segunda-feira, 3 de maio de 2021

Horizontes escurecidos

Há uma época em que as desilusões, o cansaço da luta e uma íntima convicção de que afinal a vida não vale tão grandes esforços convertem-se, para determinados espíritos, numa nuvem que aumenta aos poucos, até obscurecer todo o horizonte. O jogador sente então que a partida está definitivamente perdida e examina, sem saber o que fazer delas, as cartas que ainda lhe restam nas mãos. Não é exatamente este o sentimento dos velhos, ou melhor, daqueles que lutaram a vida inteira por uma tranquilidade que sempre se sentiram cada vez mais distantes?
Lúcio Cardoso

No Dia da Liberdade de Imprensa, perguntar é preciso

“Você é freelancer?”, me inquiriu Grande Otelo.

Eu entrevistava o ator, glória das artes nacionais, e o assunto era o passado das escolas de samba. Otelo, também compositor, era parceiro de Herivelto Martins no clássico “Praça XI”, e eu queria saber detalhes sobre as gambiarras que as escolas carregavam para iluminar os desfiles pioneiros naquele canto do Rio. Foi aí que ele deixou de lado o sorriso de comediante e botou o “freelancer” no meio. Eu ainda redargui que não, orgulhoso da carteira profissional recém assinada pelo jornal. Mesmo assim, Otelo completou irônico:

“Pois, meu filho, isso é pergunta de freelancer!” – e se recusou a responder.

Décadas depois eu continuo sem saber o que seria uma pergunta de “freelancer”, mas seja o que fosse, fosse o que seria, eu estou me lembrando dela porque hoje é o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa e eis a ocasião propícia para dizer que não só toda maneira de amor vale a pena, mas toda maneira de perguntar mais ainda.

Semana passada, a uma repórter que queria uma explicação sobre sua foto com a expressão miliciana “CPF cancelado”, o presidente da República também desdenhou e classificou a pergunta de “idiota”. Mais do que perguntas de “freelancer”, perguntas idiotas são fundamentais para explicar o Brasil 2021.

Tem ainda a pergunta que não quer calar, a pergunta de um milhão de dólares, a pergunta de algibeira. Na rotina cotidiana de não sair de casa sem elas, o cartão de crédito que a sociedade lhe deu, o jornalista parte de um dos princípios basilares desse Dia Mundial da Liberdade de Imprensa – a certeza de que perguntas não ofendem. Já uma resposta ofensiva vai para a conta do entrevistado, e pode ser o lead da matéria. 

Uma vez fui entrevistar um coronel da PM, atrás de informações para compor o perfil de um general que assumiria o Ministério do Exército. Eu precisava de detalhes da personalidade, o lado humano do novo ministro. O que ele gosta fora da caserna?, perguntei. “Escreve aí”, mandou o militar, com a autoridade característica. “O general não gosta de homem com cabelo comprido feito o seu”. Era 1974. Ditadura. Sorri verde e amarelo.

É uma profissão de risco, mesmo para quem se especializou nas amenidades do fait-divers das coisas culturais. Um dia, depois de ler uma crítica adversa, o cantor Fagner mandou me avisar que ao primeiro encontro não faria perguntas e me encheria de porrada. Como se sabe, é um homem nordestino, aquele que antes de tudo é um forte, e graças ao Padim Ciço nunca mais eu e Fagner nos vimos.

O repórter Gabriel García Márquez dizia que, acompanhado de ética como o zumbido acompanha o besouro, ao jornalismo tudo é permitido. Eu estava ungido pelo mais ético desses zumbidos quando perguntei ao John Travolta, ainda não catapultado de volta ao sucesso por Tarantino, como ele definia o fracasso. Travolta magoou. Levantou-se, cumprimentou-me respeitosamente e bateu em retirada. Sua não-resposta salvou a entrevista.

A liberdade de imprensa começa pelo direito a perguntas e é bom que seja celebrada na semana em que a CPI da Covid fará um monte delas para investigar quem matou 400 mil pessoas. Um dia, no tempo da delicadeza, telefonei para Carlos Drummond de Andrade: “O que o senhor acha do biquíni asa delta?”. “Ah, meu caro, quem me dera sabê-lo”, respondeu, sem entrar no mérito se a pergunta era freelancer, idiota ou os dois tipos juntos. Poetas e repórteres sabem – perguntar é preciso, viver também.

