Celso de Mello em mensagem aos outros ministros do STF
domingo, 31 de maio de 2020
Mensagem de alerta
“GUARDADAS as devidas proporções, O “OVO DA SERPENTE”, à semelhança do que ocorreu na República de Weimar (1919-1933) , PARECE estar prestes a eclodir NO BRASIL ! É PRECISO RESISTIR À DESTRUIÇÃO DA ORDEM DEMOCRÁTICA, PARA EVITAR O QUE OCORREU NA REPÚBLICA DE WEIMAR QUANDO HITLER, após eleito por voto popular e posteriormente nomeado pelo Presidente Paul von Hindenburg , em 30/01/1933 , COMO CHANCELER (Primeiro Ministro) DA ALEMANHA (“REICHSKANZLER”), NÃO HESITOU EM ROMPER E EM NULIFICAR A PROGRESSISTA , DEMOCRÁTICA E INOVADORA CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR, de 11/08/1919 , impondo ao País um sistema totalitário de poder viabilizado pela edição , em março de 1933 , da LEI (nazista) DE CONCESSÃO DE PLENOS PODERES (ou LEI HABILITANTE) que lhe permitiu legislar SEM a intervenção do Parlamento germânico!!!! “INTERVENÇÃO MILITAR”, como pretendida por bolsonaristas e outras lideranças autocráticas que desprezam a liberdade e odeiam a democracia, NADA MAIS SIGNIFICA, na NOVILÍNGUA bolsonarista, SENÃO A INSTAURAÇÃO , no Brasil, DE UMA DESPREZÍVEL E ABJETA DITADURA MILITAR !!!!”
‘Os erros terão cor verde-oliva’
Ele não está falando, nem se pensa, em um golpe como o de 1964, que aconteceu em outro contexto histórico, mas acha que o artigo 142 da Constituição tem um “caminho aberto para interpretações conflitantes”. Dos muitos sinais dos últimos dias dados por militares que estão no governo, ele acha que o mais grave foi o episódio do general Augusto Heleno, até porque foi respaldado pelo ministro da Defesa:
— A posição do general Heleno é sem dúvida a que mais preocupa, por deixar a entender uma ameaça de intervenção. Pode, em parte, ser atribuída a seu temperamento, mas a nota que distribuiu no dia 22 de maio é ameaçadora. Pode ser interpretada como referência ao que a Constituição diz sobre o papel das Forças Armadas como garantidoras dos poderes constitucionais, isto é, como superpoder, como corte supremíssima.
A Constituição, explica, diz que as Forças Armadas estão sujeitas à autoridade do presidente da República e acrescenta que elas se destinam “à garantia dos poderes constitucionais”.
— Há aí uma enorme dificuldade: como estar sujeitas a um poder e, ao mesmo tempo, garantir os três? É caminho aberto para interpretações conflitantes e dá margem a declarações ameaçadoras como a do general Heleno. Ele faria a mesma ameaça se fosse para defender o Congresso e o STF contra os ataques do chefe do Executivo? — pergunta o professor.
Ele lembra que na história recente esse é o segundo episódio que tem o Supremo como alvo:
— É irônico. O general Villas Boas fez ameaça na véspera do julgamento de Lula no Supremo. Agora, o general Heleno ameaça o mesmo Supremo por, supostamente, perseguir o presidente.
Esses riscos extemporâneos que aparecem no país lembram uma máquina do tempo que nos tenha levado para mais de meio século atrás. Até porque quem presta atenção nas falas bolsonaristas fica com a impressão que ainda estamos naquele mundo. Para um bolsonarista raiz, qualquer pessoa que discorde do presidente é um “comunista”. O professor trata de pôr o passado onde ele deve ficar, no passado.
— Certamente nada como em 1964. Não temos um dos principais condicionantes de então, a Guerra Fria. O comunismo era na época uma realidade no mundo, com adesões no Brasil, inclusive nas Forças Armadas. Hoje é conto de carochinha. A esquerda, se podemos chamar o PT de esquerda, está desarvorada. Grupos civis armados, como os de Brizola em 1964, hoje despontam entre os apoiadores radicais do presidente. Seria curioso se, para garantir a lei e a ordem, e de acordo com a Constituição, o Supremo convocasse as Forças Armadas para combatê-los.
Se por “ruptura” o deputado Eduardo Bolsonaro está falando em endurecimento do regime, como aconteceu em alguns países como a Hungria, por exemplo, isso teria o apoio dos militares?
