é regulamentada. Esses produtos são frequentemente produzidos em condições inseguras e contêm produtos químicos nocivos. Ela não tinha outra opção, mas o efeito em sua pele foi imediato e grave. Suas mãos começaram a rachar e sangrar profusamente.
Conforme a dor piorava, levei-a para um posto médico dentro de um dos campos de deslocados, criados pela Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) para pessoas deslocadas.
Quando Marwa mostrou a mão ao médico, ele ficou visivelmente chocado com a gravidade do seu estado. Olhou para ela com tristeza e disse: "É um eczema grave. Peço desculpas — não tenho nenhum medicamento no depósito neste momento devido ao fechamento das travessias. Só posso lhe dar um comprimido de analgésico. Pode aliviar um pouco a dor, mas não é o tratamento de que você precisa."
Marwa saiu da clínica com o coração pesado, afogada em tristeza e dor. Ainda na esperança de alívio, tentou visitar algumas farmácias particulares, algumas das quais ainda tinham estoque limitado de antes da guerra. Em uma delas, perguntou sobre o medicamento que o médico havia recomendado. O farmacêutico disse que estava disponível, mas era muito caro, muito além de suas possibilidades financeiras.
Com o passar do tempo, o impacto da doença se estendeu além do físico. Marwa agora sofre psicologicamente, pois não consegue mais ajudar nas tarefas diárias. Ela sempre foi trabalhadora e amorosa, sempre disposta a ajudar os outros. Ela costumava ajudar nossa mãe a acender o forno de barro que usamos para preparar pão e comida, especialmente importante devido à crise de gás causada pela guerra.
Em 10 de abril de 2025, o Ministério da Saúde de Gaza confirmou em um comunicado público que a escassez de medicamentos e suprimentos médicos havia atingido níveis perigosos e sem precedentes. Afirmou que 37% da lista de medicamentos essenciais estava com estoque zero.
O Ministério também informou que 59% dos suprimentos médicos estavam indisponíveis. O Ministério alertou que salas de cirurgia, unidades de terapia intensiva e departamentos de emergência em todos os hospitais de Gaza estavam funcionando com estoques severamente reduzidos de medicamentos e suprimentos vitais.
Marwa não está sozinha. Ela é apenas uma entre muitas pessoas na Faixa de Gaza que sofrem com a falta de medicamentos e acesso a tratamento. Mas seu caso é um exemplo vivo do que as pessoas aqui enfrentam todos os dias. Ele reflete como um ataque israelense prolongado pode transformar uma condição simples e tratável em uma condição crônica e debilitante.
Todas as noites, vejo minha irmã lutando para dormir, lutando contra a dor. E continuo me perguntando: Que crime cometemos para viver essa realidade dolorosa? Por que Marwa deveria sofrer assim, simplesmente porque nasceu em Gaza?
Esta história não é o fim. É o início de um pedido de socorro vindo de Gaza sitiada. Marwa e tantas outras como ela aguardam — por justiça, por liberdade, pelo fim da guerra genocida e pela volta da vida ao que deveria ser.
Minha irmã, Marwa Eid, tem 28 anos. Assim como eu, ela foi deslocada à força duas vezes desde 13 de outubro de 2023, quando tivemos que deixar nossa casa no norte de Gaza pela primeira vez para escapar da devastadora guerra israelense.
Durante o nosso deslocamento, Marwa começou a sofrer de um problema de saúde doloroso que transformou a sua vida num pesadelo. As suas mãos, antes uma ferramenta para a criatividade e o trabalho árduo, tornaram-se agora uma fonte constante de dor e sofrimento.
Marwa sofre de eczema grave nas mãos, causado por uma combinação de condições adversas e desumanas. Ela é forçada a usar detergentes produzidos localmente porque Israel não permite a entrada de materiais de limpeza adequados na Faixa de Gaza.
Marwa sofre de desnutrição devido à escassez de alimentos e à dependência de alimentos enlatados cheios de conservantes. Ela não tem acesso aos medicamentos de que necessita devido ao cerco e à guerra em curso.