Apagão de emprego e capital

O pastor anglicano Thomas Malthus era um pessimista, em meio ao otimismo iluminista do final do século 18. Atribuía aos impulsos sexuais o crescimento da população e, em decorrência, o aumento da pobreza. Era um darwinista social, como o ministro da Economia, Paulo Guedes, que acha absurdo as pessoas quererem viver até os 100 anos e os filhos de porteiros sonharem com aquele canudo de papel do samba O pequeno burguês, grande sucesso de Martinho da Vila.

Somente Thomas Malthus explica a naturalidade com que o presidente Jair Bolsonaro e Guedes estão lidando com a crise sanitária e os 400 mil mortos pela covid-19 já contabilizados no Brasil. A teoria econômica malthusiana sustentava-se na tese de que a produção de alimentos não acompanharia o crescimento da população; porém, com a má alimentação e as doenças, haveria um reequilíbrio, com a redução da expectativa de vida e da taxa de natalidade. Mais semelhança com pensamento dominante no Palácio do Planalto e no Ministério da Fazenda, impossível.


Entretanto, àquela época, a teoria malthusiana já havia sido ultrapassada pelo desenvolvimento do capitalismo, cujas inovações permitiram a maior produção de alimentos, de bens e de serviços. Hoje, a população inglesa é três vezes maior e 10 vezes mais rica do que há 200 anos. Mesmo na China, que até recentemente proibia os casais de terem mais de um filho, em decorrência do fracasso do “Grande salto para a frente” de Mao Zedong (45 milhões de chineses morreram de fome), o problema alimentar foi resolvido. Em grande parte, graças ao Brasil, que se tornou seu maior fornecedor de grãos e proteínas.

Com a pandemia, no entanto, milhões de brasileiros estão mergulhados na miséria absoluta, sem ter nem o que comer em casa por falta de renda. São números acachapantes: 14,4% de desempregados e redução da massa salarial da ordem de 7,4%,uma perda de R$16,8 bilhões, entre o trimestre encerrado em fevereiro de 2021 e o mesmo período do ano passado, segundo o Instituto Brasi- leiro de Geografia e Estatística (IBGE). A menor queda foi na agrope- cuária (-0,8%). A administração pública, porém, teve aumento surreal nos rendimentos, de 5,3%. Tem algo errado aí.

As atividades de alojamento e alimentação perderam 1,5 milhão de empregos, maior queda percentual (-27,4%). A indústria fechou cerca de 1,3 milhão de postos (-10,8%), mesmo número dos serviços domésticos (-20,6%). O comércio perdeu 1,98 milhão de vagas (-11%). Somente a agropecuária (226mil) e o setor público (374 mil) elevaram o número de vagas. Durante a pandemia, houve um aumento de 2 milhões de desempregados; ou seja, a situação já era muito grave no mercado formal antes disso, com 12,4 milhões de desempregados. Um dado chama muita atenção: a perda de rendimento de empregadores (-5,4%) e dos trabalhadores domésticos (-3,6%).

O agravante é que nada será como antes, porque a covid-19 acelerou transformações no mundo do trabalho que vieram para ficar, com a substituição de mão de obra por mais tecnologia e a adoção do trabalho avulso e remoto. Além disso, 10,5 milhões de pessoas deixaram de procurar emprego, dos quais 1,2 milhão passaram a compor o grupo de desalentados, que chegou ao patamar recorde de quase 6 milhões, um aumento de 27% em um ano.

Empresas com mais capacidade de investimentos aproveitam a oportunidade para avançar sobre os concorrentes e obter ganhos de produtividade. Entretanto, tão grave quanto o desemprego é o apagão de capital de micro, pequenos e médios empreendedores, que encerraram suas atividades e queimaram suas economias para sobrevivência das suas famílias. Guedes, entretanto, vê na pandemia uma oportunidade de ouro para descontruir políticas públicas, sem pôr nada no lugar, porque suas teorias ultraliberais estão tão ultrapassadas quanto as teses malthusianas.

O general pulou a cerca

Tive um avô que comia doce escondido, fugindo das prescrições médicas. Lembrei-me dele quando o general Luiz Eduardo Ramos confessou que tomou vacina escondido, para respeitar a medicina e a ciência:

— Tomei e vou ser sincero. Como qualquer ser humano, quero viver, pô.

As coisas mudaram no Brasil de hoje. Um general do Exército toma vacina escondido porque sabe que, para o governo a que está ligado, isso é uma heresia.

O que o general esconde é para ele o impulso de qualquer ser humano. Se for um pouco mais longe, perceberá que está presente em todos os seres vivos.


O belo documentário sobre os ensinamentos de um polvo mostra suas estratégias de sobrevivência, ora caçando um camarão, ora escapando de um tubarão, ou mesmo colocando seus ovos em lugar seguro. Além de sobreviver, os seres vivos tendem a perpetuar sua espécie, general.