— Minha aposta é que não. Marinha e Aeronáutica dificilmente apoiariam tal decisão. São forças mais profissionalizadas. Mesmo o Exército hesitaria. O artigo do general Santos Cruz deve representar a posição da maioria do oficialato. O mais crucial é a posição dos generais que permanecem no governo.
O historiador lembra que no início a presença dos generais não significava que o governo fosse militar:
— Mas a constante alegação do presidente de ter apoio militar está deixando esses generais em posição delicada. Eles são corresponsáveis pelas trapalhadas do governo e agora não haverá mais como evitar que a imagem das Forças seja afetada. Os erros terão cor verde-oliva.
Essa situação de temer pela estabilidade democrática foi criada pela retórica belicosa do presidente nesses 17 meses de governo. A saída seria, segundo ele, “o impedimento”, mas acha que ele está protegido pela pandemia:
— Com a quarentena não há rua, sem a rua não há impedimento.
O país se vê às voltas com velhos fantasmas que o governo Bolsonaro mesmo retirou do armário.Míriam Leitão
Bem-vindo aos 80
Quando fiz 80 anos, há algum tempo, pois tudo passa, meu amigo, o professor Dick Moneygrand, foi impiedoso: “Como você está escrevendo os capítulos finais de sua vida?”
A penosa interrogação não pareceu apropriada, pois tanto para mim quanto para o Brasil visto como sociedade e cultura, a idade eleva e nos transforma em “velhinhos” modelados no Papai Noel, com o branco dos cabelos e da barba sinalizando pureza, paciência e bondade, num desdobramento da nossa autoridade. Ademais, os 80 exprimem um ponto fixo: a “velhice” vista com nitidez nos nossos álbuns de fotografia, pois ali nos enxergamos tanto como estados fixos (meninos, rapazes, homens feitos e velhos) quanto como perturbadoras figuras mutantes e instáveis.
Os 80 englobam tudo o que fomos e interrogam rigorosamente o que ainda podemos ser.
Os 80 englobam tudo o que fomos e interrogam rigorosamente o que ainda podemos ser.
O problema dos 80 é o seu esplendor para quem dá os parabéns, mas nem tanto para quem os recebe. A chegada nessa década é radicalmente (repito: radicalmente!) diversa de entrar nos 20, 30 e 40 — na “força da idade”, como diz Simone de Beauvoir —, pois nessa estação antevemos, como remarca o realismo do meu amigo americano, uma progressão para, digamos gentilmente, a saída do palco (e do teatro...).
Em sociedades que se imaginam permanentes e, por isso mesmo, estão sempre se revolucionando, basta olhar o mármore e o bronze das suas estátuas, o aço dos seus prédios, as suas constituições e estatutos, para se ter noção da nossa ambivalência relativamente ao diálogo entre o permanente e o episódico. O Ocidente reproduz pessoas e cenas em objetos, o que não é realizado em muitos sistemas e culturas.
Aos 80, observamos a metamorfose das idades ou a idade como metamorfose. Demora um pouco a chegar aos degraus que apagam receios e tentam instalar projetos, amores definitivos, determinações e destinos.
As festas de aniversário — pouco ou nada vistas nas sociologias; esses rituais de passagem, fabricação e estabilização de corpos e almas — dramatizam essas dimensões. Em todas as sociedades há consciência do que se pode ou não fazer dos 10 aos 80 anos. Esses ritos de passagem focalizam esses aspectos. Cada restrição e permissão (elas são interdependentes) demarca uma fase que vai do nascimento até a morte. Não há passagem sem uma demarcação, conforme ensinou Arnold van Gennep.
No nosso caso, o bolo — fabricado com ovos, leite e farinha, devidamente vestido de açúcar e ornado pelas velinhas que anunciam a idade do aniversariante — é uma entidade central. Colocado numa mesa — esse móvel metafísico dotado de alma e igualmente vestido com uma bela toalha —, ele remete a outro móvel igualmente transcendente: a cama na qual os presentes eram postos e na qual o festejado foi fabricado. Na mesa — essa cama de pernas altas onde os mortos eram velados — todos se deleitam com “comidas” marginais — “docinhos” e “salgadinhos” que não podem competir com o “bolo”. Bolo que exprime, entre muita coisa, confusão mas que, naquele contexto, é o aniversariante transubstanciado, pois deve ser obrigatória e devidamente comido, num inocente festim canibal.