Em 12 de maio de 2024, a história de Marwa tomou um rumo difícil. Naquele dia, ela notou uma ligeira mudança em suas mãos. Pequenas manchas vermelhas apareceram em sua pele, acompanhadas de coceira constante. A princípio, ela pensou que fosse uma alergia leve que passaria. Ela não tinha ideia de que o que havia aparecido em sua pele logo se tornaria uma longa e dolorosa batalha.
Sem acesso a produtos seguros, Marwa teve que recorrer a detergentes caseiros, cuja fabricação não é regulamentada. Esses produtos são frequentemente produzidos em condições inseguras e contêm produtos químicos nocivos. Ela não tinha outra opção, mas o efeito em sua pele foi imediato e grave. Suas mãos começaram a rachar e sangrar profusamente.
Conforme a dor piorava, levei-a para um posto médico dentro de um dos campos de deslocados, criados pela Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) para pessoas deslocadas.
Quando Marwa mostrou a mão ao médico, ele ficou visivelmente chocado com a gravidade do seu estado. Olhou para ela com tristeza e disse: "É um eczema grave. Peço desculpas — não tenho nenhum medicamento no depósito neste momento devido ao fechamento das travessias. Só posso lhe dar um comprimido de analgésico. Pode aliviar um pouco a dor, mas não é o tratamento de que você precisa."
Marwa saiu da clínica com o coração pesado, afogada em tristeza e dor. Ainda na esperança de alívio, tentou visitar algumas farmácias particulares, algumas das quais ainda tinham estoque limitado de antes da guerra. Em uma delas, perguntou sobre o medicamento que o médico havia recomendado. O farmacêutico disse que estava disponível, mas era muito caro, muito além de suas possibilidades financeiras.
Com o passar do tempo, o impacto da doença se estendeu além do físico. Marwa agora sofre psicologicamente, pois não consegue mais ajudar nas tarefas diárias. Ela sempre foi trabalhadora e amorosa, sempre disposta a ajudar os outros. Ela costumava ajudar nossa mãe a acender o forno de barro que usamos para preparar pão e comida, especialmente importante devido à crise de gás causada pela guerra.
Em 10 de abril de 2025, o Ministério da Saúde de Gaza confirmou em um comunicado público que a escassez de medicamentos e suprimentos médicos havia atingido níveis perigosos e sem precedentes. Afirmou que 37% da lista de medicamentos essenciais estava com estoque zero.
O Ministério também informou que 59% dos suprimentos médicos estavam indisponíveis. O Ministério alertou que salas de cirurgia, unidades de terapia intensiva e departamentos de emergência em todos os hospitais de Gaza estavam funcionando com estoques severamente reduzidos de medicamentos e suprimentos vitais.
Marwa não está sozinha. Ela é apenas uma entre muitas pessoas na Faixa de Gaza que sofrem com a falta de medicamentos e acesso a tratamento. Mas seu caso é um exemplo vivo do que as pessoas aqui enfrentam todos os dias. Ele reflete como um ataque israelense prolongado pode transformar uma condição simples e tratável em uma condição crônica e debilitante.
Todas as noites, vejo minha irmã lutando para dormir, lutando contra a dor. E continuo me perguntando: Que crime cometemos para viver essa realidade dolorosa? Por que Marwa deveria sofrer assim, simplesmente porque nasceu em Gaza?
Esta história não é o fim. É o início de um pedido de socorro vindo de Gaza sitiada. Marwa e tantas outras como ela aguardam — por justiça, por liberdade, pelo fim da guerra genocida e pela volta da vida ao que deveria ser.
Revolução do sofá
O bravo general da reserva, que, após anos da redentora atuação como interventor, decidiu arquitetar algo ainda mais ousado: um golpe de Estado. Só que, como bom aposentado, ele o fez sem tirar o pijama. Afinal, quem tem tempo de botar farda quando se tem uma sublevação para planejar entre a novela das 6 e o Globo Esporte?
O plano, elaborado com o esmero de quem decora as palavras cruzadas do jornal, tinha tudo para ser eficaz. O militar convocou um seleto grupo de seguidores — todos igualmente de pijama — para reuniões estratégicas que aconteciam no WhatsApp e nos churrascos de domingo. Foi aí que a nata da resistência nacional nasceu: tios do zap, o primo conspiracionista, o vizinho que acha que mão pesada é o que falta na CBF e um papagaio patriota que gritava “Fora! Fora!”.