Na mesma gravação em que confessa sua escapada para a vida, o general Luiz Eduardo Ramos afirma que está na luta para convencer Bolsonaro a se vacinar também:

— Não podemos perder o presidente para um vírus desses.

Mas, de certa forma, o general e alguns eleitores de Bolsonaro já o perderam para o vírus desde o momento em que o presidente decidiu negá-lo. Bolsonaro não poderia combater o que não existe, o que não é mais do que uma gripezinha.

Um general sensato deveria parar para pensar um pouco na história. Num passado recente, os adversários eram postos na clandestinidade. Mas hoje é o próprio impulso vital que se torna clandestino no interior do governo.

Indo um pouco para trás, encontraremos presidente que se suicidou no auge de uma crise, mas nunca houve presidente que escolhesse o suicídio como um estilo de vida.

Depois de comandar o Ministério da Saúde, o general Pazuello, investigado por negligência nas mortes de Manaus, foi a um shopping center sem máscara.

Ele manteve um nível de obediência total a Bolsonaro, mostrando-se o aliado fiel, aquele que marcha com seu líder ainda que seja para a sepultura.

A travessura do general Ramos é apenas uma das pequenas brechas em que a vida consegue penetrar o fúnebre edifício do governo Bolsonaro. Mas sua própria confissão indica como está enterrado nesse pântano cadavérico.

Ele não tem vergonha de querer viver como os outros seres humanos. Mas também não se orgulha disso nem celebra o ato vital de se vacinar. É apenas uma contingência, pô.

Aliás a expressão “pô” é uma forma simplificada porque achamos na imprensa que, depois de tudo por que passaram os brasileiros, ainda não podem ler certas palavras cruas.

De modo geral, não me interessam generais que se enterram ou mesmo os que põem rapidamente a cabeça de fora.

Eles são apenas a guarnição militar de um projeto de morte que, desvelado para a maioria do país, certamente não sobrevive depois de 22.

O problema é que esse projeto domina hoje o país onde vivo e se espalha além dos mais de 400 mil túmulos que cavou com a pandemia. Ele nos retira o Censo para que não saibamos exatamente quantos somos e que problemas concretos temos de enfrentar. Ele nos impõe e aprova um Orçamento com verdadeiros cheques em branco para políticos.

Enfim, não basta conduzir um projeto de morte, mas é necessário também romper com os elementos de orientação e planejamento coletivos.

É como se tivéssemos que marchar de olhos fechados para o nosso próprio cadafalso. É um plano meticuloso que se estende à escuridão, ao imposto sobre os livros, para que se feche também essa janela para o mundo.

Houve um pastor que levou seus fiéis ao abismo nas Guianas. Chamava-se Jim Jones. Mesmo para alguém como eu, que não acredita em reencarnação, as coincidências são assustadoras.

Durante muito tempo se pensou em suicídio coletivo, mas o que prevaleceu foi a tese do assassinato em massa.

Pensamento do Dia

 

Seyran Caferli (Azerbaijão)

Quem a Covid mais assassina

A vacinação contra a Covid nos dividiu em grupos, usando critérios de riscos a partir de nossa condição física e nossa condição profissional. A escassez de vacina, fruto em nosso país de uma política patrocinada pelo Presidente da República e seus arautos, criou um novo tipo de embate social. Uma pequena legião vacinada contra uma população desprotegida. Se mostrar-se vacinado é uma afirmação da ciência, é uma campanha de conscientização, cumprindo assim um papel de divulgação da necessidade de imunização, o ato de postar imagens de pessoas vacinadas também gera uma frustração na maioria dos brasileiros que não teve acesso a ela. E isto aumenta a tensão social, agravada pela fome, que se espalhou junto com o vírus.

Escolher quem vacinar primeiro é uma tarefa difícil. É como escolher entre quem vai ser atendido em hospitais com UTIs lotadas e quem vai morrer sem atendimento. Ninguém devia ser obrigado a fazer esta escolha. Todos devem ser vacinados.



A falta de vacina no Brasil é, portanto, uma roleta russa. Em qualquer dos grupos sociais, é um crime uma morte por Covid, cometido por falta de ações no tempo certo (início da pandemia) do governo federal. Há grupos que podem se proteger totalmente da doença enquanto não chega a sua vez na longa fila da vacinação. Há outros, que podem se proteger parcialmente. Mas um contingente imenso está completamente vulnerável. É neste grupo que os assassinatos promovidos pela falta de vacina estão sendo mais recorrentes.