No nosso caso, o bolo — fabricado com ovos, leite e farinha, devidamente vestido de açúcar e ornado pelas velinhas que anunciam a idade do aniversariante — é uma entidade central. Colocado numa mesa — esse móvel metafísico dotado de alma e igualmente vestido com uma bela toalha —, ele remete a outro móvel igualmente transcendente: a cama na qual os presentes eram postos e na qual o festejado foi fabricado. Na mesa — essa cama de pernas altas onde os mortos eram velados — todos se deleitam com “comidas” marginais — “docinhos” e “salgadinhos” que não podem competir com o “bolo”. Bolo que exprime, entre muita coisa, confusão mas que, naquele contexto, é o aniversariante transubstanciado, pois deve ser obrigatória e devidamente comido, num inocente festim canibal.
Não fosse mamãe, eu não adoraria chocolate — a massa elementar do bolo do meu aniversário de 10 anos.
Tudo isso para exprimir minha admiração e meu afeto aos 80 anos do imortal e diretor referência do cinema nacional Cacá Diegues. Numa deliciosa entrevista concedida ao GLOBO, o aniversariante — com a serenidade que o distingue — remarca que ainda tem planos, pois deseja filmar uma sequência do seu “Deus é brasileiro”, com um título mais condizente (e esperançoso) com o obscuro momento que vivemos. Assim, o “Deus é brasileiro” seria mudado para “Deus 'ainda' é brasileiro” pois, apesar de todos os descalabros, mesmo aos 80, Cacá não desistiu do Brasil.
Pegando a deixa e guardando as óbvias proporções, eu também imagino reescrever o meu “Carnavais, malandros e heróis”— de 1979 (quando o publiquei) para cá, os graves e importantes sermões do politicamente correto suprimiram o riso carnavalesco; os ladrões suplantaram os malandros; e o Brasil, como enxergamos entre a vergonha e o horror, continua precisando de heróis ou, quem sabe, de super-heróis, esses deuses inventados pela sofrida solidão pós-moderna.
Roberto DaMatta
Pegando a deixa e guardando as óbvias proporções, eu também imagino reescrever o meu “Carnavais, malandros e heróis”— de 1979 (quando o publiquei) para cá, os graves e importantes sermões do politicamente correto suprimiram o riso carnavalesco; os ladrões suplantaram os malandros; e o Brasil, como enxergamos entre a vergonha e o horror, continua precisando de heróis ou, quem sabe, de super-heróis, esses deuses inventados pela sofrida solidão pós-moderna.
Roberto DaMatta
Salve-se quem puder
Salvem-se os suicidados da sociedade, como o louco que passa berrando na avenida, entrando pelas janelas do bairro com seu grito, atravessando as paredes, os muros, as portarias. Salvem-se os loucos, os que foram enlouquecidos, e sua loucura fique ainda mais incômoda, mais lúcida, de estigmatizar quem os vê e ouve todo dia.
Salvem-se as crianças em suas alegrias repentinas, por pouco ou nenhum motivo, em sua inocência de casca de ovo, em seus veredictos de anjo, em seus dons de brincar sem brinquedo e fazer de um monte de cascalho um tesouro. Salvem-se as crianças com pais e mães nem sempre sãos, nem sempre bons, nem sempre dignos de um filho.
Esses de outro mundo possível, clandestinos neste mundo, que se salvem se puderem, e quantos puderem, como aqueles que, inacreditavelmente, num último instante se salvam de um afogamento. Os selvagens sem pistola, os últimos inocentes, os sem governo.
Mariana Ianelli
A boa notícia
O primeiro passo é contar a verdade, desmontar a versão de que o presidente Jair Bolsonaro é a vítima e que os palavrões e absurdos de 22 de abril foram “desabafo” de um homem perseguido com sua família, amigos e aliados. Afinal, quem ameaça quem? Quem ataca e quem é vítima? Quem precisa de um “basta, pô!”? Certamente, quem faz discurso em atos que se apropriam das cores e símbolos nacionais, com o QG do Exército ao fundo, para atacar a democracia e a ordem constituída.
E não é de hoje. Quem disse que “basta um soldado e um cabo para fechar o Supremo”? Faz apologia de “rupturas”? Comanda o “gabinete de ódio”? Insiste em intervir em PF, Coaf, Receita? Desafia até protocolos universais de saúde em atos contra o Legislativo e o Judiciário?
O senso de dever e responsabilidade uniu os desiguais do Supremo, pôs as cúpulas do Congresso e de partidos de barbas de molho, mexeu com o instinto democrático da mídia, reanimou velhas associações de belo passado e presente inerte e a até a discreta Sociedade Brasileira de Psiquiatria deu um grito pela democracia. A Igreja Católica anda mais quieta do que a história exige, mas as entidades judaicas acusam indignação com o uso de Israel em vão. Cresce a consciência do que se passa no País, cresce a resistência.