Mas sejamos justos. O general tinha uma visão: ele acreditava, piamente, que seu motim seria algo que entraria para os livros de História. Contudo, só havia um pequeno problema: quando seus cúmplices, munidos de coragem e pochetes, perguntaram qual seria o planejamento para derrubar o governo, ele deu a ordem de ataque mais icônica da história militar brasileira: “Vamos marcar um protesto forte naquela padaria da Asa Sul. E tragam cartazes!”.
E assim, no dia D, com seu pijama de flanela azul e estampas de aviõezinhos, ele liderou a tropa de sua cadeira de balanço na sala. “Atenção! Vamos invadir o grupo do STF no WhatsApp e botar pressão!”, gritou com voz heroica, enquanto mergulhava uma bolacha de maisena no café com leite. Óbvio, a insurreição fracassou.
Um dos principais generais abandonou o movimento porque tinha consulta no cardiologista, outro confundiu o dia da mobilização com o encontro anual do clube de bocha, e o resto simplesmente esqueceu porque tinha jogo do Taguatinga contra o Confiança.
O fim do general golpista de pijama foi digno de um filme pastelão. As autoridades, após monitorarem os encontros suspeitos de churrasco, bateram à porta de seu apartamento. Ao ser levado pela polícia, ele exclamou: “Vocês estão cometendo um grande erro! Eu sou um patriota!”. A cena foi constrangedora. O herói da resistência, arrastado em pantufas de coelhinho, até o camburão da Polícia Federal.
Na prisão, o general segue liderando a revolução. Agora, organiza motins na fila do refeitório e escreve manifestos no papel higiênico. Seu grande plano é conquistar os corações dos carcereiros para que, um dia, o golpe triunfe. Enquanto isso, seus cúmplices, livres da cela, mas presos à vergonha, evitam falar sobre o incidente. O papagaio patriota, ao que dizem, mudou de lado e agora só grita “Sem anistia!”.
O plano, elaborado com o esmero de quem decora as palavras cruzadas do jornal, tinha tudo para ser eficaz. O militar convocou um seleto grupo de seguidores — todos igualmente de pijama — para reuniões estratégicas que aconteciam no WhatsApp e nos churrascos de domingo. Foi aí que a nata da resistência nacional nasceu: tios do zap, o primo conspiracionista, o vizinho que acha que mão pesada é o que falta na CBF e um papagaio patriota que gritava “Fora! Fora!”.
Mas sejamos justos. O general tinha uma visão: ele acreditava, piamente, que seu motim seria algo que entraria para os livros de História. Contudo, só havia um pequeno problema: quando seus cúmplices, munidos de coragem e pochetes, perguntaram qual seria o planejamento para derrubar o governo, ele deu a ordem de ataque mais icônica da história militar brasileira: “Vamos marcar um protesto forte naquela padaria da Asa Sul. E tragam cartazes!”.
E assim, no dia D, com seu pijama de flanela azul e estampas de aviõezinhos, ele liderou a tropa de sua cadeira de balanço na sala. “Atenção! Vamos invadir o grupo do STF no WhatsApp e botar pressão!”, gritou com voz heroica, enquanto mergulhava uma bolacha de maisena no café com leite. Óbvio, a insurreição fracassou.
Um dos principais generais abandonou o movimento porque tinha consulta no cardiologista, outro confundiu o dia da mobilização com o encontro anual do clube de bocha, e o resto simplesmente esqueceu porque tinha jogo do Taguatinga contra o Confiança.
O fim do general golpista de pijama foi digno de um filme pastelão. As autoridades, após monitorarem os encontros suspeitos de churrasco, bateram à porta de seu apartamento. Ao ser levado pela polícia, ele exclamou: “Vocês estão cometendo um grande erro! Eu sou um patriota!”. A cena foi constrangedora. O herói da resistência, arrastado em pantufas de coelhinho, até o camburão da Polícia Federal.