No seu livro já clássico, Trabalhar Cansa, o escritor italiano Cesare Pavese narra, em um dos poemas, “Fumantes baratos”, a trajetória de um interiorano que vai a Turim em busca de melhoria de vida. Turim, sede de grandes indústrias, representava para este cidadão uma possibilidade de mudança de vida ao se integrar a um centro produtor de riqueza. Mas acaba sendo apenas o sofrimento imposto pela pobreza. “Aceitava o trabalho / como um duro destino dos homens”. Esta crença de que o trabalho criaria justiça é rompida no final, quando ele grita que não havia um destino condenando homens e mulheres, e sim uma exploração.

Com uma linguagem densa, sem ceder ao primarismo das palavras de ordem, Pavese constrói um poema sobre a conscientização deste trabalhador consumido por condições sociais limitantes. A definição desta população como “fumantes baratos”, ou seja, seres que recebem o mínimo de tempo de lazer e de oportunidade de usufruir do que a civilização industrial produziu, já revela o tom humanizador do texto.

A pandemia fez com que as casas das famílias mais pobres ficassem menores. Familiares desempregados, crianças sem creche e escolas, tudo isso agravado pela falta de alimentos e pelas incertezas. Estas aglomerações em lugares apertados, em regiões com alta densidade, se intensificam entre aqueles trabalhadores que ainda conseguem, cada vez mais de maneira informal, manter-se no mercado. Os transportes coletivos superlotados acabam não apenas levando as pessoas para o seu local de atuação, mas para o contágio e para a morte, pois mesmo com todos os protocolos de segurança, o transporte público, da maneira que é ofertado em muitas cidades, com redução de ônibus e vagões, é o principal ponto disseminador da Covid.

Neste dia Primeiro de Maio, é preciso dizer que a falta de vacina, de insumos hospitalares, de leitos e de UTIs no Brasil mata principalmente os nossos trabalhadores, condenados ao duro destino de não ter opção.
Miguel Sanches Neto

Piora nos índices sociais vai se acelerar em número e desumanidade

Jair Bolsonaro quer mais cortes em gastos sociais previstos no Orçamento para este ano. As mutilações já feitas foram brutais, mas Bolsonaro quer mais alguns bilhões para o que se mostra no governo como o segundo gasto na ordem de nobreza: a compra de parlamentares com a liberação de bilhões para suas propostas de obras, que são catapultas eleitorais. O único gasto mais nobre no Planalto é o dos militares, cujo montante inicial perdeu apenas 3%.

As reduções são o oposto do requerido pelo forte agravamento das condições de sobrevida da maioria dos brasileiros. A retenção por mais de três meses do também mutilado auxílio emergencial anulou o alívio trazido pelas parcelas do ano passado, concedidas pelo Congresso.

A fome aumenta, e se espraia mais. Qualquer oferta de alimento atrai filas enormes, e as coletas de doações recebem ainda quantidade ínfima para a necessidade crescente. A maioria não tem disponibilidades para ser solidária.

Aos que a têm, o que falta, historicamente, é o próprio sentido de solidariedade, até de humanidade mesmo. Fosse diferente, já veríamos, há tempos, forte movimento de socorro aos que têm fome.


Na chegada de Bolsonaro ao poder, considerava-se, com provável otimismo, haver em torno de 24 milhões de brasileiros vivendo com menos de R$ 246 por mês: R$ 8 por dia. Passados dois anos, a FGV e dados do IBGE indicam o aumento desse contingente para 35 milhões de pessoas.

Não só os já habitantes da pobreza descem à miséria mais miserável. O título de reportagem de Fernando Canzian para a Folha sintetiza o que se passa nos intermediários: “Fenômeno dos anos Lula, classe C afunda e cai na miséria”. Eloquência justificada por mais de 30 milhões que “estão despencando diretamente da classe C para a miséria”.

A pandemia não é causa única da derrocada social. Desde seu primeiro momento, o governo investiu contra os programas sociais, sem exceção, e os manteve na precariedade quando o vírus se anunciou, se propagou e se impôs.

Nem a mínima atenção foi dada à necessidade de se buscarem modos de atenuar os efeitos socioeconômicos da pandemia. E, em paralelo, fosse preparada a defesa da população com a compra de vacinas, campanhas instrutivas, orientação para as alternativas empresariais e gerais.

Nada disso, era só uma “gripezinha”, a cloroquina a eliminaria. A vaguidão de Paulo Guedes, com os pés no ministério e a cabeça na Bolsa, e o desvario de Bolsonaro associaram-se ao vírus.