As Forças Armadas não passam ao largo disso. Nelas pululam dúvidas, discordâncias, o temor de quebra de uma imagem exemplar. Em nome do que? Do falso dilema entre defender Bolsonaro dos próprios fantasmas ou ser devoradas por dragões comunistas imaginários que estão sob cada cama, ministério, instituição? Louve-se o silêncio dos comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica. O general Augusto Heleno tentou consertar sua frase sobre “consequências imprevisíveis” e o vice Hamilton Mourão descartou golpes e aventuras militares com desprezo, ironia.
No artigo “O militar surtou”, no Estadão, Manuel Domingos Neto, ex-vice-presidente do CNPq e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED), lembra a presença decisiva das FA na engenharia, topografia, desenho, infraestrutura, artes, ciência, história, matemática, veterinária, logística, aeronáutica. E provoca: para hoje os militares se imiscuírem com terraplanistas, criacionistas, inimigos da razão? Contra a ciência e as pesquisas? Artigos assim servem de boia para militares que querem distância de fake news e golpes.
O mais objetivamente grave da reunião de 22 de abril foi o presidente encarnar Hugo Chávez: “Eu quero todo mundo armado. Povo armado jamais será escravizado”. Não é bravata. Partiu de quem já condecorou e empregou familiares de líder de milícias, derrubou portarias do Exército sobre armas e multiplicou munições nas ruas, enquanto mete as polícias no bolso. Como ficam as FA se milicianos armados tentarem invadir o Supremo, as polícias lavarem as mãos e o circo da democracia pegar fogo? É melhor prevenir do que remediar.
Em 31/03/2019, no texto “Construir, não destruir”, descrevi o que há de comum entre os projetos do capitão Bolsonaro e do coronel Chávez de alimentar as milícias e espancar Judiciário, Legislativo e mídia para instalar suas crenças e delírios de poder. O Brasil, porém, jamais será uma Venezuela. Nem pela direita, nem pela esquerda. Há resistência e é à luz do dia.
Hermenêutica da hemorroida
Como milhões de pessoas ao redor do globo, o discurso do senhor Jair Bolsonaro perante os seus ministros provocou em mim violenta comoção. Considero-o uma das mais extraordinárias peças de retórica jamais produzidas por um chefe de estado — sóbrio ou totalmente embriagado.
A bem dizer aquilo nem foi um discurso: foi um atentado. Jair Bolsonaro fez-se explodir, em meio a todas as excelências do seu governo, detonando com ele as convenções burguesas, a moral cristã e, de caminho, o sólido prestígio da instituição militar.
A bem dizer aquilo nem foi um discurso: foi um atentado. Jair Bolsonaro fez-se explodir, em meio a todas as excelências do seu governo, detonando com ele as convenções burguesas, a moral cristã e, de caminho, o sólido prestígio da instituição militar.
Bolsonaro é, afinal, um revolucionário anarquista infiltrado na ultradireita cristã. Não acredito que os partidos representantes da direita brasileira, as igrejas neopentecostais e o exército se recomponham alguma vez dos estragos causados pela explosão sacrificial do camarada Bolsonaro.
Ao institucionalizar a obscenidade, Bolsonaro corrompe a instituição, num genial gesto anarquista, que Proudhon, onde quer que esteja, deve estar aplaudindo de pé. A eficácia desta subversão revolucionária pode avaliar-se pela condescendência com que pastores e generais aceitaram o discurso de Bolsonaro, e pela tímida tentativa de alguns ministros ao tentarem acompanhá-lo na produção de palavrões, semeando o cupim da desordem nos instáveis alicerces da democracia burguesa. Bolsonaro, portanto, é o messias que os anarquistas radicais há tanto tempo aguardavam.
Contudo, o que mais me surpreendeu e vem inquietando é aquela misteriosa referência às hemorroidas: “O que os caras querem é a nossa hemorroida! É a nossa liberdade! Isso é uma verdade”, afirmou Bolsonaro, firme e enfático. Até hoje, ninguém havia ainda conseguido juntar numa mesma frase, com um mínimo de coerência, os conceitos de liberdade, verdade e hemorroidas.