Na prisão, o general segue liderando a revolução. Agora, organiza motins na fila do refeitório e escreve manifestos no papel higiênico. Seu grande plano é conquistar os corações dos carcereiros para que, um dia, o golpe triunfe. Enquanto isso, seus cúmplices, livres da cela, mas presos à vergonha, evitam falar sobre o incidente. O papagaio patriota, ao que dizem, mudou de lado e agora só grita “Sem anistia!”.
A velha ordem econômica está morta
Como quem está de fora da guerra comercial entre Estados Unidos e China quer que ela acabe? Eles gostariam que ambos saíssem derrotados.
Sem dúvida, a abordagem de Donald Trump é muito pior do que apenas sua incoerência intelectual: ela é letal para qualquer ordem global cooperativa. Algumas pessoas gostam de achar que um desmoronamento desse “globalismo” seria até desejável. Do meu ponto de vista, é tolice imaginar que um mundo comandado por “grandes potências” predatórias seria superior ao que temos agora. Ainda assim, embora o protecionismo de Trump tenha que sair derrotado, o mercantilismo chinês não pode sair vencedor, pois ele também criaria grandes dificuldades mundiais.
“E daí?”, poderia perguntar algum entusiasta defensor do livre mercado. De fato, até um defensor não tão entusiasta do livre mercado poderia notar, com razão, que os EUA têm desfrutado da felicidade de viver acima de suas possibilidades há décadas. Isso não precisaria ser um problema: afinal, ninguém terá condições de forçar os EUA a pagar suas obrigações. Além disso, eles também dispõem de meios, elegantes ou nem tão elegantes assim, para dar calotes. Inflação, desvalorização, repressão financeira e falências em massa de empresas vêm à mente.
Mesmo assim, é possível identificar pelo menos três grandes buracos nessa forma complacente de ver os grandes e persistentes desequilíbrios globais. O primeiro é que eles se tornaram politicamente tóxicos - tão tóxicos que ajudaram a eleger Trump presidente duas vezes. O segundo é que, no campo dos superavitários, há intervenções, do tipo soma negativa, idealizadas para alterar o equilíbrio global de poder econômico. Embora as relações internacionais não se tratem apenas de poder econômico, este é, certamente, uma parte crucial.
O terceiro é que déficits externos costumam ter como contrapartida um endividamento local insustentável. Combinado à fragilidade financeira, isso pode resultar em grandes crises, como ocorreu entre 2007 e 2015. Os saldos setoriais da poupança e do investimento revelam sinais desse problema. Os estrangeiros têm mantido um grande superávit de poupança com os EUA há décadas. As empresas americanas também estão em equilíbrio ou em superávit desde o início dos anos 2000, enquanto as famílias americanas estão em superávit desde 2008. Como esses saldos precisam se anular, para assim chegar a zero, a contrapartida local dos déficits externos dos EUA tem sido déficits fiscais crônicos.
Se as taxas de juros reais fossem altas, os déficits fiscais poderiam estar impulsionando os déficits externos crônicos. No entanto, o que tem ocorrido é o oposto: os juros reais têm estado baixos ou muito baixos. A hipótese keynesiana parece correta: o influxo, em termos líquidos, de poupança estrangeira, evidenciado nos superávits na conta de capital (e déficits na conta corrente), tornou os grandes déficits fiscais necessários, porque, caso contrário, a demanda doméstica dos EUA teria sido cronicamente insuficiente.
A China não é a única protagonista do outro lado da balança mundial, mas é a mais importante. Michael Pettis está certo, na minha opinião, ao dizer que a economia mundial não consegue acomodar facilmente uma economia gigantesca na qual o consumo das famílias é de só 39% do PIB e as poupanças (e, portanto, os investimentos) são correspondentemente imensos. Também está claro que isso ajudou a impulsionar o que a firma de análises econômicas Rhodium Group considera uma política “Made in China 2025” bem-sucedida. De forma inevitável, as potências industriais tradicionais estão assustadas com esse rolo compressor chinês.