Passamos de 400 mil mortes. Esse morticínio atordoa, as crianças e famílias que caem no desamparo, se desorganizam, também perdem a vida por outra que começa e só podem temer.

O vírus não é o causador único dessa imensa desgraça coletiva. Tanto que maio e junho são esperados por cientistas como ainda mais calamitosos no Brasil. E explicam: por decorrência da baixa vacinação até aqui, da falta de vacinas porque o governo chegou tarde, desacreditado e arrogantemente suspeito ao balcão mundial dos imunizantes.

Logo, os passos degradantes na escala socioeconômica, mais do que continuar, vão se acelerar em número e em desumanidade. Nenhuma resposta lúcida pode ser esperada do governo que pretende até cortar mais gastos sociais.

Se a sociedade, por sua vez, é inerte por preguiça moral maciça ou indolência cultural incapacitante, a alienação é a mesma e mesma a consequência. Então, lamento, o que há a dizer é isto: a perspectiva de futuro próximo é péssima —talvez seja o que nossa paralisia mereça.

'CPI é tribunal de guerra durante a guerra', declara ministro Paulo Guedes

O ministro Paulo Guedes (Economia) considera inoportuna a CPI da Covid. "Estamos em meio à pandemia. Isso é equivalente a fazer um tribunal de guerra durante a guerra contra o vírus", disse ele, em entrevista ao jornal O Globo.

Para Guedes, os responsáveis pela CPI sofrerão desgaste político. "Você acha que a classe política vai sair bem disso? Foi o que eu sempre falei: subir em cadáveres para fazer política numa hora dessas... Acho que a população brasileira não vai apreciar isso. Ela quer resolver o problema. Ela quer a preservação da vida e dos empregos."

Perguntou-se ao ministro se a investigação legislativa não pode levar à correção de rumos na gestão da pandemia. E ele: "Eu acho que levantar o tema, de que nós vamos fazer uma CPI, já estimularia a correção de rumos. Temos um desafio difícil pela frente: evitar que a politização da crise piore a gestão da crise.".

Guedes manifestou o receio de que a CPI paralise as reformas econômicas que tramitam no Congresso. "Vacinação em massa e reformas é o ganha-ganha. Acho que precisa desse equilíbrio: de um lado, vamos fazer a CPI que eles acharem que é oportuno fazer, mas, por outro, não paralisem as reformas."

Ironicamente, a análise das reformas já estava paralisada no Congresso antes da pandemia e da CPI. Durante a entrevista, o ministro reconheceu que o próprio Bolsonaro não apoia 100% a agenda de reformas liberais prometida em 2018. "O presidente mesmo brinca que já foi 99% (o apoio às reformas). Agora é 97%, ele fala. Aí eu brinco: 'Não, presidente, o senhor está em 65%'."

O que Guedes não disse é que o suposto interesse pelas reformas ressurge justamente como reação à CPI. O governo tenta evitar que a investigação legislativa monopolize o noticiário. Faz isso com a ajuda do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), adversário político do relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL).

Guedes fala sobre as reformas como se uma mágica fosse fazê-las decolar. "Temos nos próximos 90 dias as reformas administrativa e tributária e os marcos regulatórios para destravar os investimentos.".

Do modo como se expressa, o ministro parece preparar o discurso que fará num futuro próximo, para culpar alguém pelo fiasco do seu plano reformista. "Quer fazer a agenda de CPI, pense que estamos no meio de uma pandemia. Faça, mas com alguma moderação pra não desorganizar tudo. Tanto as medalhas quanto as avaliações nos tribunais de guerra são feitas logo após a guerra."

Crivado de críticas, assediado por pressões do centrão para desmembrar o seu mega-ministério e às voltas com baixas frequentes em sua equipe, Paulo Guedes não cogita deixar o governo. O ministro considera a si mesmo como um personagem indispensável ao governo Bolsonaro e ao país.

"Sem falsa modéstia, eu sei que fui crucial em momentos decisivos. Eu tenho um senso de responsabilidade muito grande. Não só com a pessoa que confiou em mim, que foi o presidente. Mas principalmente com quem ele representa, que são 200 milhões de brasileiros."

Guedes prosseguiu: "O senso de responsabilidade e compromisso com os brasileiros que estão lá fora são muito maiores que a preocupação de ficar bem na fotografia. É muito fácil falar: 'Não privatizaram duas ou três empresas, vou sair porque não estão me atendendo.' Como é que vai sair no meio de uma pandemia, com pessoas morrendo?".