Cuidado com o ódio
Coimbra, 31 de outubro de 1957 - O ódio não cansa - diz o rifão. E realmente. Mas cega. (...) condenado à realidade de investir instintivamente, sem lógica e sem medida comete erros sobre erros Acumula torpezas, dá foros de evidência ao absurdo, apresenta como verosímil o inverosímil. Na ânsia de demonstrar o que não tem demonstração possível, por ser apenas um movimento sentimental agressivo, excede-se em falsidades. E essa abundância de marradas intempestivas e tolas acaba por gerar nos mais desinteressados a desconfiança e o desejo de tirar a limpo a verdade. E volta-se, nessa altura, o feitiço contra o feiticeiro. Passa o odiento então a ser julgado, não pela aversão subjectiva dum só, mas pela isenção objectiva de todos.
Miguel Torga, "Diário"
Miguel Torga, "Diário"
Está tudo bem
Nunca estivemos tão bem. É tudo muito bom – quase ótimo, eu diria. Já me explico.
2.
Para Georges Perec, o que nos fala é sempre o acontecimento, o insólito, o extraordinário: "Os trens só começam a existir quando descarrilham, e quanto mais passageiros mortos, mais existem." Não por acaso, hoje parecemos intoxicados de realidade.
No entanto, em certas alturas do equador, algumas sociedades desenvolveram ferramentas sofisticadas para ocultar e mesmo normalizar certos desastres. As classes médias brasileiras, por exemplo, sempre conviveram pacificamente com campos de concentração (neste país são chamados de penitenciárias) para negros e pobres, vitimados também fora deles pelo mesmo terrorismo de Estado.
No Brasil, há uma vasta (e, para muitos, invisível) malha ferroviária rumo ao abismo. E na raiz desta invisibilidade está a desumanização do outro – como em todo fascismo, toda escravidão, todo regime opressor.
Nosso tão caro Estado Democrático de Direito jamais foi democratizado nas favelas e quebradas após a Constituição Cidadã de 1988 – e só agora, sob um governo que também ameaça brancos ideológicos com vozes na imprensa, esse massacre parece (um pouco) mais visível.
3.
A pandemia de covid-19 não interrompeu o apetite genocida do Estado. No Brasil, as ditaduras militares sempre só acabam para os brancos.
Na semana retrasada, veio a público o caso de João Pedro Martins, de 14 anos, assassinado pela polícia enquanto brincava com os primos – os agentes do Brasil jogaram duas granadas e atiraram 72 vezes com fuzis na casa da família em São Gonçalo. No dia seguinte, João Vitor da Rocha, 18 anos, foi baleado pela PM enquanto voluntários entregavam cestas básicas a famílias na Cidade de Deus.
Há um vídeo de um desses líderes comunitários dizendo, logo depois do assassinato: "A gente nasceu alvo. João Pedro foi ontem! Eles são genocidas, e nós somos alvo do Estado, mano! Nós é preto, mano."
4.
Ainda que frágeis e recentes políticas identitárias tenham tentado mitigar a exclusão social dos negros no Brasil, o último país do Ocidente a abolir a escravidão manteve o racismo estrutural desde sua Lei Áurea.
Os traços dessa desigualdade não se encontram apenas em diferenças na renda e acesso à educação e saúde, mas em índices ainda mais trágicos. As mulheres negras têm 71% mais chances de morrer assassinadas que as mulheres brancas. Seus filhos também correm mais risco: dos 30 mil jovens assassinados por ano no país onde mais se mata no mundo, 77% são negros.
5.
O genocídio era o mesmo, mas pouco causava comoção durante a social-democracia demofóbica de FHC e o ciclo de esquerda reformista dos anos PT. O cotidiano extermínio do jovem negro e a ausência de direitos civis básicos para essas populações, indígenas e povos ribeirinhos inclusos, jamais foram tratados com a urgência necessária. Por todos os governos da Nova República. Sem exceção.
Como o tal bolo do Delfim, que precisava crescer para depois ser dividido, os direitos básicos de milhões de brasileiros criminalizados por uma política genocida de guerra às drogas ou expulsos de suas terras pelo avanço criminoso de aberrações como a usina hidrelétrica de Belo Monte também puderam ser deixados para depois.
6.
Nas mesas do Rio de Janeiro pré-olímpico, surfando na mui virtuosa aliança entre governo federal, estadual, prefeitura, PT, PMDB e TV Globo, levantar esses assuntos, como qualquer coisa que ameaçasse a boquinha dos muitos envolvidos, era profundamente antipático.
Sei porque escrevo sobre isso em jornais desde 2004, e ataquei as contradições desse projeto ao vivo na televisão por anos, com reações quase sempre estapafúrdias.