Isso nos traz de volta à pergunta da semana passada: quem vencerá a guerra comercial entre EUA e China? Argumentei que a China venceria, em parte, porque os EUA fizeram do país um parceiro bem pouco confiável e, em parte, porque a China tem a opção de expandir a demanda interna e, dessa forma, compensar a perda de demanda americana. Matthew Klein, em seu excelente “The Overshoot”, na plataforma Substack, responde que a China já tinha essa opção há tempos, mas deixou de usá-la. Minha resposta é que agora a China precisa usá-la e, portanto, de fato decidirá expandir a demanda, em vez de aceitar uma grande recessão interna. Veremos.
O desfecho da guerra comercial entre EUA e China e a possível evolução das tarifas de Trump são as questões imediatas. No entanto, os problemas mais amplos em jogo não devem ser ignorados. A política comercial não deve ser analisada isoladamente. Como sabiam os fundadores do sistema comercial pós-guerra, mais notavelmente o próprio Keynes, o sucesso desse sistema também depende de ajustes macroeconômicos globais e, portanto, do funcionamento do sistema monetário internacional.
No primeiro ato do pós-guerra, os EUA tiveram grandes superávits em conta corrente, mas os reciclaram via empréstimos. No segundo ato, até 1971, os superávits dos EUA foram sendo corroídos. Isso levou ao fim da conversibilidade do dólar em ouro e ao sistema de câmbio flutuante com metas de inflação, ao menos entre países ricos. Esse sistema funcionou bem o suficiente até a rápida ascensão da China. Após essa ascensão, a era em que os EUA podiam agir como captador e consumidor de última instância, testada nos anos 1980 por Japão e Alemanha, se tornou impraticável política e economicamente.
A imprevisibilidade de Trump e seu foco em acordos bilaterais são, de fato, tolices. No entanto, a antiga ordem econômica liderada pelos EUA também se tornou insustentável. Os EUA não mais atuarão mais como equilibradores de última instância. O mundo - em especial, a China e a Europa - precisa pensar em algo novo.
Sem dúvida, a abordagem de Donald Trump é muito pior do que apenas sua incoerência intelectual: ela é letal para qualquer ordem global cooperativa. Algumas pessoas gostam de achar que um desmoronamento desse “globalismo” seria até desejável. Do meu ponto de vista, é tolice imaginar que um mundo comandado por “grandes potências” predatórias seria superior ao que temos agora. Ainda assim, embora o protecionismo de Trump tenha que sair derrotado, o mercantilismo chinês não pode sair vencedor, pois ele também criaria grandes dificuldades mundiais.
Para entender os problemas com os quais a economia mundial se depara, é útil começar pelo tópico dos “desequilíbrios globais”, que foi tão discutido antes da crise financeira mundial e da crise da região do euro entre 2007 e 2015. Nos anos desde então, esses desequilíbrios ficaram menores, mas o quadro geral pouco mudou. Como observa a edição mais recente do Panorama Econômico Mundial do Fundo Monetário Internacional (FMI): a China e os países credores europeus (mais notavelmente a Alemanha) têm superávits persistentes, enquanto os EUA têm os déficits equiparáveis. Como resultado, a posição internacional dos EUA nos investimentos, em termos líquidos, foi negativa em 24% da produção mundial em 2024. Como os EUA têm déficits comerciais e em conta corrente e uma vantagem comparativa no setor de serviços, o país também acumula grandes déficits na indústria.
“E daí?”, poderia perguntar algum entusiasta defensor do livre mercado. De fato, até um defensor não tão entusiasta do livre mercado poderia notar, com razão, que os EUA têm desfrutado da felicidade de viver acima de suas possibilidades há décadas. Isso não precisaria ser um problema: afinal, ninguém terá condições de forçar os EUA a pagar suas obrigações. Além disso, eles também dispõem de meios, elegantes ou nem tão elegantes assim, para dar calotes. Inflação, desvalorização, repressão financeira e falências em massa de empresas vêm à mente.