Resta saber até quando Bolsonaro considerará o trabalho do ex-superministro da Economia essencial. A pergunta de Paulo Guedes —"Como sair com pessoas morrendo?"— não impediu o capitão de instalar no estratégico Ministério da Saúde uma porta giratória pela qual já passaram o ortopedista Henrique Mandetta, o oncologista Nelson Teich e o general Eduardo Pazuello. O cardiologista Marcelo Queiroga é o quarto ministro da Saúde. E não há segurança de que seja o último.

'Políticos favorecem ciência que se alinha com suas próprias preferências'

"Estamos seguindo o que diz a ciência".

Desde o início da pandemia, governos e autoridades têm usado essa frase para explicar as ações que tomam para impedir a disseminação do coronavírus.

Alguns especialistas, entretanto, acreditam que uma frase que soa tão sensata pode ter implicações mais profundas.

"A forma como a ciência se transforma em política pública depende de cálculos políticos e econômicos, bem como dos compromissos morais e ideológicos de políticos, partidos e assessores", escreveu a socióloga Jana Bacevic em uma coluna do Guardian, em abril de 2020.

"Raramente, ou nunca, é apenas sobre 'ciência'.


Bacevic é pesquisadora na Universidade de Durham, no Reino Unido, com especialização em políticas públicas e filosofia da ciência.

Durante a pandemia, Bacevic estudou como líderes políticos usaram os conselhos científicos que receberam.

"Os políticos tendem a favorecer o tipo de ciência que se alinha com as preferências que eles já têm", escreveu Bacevic.

Para a especialista, "focar a atenção apenas na ciência evita deliberadamente questões sobre responsabilidade política".

Durante a pandemia, muitos líderes políticos repetiram a frase "estamos seguindo a ciência", para explicar as medidas que tomaram para combater a transmissão do vírus. Esse parece o caminho certo a seguir, mas, do ponto de vista dela, o assunto é mais complexo…


Sim, uma das coisas que eu disse, desde o início da pandemia, é que a maneira como os políticos usam a ciência é uma justificativa para tomarem diretrizes políticas específicas ou ações que eles decidiram tomar.

Nesse sentido, é incorreto dizer que estão seguindo a ciência, porque isso significaria que a ciência lidera, quando, na realidade, são os políticos que lideram.

Eles decidem seguir alguns tipos de evidências científicas. Decidem aceitar ou ouvir certos tipos de conselhos científicos.

E, obviamente, excluem outros conselhos científicos, muitas vezes desses mesmos cientistas ou conselheiros. Então, na verdade, são os políticos que estão no comando.

Uma das razões pelas quais me pareceu importante chamar a atenção para isso é justamente porque senti, especialmente no início da pandemia, que, embora tenha mudado de alguma forma, alguns políticos estavam usando a ciência quase como uma desculpa para ignorar, ou pelo menos minimizar, a responsabilidade deles por certas ações, ou, mais frequentemente, por não tomar certas ações.

Quais seriam alguns exemplos de políticos usando a ciência em favor de suas decisões ou preferências?

Um exemplo claro no início da pandemia foi o que ficou conhecido como "giro em U", no Reino Unido, em relação às restrições de circulação.

No início da pandemia, o governo do Reino Unido manteve a decisão de não levar em conta as sugestões de seus próprios consultores científicos, e sabíamos disso porque esses conselhos estão disponíveis ao público, então sabemos o que eles diziam.

Então, quando o governo decidiu implementar o confinamento em uma base limitada, eles citaram novas evidências, disseram que estavam seguindo um novo modelo do Imperial College London.

O que minha pesquisa e a imprensa mostraram é que esse modelo foi apresentado ao governo do Reino Unido meses antes, em janeiro, e não em meados de março, quando começou a ser levado em consideração.

Portanto, não era realmente um modelo novo. Era um modelo que lhes dizia algo que eles já sabiam, só que agora eles falam com um nível mais alto de certeza.

Nesse sentido, a ciência era a mesma, nada havia mudado em relação à ciência daquele modelo.

É possível que algo tenha mudado na forma como a ciência era comunicada, mas isso não muda o fato de o governo ter relutado em intervir ou em tomar medidas que poderiam ser vistas como radicais.

Então, esse foi um exemplo claro em que uma suposta mudança no parecer científico foi feita. Não direi como uma "desculpa" porque isso beiraria o difamatório, mas foi claramente usado como uma justificativa para mudar o curso de ação, mas a ciência em si não mudou em nada.

Outro exemplo pode ser visto em diferentes governos, sobre como eles abriram e fecharam partes da sociedade, por exemplo, escolas.