Minhas primeiras ameaças de morte? Em 2007, quando publiquei no jornal O Globo uma coluna sobre Tropa de Elite, aquela antologia de memes necrofílicos em formato de longa-metragem. Vírus cultural que pavimentou caminho para o bolsonarismo, o filme logrou normalizar um discurso neofascista pela primeira vez desde a redemocratização.
Poucos meses depois da sua estreia, o deputado Flávio Bolsonaro propôs que o símbolo da força de operações da PM retratada no filme, o Bope, uma caveira atravessada por pistolas, se tornasse patrimônio cultural do Rio de Janeiro. Na campanha presidencial uma década depois, seu pai discursaria em quartéis gritando o slogan do batalhão: caveira.
7.
Na época, eu escrevi que o longa parecia (e servia como) um nauseabundo institucional do Bope, caso exemplar de obra travestida de denúncia, feita à revelia do discurso de seu diretor. Na coluna, eu relacionava a aderência do filme na sociedade brasileira à bronzeada aposentadoria de milicos torturadores da última ditadura, que após pilhar o Estado e assassinar opositores, foram agraciados com a dura rotina de jogar peteca na praia de Copacabana.
Alguns desses fascistas me escreveram dizendo saber meu endereço, que tinham armas e iriam me procurar. Publiquei algumas das ameaças, com seus nomes completos, na coluna da semana seguinte.
E digo algumas porque todas não caberiam.
8.
Dois anos depois desses eventos, aterrissei numa festa da Adidas numa mansão da Gávea, no Rio de Janeiro, a menos de um quilômetro dos muros que separam o alto do bairro da favela da Rocinha.
A primeira coisa que vi quando cheguei à boca-livre übercool foram balões da Adidas flutuando sobre uma piscina adornada com suásticas nazistas nos ladrilhos. No bar, os copos de cerveja estavam empilhados ao lado de um retrato do Almirante Karl Dönitz, que Hitler nomeou em seu testamento ao fim da guerra como chefe de Estado do Reich alemão e comandante-chefe da Wehrmacht.
O que já seria ultrajante virou um caso internacional: a Adidas, como tantas corporações alemãs, foi fundada por engajados membros do partido nazista e chegou a produzir para a mesma Wehrmacht o "Panzerschreck", um lançador de foguetes antitanque. Ainda que a empresa tenha gastado bilhões de dólares nas últimas décadas num esforço de relações públicas para ocultar seu passado, os produtores brasileiros da festa pareceram não se importar com os símbolos presentes na casa que alugaram de um suposto colecionador.
Quando denunciei a história no jornal e na televisão, e comecei a responder entrevistas para a mídia alemã, promoters da cena carioca me escreveram dizendo que não me chamariam nunca mais para nenhuma festa.
9.
Em 1998, em discurso proferido na Câmara dos Deputados em Brasília, Jair Bolsonaro defendeu estudantes de uma turma do Colégio Militar de Porto Alegre por terem eleito Adolf Hitler como personalidade histórica mais admirada: "Eles têm que eleger aqueles que souberam, de uma forma ou de outra, impor ordem e disciplina." Quatro anos depois, em entrevista a um dos programas que o normalizaram durante décadas, afirmou que "profissionalmente Hitler foi um grande estrategista".
O slogan de campanha de Bolsonaro em 2018 foi "Brasil acima de tudo", ecoando o "Deutschland über alles" (Alemanha acima de tudo) hitlerista. Já no governo, segue apropriando-se de lemas nazistas. Sua Secretaria de Comunicação divulgou neste mês a campanha "O trabalho, a união e a verdade vos libertará" – o "Arbeit macht frei" (O trabalho liberta) bolsonarista em tempos de covid-19.
Se o secretário da Cultura Ricardo Alvim emulou Joseph Goebbels em janeiro de 2020, menos de um mês antes, com menor repercussão, o assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, um tal Filipe Martins, cumprimentou um dos filhotes do presidente no Twitter com um "Ya hemos pasao!", saudação histórica do franquismo.
Trata-se de uma equipe afinada. Recentemente, fomos presenteados com o vídeo de uma reunião ministerial na qual o ministro Paulo Guedes citou nominalmente Hjalmar Schacht, ministro da Economia nazista, como um exemplo ao se referir a um plano de reconstrução econômica que inclui mão de obra servil e militarizada.
Pinochet? Ustra? Para o bolsonarismo não basta resgatar nomes do fascismo latino-americano, é preciso ir às suas origens. E nada disso deveria ser surpresa: Bolsonaro nunca enganou ninguém. Se há algo a ser admirado nesse espécime infra-humano é sua coerência e sinceridade. Ao longo dos anos ele e sua família de milicianos nunca esconderam quem eram.