Mesmo assim, é possível identificar pelo menos três grandes buracos nessa forma complacente de ver os grandes e persistentes desequilíbrios globais. O primeiro é que eles se tornaram politicamente tóxicos - tão tóxicos que ajudaram a eleger Trump presidente duas vezes. O segundo é que, no campo dos superavitários, há intervenções, do tipo soma negativa, idealizadas para alterar o equilíbrio global de poder econômico. Embora as relações internacionais não se tratem apenas de poder econômico, este é, certamente, uma parte crucial.
O terceiro é que déficits externos costumam ter como contrapartida um endividamento local insustentável. Combinado à fragilidade financeira, isso pode resultar em grandes crises, como ocorreu entre 2007 e 2015. Os saldos setoriais da poupança e do investimento revelam sinais desse problema. Os estrangeiros têm mantido um grande superávit de poupança com os EUA há décadas. As empresas americanas também estão em equilíbrio ou em superávit desde o início dos anos 2000, enquanto as famílias americanas estão em superávit desde 2008. Como esses saldos precisam se anular, para assim chegar a zero, a contrapartida local dos déficits externos dos EUA tem sido déficits fiscais crônicos.
Se as taxas de juros reais fossem altas, os déficits fiscais poderiam estar impulsionando os déficits externos crônicos. No entanto, o que tem ocorrido é o oposto: os juros reais têm estado baixos ou muito baixos. A hipótese keynesiana parece correta: o influxo, em termos líquidos, de poupança estrangeira, evidenciado nos superávits na conta de capital (e déficits na conta corrente), tornou os grandes déficits fiscais necessários, porque, caso contrário, a demanda doméstica dos EUA teria sido cronicamente insuficiente.
A China não é a única protagonista do outro lado da balança mundial, mas é a mais importante. Michael Pettis está certo, na minha opinião, ao dizer que a economia mundial não consegue acomodar facilmente uma economia gigantesca na qual o consumo das famílias é de só 39% do PIB e as poupanças (e, portanto, os investimentos) são correspondentemente imensos. Também está claro que isso ajudou a impulsionar o que a firma de análises econômicas Rhodium Group considera uma política “Made in China 2025” bem-sucedida. De forma inevitável, as potências industriais tradicionais estão assustadas com esse rolo compressor chinês.
Isso nos traz de volta à pergunta da semana passada: quem vencerá a guerra comercial entre EUA e China? Argumentei que a China venceria, em parte, porque os EUA fizeram do país um parceiro bem pouco confiável e, em parte, porque a China tem a opção de expandir a demanda interna e, dessa forma, compensar a perda de demanda americana. Matthew Klein, em seu excelente “The Overshoot”, na plataforma Substack, responde que a China já tinha essa opção há tempos, mas deixou de usá-la. Minha resposta é que agora a China precisa usá-la e, portanto, de fato decidirá expandir a demanda, em vez de aceitar uma grande recessão interna. Veremos.
O desfecho da guerra comercial entre EUA e China e a possível evolução das tarifas de Trump são as questões imediatas. No entanto, os problemas mais amplos em jogo não devem ser ignorados. A política comercial não deve ser analisada isoladamente. Como sabiam os fundadores do sistema comercial pós-guerra, mais notavelmente o próprio Keynes, o sucesso desse sistema também depende de ajustes macroeconômicos globais e, portanto, do funcionamento do sistema monetário internacional.
No primeiro ato do pós-guerra, os EUA tiveram grandes superávits em conta corrente, mas os reciclaram via empréstimos. No segundo ato, até 1971, os superávits dos EUA foram sendo corroídos. Isso levou ao fim da conversibilidade do dólar em ouro e ao sistema de câmbio flutuante com metas de inflação, ao menos entre países ricos. Esse sistema funcionou bem o suficiente até a rápida ascensão da China. Após essa ascensão, a era em que os EUA podiam agir como captador e consumidor de última instância, testada nos anos 1980 por Japão e Alemanha, se tornou impraticável política e economicamente.
A imprevisibilidade de Trump e seu foco em acordos bilaterais são, de fato, tolices. No entanto, a antiga ordem econômica liderada pelos EUA também se tornou insustentável. Os EUA não mais atuarão mais como equilibradores de última instância. O mundo - em especial, a China e a Europa - precisa pensar em algo novo.