Nesse sentido, a ciência tem sido mais ou menos firme em dizer que não há razão para supor que as escolas ficarão isentas da transmissão do vírus.

Em alguns casos, os governos decidiram abrir escolas, sem exigir o uso de máscaras e sem uma justificativa relacionada às taxas de transmissão.

Basicamente, eles optaram por aceitar que a taxa de contágio aumentaria.

Outra frase muito comum dos governantes é que eles tomam suas decisões com base "na melhor ciência disponível", uma frase sobre a qual você também tem suas ressalvas…

O problema disso, especialmente no início da pandemia, quando não se sabia muito sobre as rotas de transmissão ou taxas de mortalidade, é que em muitos aspectos não existia "a melhor ciência disponível".

Para ser mais preciso, o que era considerado a melhor ciência disponível era aquela que os políticos consideravam a melhor, embora nem sempre por razões científicas.

Os cientistas muitas vezes discordam entre si em muitas questões, mas, o que é mais importante é que os cientistas raramente têm um conceito político ou ideologia para orientar o que sugerem.

Nesse sentido, os políticos estavam sendo guiados pelos sinais que chegavam para eles na época, mas estavam escolhendo o tipo de evidência que levavam mais a sério.

Em vez de dizer que estão seguindo a melhor ciência disponível, qual seria a forma mais transparente de dizer isso?

Não acho que podemos esperar que os políticos digam isso de uma forma mais transparente. Mas se pudéssemos escolher de que forma eles poderiam dizer isso, acho que uma forma razoável seria dizer que eles estão sendo guiados pela ciência que lhes parecem úteis para os fins políticos que desejam alcançar.

Você diz que os conselhos científicos estão limitados ao que os governantes perguntam, mas também pelo que eles não perguntam. A que você se refere?

É muito importante entender isso em termos de como funciona o assessoramento dos cientistas aos políticos.

No início da pandemia, quando se falava de painéis de assessoria científica, as pessoas imaginavam salas de controle com várias telas, como uma mistura de Star Wars e Minority Report.

Na verdade, geralmente é mais uma sala de reuniões. Os encontros entre políticos e consultores científicos geralmente têm um tempo e alcance muito limitados.

Os políticos geralmente chegam a essas reuniões dizendo "ok, assuntos x e y estão fora de discussão. Com base na pequena margem de manobra que temos, o que precisamos saber?"

Nessas reuniões eles não perguntam "nós realmente queremos proteger a população, o que devemos fazer?"

Basicamente, o tipo de pergunta que eles fazem é: "Suponha que não disséssemos às pessoas para trabalhar em casa. O que aconteceria nesse caso?"

Então, eles realmente não pedem conselhos científicos. O que eles fazem às vezes é pedir conselhos políticos ou que sugiram um sentido de ações de políticas públicas, o que é diferente.

Quando falam com consultores científicos, eles perguntam apenas o mínimo que lhes permita entender quais serão as consequências de suas ações em assuntos que eles não conseguem entender. Por exemplo, transmissão ou taxas de mortalidade.

Em casos como o de Donald Trump nos Estados Unidos ou Jair Bolsonaro no Brasil, parece que foi mais fácil chamar a atenção sobre sua forma de agir, porque negam abertamente a ciência. Mas e os líderes que dizem que estão seguindo o que a ciência diz?

Acho que essa é uma das razões pelas quais, de certa forma, tem sido mais fácil fazer oposição em lugares como os Estados Unidos.

Presumo que foi isso que vimos na eleição de 2020, uma oposição à negação explícita da ciência feita por Trump, que em alguns casos chegou a quase apoiar a pseudociência.

Mas sim, é verdade que é mais difícil com políticos e líderes que afirmam estar seguindo a ciência.

Nesse caso, acho que há duas coisas a serem observadas.

A primeira é se eles estão realmente seguindo os pareceres científicos. Porque os painéis de assessoria científica, em alguns casos, publicaram seus posicionamentos e recomendações.

No Reino Unido, o painel de assessoria científica publicou suas recomendações e os modelos preditivos que fizeram desde o início da pandemia.

Esses documentos são de acesso público.

Os que não o são, em alguns casos, podem ser obtidos com pedidos de acesso à informação, embora alguns desses pedidos tenham sido repetidamente negados.

Por outro lado, os conselhos consultivos científicos muitas vezes vazam informações para a imprensa, por isso é possível acompanhar o desacordo entre a opinião de especialistas e políticos.