E boa parte dos seus 57 milhões de eleitores sabia exatamente em quem estava votando.
10.
Hoje, passados mais de dez anos desses primeiros contatos com o escancarado fascismo brasileiro, não consigo ver muita diferença entre os sujeitos que, protegendo seu conforto, editais e contracheques, se calaram por tanto tempo sobre as injustiças, as remoções, a criminalização e o massacre contínuo de negros e indígenas no Brasil; os políticos que tiveram a chance histórica de enfrentar esses problemas e escolheram não fazê-lo; os editores que ajudaram a normalizar o candidato fascista (nem sequer de "extrema direita" ele foi chamado no Brasil); os articulistas do chefinho que insistiram numa falsa equivalência entre um candidato democrata e o candidato fascista; os eleitores do candidato fascista; os que seguem defendendo o presidente fascista; e, finalmente, os que conviveram com aquelas suásticas e ficaram na festa bebendo de graça – as únicas pessoas que se negaram a continuar ali foram eu e os dois amigos que me levaram, uma mulher negra e um homem judeu.
E talvez seja por isso que agora esteja tudo bem. Muito melhor do que jamais esteve. Porque, pela primeira vez em sua história, o Brasil exibe, sem recalque, eleito por ampla maioria de votos, seu coraçãozinho fascista, etnocida, racista, misógino. Um reflexo fiel da nação, finalmente. É feio? É real.
E isso é uma coisa boa. Uma coisa mesmo muito boa. Afinal, temos diante de nós uma chance única para que os brancos ideológicos desta geração – e, vá lá, das anteriores – entendam que o produto da sua brutal indiferença ao racismo nosso de cada dia, ao fascismo nosso de cada dia, ao genocídio normalizado de cada dia, ao terrorismo de Estado brasileiro de cada dia, só pode resultar em mais fascismo, cada vez mais fascismo – dessa vez escancarado, sem pudor.
Está tudo bem, tudo ótimo. Muito melhor do que jamais esteve: ainda falta, mas nunca estivemos tão acordados.
J.P. Cuenca
A legitimidade do Governo Bolsonaro acabou mundo afora
No campo das relações internacionais, há ainda um amplo debate sobre a legitimidade externa de um governo, com repercussões sobre seu assentos nas instituições multilaterais e sua capacidade de ser reconhecido como um interlocutor genuíno.
Em muitos sentidos, o Brasil atravessa esse debate.
Internamente, decisões e comportamentos revelaram que o governo não está interessado em assegurar a proteção de seus cidadãos. Seja na Amazônia, seja na periferia das grandes cidades.
A cada cova cavada, a legitimidade original obtida nas urnas é desmanchada. A cada ataque contra a imprensa, ela é diluída. A cada proposta de intervenção nas forças de polícia, tal direito adquirido é suspenso. A cada perdão de multas ambientais, sua autoridade é transformada em abuso de poder.
Ao colocar seus generais para ameaçar a lei, ao declarar abertamente que sua família está acima do direito, ao gargalhar ao ouvir de seu ministro que cada cidadão terá de se apanhar para sobreviver ou ao disparar mentiras nas redes sociais, o governo vê refletido no chão sua sombra: a silhueta do cadáver da democracia.
No plano internacional, a atual resposta do governo Bolsonaro à pandemia se soma a uma série de desastres em sua política externa. O país já havia sido colocado no centro do debate ao adotar uma postura negacionista em relação ao clima. A deterioração da imagem se aprofundou quando o presidente passou a ofender líderes estrangeiros e fazer apologia a ditadores acusados de crimes contra a humanidade.
Em diversas ocasiões, ele foi preterido por outros presidentes sul-americanos em reuniões internacionais, inclusive no G-7. O resultado passou a ser um país dependente dos mestres em Washington e, em relação ao restante do mundo, isolado.
Mas Bolsonaro —e sua rejeição em aceitar a gravidade da pandemia— transformou o país em algo mais sério que pária internacional: um risco sanitário.
Uma a uma, suas principais teses estão sendo rejeitadas pela ciência. Depois da queda de dois ministros da Saúde, o governo trocou o protocolo para incluir a cloroquina em suas recomendações. Na mesma semana, um estudo da revista científica The Lancet chegou à conclusão de que os riscos para a saúde superam as evidências positivas.
A OMS (Organização Mundial de Saúde), dias depois, optou por suspender temporariamente todos os testes com o remédio, medida que foi seguida pela França.