A fome e a sede das crianças de Gaza
Nove mil crianças palestinas estão internadas em Gaza com desnutrição aguda. Os números são do insuspeito UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância). A notícia é desta semana.
Vimos esquecendo e esquecendo e esquecendo a tragédia da Palestina. Como vamos esquecendo outras muitas barbáries praticadas por humanos contra humanos. A mais célebre delas, o Holocausto. Quando a Alemanha de Hitler exterminou 6 milhões de judeus, principalmente.
Estudiosos do holocausto estimam que mais de 1,5 milhão dos judeus assassinados tinham menos de 14 anos. A maior parte desses morreu de fome.
Quase um século depois, seguimos fazendo guerras e matanças – de crianças, inclusive. Não só de bala, bomba, ou gás, mas também de fome e sede. Como fizeram os nazistas. Como fez Stalin, na Rússia e em territórios ocupados.
Estudos apontam para 3,3 milhões de soviéticos mortos de fome na Ucrânia; 700 mil vítimas do Grande Terror de Stalin; 4,2 milhões de soviéticos mortos de fome sob a ocupação nazista. Além dos 700 mil civis assassinados pelos alemães, fora dos campos da morte, em represálias por atos de resistência e oposição ao domínio de Hitler.
Desgraças de ontem, parece, não ensinam e não impedem as de hoje.
A estimativa é que, em 2024, cerca de 6% da população palestina residente na Faixa de Gaza foi exterminada por ações promovidas ali pelas forças militares de Israel.
Em Gaza, vivem – ou viviam – 2,65 milhões de palestinos. Das estimadas 45 mil mortes ocorridas desde o início da guerra na região (outubro de 2023) cerca de 25 mil aconteceram em 2024. Os números são do Departamento Central de Estatísticas, entidade ligada à Autoridade Nacional Palestina (ANP).
Ainda que sem considerar mortos da guerra Ucrânia/ Rússia, os milhares de mortos das incontáveis guerras nos países africanos, os números da tragédia na Palestina são absurdos e desiguais.
Nos primeiros seis meses dos ataques à Palestina, dados oficiais contavam 34.345 mortos, sendo 33.175 palestinos e 1.170 israelenses. A proporção não será diferente nos dias de hoje.
Sem esquecer. Guerras sempre produzem mais do que mortes por bomba, bala ou fogo.
“A desnutrição aumenta na Faixa de Gaza”, relata a diretora executiva do Fundo das Nações Unidas para a Infância, Catherine Russel, denunciando que, em Gaza, nas últimas semanas, sem redução dos ataques, pelo menos 10 cozinhas de organizações de socorro não governamentais (ONGs) fecharam por falta de alimentos e 25 padarias da ONU estão sem funcionar há um mês.
O governo de Israel, que responde pelos bloqueios de ações humanitárias na região, diz que a comida e a água liberadas ali “são suficientes”.
Cinismos à parte, onde estamos nós? Onde anda escondida nossa compaixão? Nosso sentido de humanidade?
Nunca fomos tão bem informados, em tempo real, do que acontece dentro de nossos países e mundo afora. Não dá para repetir a então alegada ignorância sobre os campos de extermínio dos nazistas. “Eu não sabia” não existe hoje.
Com poucas manifestações de indignação e de perplexidade – muito menos do que o necessário, do que o esperado -, assistimos Trump, falando pelos USA, e Netanyahu, pelos israelenses, sem pudores, defendendo a transformação do território de Gaza num exclusivíssimo resort 6 estrelas. Depois do extermínio.
Propósito reforçado na recente visita de Trump ao Oriente Médio, quando foi anunciada uma super ofensiva militar de Israel para tomar de vez a Faixa de Gaza.
Eles não estão blefando.
Sem grandes protestos, somos bem comportados expectadores da tragédia Palestina. Também do desmonte dos organismos internacionais, criados no pós guerra com a função obrigatória de defender o respeito humano com todas as suas faces, protegendo os mais fracos da prepotência e da potência dos fortes – em armas ou dinheiro, ou os dois. Para impedir repetições de genocídios, de holocaustos.
Nossa tolerância com o intolerável terá consequências, preço alto, generalizadas dores, como retrata a História e tenta nos ensinar. Insistimos em não aprender.