Alguns desses casos têm sido óbvios, por isso os políticos costumam dizer: "ok, essa é a recomendação científica, mas é esse o caminho que decidimos seguir".

Acho que isso nos diz que os políticos não temem mais ser vistos como alguém que decide interpretar a ciência à sua maneira, sem contradizê-la explicitamente.

O outro ponto, que o Reino Unido pode ser usado como bom exemplo, é que existem painéis de assessoria científica independentes.

Existe o Grupo de Assessoramento Científico para Emergências (Sage, por sua sigla em inglês), que não tem qualquer vínculo com o governo, mas emite pareceres de especialistas que, em alguns casos, se desviam do curso de ação que o governo decidiu tomar.

Agora, também é importante dizer que há muitos cientistas que seguiram teorias controversas ou menos confiáveis, e isso é algo com o qual devemos ser particularmente cuidadosos.

Dizer que eles estão seguindo a ciência tira um fardo dos governantes?

Para ser honesta, os políticos assumem uma responsabilidade em virtude de seus cargos.

Acho importante observar que quando a pandemia começou, apesar de haver medidas de biossegurança e modelos de cenários preparando os políticos e o aparelho de governo de qualquer país para um evento como este, muitos políticos foram pegos de surpresa.

O problema com as pandemias é que elas dão apenas algumas oportunidades para o heroísmo e ainda menos oportunidades para o nacionalismo.

Isso ocorre em parte porque o vírus atravessa fronteiras e em parte porque não há muitos eventos heróicos que possam ser feitos por políticos.

Os verdadeiros heróis da pandemia, por definição, são a equipe médica e os trabalhadores de emergência.

Essas pessoas não são exatamente as que tendem a estar no centro das atenções, especialmente em países onde tem havido um subinvestimento consistente ou privatização do sistema de saúde.

Nesse sentido, acho que seria justo dizer que muitos políticos foram pegos de surpresa e não conseguiram ver como essa crise poderia se transformar em uma oportunidade política.

Isso os coloca em uma situação difícil, especialmente os políticos populistas.

Acho importante observar que muitos políticos populistas estão observando de perto o que aconteceu nas eleições nos Estados Unidos.

Nesse sentido, acredito que eles estão cada vez mais preocupados em justificar suas próprias decisões, ou tentando dar a impressão de que estão fazendo o seu melhor, para que mais tarde não sejam responsabilizados ou culpados por altas taxas de mortalidade ou outros impactos da pandemia.

A ciência é política?

Ciência é política. Sempre disse isso abertamente. Para mim, política é a arte ou o processo de convivência e, como a ciência faz parte da sociedade, está sempre envolvida nas questões políticas. As decisões científicas têm consequências políticas.

E também as decisões científicas, incluindo pesquisas científicas, têm pré-requisitos políticos, incluindo financiamento.

A ciência é uma coisa boa, mas se não há financiamento, não há ciência. E isso é importante em relação a que tipo de ciência recebe financiamento e qual não.

Tem havido apelos, não apenas no caso da pandemia, mas em outras questões como a mudança climática, para que os cientistas sejam mais abertamente políticos.

Por exemplo, para os especialistas em clima dizerem abertamente não apenas que o aquecimento global é uma realidade gerada pelo homem, mas que isso significa que os políticos deveriam fazer isso ou aquilo.

Mas acho que isso é perturbador, no sentido de que os cientistas não têm tempo, nem autoridade, nem poder para tomar decisões políticas.

Embora possam ter suas opiniões ou ter clareza sobre as consequências de não agir de acordo com seus conselhos, na política são os governantes que devem ser responsabilizados.

Você acha que essa pandemia pode mudar de alguma forma a maneira como a ciência é usada para tomar decisões políticas?

Diria que o assessoramento científico e o processo de fornecimento de assessoria científica devem ser mais abertos e transparentes para o público, porque penso que isso permitiria ao público exigir dos políticos.

O que costumamos fazer hoje é presumir que o conselho dos cientistas é muito complexo ou muito técnico para o público entender.

Obviamente, em muitos casos isso é verdade, mas não precisa ser assim.

Por alguma razão, não há uma expectativa de que as pessoas comuns entendam questões básicas de economia ou a transmissão de um vírus.

Acho que devemos nos perguntar como podemos capacitar as pessoas para entender o que está acontecendo de uma forma que lhes permita responsabilizar os políticos.

É isso, em vez de nos perguntarmos como poderíamos consertar a relação entre consultores científicos e tomadores de decisão, porque isso deixa o público na incerteza.

Precisamos de uma prestação de contas mais democrática, e isso deve envolver o público, não apenas políticos e cientistas.