O distanciamento social também foi chancelado pela agência, indicando que não há prova de que um país com intensa transmissão simplesmente verá o desaparecimento do vírus. A única saída para um país que não tem ampla capacidade de testas, segundo a Organização Mundial de Saúde, é a adoção de medidas sociais, como quarentenas ou lockdown.
Em termos políticos, o cenário é consequência do que o governo semeou. Em abril, o Itamaraty ficou de fora de uma aliança mundial criada para desenvolver uma vacina. Constrangidos em Brasília, os diplomatas sequer sabiam que tal mecanismo estava sendo criado.
Semanas depois, os protagonistas na reunião anual da OMS em meados de maio passaram a ser os presidentes da Colômbia e Paraguai, todos comprometidos em lutar contra o vírus. A diplomacia brasileira se recusa a informar sequer se houve um convite a Bolsonaro para ser um dos participantes.
Foi apenas no final do mês, quando o Brasil já tinha se transformado no novo epicentro da doença, que o Itamaraty sinalizou que faria parte da iniciativa da OMS para o compartilhamento de informações e desenvolvimento da vacina. Ainda assim, a adesão foi feita como coadjuvante, deixando países como a Costa Rica e Equador como protagonistas na liderança do projeto e assumindo uma posição que tradicionalmente era do Brasil.
Também chamou a atenção nos bastidores da diplomacia o fato de que o Brasil não fez parte dos líderes internacionais que, nesta semana, iniciaram os trabalhos para redesenhar a economia mundial. A iniciativa lançada na ONU com mais de 50 países contou ainda com um recado por parte do secretário-geral da entidade, Antonio Guterres, contra presidentes que se recusem a aceitar a gravidade da crise: abandonem a “arrogância”.
Mas essa exclusão não ocorreu por acaso. Ela foi resultado de semanas de ataques por parte do governo brasileiro contra a OMS, sugerindo que a entidade fizesse parte de um “plano comunista” para permitir uma maior influência da China num mundo pós-pandemia.
Em reuniões fechadas ou mesmo em público, o chanceler Ernesto Araújo vem defendendo a tese de que o vírus do comunismo precisa ser enfrentado, o que lhe valeu chacotas de seus próprios embaixadores espalhados pelo mundo.
No fim de semana, mais um golpe. E desta vez por parte do principal aliado: os EUA. O governo de Donald Trump anunciou a proibição de voos de brasileiros para os aeroportos americanos. Ainda que a medida tenha sido vendida pelo governo de Bolsonaro como uma questão “técnica”, a decisão desmontou a tese do Planalto de que existiria uma relação privilegiada entre Washington e Brasília.
A medida, aos olhos do restante do mundo, também foi interpretada como um sinal de que a pandemia, no Brasil, está hoje fora de controle.
Bolsonaro ainda terá de se explicar diante da ONU. O relator das Nações Unidas, Baskut Tuncak, decidiu ampliar suas investigações sobre o Brasil e incluir as respostas do governo à covid-19 em seu informe que apontará para as violações de direitos humanos cometidas pelo governo ao não proteger sua população.
O gesto promete aprofundar uma imagem já desgastada e levantar questões sobre a responsabilidade legal do governo diante das mortes.
Outros dois relatores também já criticaram o governo, deixando o Itamaraty irritado com a nova onda de pressão internacional. Até mesmo a Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, alertou que, se a postura negacionista do governo tivesse sido evitada, vidas teriam sido salvas. No Tribunal Penal Internacional, queixas também foram submetidas.
Enquanto isso, no Parlamento Europeu, deputados têm proliferado cartas à Comissão Europeia pedindo que o bloco reveja suas relações com o Brasil. Na Alemanha, deputados deixam claro que não há, hoje, como ratificar o acordo comercial entre UE e o Mercosul.
Numa sociedade que começa a abrir suas portas, a Europa se depara nas prateleiras de jornais com fotos de Bolsonaro são acompanhadas por palavras como “caos”, “catástrofe”, “morte” e “populismo”. Não faltaram ainda protestos, como o que um artista organizou na fachada da embaixada do Brasil em Paris, sede justamente de um dos diplomatas mais vocais na defesa do bolsonarismo.
E, assim, o governo perdeu sua legitimidade. Interna, ao romper o contrato social com uma parcela enorme da população. E, externa, ao violar deliberadamente acordos costurados para proteger o planeta.
A placa com o nome “Brazil” continuará a ser ocupada nas mesas da ONU por embaixadores que representam o governo Bolsonaro pelo mundo. E, internamente, o presidente continua em seu palácio.
Mas sua legitimidade acabou. Jamil Chade
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