Vimos esquecendo e esquecendo e esquecendo a tragédia da Palestina. Como vamos esquecendo outras muitas barbáries praticadas por humanos contra humanos. A mais célebre delas, o Holocausto. Quando a Alemanha de Hitler exterminou 6 milhões de judeus, principalmente.
Estudiosos do holocausto estimam que mais de 1,5 milhão dos judeus assassinados tinham menos de 14 anos. A maior parte desses morreu de fome.
Quase um século depois, seguimos fazendo guerras e matanças – de crianças, inclusive. Não só de bala, bomba, ou gás, mas também de fome e sede. Como fizeram os nazistas. Como fez Stalin, na Rússia e em territórios ocupados.
Estudos apontam para 3,3 milhões de soviéticos mortos de fome na Ucrânia; 700 mil vítimas do Grande Terror de Stalin; 4,2 milhões de soviéticos mortos de fome sob a ocupação nazista. Além dos 700 mil civis assassinados pelos alemães, fora dos campos da morte, em represálias por atos de resistência e oposição ao domínio de Hitler.
Desgraças de ontem, parece, não ensinam e não impedem as de hoje.
A estimativa é que, em 2024, cerca de 6% da população palestina residente na Faixa de Gaza foi exterminada por ações promovidas ali pelas forças militares de Israel.
Em Gaza, vivem – ou viviam – 2,65 milhões de palestinos. Das estimadas 45 mil mortes ocorridas desde o início da guerra na região (outubro de 2023) cerca de 25 mil aconteceram em 2024. Os números são do Departamento Central de Estatísticas, entidade ligada à Autoridade Nacional Palestina (ANP).
Ainda que sem considerar mortos da guerra Ucrânia/ Rússia, os milhares de mortos das incontáveis guerras nos países africanos, os números da tragédia na Palestina são absurdos e desiguais.
Nos primeiros seis meses dos ataques à Palestina, dados oficiais contavam 34.345 mortos, sendo 33.175 palestinos e 1.170 israelenses. A proporção não será diferente nos dias de hoje.
Sem esquecer. Guerras sempre produzem mais do que mortes por bomba, bala ou fogo.
“A desnutrição aumenta na Faixa de Gaza”, relata a diretora executiva do Fundo das Nações Unidas para a Infância, Catherine Russel, denunciando que, em Gaza, nas últimas semanas, sem redução dos ataques, pelo menos 10 cozinhas de organizações de socorro não governamentais (ONGs) fecharam por falta de alimentos e 25 padarias da ONU estão sem funcionar há um mês.
O governo de Israel, que responde pelos bloqueios de ações humanitárias na região, diz que a comida e a água liberadas ali “são suficientes”.
Cinismos à parte, onde estamos nós? Onde anda escondida nossa compaixão? Nosso sentido de humanidade?
Nunca fomos tão bem informados, em tempo real, do que acontece dentro de nossos países e mundo afora. Não dá para repetir a então alegada ignorância sobre os campos de extermínio dos nazistas. “Eu não sabia” não existe hoje.
Com poucas manifestações de indignação e de perplexidade – muito menos do que o necessário, do que o esperado -, assistimos Trump, falando pelos USA, e Netanyahu, pelos israelenses, sem pudores, defendendo a transformação do território de Gaza num exclusivíssimo resort 6 estrelas. Depois do extermínio.
Propósito reforçado na recente visita de Trump ao Oriente Médio, quando foi anunciada uma super ofensiva militar de Israel para tomar de vez a Faixa de Gaza.
Eles não estão blefando.
Sem grandes protestos, somos bem comportados expectadores da tragédia Palestina. Também do desmonte dos organismos internacionais, criados no pós guerra com a função obrigatória de defender o respeito humano com todas as suas faces, protegendo os mais fracos da prepotência e da potência dos fortes – em armas ou dinheiro, ou os dois. Para impedir repetições de genocídios, de holocaustos.
Nossa tolerância com o intolerável terá consequências, preço alto, generalizadas dores, como retrata a História e tenta nos ensinar. Insistimos em não aprender.
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